Este blogue é dedicado a apresentar e a discutir temas de Filosofia Social e Positivismo, o que inclui Sociologia e Política. Bem-vindo e boas leituras; aguardo seus comentários! Meu lattes: http://lattes.cnpq.br/7429958414421167. Pode-se reproduzir livremente as postagens, desde que citada a fonte.
15 outubro 2024
Vídeos dos ciclos de palestras do Centro Positivista do Lavradio: laicidade e utopia republicana
10 setembro 2024
Monitor Mercantil: O que é um voto republicano consciente?
O que é um voto republicano consciente?
Alguns parâmetros e algumas orientações para escolher candidatos através do voto consciente. Por Gustavo Biscaia de Lacerda
Como ocorre a cada dois anos no Brasil, neste 2024 teremos eleições; nesta rodada elegeremos prefeitos e vereadores. As campanhas estão a pleno vapor, desde o dia 16 de agosto. Como sempre ocorre, partidos políticos, Justiça Eleitoral, meios de comunicação, vários grupos da sociedade civil e candidatos afirmam que é importante “votar com consciência”, “votar de maneira esclarecida”, “buscar os melhores candidatos”, mas muito raramente, para não dizer nunca, são apresentados com clareza os critérios que definem a “consciência”, o “esclarecimento”, os “melhores”.
No máximo há a afirmação de que os candidatos escolhidos devem “representar” os eleitores, com isso querendo dizer que os eleitores devem buscar candidatos que pensem e ajam de maneira semelhante aos próprios eleitores; mas, dizendo com clareza, esse parâmetro “demográfico” é péssimo, pois simplesmente desconsidera, quando não despreza, os verdadeiros interesses coletivos e públicos.
Assim, correndo um pouco o risco de soar prepotente, propomo-nos aqui a indicar alguns parâmetros gerais e algumas orientações específicas para a escolha de candidatos a prefeito e a vereador nas próximas (e em todas as demais) eleições. O pressuposto fundamental nessas sugestões é que no Brasil vivemos em uma república, e que isso não é somente um regime político, mas um denso e profundo programa político, social e moral. Como se verá, à primeira vista talvez o programa abaixo pareça muito exigente; mas, por um lado, isso não é motivo para desconsiderá-lo; por outro lado, isso indica o quanto estamos distantes do republicanismo no Brasil.
Com antecedentes históricos que recuam pelo menos até Tiradentes, no final do século 18, desde 15 de novembro de 1889 o Brasil é uma república. Embora à primeira vista o conceito de “república” pareça pouco, na verdade ele é de fato um dos mais densos e importantes conceitos. A noção de república é ao mesmo tempo um ideal e uma realidade: surgida do desenvolvimento histórico, ela também deve orientar a nossa atuação no sentido de valores e a práticas considerados bons, corretos e justos. É claro que nem sempre esses ideais se realizam na prática, mas isso não é motivo para desvalorizá-los ou rejeitá-los.
O sentido fundamental da república é a realização do bem comum, superando o individualismo, o egoísmo, os particularismos. Além disso, a república opõe-se à monarquia, embora isso nem sempre seja tão evidente, daí a república opõe-se à sociedade de castas; isso quer dizer que na república o valor de uma pessoa é dado pelo mérito individual, em vez de ser pelas condições em que nasceu, ou seja, pelo “berço”.
Se a república é a dedicação ao bem comum, é claro que o conjunto da sociedade deve sempre ser levado em consideração, e todos devem orientar suas condutas para a melhoria da vida de todos. Daí se segue que a fraternidade universal é um valor básico e, portanto, o respeito mútuo e a afirmação da dignidade fundamental de todos são pilares da vida coletiva.
Além disso, as relações sociais têm que ser pacíficas: qualquer forma de violência degrada as relações humanas e o ambiente social. O pacifismo e a fraternidade universal impõem, por seu turno, o repúdio ao racismo e às discriminações de “gênero”; da mesma forma, eles exigem o respeito ao meio ambiente e, claro, aos animais. De maneira mais ampla, como a maior parte da sociedade é composta pelo proletariado (ou seja, pelos trabalhadores), os esforços sociais têm que se orientar para a melhoria das suas condições de vida: é esse o objetivo que se deve orientar a ação dos “capitalistas” e da classe média.
Acima de tudo, a dedicação ao bem comum significa a subordinação da política à moral; isso não é um “moralismo” sistemático, mas implica subordinar a política aos princípios e valores maiores da Humanidade, com a família subordinando-se à pátria, e a pátria subordinando-se à Humanidade. Somente assim a política pode ser a dedicação ao bem comum – e, a partir disso, ser fiscalizável e responsabilizável.
O resultado disso é a regra do “viver às claras”: cada um deve adotar valores em sua vida que sejam publicamente defensáveis (e viver conforme esses valores). No caso dos governantes e das figuras públicas, o viver às claras também significa que todos os seus atos são responsabilizáveis, passíveis de acompanhamento, avaliação e cobrança públicas. Como consequência do viver às claras, todos devem sempre falar a verdade e cumprir o prometido – ou, em outras palavras, não se deve mentir nem se deve trair.
Por fim, a instituição republicana básica é a separação entre igreja e Estado: quem aconselha não pode usar a violência do Estado para fazer-se valer; inversamente, o Estado não pode condicionar os seus serviços à aceitação de crenças oficiais. Dessa forma, os sacerdotes devem manter-se afastados do Estado a fim de garantirem sua dignidade, assim como o Estado deve recusar sacerdotes para não ser usado como instrumento de opressão.
Esse afastamento dos sacerdotes em relação à política não quer dizer alienação nem indiferença, mas que, como sacerdotes, não podem trabalhar para o Estado. Daí se seguem as liberdades fundamentais: as liberdades de crença, de manifestação e de associação, além do direito de ir e vir, o habeas corpus e o devido processo legal.
Tudo isso converge para as seguintes orientações específicas
Em primeiro lugar, deve-se votar em quem apresentar estes comportamentos: quem respeitar a laicidade do Estado; a dignidade humana e a fraternidade universal; a dignidade do espaço público e das instituições republicanas; a dignidade e as condições de vida da população brasileira, em particular dos trabalhadores, dos mais pobres e dos povos indígenas; a dignidade da família, independentemente da orientação sexual de cada família; a dignidade das mulheres; quem combater o racismo e outras discriminações; quem defender o meio ambiente e as condições de vida dos animais.
Em segundo lugar, não se deve votar em quem apresentar estes comportamentos: quem for sacerdote (padre, pastor etc.); quem usar o Estado para promover cultos; desvalorizar os problemas sociais e/ou criminalizar a pobreza; promover a cultura da violência e estimular o uso de armas de fogo pela população civil; promover valores e práticas exclusivistas e excludentes, incluindo aí as chamadas pautas identitárias; negar os problemas ambientais (os “negacionistas climáticos”); promover a “cultura do cancelamento” e a “cultura da baixaria”; tiver histórico de ligação com o crime; promover o racismo, a misoginia e preconceitos diversos.
Parece muito? Talvez. Mas, bem vistas as coisas, isso é o mínimo de uma sociedade decente, saudável, digna de ser vivida em conjunto. Menos do que isso é o triste espetáculo que vivemos.
Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.
28 agosto 2024
Programa republicano mínimo – Orientações para o voto no dia 6 de outubro
IGREJA POSITIVISTA VIRTUAL
Programa republicano mínimo
Orientações para o voto no dia 6 de outubro
1. Introdução:
a necessidade de critérios para escolher candidatos
Neste ano, no dia 6 de outubro, teremos eleições
municipais, em que a população brasileira elegerá seus novos prefeitos e
vereadores; desde o dia 16 de agosto temos campanha eleitoral. Os partidos
políticos, a Justiça Eleitoral, os meios de comunicação e vários grupos da
sociedade civil afirmam que é importante “votar com consciência”, “votar de
maneira esclarecida”, “buscar os melhores candidatos”, mas muito raramente,
para não dizer nunca, são apresentados com clareza os critérios que definem a
“consciência”, o “esclarecimento”, os “melhores”. No máximo há a afirmação de
que os candidatos escolhidos devem “representar” os eleitores, com isso
querendo dizer que os candidatos devem pensar e agir de maneira semelhante aos
eleitores – o que, dizendo com clareza, está muito distante dos verdadeiros
interesses sociais.
Com o objetivo de auxiliar a reflexão pública e, na medida
do possível, orientar nossos concidadãos eleitores na escolha de candidatos a
prefeito e a vereador, apresentaremos neste documento alguns critérios positivos e critérios negativos – ou seja, opiniões e comportamentos que os candidatos
devem apresentar para serem escolhidos,
bem como opiniões e comportamentos que são motivos para rejeitar candidatos.
Este manifesto é
dirigido a todos e todas os brasileiros e brasileiras, nossos concidadãos
eleitores e nossas concidadãs eleitoras.
Como se verá, à primeira vista talvez o programa abaixo pareça muito exigente:
mas, por um lado, isso não é motivo para desconsiderá-lo; por outro lado, isso
indica o quanto estamos distantes do republicanismo no Brasil.
Antes, porém, é importante expor os fundamentos políticos,
sociais e morais dos critérios que apresentaremos.
2. A
política positiva e a república
Desde 15 de novembro de 1889 o Brasil é uma República.
Embora à primeira vista o conceito de “república” pareça pouco, na verdade ele
é um dos mais densos e importantes na vida de qualquer cidadão. A noção de
república é um ideal: nem sempre esse
ideal realiza-se na prática, mas isso não é motivo para desvalorizar o ideal,
nem para rejeitá-lo. Vejamos, então, quais são os elementos desse ideal.
O sentido fundamental da república é o bem comum:
efetivamente se dedicar ao bem-estar
coletivo, superando o individualismo,
o egoísmo, os particularismos, isso é ser republicano. Além disso, a
república também se opõe à monarquia e, portanto, à sociedade de castas; em
outras palavras, na república o valor de
uma pessoa é dado pelo mérito individual, em vez de ser pelas condições em
que nasceu (pelo “berço”).
Mais importante do que isso, a dedicação ao bem comum
significa a subordinação da política à
moral, ou seja, a subordinação da política aos princípios e valores maiores
da Humanidade, em que a família subordina-se à pátria e a pátria subordina-se à
Humanidade. Somente assim a atividade política pode ser entendida como a
dedicação ao bem comum e, a partir disso, ser fiscalizada e responsabilizada.
Disso se seguem várias conseqüências. A primeira delas é
que o conjunto da sociedade deve sempre ser levado em consideração. A fraternidade universal é um valor
básico: como todos devem orientar suas condutas para a melhoria de vida de todos,
o respeito mútuo e a afirmação da dignidade fundamental de
todos são pilares da vida coletiva. Daí se segue também que as relações sociais
têm que ser pacíficas: qualquer forma
de violência degrada as relações humanas e o ambiente social. O pacifismo e a
fraternidade universal impõem, por seu turno, o repúdio ao racismo e às
discriminações de “gênero”; da mesma forma, eles exigem o respeito ao meio
ambiente e, claro, aos animais.
Uma segunda conseqüência é que, embora toda sociedade
moderna seja composta por patrícios e proletários, a maior parte da sociedade é
composta pelo proletariado (ou seja, pelos trabalhadores) e os esforços sociais
têm que se orientar para a melhoria das suas condições de vida: é esse o
objetivo que deve orientar a ação dos patrícios.
A regra republicana básica é o “viver às claras”: cada um deve adotar
valores em sua vida que sejam publicamente defensáveis e de fato viver conforme
esses valores. No caso dos governantes e das figuras públicas, o viver às
claras também significa que todos os seus atos são responsabilizáveis, ou seja,
são passíveis de acompanhamento, avaliação e cobrança públicas. A
publicidade dos atos e das motivações é a regra, nunca a exceção. Como
conseqüência do viver às claras, todos devem sempre falar a verdade e cumprir o
prometido – ou, em outras palavras, não se deve mentir nem se deve trair.
A instituição republicana básica é a separação entre igreja e Estado: o aconselhamento não pode nem
precisa da violência do Estado para fazer-se valer, nem o Estado pode
condicionar os seus serviços à aceitação de crenças oficiais. Isso é o que se
chama vulgarmente de “laicidade”; uma de suas conseqüências é que sacerdotes devem manter-se afastados do
Estado a fim de garantirem sua dignidade, assim como o Estado deve recusar
sacerdotes para não ser usado como instrumento de opressão. O afastamento dos
sacerdotes em relação à política não quer
dizer alienação nem indiferença; quer dizer que, como sacerdotes, não podem
trabalhar para o Estado.
A separação entre igreja e Estado é a base das liberdades
fundamentais: são as liberdades de crença, de manifestação e de associação,
assim como o direito de ir e vir, o habeas
corpus e o devido processo legal. Adicionalmente, os órgãos do Estado –
especialmente os que são responsáveis diretos pelo atendimento à população – e
os servidores públicos devem ser valorizados, mantendo-se sempre também a
dignidade da chamada iniciativa privada.
Finalmente, as instituições sociais fundamentais devem ser
valorizadas, a começar pela família.
Entre a família e a sociedade política (as pátrias) as relações são de
complementaridade, não de oposição; o papel da família é o de desenvolvimento
afetivo e de educação moral, preparando os cidadãos para a vida na sociedade
mais ampla; o papel da sociedade política é o de realizar os trabalhos práticos
necessários para manter e desenvolver a vida de todos. Como é mais ampla, a sociedade política regula e protege a
família. As pátrias, por sua vez, devem todas unir-se em prol da
Humanidade. Assim como os proletários devem ser valorizados e respeitados, as
mulheres devem ser valorizadas e ter sua dignidade mantida e afirmada.
Esses valores e essas práticas constituem muito do que é a
república, embora não a esgotem. Tudo isso almeja a realização dos um dos
supremos ideais dos brasileiros e de todos os seres humanos, que é a união da
ordem com o progresso. Como dissemos em outro manifesto[1],
quando a ordem e o progresso ficam separados, eles tornam-se antagônicos um em
relação ao outro, de tal maneira que a ordem transforma-se em ordem retrógrada
e opressiva e o progresso torna-se caótico e também opressivo. Apenas a união
das duas perspectivas, em que ambas sejam simultaneamente respeitadas e
valorizadas, torna possível que cada uma delas seja cumprida. A ordem consiste
na consolidação do progresso, ao passo que o progresso é o desenvolvimento da
ordem; o vínculo entre ambos é o amor, que, em termos políticos, deve ser
entendido em termos de fraternidade, respeito mútuo e tolerância. O respeito à
ordem não equivale à submissão cega ou servil ao poder político; da mesma
forma, a verdadeira relação entre o poder e os cidadãos não é a de um soldado
que se submete ao seu comandante.
3.
Recomendações positivas: procurar
candidatos com este perfil
Considerando os valores e os princípios indicados acima,
recomendamos que se vote em
candidatos a prefeito ou a vereador que apresentem estas características:
-
respeitem e façam valer
a separação entre igreja e Estado (a chamada “laicidade do Estado”)
-
respeitem a dignidade
humana e a fraternidade universal
-
respeitem a dignidade
do espaço público e das instituições republicanas
-
respeitem a dignidade e
valorizem as condições de vida da população brasileira, em particular dos
trabalhadores e dos mais pobres, além dos povos indígenas
-
respeitem a dignidade e
valorizem a família, independentemente da orientação sexual de cada família
-
respeitem e valorizem a
dignidade das mulheres
-
tenham histórico de
combate ao racismo e a outras discriminações
-
tenham histórico de
defesa da dignidade e das condições de vida dos animais
-
tenham histórico de
defesa do meio ambiente
4.
Recomendações negativas: recusar
candidatos com este perfil
Considerando os valores e os princípios indicados acima, recomendamos
que não se vote em candidatos a
prefeito ou a vereador que tenham um histórico pessoal e intelectual contrário
ao republicanismo. De modo específico, rejeitamos
candidaturas que apresentem estas características:
-
sejam membros de
cleros, ou seja, sacerdotes, padres, pastores ou equivalentes
-
promovam o clericalismo
nas funções públicas (o uso do Estado para promover cultos e/ou doutrinas)
-
desvalorizem os
problemas sociais e/ou criminalizem a pobreza
-
promovam a cultura da
violência, em particular estimulando a difusão e o uso de armas de fogo pela população
civil
-
promovam valores e
práticas exclusivistas e excludentes, incluindo aí as chamadas pautas
identitárias
-
neguem os problemas
ambientais (os “negacionistas climáticos”)
-
promovam a “cultura do
cancelamento”
-
promovam a “cultura da
baixaria”
-
tenham histórico de
ligação com o crime, na forma de apoio ou participação em milícias; de apoio ou
participação no crime organizado; de irresponsabilidade pessoal
-
promovam o racismo, a
misoginia e preconceitos diversos
Curitiba, 28 de agosto
de 2024.
[1] Abaixo-assinado A bandeira nacional republicana não é fascista, de 26 de outubro de 2022, disponível em: https://peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=BR127657.
02 abril 2024
Quem são os democratas e os republicanos... dos EUA?
No dia 9 de Arquimedes de 170 (2.4.2024) realizamos nossa prédica, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua décima conferência, dedicada ao regime privado.
No sermão abordamos um tema um pouco diferente, mais a título de esclarecimento que de reflexão: quem são os republicanos e os democratas dos Estados Unidos?
Antes do sermão, fizemos duas exortações: sejamos altruístas! E façamos as orações positivas!
A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://acesse.dev/CvuES) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/NSvMW). O sermão começou aos 46 min 50 s.
As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se abaixo.
* * *
Quem são os democratas e os republicanos... dos EUA?
- O tema da prédica desta semana é “quem são os democratas e os republicanos dos EUA?”
o Naturalmente, surge aí a pergunta: por que esse tema, tão específico e tão fora do habitual das prédicas?
o Os motivos são bem simples e bem claros:
§ Por um lado, as clivagens da política interna dos EUA têm sido cada vez mais importadas para o Brasil, afetando cada vez mais a nossa própria política: basta considerarmos o conservadorismo arquirreacionário evangélico e trumpista, à direita, e o agressivo particularismo e exclusivismo identitário, à esquerda
§ Por outro lado, os sentidos bastante específicos que assumem os termos “democrata” e “republicano” nos EUA (sentidos que têm sido importados para o Brasil) influenciam a maneira como os entendemos aqui no Brasil e, portanto, distorcem e dificultam a maneira como nós, positivistas, entendemo-los
- Antes de passarmos ao tema deste sermão, convém revermos dois pares de conceitos: por um lado, (1) direita/esquerda e, por outro lado, (2) democracia/republicanismo para o Positivismo
- Sobre direita e esquerda:
o Os sentidos desses dois conceitos variaram (e variam) muito ao longo do tempo
o Esses dois conceitos surgiram na Revolução Francesa, na fase da Assembléia Nacional (1789-1792), em que os favoráveis ao fim do feudalismo e dos privilégios sentavam-se à esquerda no alto da sala de reuniões e os defensores dos privilégios sentavam-se à direita embaixo (a sala do plenário da Assembléia era um anfiteatro)
§ Assim, inicialmente a noção política de “progresso” foi associada à noção espacial da esquerda; as noções de “conservadorismo” e/ou de defesa da “ordem (antiga)” foi associada à noção espacial da direita
§ Esse sentido mais ou menos atravessou o século XIX
§ Vale notar que o progressivismo foi associado, ao longo do século XIX, também ao republicanismo e/ou ao “socialismo”
o Após a Revolução Russa (1917), e ainda mais com a Guerra Fria (1947-1991), a esquerda passou a ser vinculada ao marxismo e, de modo mais específico, ao comunismo/sovietismo; a partir disso e em contraposição complementar, a direita associou-se a diversas oposições: conservadorismo, “ordem”, liberdade, liberalismo, livre mercado, autoritarismos de direita e até Ocidente e ocidental
o O fim da Guerra Fria tornou essa oposição confusa e um pouco esvaziada, em que todos os sentidos anteriores mais ou menos se mantêm e confundem-se mutuamente, ao sabor das disputas políticas locais e momentâneas
o Em 1994 Norberto Bobbio propôs que a esquerda é a favor da igualdade e que a direita é a favor da liberdade
§ A proposta de Bobbio tornou-se famosa, mas apresenta defeitos históricos e empíricos evidentes
§ Em todo caso, a proposta de Bobbio apresenta direita e esquerda como propositoras de conceitos afirmativos e moralmente (mais ou menos) defensáveis
- Sobre democracia e republicanismo no âmbito do Positivismo:
o Como sabemos, no Positivismo a república é um dos conceitos políticos mais importantes; na verdade, o conceito fundamental é a sociocracia
§ Tanto a sociocracia quanto, por extensão, a república apresentam o duplo caráter de garantir a ordem social e estimular o progresso social, com as liberdades de consciência, expressão e associação, orientada pela opinião pública positiva, sob o primado da fraternidade universal e, portanto, da paz
o A república, no Positivismo, tem um duplo caráter:
§ Um negativo, que constitui a ausência de monarquia – ou seja, tanto da instituição monárquica quanto, de maneira mais profunda, do seu fundamento filosófico, que é o absolutismo político de tipo teológico
§ Um positivo, que constitui o primado do bem comum pacífico como regulador de todas as relações sociais e de todas as instituições; em particular, essa república deve ter um caráter social e não meramente político
· Novamente: as liberdades de consciência, de expressão e de associação, bem como as garantias individuais e o primado da opinião pública positiva, são fundamentos políticos da república
· O caráter “social” da república significa que ela deve ser voltada para a satisfação das necessidades sociais, especificamente dos trabalhadores; o caráter “meramente político” conferir-lhe-ia um aspecto burguês, ou burguesocrático, servindo apenas para manter a dominação política e a exploração econômica da burguesia (associada ou não à nobreza) sobre o proletariado
o A democracia, por outro lado, é um conceito metafísico, criado para contrapor a “soberania popular” à “soberania divina (dos reis)”; em outras palavras, é um conceito crítico, destrutivo, dissolvente, feito sob medida para negar o poder da monarquia e os seus fundamentos filosóficos
§ A soberania popular é absoluta: ela está sempre certa; por isso, ela rejeita discussão; ela impõe-se a todos e despreza preocupações individuais; como se isso não fosse pouco, há a imposição de uma religião civil (naturalmente, um cristianismo); a opção a tudo isso é a prisão e/ou o exílio
§ A soberania popular – teorizada por Rousseau – apresenta, portanto, todas as características da soberania divina dos reis; o que ela faz é transferir para um “povo” indefinido o que antes era atribuído com clareza aos reis
§ De maneira muito confusa há uma certa noção de “bem comum” ou de “interesse social” na soberania popular; entretanto, muito mais claro e mais forte são suas características evidentemente autoritárias (ou melhor, totalitárias)
§ O que atualmente se chama de “democracia” é uma combinação de limitação liberal do poder, afirmação das liberdades públicas e metafísica da soberania popular, a que se somam as eleições periódicas
· Ou seja: a chamada democracia atual é um nome de qualquer maneira inadequado para regimes políticos incoerentes – em que, ainda assim, considera-se que as liberdades e alguma concepção de bem comum são importantes
- Passando para democratas e republicanos nos EUA:
o Considera-se que a independência dos EUA ocorreu em 4 de julho de 1776, em meio à Guerra de Independência (1775-1783)
o Vale notar que entre 1781 (com redação em 1777) e 1788 os Estados Unidos constituíram-se na forma de uma confederação
§ Essa confederação era regulada pelos “Artigos da Confederação”
§ Embora os Estados Unidos fossem, então, um único país, ele era uma confederação, em que cada estado tinha amplos poderes; não havia um governo nacional, apenas um congresso nacional cujos poderes eram limitados (paz e guerra; moeda; pesos e medidas; comércio exterior)
§ O Presidente do Congresso exercia as funções de chefe do governo
o Com a promulgação da constituição de 1787, que entrou em vigor em 1788, os Estados Unidos assumiram a atual estrutura política: três poderes (“branches”), Presidente da República com poderes nacionais efetivos, congresso bicameral (Senado para representação estadual, Câmara para representação popular), eleição do presidente em dois níveis (via colégio eleitoral)
§ Essa estrutura política dos EUA conjuga diversos mecanismos refletindo as preocupações do final do século XVIII: um federalismo muito intenso, um grande país (com intenções de ampliar-se cada vez mais), a doutrina metafísica da divisão dos três poderes
§ Essa estrutura foi elaborada tanto para limitar o poder efetivo (em particular do governo nacional) quanto para evitar as paixões populares
o A partir daí surgiram dois grupos, ou partidos: de um lado, os republicanos de Jefferson e Madison; de outro lado, os federalistas, de Hamilton
§ Esses partidos tinham esse nome mas não eram partidos no sentido atual; eram mais ajuntamentos de políticos com perspectivas próximas
§ Os republicanos de Jefferson também eram chamados de antifederalistas ou antiadministração (ou antigoverno); apesar do seu nome e do nome do outro partido, eles eram a favor do federalismo, isto é, da autonomia dos estados e da limitação do poder do governo central; também temiam as propostas centralizadoras, por vezes mesmo monarquistas, de Hamilton, que consideravam como potencialmente despóticas, aristocratizantes e antirrepublicanas
· Não é à toa que Jefferson foi o propositor das primeiras dez emendas à constituição dos EUA; essas emendas foram propostas imediatamente após a promulgação da constituição e são consideradas, em seu conjunto, como a “carta de direitos” dos EUA
· Também vale notar que Jefferson foi um dos grandes promotores do republicanismo como filosofia política e também foi o principal defensor da separação entre igreja e Estado
§ Os federalistas de Hamilton, apesar de seu nome, eram centralizadores (e potencialmente antifederalistas) e defendiam maiores poderes para o governo central e poder de ingerência nos estados subnacionais
· Hamilton realizou um importante trabalho de fortalecimento do dólar e de criação de condições para o desenvolvimento nacional dos EUA
o Jefferson foi eleito e reeleito presidente, governando entre 1801 e 1809; a ele sucedeu Madison, que era partidário de Jefferson e que também governou durante dois mandatos (1809-1817); em seguida, também pelo partido republicano de Jefferson, foram eleitos James Monroe (dois mandatos: 1817-1825) e, por fim, John Quincy Adams (1825-1829)
§ Em outras palavras, o partido republicano de Jefferson governou durante cerca de 40 anos; a partir dos anos 1810, viu-se em uma situação de unipartidarismo, na medida em que o partido federalista de Madison dissolveu-se àquela época
§ Ao longo da década de 1820, o partido republicano de Jefferson acabou perdendo sua identidade, perdendo seus valores e tornando-se na prática um partido catch-all, que visava apenas à busca do poder; com isso, acabou desfazendo-se
o Em 1828 constituiu-se o partido democrata, sob Andrew Jackson, para que ele disputasse a presidência da república; ele foi de fato eleito e governou de 1829 a 1837
§ A plataforma de Andrew Jackson podia ser considerada “populista”: apelava para o homem comum (de modo geral agricultor), era contra o Estado forte e contra as elites (que ele via como corruptas e autocentradas); também defendia o protecionismo econômico nos EUA – e, isto é central, era contra a abolição da escravidão (e a favor da remoção forçada dos índios)
§ O partido democrata de Jackson, em termos de continuidade institucional, é o mesmo que existe atualmente
§ Ele manteve-se no poder entre 1829 e 1861
o Em 1854 foi fundado o atual partido republicano, a partir da reunião de antigos adversários dos democratas com democratas contrários à escravidão; ele defendia então o republicanismo, o fim da expansão territorial da escravidão e o fim da escravidão em termos gerais
§ O primeiro presidente republicano foi Lincoln (1861-1865); dessa época até 1932 quase todos os presidentes dos EUA foram republicanos (as exceções foram Grover Cleveland e Woodrow Wilson)
o O partido republicano, no século XIX, tinha sua base no norte e no oeste dos Estados Unidos; de modo geral eram contrários à escravidão (a postura de Lincoln a respeito acabou levando à guerra civil); em oposição, o partido democrata tinha sua base no sul dos Estados Unidos e eram favoráveis à escravidão e, depois da guerra civil, contrários à integração racial
- Em 1929 iniciou-se a grande crise econômica e social; os republicanos então no poder (Hoover) adotaram uma política econômica conservadora, que aprofundou a crise; contra essa política lançou-se o democrata Franklin Roosevelt, que adotou uma plataforma de centro-esquerda, marcada pelo forte intervencionismo econômico
o Governando durante quatro mandatos (1933-1945), Roosevelt lançou o New Deal (“Novo Acordo”, ou “Nova Negociação”), que seria um esforço de Estado de bem-estar social nos EUA
o Em 1942 Roosevelt levou os EUA a participarem da II Guerra Mundial e a promover um novo internacionalismo (via ONU); após 1945, já sob Truman, os EUA surgiram como os grandes vencedores da guerra, com a bomba atômica, líderes do Ocidente e em disputa com a União Soviética
o Tanto o New Deal quanto a guerra alteraram profundamente a política dos EUA, estabelecendo um padrão que foi seguido nas próximas décadas tanto por democratas quanto pelos republicanos: atuação do Estado na economia e preocupações sociais, internacionalismo, ativismo político-militar no exterior
§ Esse padrão foi seguido por democratas e republicanos; os democratas eram mais sociais e mais inclusivos internamente, mas mais agressivos externamente; os republicanos eram menos sociais e inclusivos internamente, mas mais negociadores externamente
o O padrão surgido entre 1932 e 1945 foi modificado em 1981, quando o republicano Ronald Reagan adotou um novo discurso político-social, desprezando o sentido social do New Deal e defendendo a correção moral do individualismo e do egoísmo, no neoliberalismo; na política externa, ele adotou ações externas bastantes agressivas contra o bloco soviético
§ O novo padrão individualista e neoliberal de Reagan é o que vige atualmente
o O democrata Bill Clinton manteve um internacionalismo mais ou menos pacifista e integrador; já em termos econômicos ele promoveu a desregulamentação da economia, em particular do mercado financeiro, estimulando a especulação e os ataques às economias nacionais
§ Na década de 1990 vários elementos juntaram-se: esvaziamento dos movimentos sociais classistas (devido ao fim da Guerra Fria); fim do movimento dos direitos civis dos anos 1960 (devido à vitória desse movimento); aprofundamento do caráter individualista próprio aos EUA e reforçado pelo neoliberalismo de Reagan; moda irracionalista pós-moderna: tudo isso se juntou na esquerda dos EUA, que passou a professar com intensidade o particularismo exclusivista e excludente do identitarismo
o O republicano George W. Bush promoveu um internacionalismo agressivo e unilateral, a que deu fortes elementos nacionalistas e teológicos
§ Os traços do nacionalismo e da teologia política eram profundamente estranhos à tradição dos EUA desde a década de 1930
§ Esses dois traços deitaram raízes e encontraram eco nas décadas seguintes
o Ao longo das décadas de 2000 e 2010 alguns outros elementos surgiram ou ressurgiram: o tradicionalismo reacionário anti-intelectual, antiprogressista e, cabe notar, (paradoxalmente) antiocidental; o desenvolvimento das redes sociais, devido à expansão da internet, e o estímulo da cultura do ódio que é próprio ao modelo de negócios do Vale do Silício; a percepção dos limites e dos problemas da globalização e do neoliberalismo, gerando deslocamento de empregos, o empobrecimento de cidades, estados e países e a crise de 2008; a retomada do caráter imperial da Rússia e seu antiocidentalismo militante
§ Tudo isso convergiu para clivagens da sociedade estadunidense; essas clivagens têm-se aprofundado cada vez mais, sem sinal de que possam reverter-se no curto e no médio prazo
§ Tudo isso também convergiu para a vitória de um político agressivamente “populista”, nacionalista, isolacionista, excludente, xenófobo, reacionário, estimulador da teologia política – o republicano outsider Donald Trump
§ Trump afirma-se com clareza e orgulho que é “conservador” e de “direita”
· Trump é tão agressivo e tão extremos em suas posturas que até mesmo George W. Bush considera-o radical
o Apesar de Trump, os democratas não deixaram de lado o identitarismo e mesmo uma postura agressiva internacionalmente (como no caso de Hillary Clinton); mas, antes, com Barack Obama, e depois, com Joe Biden, assumiram uma postura de apoio aos trabalhadores dos EUA e de internacionalismo – embora sem o apelo direto junto às massas que Trump apresenta
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Em suma:
o Falar de democratas e republicanos dos EUA é
importante porque essa é uma clivagem cada vez mais profunda nesse país e que
temos cada vez mais importado para o Brasil
o A dicotomia direita-esquerda mudou de
sentido ao longo do tempo; não há um sentido único para ela; apesar disso,
forçando um pouco os raciocínios filosóficos e históricos, pode-se dizer que a
esquerda tem maiores preocupações sociais e com o progresso, enquanto a direita
preocupa-se mais com a ordem
o Os sentido dos democratas e dos republicanos
dos EUA mudou ao longo do tempo, em que as posições direita-esquerda variaram
(ou nem seriam aplicáveis)
§ A vinculação do partido democrata com a
esquerda começou nos anos 1930, com Franklin Roosevelt
§ A vinculação explícita do partido
republicano com a direita começou, ou foi muito reforçada, nos anos 1980, com
Ronald Reagan
§ Trump em particular tem conseguido forçar cada vez mais o partido republicano e a direita dos EUA no sentido do exclusivismo, do particularismo, da teologia cristã, do isolacionismo, de um populismo “branco”