Afirma-se amiúde que o “positivismo” (e, por extensão,
Augusto Comte) teria reduzido a Sociologia (e, de modo mais amplo, as Ciências
Humanas) às Ciências Naturais; o nome inicialmente dado à Sociologia – “Física
Social” – seria uma prova cabal disso.
Nada mais errado. Embora essa redução sistemática de uma
ciência à outra seja observada com todas as letras em um dos principais autores
do chamado Círculo de Viena – Rudolf Carnap disse-o claramente no artigo
“Fundamentos lógicos da unidade da ciência” (http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/roman_0048-8593_1978_num_8_21_5208)
–, Augusto Comte repudiava com todas as forças tal postura, chamando-a de
“materialista” e “usurpadora da dignidade de cada ciência”.
Para Comte, cada ciência tem seu objeto específico. Sua
escala enciclopédica indica que, da Matemática à Moral, há um crescimento de
complexidade e uma diminuição de simplicidade e de generalidade; ou seja: na
escala que compreende, nesta ordem, Matemática, Astronomia, Física, Química,
Biologia, Sociologia e Moral, os objetos são cada vez mais complicados, mais específicos
– e mais humanos. Essa escala, sem dúvida, é uma elaboração ideal e abstrata,
que permite a compreensão das relações entre as influências naturais e humanas.
Cada ciência sofre as influências das ciências anteriores, mas tem seus
próprios objetos, “irredutíveis” aos anteriores.
Comte denomina a tendência a reduzir uma ciência superior a
uma inferior – ou seja, a explicar os fenômenos superiores exclusivamente pelos
inferiores – de “materialismo”. Inversamente, explicar um fenômeno inferior por
um superior é “espiritualismo”. Exemplos fáceis de cada uma dessas posturas:
explicar o funcionamento das sociedades humanas pela biologia é uma forma de
materialismo (como feito, por exemplo, pela sociobiologia de Edward Wilson e
pela “memética” de Richard Dawkins); ou explicar a cultura e as idéias pelos
fatores econômicos ou “infra-estruturais”, como feito por Marx. Exemplo do
espiritualismo: afirmar que a dilatação anômala da água (em que ela contrai-se à
medida que diminui a temperatura, mas entre 4° C e 0° C ela expande-se, em vez
de contrair-se), que permite a vida em climas frios, ocorre para que o ser
humano viva; é fácil de perceber o quanto essa postura é própria às teologias
(para quem “deus criou o mundo para o homem”).
As universidades, embora devessem estimular o pensamento
“crítico”, muitas vezes são poços de preconceitos e de repetições de senso
comum. Assim, em textos de apresentação à Sociologia e às Ciências Sociais,
escolhidos ao acaso e com orientações teóricas variadas, o “positivismo” é caracterizado
como redutor da Sociologia às Ciências Naturais, pela aplicação de métodos e
raciocínios da Física (e da Matemática, da Astronomia, da Química e da
Biologia) à Sociologia, além de propor uma indefinida “unidade da ciência”. Dois exemplos variados são estes: Ignácio Cano, “Nas trincheiras do método” (http://www.scielo.br/pdf/soc/v14n31/05.pdf);
Anthony Giddens, “Sociologia” (http://www.grupoa.com.br/site/humanas/3/138/0/5557/5558/0/sociologia.aspx).
(É digno de nota que I. Cano repete o erro, mesmo advogando a validade,
principalmente metodológica, do que chama de “positivismo”.)
Pois bem: não apenas A. Comte critica o materialismo na
Sociologia como critica qualquer outra forma de materialismo, incluindo aqueles
sofridos pelas ciências inferiores; inversamente, também critica os
espiritualismos. Os trechos abaixo evidenciam-no de maneira cristalina.
* * *
“Chaque science inférieure ne doit être
préalablement cultivée qu’autant que l’esprit humain en a besoin pour s’élever
solidement à la science suivante, jusqu’à ce qu’il soit ainsi parvenu à l’étude
systématique de l’Humanité, sa seule station finale. Telle est la loi générale
du vrai régime préliminaire. Quoiqu’elle n’ait pu être démontrée que de nos
jours, elle fut constamment pressentie des véritables organes de cette grande
préparation, ainsi embellie d’un puissant attrait pour leur cœur comme pour
leur esprit. Ce noble instinct est très-sensible chez la plupart des savants si
dignement appréciés par Fontenelle, et même encore chez ceux que jugea
Condorcet. Les moindres d’entre eux s’honoraient de coopérer à la haute mission
que Descartes et Bacon avaient assignée à la science moderne pour préparer la saine
philosophie, base nécessaire de la vraie rénovation sociale” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 471).
“Depuis que cette préparation est
suffisante, que la construction philosophique a surgi, et que la situation
occidentale en réclame l’active consécration, toute tendance à dominer les
études supérieures par les inférieures doit être autant flétrie comme preuve
d’immoralité que comme signe d’incapacité.
Sous cet aspect décisif, l’abus du calcule
n mathématique constitue réellement la première phase spécial du matérialisme
systématique, assez caractérisé, en general, dans mons discours préliminaire.
L’usurpation de la physique par les géomètres, de la chimie par les physiciens,
et de la biologie par les chimistes, deviennnent ensuite de simples prolongements
successifs d’un vicieux régime, dont le principe est toujours le même, et qui
ne peut être radicalement rectifié qu’en son germe inaperçu. Il développe
partout un pareil abus de la juste influence déductive que chaque science
préliminaire exerce nécessairement sur la suivante, d’après son indépendance et
sa généralité plus grandes.
Cette apréciation définitive caractérise à
la fois l’extrême importance et la source normale de la rectification
mathématique dont il s’agit ici. Ainsi liée aux plus hautes questions
philosophiques, et même aux principaux besoins sociaux, elle ne peut émaner que
de l’universelle discipline instituée par la religion sociologique. La science
finale reposant sur l’ensemble des sciences préliminaires, toutes la menaçent
d’usurpations analogues à celle que chacune d’elles subit de la précédente.
Mais ici la résistance est spontanément assurée par la difficulté et
l’importance des questions, trop évidemment supérieures à de telles vues
déductives, quoiqu’elles puissent et doivent les utiliser beaucoup. La
sociologie se trouve ainsi conduite, en reconnaissant le besoin des diverses
études préparatoires, à se réserver toujours leur usage systématique, qu’elle
seule peut apprécier. Par là, elle écarte irrévocablement un ténébreux
matérialisme, sans recourrir à un vain spiritualisme. La fluctuation, logique
et scientifique, de toute notre philosophie naturelle entre la rétrogradation
et l’anarchie se résout alors par l’application convenable de ce principe
universel : chaque science doit diriger l’emploi normal de la précédente
pour sa propre constitution” (Comte, Système
de politique positive, v. I, p. 472-473)