28 abril 2020

O desvirtuamento fascista do civismo


Vejo algumas pessoas qualificarem de “ ‘brasileiros’ ” quem critica o governo. Para esclarecer e evidenciar o problema: de acordo com essas pessoas, quem critica o governo é “brasileiro” e não brasileiro, ou seja, é um brasileiro entre aspas. Em outras palavras, os “verdadeiros” brasileiros não criticam o governo e apenas os falsos (mentirosos, hipócritas, vendidos, traidores, quintas-colunas) brasileiros é que criticam o governo.

Se o caráter fascista do atual governo - amplamente divulgado e documentado - já não fosse um problema sério e enorme, devo admitir que é motivo de muito maior preocupação o fascismo da sociedade civil. Ao contrário do fascismo governamental, o fascismo “social” continuará existindo após a queda do atual governo; assim, seus efeitos sociais, políticos, econômicos, culturais durarão muito, muito, muito mais.

O fascismo social no caso que indiquei acima ocorre porque põe em questão o civismo de quem tem a ousadia de criticar o governo; mais uma vez, isso é o mesmo que dizer que um verdadeiro cidadão, um cidadão “do bem”, um cidadão correto é somente aquele que não critica o governo.

De acordo com esse raciocínio, aqueles que criticam o governo não são bons cidadãos; na verdade, no fundo, nem são cidadãos de verdade. Assim, se não são cidadãos, não merecem respeito, nem apoio, nem a defesa que as leis devem proporcionar... se duvidar, não merecem nem mesmo viver no país. Pôr em dúvida o civismo de quem critica o governo é o começo da odiosa mentalidade do “Brasil, ame-o ou deixe-o”.

É fácil ver que e como o fascismo distorce seriamente o civismo, que ele confunde propositalmente com a adulação ao poder e com o ufanismo incondicional.

Mas se o fascismo perverte o civismo, o que seria o civismo normal, o civismo saudável?

De maneira bastante simples, é a valorização ativa e passiva das tradições nacionais, o respeito às leis, a atividade convergente. Para o que nos interessa, o civismo também inclui de maneira central a tolerância e o respeito à diversidade de opiniões. Aliás, não por acaso, o jurista nazista Carl Schmitt dizia que a política é a oposição entre os amigos e os inimigos: os inimigos são os adversários que, na guerra, devem ser eliminados, isto é, devem ser mortos. Uma política republicana, pacífica e pacifista considera que as pessoas de quem discordamos e que têm propostas sociais e políticas diferentes das nossas são somente isso - são “adversários”, mas nunca “inimigos”. Na República, todos são cidadãos e não se pode nunca falar em “nós contra eles”.

Vale a pena notar que no fundo é quase uma redundância falar em “civismo republicano”. “Civismo” refere-se à vida na “cidade”, mais ou menos como a “política” é a atividade desenvolvida na “polis”. Ora, como felizmente não vivemos na monarquia, mas na república (muito devido à excelente ação dos positivistas - que, não por acaso, é vista com ódio pela família Bolsonaro), todas as pessoas maiores de idade são cidadãs, todas as pessoas maiores de idade têm o direito de participar da vida política. E um dos fundamentos da vida política na república é justamente a trinca de liberdades - de pensamento, de expressão e de associação.

A tríplice liberdade equivale à liberdade de discordar - seja dos outros cidadãos, seja especialmente do governo.

Na República, quando um cidadão discorda do governo e critica esse governo, a sua lealdade ao país, o seu respeito às leis, o seu civismo não é posto em dúvida. Mas, quando alguém afirma que algum crítico do governo não é um verdadeiro brasileiro, ou que é um brasileiro entre aspas, esse alguém está deturpando o civismo e está sendo, por definição, um fascista.

27 abril 2020

Negação da realidade via mistificação parlamentarista


“Se estivéssemos no parlamentarismo, Bolsonaro já teria caído”. Essa frase impressiona, mas é mera mistificação parlamentarista e, sendo mistificação, não nos ajuda em nada.

Hitler foi primeiro-ministro alemão no parlamentarismo durante 12 anos. Sua insanidade era visível para quem quisesse ver e teve um custo altíssimo, não apenas para suas vítimas mas também para o povo alemão de modo geral. Como se sabe, Hitler não “caiu” – e muito menos por virtude do parlamentarismo –; ele matou-se quando percebeu que não tinha mais futuro nenhum.

A Itália, como se sabe, tem primeiros-ministros com mandatos menores que um ano, desde 1945!

A Inglaterra parlamentarista, após aprovar em referendo a tolice nativista e xenófoba do Brexit, teve que fazer três ou quatro eleições gerais em dois anos para que o grupo no poder e favorável ao Brexit conseguisse elaborar internamente uma proposta aceitável por esse mesmo grupo no poder e favorável ao Brexit. Em outras palavras, o parlamentarismo criou e alimentou uma crise burra que durou mais de dois anos e, agora, esse mesmo parlamentarismo corre atrás da reversão prática do Brexit.

Israel – um país parlamentarista – vive uma crise de governabilidade semelhante à da Inglaterra parlamentarista.

Assim, surgem as perguntas: onde estão as apregoadas virtudes de responsabilidade e estabilidade, misticamente atribuídas ao parlamentarismo? A resposta é clara: o parlamentarismo não é nem estável nem responsável.

Em suma: o problema não é o presidencialismo, é o Presidente (e também o descrédito geral da política, em grande parte causada pelos mesmos políticos que sempre defenderam o parlamentarismo, como Aécio Neves, ou que sempre se esconderam atrás do parlamento, como o atual Presidente).

Dito isso, é importante notar que insistir na tolice do parlamentarismo – que, aliás, para ser implantado, teria que ser via (mais um) golpe – é fazer um desserviço para o país, atrapalhar os debates nacionais e, por tudo isso, ajudar o fascismo nacional.

Ao contrário do que dizem os defensores-mistificadores do parlamentarismo (e, em menor proporção, da monarquia), o presidencialismo é o verdadeiro regime de responsabilidade e responsabilização política. Basta minimamente não ser um fanático para perceber-se com clareza que Jair Bolsonaro é um incompetente e um irresponsável; não por acaso, ele é um produto acabado do parlamento e do parlamentarismo, onde sempre pode esconder-se e esconder sua podridão moral e sua insignificância política atrás de 512 outros deputados.

Sugestões sociológicas sobre o "mundo pós-pandemia"


Há algumas semanas vários comentários sobre o “mundo pós-pandemia” têm sido feitos. Há exageros e palpites aí, mas creio que no fundo o esforço vale a pena: por um lado, e neste momento de modo mais importante, porque há a simples e direta necessidade psicológica de termos esperança, de sabermos que o mundo não acabará; por outro lado, porque é necessário sabermos minimamente para onde vamos para podermos agir de acordo (é o “saber para prever a fim de prover” de nosso mestre Augusto Comte).

Minhas sugestões para o que ocorrerá no "mundo pós-pandemia", neste momento, são as seguintes:

1) antes de mais nada, não estamos em uma “economia de guerra”; mas, como é evidente, também não estamos na normalidade econômica. Se precisamos de uma denominação para a atual fase econômico-social (e creio que realmente precisamos), que utilizemos “economia de pandemia”. A economia de guerra envolve privação da população civil, mas não diminuição da atividade econômica; o que ocorre é aumento da atividade econômica e o seu direcionamento para os esforços de guerra (cujo objetivo é tirar vidas e destruir coisas). O que vivemos desde o início de 2020 é a diminuição da atividade econômica, em virtude do “isolamento social”, cujo objetivo é preservar vidas.

2) Até o final do ano com certeza voltaremos à normalidade relativa – isto é, deixando de lado as mortes, os problemas econômicos mundiais (e nacionais) e as necessárias mudanças de hábitos. Assim, quem afirma que “o mundo nunca mais será o mesmo” está vendo apenas e em excesso bobagens como a série televisiva The Walking Dead ou, então, filmes como Independence Day. Rigorosamente, é evidente que o mundo daqui a um segundo será diferente do mundo de um segundo atrás. Dessa forma, afirmar que após a pandemia “o mundo nunca mais será como antes”, das duas uma: ou é uma trivialidade sociológica ou é um exagero completo inspirado na escatologia estadunidense. (“Escatológico” significa duas coisas: (1) relativo ao “fim do mundo” e (2) relativo às fezes.)

3) Haverá um período de luto variável, que deve durar entre seis meses a um ano conforme o lugar. Creio que esse luto será mais individual no conjunto do Brasil, embora ele deva assumir um caráter também mais coletivo em alguns lugares (como a cidade de Manaus). Entretanto, tenho a triste impressão de que, em seu conjunto, devido à nossa burrice coletiva (capitaneada pelos nossos líderes políticos demagógicos, autoritários e obscurantistas, secundada pela nossa burguesia mesquinha e egoísta), não teremos luto coletivo no Brasil;

3) A adoção do feliz hábito de usar EPIs (equipamentos de proteção individual), em particular as máscaras, quando tivermos gripe ou resfriados. Provavelmente esse novo hábito não será generalizado, mas com certeza deixará de ser estranho ver-se nas ruas pessoas usando as máscaras, quando estiverem acometidas de doenças respiratórias.

4) O fortalecimento e a estruturação mais clara do teletrabalho, seja na iniciativa privada, seja no setor público; isso, aliás, ocorrerá não apenas em serviços de escritório mas também se refletirá no incremento do ensino à distância, provavelmente mesmo para crianças e adolescentes. Uma consequência daninha disso será o estímulo ainda maior à “uberização” do trabalho no Brasil, aumentando a informalidade e os trabalhos de baixa qualidade no país.

5) A despeito dos berros histéricos sobre “comunismo”, provenientes dos suspeitos grupos ideológicos da nova extrema direita, haverá um reforço claro do SUS (Sistema Único de Saúde) no Brasil, a ser apoiado também por iniciativas internacionais nesse sentido (como na Inglaterra e até nos EUA).

6) Em virtude da necessidade de firme atuação do Estado para lidar com a pandemia – seja em termos de controle da população, seja em termos de manutenção de um sistema público de saúde eficiente, seja em termos de adoção de medidas econômicas para controle da crise e para recuperação da recessão que virá depois – também ocorrerá um enfraquecimento do discurso ultraliberal (capitaneado pelo Ministro Paulo Guedes e apoiado por capitalistas como João Amoêdo, todos ignorantes da realidade social e política do Brasil). Concomitantemente ao feliz descrédito do ultraliberalismo, talvez ocorra um fortalecimento do keynesianismo e, quem sabe, do neodesenvolvimentismo.

7) Deverá ocorrer a criação de um sistema internacional de prevenção e controle de doenças infectocontagiosas mais eficiente e coordenado, alguma coisa como uma “OMS (Organização Mundial da Saúde) turbinada”) – a despeito dos EUA (e da China e da Rússia) e, portanto, liderada pela União Européia, pela ONU (Organização das Nações Unidas) e por uma coalizão de diversos países.

8) Quando as restrições à movimentação forem totalmente levantadas, lá pelo final do ano, provavelmente teremos uma epidemia de comportamento desregrado, fortemente compensatório em termos subjetivos, resultando, no segundo semestre do ano que vem, em uma explosão de partos (algo semelhante ao que ocorreu nos EUA e, em menor escala, na Europa após a II Guerra Mundial).

De pronto, é nisso que eu penso. Comentários e sugestões são bem-vindos!

02 abril 2020

Ângelo Torres: publicação de "O léxico de Augusto Comte"

A Editora Poiesis publicou no dia 31.3 o livro O léxico de Augusto Comte - criptografia e filosofia, de autoria de Ângelo Torres. A obra corresponde à dissertação de mestrado do autor, defendida na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) em 1997; para essa publicação, manteve-se a formatação original do autor, que faleceu em janeiro de 2019, com quase 92 anos. 

Assim, a publicação contém um prefácio - que, por sua vez, inclui uma pequena autobiografia de Ângelo Torres - e notas de rodapé com a tradução das inúmeras citações em francês e inglês; além disso, o autor previa a inclusão de vários anexos, a maioria dos quais foi incluída (não todos, pois alguns eram extensos índices temáticos, remissivos e onomásticos, cuja publicação era impraticável).

O livro está disponível para venda na Amazon (aqui).

No livro Ângelo Torres dedica-se a examinar - e a explicar - várias características do altamente espefícico estilo de redação do fundador da Religião da Humanidade e do Positivismo, Augusto Comte (1798-1857). A partir disso, Torres examina vários aspectos da filosofia política de Comte, indicando como é que as dificuldades lexicais introduzem importantes camadas de incompreensão em uma filosofia que é profundamente libertária, humana e inclusiva.

Fonte: https://www.amazon.com.br/l%C3%A9xico-Augusto-Comte-criptografia-filosofia-ebook/dp/B08697GDF6/