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16 julho 2025

Monitor Mercantil: Afinal, o que é a República?

No dia 16.7.2025, o jornal carioca Monitor Mercantil publicou nosso artigo intitulado "Afinal, o que é a República?".

O texto do jornal encontra-se publicado aqui: https://monitormercantil.com.br/afinal-o-que-e-a-republica/.

Reproduzimos abaixo o texto.

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Afinal, o que é a República?

Lembre a fórmula elaborada por Augusto Comte: “Viver para os outros” Por Gustavo Biscaia de Lacerda

Em diversas ocasiões, já falamos, nesta coluna, sobre a República e o republicanismo; nessas ocasiões, apresentamos alguns conceitos gerais a fim de comentarmos situações concretas da vida política brasileira. Entretanto, vale a pena abordarmos diretamente alguns dos princípios gerais e abstratos do republicanismo.

Os dois primeiros princípios da República são dados por seu nome. Por um lado, a República consiste no governo não monárquico; por outro lado, ela afirma o primado do bem público.

Embora muitos pensadores, especialmente de países monarquistas (como a Inglaterra ou a Espanha), finjam que apenas o bem público basta para caracterizar a República, o fato é que esses dois aspectos são estreitamente relacionados.

A monarquia consiste em que o governante é escolhido em uma família específica; essa família tem que ter seus privilégios afirmados pela divindade, ou seja, de maneira caprichosa e profundamente arbitrária. No final das contas, a monarquia é um resquício (implícito ou explícito) das sociedades de castas; assim, na modernidade, a monarquia é radicalmente contra a dignidade individual e os méritos individuais e coletivos.


Os liberais e os pensadores juridicistas gostam de reduzir a República a formalidades políticas e jurídicas. Embora sempre haja necessidade de um certo formalismo, o verdadeiro caráter da República consiste no primado do bem público, ou seja, em seu conteúdo social.

Esse aspecto social precisa ser afirmado; caso contrário, o formalismo juridicista sequestra a República e reduz-se a regras vazias, de modo geral adequadas à manipulação das elites, das oligarquias e da burguesia.

Além do caráter social, a República caracteriza-se pela preponderância da opinião pública. A respeito da opinião pública, nossa época vive uma situação profundamente confusa, incoerente e desnorteada. Não são os meios de comunicação de massa, nem as redes sociais, nem muito menos as “pesquisas de opinião” (ou melhor, as pesquisas de humor momentâneo) que constituem a “opinião pública”: todas essas expressões, ou ondas, são apenas agregados de paixões, mais ou menos incoerentes e, da pior maneira possível, mais ou menos irracionais.

A noção de opinião pública — como, aliás, tudo na chamada teoria política, incluindo a “democracia”, a “legitimidade” ou a “soberania” — tem que ser, necessariamente, idealizada e normativa; assim, não faz sentido, e não é digno, considerar que agregados empíricos incoerentes sejam entendidos como a opinião pública.

De uma perspectiva mais digna, mais ideal e melhor elaborada em termos normativos, a opinião pública deve ser entendida como a opinião expressa por órgãos autônomos da sociedade civil, que estimulam a fraternidade universal, afirmam a participação popular, defendem o bem-estar coletivo. Por outro lado, os órgãos da opinião pública devem rejeitar o ódio, o irracionalismo das paixões cegas, o particularismo, o militarismo, a violência.

A autonomia da opinião pública e seu universalismo moral requerem que ela seja separada do Estado, o que, por sua vez, exige a laicidade do Estado e, portanto, por definição, põe em suspeita todos os intelectuais vinculados ao Estado e também todos os intelectuais estreitamente ligados a partidos políticos, a concepções particularistas e/ou defensoras da violência e do militarismo.

Todas essas concepções condensam-se na fórmula elaborada pelo fundador da Sociologia, Augusto Comte: “Viver para os outros”. Essa máxima é bastante profunda do ponto de vista moral e filosófico, e não é possível explorá-la aqui; mas sua orientação política para o bem público, para o bem coletivo, parece bastante evidente.

Entretanto, o “viver para os outros” — que, afinal, é uma fórmula moral — exige um complemento mais propriamente político: o “viver às claras”. Ainda para Augusto Comte, o “viver às claras” consiste, basicamente, em que todos devemos adotar em nossas vidas parâmetros de conduta que sejam publicamente defensáveis, a partir de concepções racionais e altruístas.

Enquanto os simples cidadãos devem adotar tais parâmetros de modo que suas condutas possam ser avaliadas por seus familiares, amigos e colegas — ou seja, pelas pessoas mais próximas —, todas as pessoas que ocupam posições de poder e influência devem ter suas vidas sempre passíveis de escrutínio público.

A mais elementar dignidade humana rejeita as devassas tão comuns à nossa época, em que as figuras públicas não são objeto de escrutínio, mas de degradação e humilhação; ainda assim, na República, a separação entre o público e o privado não deve ser entendida nos termos absolutos próprios à concepção liberal-burguesa. Dessa forma, não apenas os atos públicos, como também a vida privada dos poderosos, deve ser alvo de exame público.

A vinculação entre o “viver para os outros” e o “viver às claras” no âmbito da República é tão grande que, com as suas habituais profundidade e perspicácia, Augusto Comte nota que todos os poderosos que se recusarem a viver às claras deverão ser suspeitos de não viverem, de fato, para os outros — isto é, para o bem comum.

Na verdade, ele afirmou literalmente isso:

Malgrado as precauções interessadas dos legisladores metafísicos, o instinto ocidental não tardará a ver a publicidade normal dos atos privados como a garantia necessária do verdadeiro civismo. […] Todos os que se recusarem a viver às claras tornar-se-ão justamente suspeitos de não quererem realmente viver para os outros.

(Augusto Comte, Sistema de política positiva, v. IV, 1854, p. 312)

Sem esgotar as suas possibilidades, o que indicamos acima resume bastante da República: não monarquia, primado do bem comum, caráter social, afirmação da opinião pública, “viver para os outros”, “viver às claras”; além disso, fraternidade universal, pacifismo. Isso é muito mais, e muito mais profundo, do que o que se costuma entender por republicanismo nos discursos liberal-burgueses — seja das nossas elites políticas, seja dos intelectuais academicistas.

Esses conceitos foram propostos e, na medida do possível, aplicados no Brasil durante a Primeira República. Devido à necessidade que Getúlio Vargas tinha de legitimar os golpes que deu em 1930 e em 1937, a Primeira República foi sistematicamente desprezada a partir de 3 de outubro de 1930, sendo que, de modo geral, todos os políticos e intelectuais posteriores repetiram o discurso getulista.

Todavia, com um pouco de imaginação e coragem política, é fácil ver como todos os princípios republicanos indicados acima são não apenas passíveis de aplicação direta na realidade brasileira atual, como são cada vez mais urgentemente necessários.

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

15 maio 2025

Novos documentos positivistas no Internet Archive

Graças à colaboração de simpatizantes e adeptos do Positivismo (respectivamente Fernando Pita e Gabriel de Henrique), há pouco tivemos acesso a documentos digitalizados que foram em seguida inseridos no portal Internet Archive.

O total de documentos que carregamos desta vez é de onze, dos quais dez são publicações da Igreja e Apostolado Positivista do Brasil (com autoria de Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes). Os temas abordados são os mais variados: papel das mulheres, respeito aos trabalhadores, direito de greve, direito de ociosidade (ou melhor, de mendicância), anarquismo, Benjamin Constant e muitos outros. Todos esses temas são abordados conforme a Religião da Humanidade, com vistas à organização social e política republicana, nos termos da sociocracia.

Já o o último documento (na verdade, o primeiro da relação) é um livro de Mecânica Geral, escrito por José Eulálio da Silva Oliveira para cursos oficiais conforme a filosofia das ciências de Augusto Comte.



A relação de arquivos e de endereços é a seguinte:

-        José Eulálio da Silva Oliveira - Mecânica geral (1895): disponível aqui: https://archive.org/details/jose-eulalio-da-silva-oliveira-mecanica-geral

-        N. 54: Miguel Lemos e Teixeira Mendes – Liberdade espiritual e organização do trabalho (1888): disponível aqui: https://archive.org/details/n.-54-liberdade-espiritual-e-organizacao-do-trabalho-2a-ed.-fp

-        N. 57: Miguel Lemos – Repressão legal da ociosidade (1888): disponível aqui: https://archive.org/details/n.-57-repressao-legal-da-ociosidade-2a-ed.-fp

-        N. 83: Teixeira Mendes – Liberdade de profissões e serviço doméstico (1890): disponível aqui: https://archive.org/details/n.-83-liberdade-de-profissoes-e-servico-domestico-2a-ed.-fp

-        N. 232: Teixeira Mendes – Greves, ordem republicana e organização social (1906): disponível aqui: https://archive.org/details/n.-232-greves-ordem-republicana-e-organizacao-social-2a-ed.-fp

-        N. 269: Teixeira Mendes – Mais uma vez greves, ordem republicana e organização social (1908): disponível aqui: https://archive.org/details/n.-269-mais-uma-vez-greves-ordem-republicana-e-reorganizacao-social-2a-ed.-fp

-        N. 383: Teixeira Mendes – Positivismo, questão social e anarquismo (1915): disponível aqui: https://archive.org/details/n.-383-positivismo-questao-social-e-anarquismo-2a-ed.-fp

-        N. 392: Teixeira Mendes – Respeito necessário aos descendentes de indígenas e africanos (1915): disponível aqui: https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-descendentes-dos-indigenas-e-africanos-n.-392

-        N. 412: Teixeira Mendes – Despotismo médico, dignidade humana e as mulheres (1917): disponível aqui: https://archive.org/details/n.-412-despotismo-medico-dignidade-e-mulheres-2a-ed.-fp

-        N. 417: Teixeira Mendes – República, proletariado e situação da mulher (1917): disponível aqui: https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-republica-proletariado-e-mulher-n.-417

-        N. 532: Teixeira Mendes – Celebração de Benjamin Constant (1944, originalmente 1917): disponível aqui: https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-celebracao-de-benjamin-constant-n.-532

10 fevereiro 2025

Monitor Mercantil: Bacharelismo jurídico contra a República

O jornal carioca Monitor Mercantil publicou, em sua edição de 10 de fevereiro de 2025, o nosso artigo "O bacharelismo jurídico contra a República".


Reproduzimos abaixo o texto. Boa leitura!

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O bacharelismo jurídico contra a República 

Há talvez uma década assistimos no Brasil a uma crise dura e sistemática da República, em que os poderes Executivo e Legislativo têm sido utilizados para degradar e assaltar o Estado e as instituições. De maneira frágil, em 2022-2023 resistimos a esses ataques, embora permaneça a chantagem contra as instituições republicanas, como se vê na cínica avidez com que se mantém as “emendas ao orçamento”.

Isso não é casual. Misturam-se aí a oportunidade de assaltar o Estado com a mais completa confusão a respeito de quais são os princípios que devem regular a conduta republicana, sem deixar de lado alguns dos piores costumes na vida em comum. Em outras palavras, oportunidades, confusão intelectual e péssimos costumes.

As próprias instituições que deveriam resguardar o conjunto da República atentam contra ela. As críticas geralmente vão contra o poder Executivo – que, bem vistas as coisas, é o governo e é o principal ramo do Estado – e contra o Legislativo – que consiste no fiscal do orçamento –, mas cada vez mais o Judiciário, que em outros períodos manteve uma atuação discreta, apresenta-se como disfuncional.

Na verdade, o problema não é só o poder Judiciário em si, embora ele por si só seja um crescente problema. No Brasil repetimos a teoria dos “três” poderes, mas desde 1988 temos quatro poderes, na medida em que o Ministério Público é autônomo em relação aos demais. Ora, o próprio Ministério Público é extremamente problemático, como as atuações estranhamente conjuntas e conflitantes da Lava Jato, Rodrigo Janot e Augusto Aras ilustram com clareza.

Deixando de lado os graves problemas institucionais, culturais e políticos do Judiciário e do Ministério Público – irresponsabilidade e ausência total de prestação de contas, sem contar a atuação conjunta para aumentarem cada vez mais seus salários –, um traço muito claro deles é o espírito bacharelesco do Direito, ou, simplesmente, o bacharelismo jurídico.

Certamente outras pessoas já definiram o bacharelismo. Para o que nos interessa, o bacharelismo jurídico é o conjunto de hábitos mentais e concretos, ou melhor, de preconceitos compartilhados por estudantes e profissionais formados no curso de Direito, segundo os quais quem tem “formação jurídica” é melhor que quem não tem essa formação. Essa mentalidade implica um respeito automático para quem possui essa formação e – mais importante – implica também um desrespeito, uma desvalorização, uma desconsideração igualmente automática para quem não tem a formação jurídica. É uma das formas mais grotescas e degradantes de academicismo, mas não apresenta o aspecto intelectualista de quem acha que o universo resume-se às universidades; ao contrário, o bacharelismo jurídico considera que só é bom, só presta, só pensa, só tem direito à dignidade humana, só é cidadão quem passou pelo curso de Direito. De modo mais importante, a relação inversa também é verdadeira: para o bacharelismo jurídico, quem não tem formação jurídica simplesmente não presta, não merece respeito, não é cidadão. A quem tem o título de bacharel, paciência, boa vontade, sorrisos abertos; a quem não tem o título, má vontade, irritação, ligeireza, caretas. Consciente e intencional ou, ainda mais, inconsciente e involuntário, trata-se do espírito de abjeta subserviência a quem é chamado de “dotô”.

É claro que, em face de uma acusação desse tipo, a resposta-padrão será negar os traços indicados acima. Mas é no dia-a-dia que percebemos que essa negativa é vazia e o bacharelismo é real e entranhado. De modo geral, o Judiciário é caro, complicado e, de propósito, muito distante da vida dos cidadãos e o Ministério Público segue a mesma trilha – claro, a despeito de todos os rios de tinta que juízes, desembargadores, ministros, procuradores e “membros do Ministério Público” gastam para justificarem-se em discursos autocongratulatórios. Há algumas instituições que deveriam ser mais próximas e acessíveis aos cidadãos, como os juizados especiais (um ramo do Judiciário) e até a Fundação Procon (que é privada): mesmo essas instituições são contaminadas pelo bacharelismo jurídico. (A Defensoria Pública é relativamente nova no Brasil e não temos como argumentar a respeito dela; mas, não duvidamos de que, se apostássemos contra ela no caso do bacharelismo, provavelmente ganharíamos.)

Procon, juizados especiais, ramos não penais do Ministério Público: em todos eles os funcionários têm uma especial deferência para com quem é bacharel em Direito ou está estudando para sê-lo; essa deferência é manifestada por profissionais de carreira e por estagiários, sejam ou não vinculados ao curso de Direito. Além disso, como indicamos, o respeito bacharelesco tem o seu reverso, em que todos os demais cidadãos são alvo de um tratamento impositivo, que faz questão de indicar que não ser bacharel implica uma condição social e moral inferior. O bacharel é tratado com um respeitoso “senhô dotô” (ou “senhora dotôra”); os demais são tratados por um reles “você”. Os estagiários são subservientes aos “dotores”, mas por sua vez exigem a subserviência calada dos demais cidadãos – e, claro, tal exigência é sempre feita sob a ameaça de penalidades, processos, atrasos, multas, decisões desfavoráveis etc. (Prática habitual do Ministério Público, aliás.) Os cidadãos podem estar certos em suas demandas e são ouvidos com displicência e rapidez; mas quando o “dotô” fala, os funcionários do Procon, dos juizados especiais, do Ministério Público, do Judiciário dão-lhe toda a atenção e o tempo do mundo. O “dotô” pode falar o que quiser, os maiores sofismas, as maiores mentiras, as maiores degradações: como é “dotô”, pode falar o que quiser; ao espetáculo de sofismas e erros, o cidadão comum tem que ouvir calado, satisfeito, fingindo que as mentiras são a verdade, que a degradação não rebaixa o ser humano; caso o cidadão reclame, ache ruim, no limite exalte-se, será ameaçado ou exemplarmente punido. É isso o bacharelismo.

A Justiça brasileira, sabe-se, é cara e feita com viés de classe. Ou melhor, ela tem viés de casta, com um aspecto medieval. Ela é cara não apenas porque juízes, desembargadores, promotores e “membros do Ministério Público” exigem salários e penduricalhos cada vez maiores e injustificáveis, sem que se responsabilizem de verdade por suas atuações. De modo mais importante, a Justiça é cara porque o acesso a ela é caro, porque é estruturada de maneira que apenas quem tem dinheiro, ou melhor, muito dinheiro paga as altíssimas taxas cobradas por advogados e pelo sistema judiciário (incluindo aí os cartórios). Esses custos não são feitos apenas para saciar a avidez pecuniária dos envolvidos; esses custos representam o aspecto material de preconceitos de casta, contrários ao povo e à noção republicana de cidadania. Eles são a face material do espírito bacharelesco.

Em suma: para recuperar a República e valorizar a cidadania, o caminho passa necessariamente pelo combate ao bacharelismo jurídico.

 

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

15 outubro 2024

Vídeos dos ciclos de palestras do Centro Positivista do Lavradio: laicidade e utopia republicana

Nos dias 27 e 28 de Carlos Magno de 169 (13 e 14 de julho de 2023) foi criado o Centro Positivista do Lavradio, no Rio de Janeiro, com sede gentilmente compartilhada pela Sociedade Brasileira de Belas Artes. Na ocasião, marcando o acontecimento, ocorreu o I Ciclo de Palestras do Centro Positivista do Lavradio.

Já nos dias 13 e 14 de Frederico de 169 (17 e 18 de novembro de 2023) ocorreu o II Ciclo de Palestras do Centro Positivista do Lavradio.

Em cada uma dessas ocasiões fizemos palestras sobre e a partir do Positivismo: no dia 28 de Carlos Magno apresentamos a palestra "O Positivismo e a laicidade do Estado"; no dia 14 de Frederico apresentamos a palestra "Crítica à República e desistência de uma utopia".

Essas exposições foram gravadas; os seus vídos estão indicados abaixo:

- palestra "O Positivismo e a laicidade do Estado": disponível aqui: https://acesse.dev/J8lFm

- palestra "Crítica à República e desistência de uma utopia", parte 1: disponível aqui: https://l1nq.com/gD7KS

- palestra "Crítica à República e desistência de uma utopia", parte 2: disponível aqui: https://encr.pw/yjp6K

10 setembro 2024

Monitor Mercantil: O que é um voto republicano consciente?

A partir do manifesto "Programa republicano mínimo - orientações para o voto no dia 6 de outubro", redigimos um artigo que foi publicado no jornal carioca Monitor Mercantil do dia 1º de Shakespeare de 170 (9.9.2024), sob o título "O que é um voto republicano consciente?".

Reproduzimos abaixo a versão publicada no jornal. O original pode ser lido aqui: https://monitormercantil.com.br/o-que-e-um-voto-republicano-consciente/.

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O que é um voto republicano consciente?

Alguns parâmetros e algumas orientações para escolher candidatos através do voto consciente. Por Gustavo Biscaia de Lacerda


Como ocorre a cada dois anos no Brasil, neste 2024 teremos eleições; nesta rodada elegeremos prefeitos e vereadores. As campanhas estão a pleno vapor, desde o dia 16 de agosto. Como sempre ocorre, partidos políticos, Justiça Eleitoral, meios de comunicação, vários grupos da sociedade civil e candidatos afirmam que é importante “votar com consciência”, “votar de maneira esclarecida”, “buscar os melhores candidatos”, mas muito raramente, para não dizer nunca, são apresentados com clareza os critérios que definem a “consciência”, o “esclarecimento”, os “melhores”.

No máximo há a afirmação de que os candidatos escolhidos devem “representar” os eleitores, com isso querendo dizer que os eleitores devem buscar candidatos que pensem e ajam de maneira semelhante aos próprios eleitores; mas, dizendo com clareza, esse parâmetro “demográfico” é péssimo, pois simplesmente desconsidera, quando não despreza, os verdadeiros interesses coletivos e públicos.

Assim, correndo um pouco o risco de soar prepotente, propomo-nos aqui a indicar alguns parâmetros gerais e algumas orientações específicas para a escolha de candidatos a prefeito e a vereador nas próximas (e em todas as demais) eleições. O pressuposto fundamental nessas sugestões é que no Brasil vivemos em uma república, e que isso não é somente um regime político, mas um denso e profundo programa político, social e moral. Como se verá, à primeira vista talvez o programa abaixo pareça muito exigente; mas, por um lado, isso não é motivo para desconsiderá-lo; por outro lado, isso indica o quanto estamos distantes do republicanismo no Brasil.

Com antecedentes históricos que recuam pelo menos até Tiradentes, no final do século 18, desde 15 de novembro de 1889 o Brasil é uma república. Embora à primeira vista o conceito de “república” pareça pouco, na verdade ele é de fato um dos mais densos e importantes conceitos. A noção de república é ao mesmo tempo um ideal e uma realidade: surgida do desenvolvimento histórico, ela também deve orientar a nossa atuação no sentido de valores e a práticas considerados bons, corretos e justos. É claro que nem sempre esses ideais se realizam na prática, mas isso não é motivo para desvalorizá-los ou rejeitá-los.

O sentido fundamental da república é a realização do bem comum, superando o individualismo, o egoísmo, os particularismos. Além disso, a república opõe-se à monarquia, embora isso nem sempre seja tão evidente, daí a república opõe-se à sociedade de castas; isso quer dizer que na república o valor de uma pessoa é dado pelo mérito individual, em vez de ser pelas condições em que nasceu, ou seja, pelo “berço”.

Se a república é a dedicação ao bem comum, é claro que o conjunto da sociedade deve sempre ser levado em consideração, e todos devem orientar suas condutas para a melhoria da vida de todos. Daí se segue que a fraternidade universal é um valor básico e, portanto, o respeito mútuo e a afirmação da dignidade fundamental de todos são pilares da vida coletiva.

Além disso, as relações sociais têm que ser pacíficas: qualquer forma de violência degrada as relações humanas e o ambiente social. O pacifismo e a fraternidade universal impõem, por seu turno, o repúdio ao racismo e às discriminações de “gênero”; da mesma forma, eles exigem o respeito ao meio ambiente e, claro, aos animais. De maneira mais ampla, como a maior parte da sociedade é composta pelo proletariado (ou seja, pelos trabalhadores), os esforços sociais têm que se orientar para a melhoria das suas condições de vida: é esse o objetivo que se deve orientar a ação dos “capitalistas” e da classe média.

Acima de tudo, a dedicação ao bem comum significa a subordinação da política à moral; isso não é um “moralismo” sistemático, mas implica subordinar a política aos princípios e valores maiores da Humanidade, com a família subordinando-se à pátria, e a pátria subordinando-se à Humanidade. Somente assim a política pode ser a dedicação ao bem comum – e, a partir disso, ser fiscalizável e responsabilizável.

O resultado disso é a regra do “viver às claras”: cada um deve adotar valores em sua vida que sejam publicamente defensáveis (e viver conforme esses valores). No caso dos governantes e das figuras públicas, o viver às claras também significa que todos os seus atos são responsabilizáveis, passíveis de acompanhamento, avaliação e cobrança públicas. Como consequência do viver às claras, todos devem sempre falar a verdade e cumprir o prometido – ou, em outras palavras, não se deve mentir nem se deve trair.

Por fim, a instituição republicana básica é a separação entre igreja e Estado: quem aconselha não pode usar a violência do Estado para fazer-se valer; inversamente, o Estado não pode condicionar os seus serviços à aceitação de crenças oficiais. Dessa forma, os sacerdotes devem manter-se afastados do Estado a fim de garantirem sua dignidade, assim como o Estado deve recusar sacerdotes para não ser usado como instrumento de opressão.

Esse afastamento dos sacerdotes em relação à política não quer dizer alienação nem indiferença, mas que, como sacerdotes, não podem trabalhar para o Estado. Daí se seguem as liberdades fundamentais: as liberdades de crença, de manifestação e de associação, além do direito de ir e vir, o habeas corpus e o devido processo legal.

Tudo isso converge para as seguintes orientações específicas

Em primeiro lugar, deve-se votar em quem apresentar estes comportamentos: quem respeitar a laicidade do Estado; a dignidade humana e a fraternidade universal; a dignidade do espaço público e das instituições republicanas; a dignidade e as condições de vida da população brasileira, em particular dos trabalhadores, dos mais pobres e dos povos indígenas; a dignidade da família, independentemente da orientação sexual de cada família; a dignidade das mulheres; quem combater o racismo e outras discriminações; quem defender o meio ambiente e as condições de vida dos animais.

Em segundo lugar, não se deve votar em quem apresentar estes comportamentos: quem for sacerdote (padre, pastor etc.); quem usar o Estado para promover cultos; desvalorizar os problemas sociais e/ou criminalizar a pobreza; promover a cultura da violência e estimular o uso de armas de fogo pela população civil; promover valores e práticas exclusivistas e excludentes, incluindo aí as chamadas pautas identitárias; negar os problemas ambientais (os “negacionistas climáticos”); promover a “cultura do cancelamento” e a “cultura da baixaria”; tiver histórico de ligação com o crime; promover o racismo, a misoginia e preconceitos diversos.

Parece muito? Talvez. Mas, bem vistas as coisas, isso é o mínimo de uma sociedade decente, saudável, digna de ser vivida em conjunto. Menos do que isso é o triste espetáculo que vivemos.

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

28 agosto 2024

Programa republicano mínimo – Orientações para o voto no dia 6 de outubro

IGREJA POSITIVISTA VIRTUAL

Programa republicano mínimo  

Orientações para o voto no dia 6 de outubro

  

1. Introdução: a necessidade de critérios para escolher candidatos

 

Neste ano, no dia 6 de outubro, teremos eleições municipais, em que a população brasileira elegerá seus novos prefeitos e vereadores; desde o dia 16 de agosto temos campanha eleitoral. Os partidos políticos, a Justiça Eleitoral, os meios de comunicação e vários grupos da sociedade civil afirmam que é importante “votar com consciência”, “votar de maneira esclarecida”, “buscar os melhores candidatos”, mas muito raramente, para não dizer nunca, são apresentados com clareza os critérios que definem a “consciência”, o “esclarecimento”, os “melhores”. No máximo há a afirmação de que os candidatos escolhidos devem “representar” os eleitores, com isso querendo dizer que os candidatos devem pensar e agir de maneira semelhante aos eleitores – o que, dizendo com clareza, está muito distante dos verdadeiros interesses sociais.

 

Com o objetivo de auxiliar a reflexão pública e, na medida do possível, orientar nossos concidadãos eleitores na escolha de candidatos a prefeito e a vereador, apresentaremos neste documento alguns critérios positivos e critérios negativos – ou seja, opiniões e comportamentos que os candidatos devem apresentar para serem escolhidos, bem como opiniões e comportamentos que são motivos para rejeitar candidatos.

 

Este manifesto é dirigido a todos e todas os brasileiros e brasileiras, nossos concidadãos eleitores e nossas concidadãs eleitoras. Como se verá, à primeira vista talvez o programa abaixo pareça muito exigente: mas, por um lado, isso não é motivo para desconsiderá-lo; por outro lado, isso indica o quanto estamos distantes do republicanismo no Brasil.

 

Antes, porém, é importante expor os fundamentos políticos, sociais e morais dos critérios que apresentaremos.

 

2. A política positiva e a república

 

Desde 15 de novembro de 1889 o Brasil é uma República. Embora à primeira vista o conceito de “república” pareça pouco, na verdade ele é um dos mais densos e importantes na vida de qualquer cidadão. A noção de república é um ideal: nem sempre esse ideal realiza-se na prática, mas isso não é motivo para desvalorizar o ideal, nem para rejeitá-lo. Vejamos, então, quais são os elementos desse ideal.

 

O sentido fundamental da república é o bem comum: efetivamente se dedicar ao bem-estar coletivo, superando o individualismo, o egoísmo, os particularismos, isso é ser republicano. Além disso, a república também se opõe à monarquia e, portanto, à sociedade de castas; em outras palavras, na república o valor de uma pessoa é dado pelo mérito individual, em vez de ser pelas condições em que nasceu (pelo “berço”).

 

Mais importante do que isso, a dedicação ao bem comum significa a subordinação da política à moral, ou seja, a subordinação da política aos princípios e valores maiores da Humanidade, em que a família subordina-se à pátria e a pátria subordina-se à Humanidade. Somente assim a atividade política pode ser entendida como a dedicação ao bem comum e, a partir disso, ser fiscalizada e responsabilizada.

 

Disso se seguem várias conseqüências. A primeira delas é que o conjunto da sociedade deve sempre ser levado em consideração. A fraternidade universal é um valor básico: como todos devem orientar suas condutas para a melhoria de vida de todos, o respeito mútuo e a afirmação da dignidade fundamental de todos são pilares da vida coletiva. Daí se segue também que as relações sociais têm que ser pacíficas: qualquer forma de violência degrada as relações humanas e o ambiente social. O pacifismo e a fraternidade universal impõem, por seu turno, o repúdio ao racismo e às discriminações de “gênero”; da mesma forma, eles exigem o respeito ao meio ambiente e, claro, aos animais.

 

Uma segunda conseqüência é que, embora toda sociedade moderna seja composta por patrícios e proletários, a maior parte da sociedade é composta pelo proletariado (ou seja, pelos trabalhadores) e os esforços sociais têm que se orientar para a melhoria das suas condições de vida: é esse o objetivo que deve orientar a ação dos patrícios.

 

A regra republicana básica é o “viver às claras”: cada um deve adotar valores em sua vida que sejam publicamente defensáveis e de fato viver conforme esses valores. No caso dos governantes e das figuras públicas, o viver às claras também significa que todos os seus atos são responsabilizáveis, ou seja, são passíveis de acompanhamento, avaliação e cobrança públicas. A publicidade dos atos e das motivações é a regra, nunca a exceção. Como conseqüência do viver às claras, todos devem sempre falar a verdade e cumprir o prometido – ou, em outras palavras, não se deve mentir nem se deve trair.

 

A instituição republicana básica é a separação entre igreja e Estado: o aconselhamento não pode nem precisa da violência do Estado para fazer-se valer, nem o Estado pode condicionar os seus serviços à aceitação de crenças oficiais. Isso é o que se chama vulgarmente de “laicidade”; uma de suas conseqüências é que sacerdotes devem manter-se afastados do Estado a fim de garantirem sua dignidade, assim como o Estado deve recusar sacerdotes para não ser usado como instrumento de opressão. O afastamento dos sacerdotes em relação à política não quer dizer alienação nem indiferença; quer dizer que, como sacerdotes, não podem trabalhar para o Estado.

 

A separação entre igreja e Estado é a base das liberdades fundamentais: são as liberdades de crença, de manifestação e de associação, assim como o direito de ir e vir, o habeas corpus e o devido processo legal. Adicionalmente, os órgãos do Estado – especialmente os que são responsáveis diretos pelo atendimento à população – e os servidores públicos devem ser valorizados, mantendo-se sempre também a dignidade da chamada iniciativa privada.

 

Finalmente, as instituições sociais fundamentais devem ser valorizadas, a começar pela família. Entre a família e a sociedade política (as pátrias) as relações são de complementaridade, não de oposição; o papel da família é o de desenvolvimento afetivo e de educação moral, preparando os cidadãos para a vida na sociedade mais ampla; o papel da sociedade política é o de realizar os trabalhos práticos necessários para manter e desenvolver a vida de todos. Como é mais ampla, a sociedade política regula e protege a família. As pátrias, por sua vez, devem todas unir-se em prol da Humanidade. Assim como os proletários devem ser valorizados e respeitados, as mulheres devem ser valorizadas e ter sua dignidade mantida e afirmada.

 

Esses valores e essas práticas constituem muito do que é a república, embora não a esgotem. Tudo isso almeja a realização dos um dos supremos ideais dos brasileiros e de todos os seres humanos, que é a união da ordem com o progresso. Como dissemos em outro manifesto[1], quando a ordem e o progresso ficam separados, eles tornam-se antagônicos um em relação ao outro, de tal maneira que a ordem transforma-se em ordem retrógrada e opressiva e o progresso torna-se caótico e também opressivo. Apenas a união das duas perspectivas, em que ambas sejam simultaneamente respeitadas e valorizadas, torna possível que cada uma delas seja cumprida. A ordem consiste na consolidação do progresso, ao passo que o progresso é o desenvolvimento da ordem; o vínculo entre ambos é o amor, que, em termos políticos, deve ser entendido em termos de fraternidade, respeito mútuo e tolerância. O respeito à ordem não equivale à submissão cega ou servil ao poder político; da mesma forma, a verdadeira relação entre o poder e os cidadãos não é a de um soldado que se submete ao seu comandante.

 

3. Recomendações positivas: procurar candidatos com este perfil

 

Considerando os valores e os princípios indicados acima, recomendamos que se vote em candidatos a prefeito ou a vereador que apresentem estas características:

 

-        respeitem e façam valer a separação entre igreja e Estado (a chamada “laicidade do Estado”)

 

-        respeitem a dignidade humana e a fraternidade universal

 

-        respeitem a dignidade do espaço público e das instituições republicanas

 

-        respeitem a dignidade e valorizem as condições de vida da população brasileira, em particular dos trabalhadores e dos mais pobres, além dos povos indígenas

 

-        respeitem a dignidade e valorizem a família, independentemente da orientação sexual de cada família

 

-        respeitem e valorizem a dignidade das mulheres

 

-        tenham histórico de combate ao racismo e a outras discriminações

 

-        tenham histórico de defesa da dignidade e das condições de vida dos animais

 

-        tenham histórico de defesa do meio ambiente

 

4. Recomendações negativas: recusar candidatos com este perfil

 

Considerando os valores e os princípios indicados acima, recomendamos que não se vote em candidatos a prefeito ou a vereador que tenham um histórico pessoal e intelectual contrário ao republicanismo. De modo específico, rejeitamos candidaturas que apresentem estas características:

 

-        sejam membros de cleros, ou seja, sacerdotes, padres, pastores ou equivalentes

 

-        promovam o clericalismo nas funções públicas (o uso do Estado para promover cultos e/ou doutrinas)

 

-        desvalorizem os problemas sociais e/ou criminalizem a pobreza

 

-        promovam a cultura da violência, em particular estimulando a difusão e o uso de armas de fogo pela população civil

 

-        promovam valores e práticas exclusivistas e excludentes, incluindo aí as chamadas pautas identitárias

 

-        neguem os problemas ambientais (os “negacionistas climáticos”)

 

-        promovam a “cultura do cancelamento”

 

-        promovam a “cultura da baixaria”

 

-        tenham histórico de ligação com o crime, na forma de apoio ou participação em milícias; de apoio ou participação no crime organizado; de irresponsabilidade pessoal

 

-        promovam o racismo, a misoginia e preconceitos diversos

 

 

 

Curitiba, 28 de agosto de 2024.

 

 



[1] Abaixo-assinado A bandeira nacional republicana não é fascista, de 26 de outubro de 2022, disponível em: https://peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=BR127657.  

02 abril 2024

Quem são os democratas e os republicanos... dos EUA?

No dia 9 de Arquimedes de 170 (2.4.2024) realizamos nossa prédica, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua décima conferência, dedicada ao regime privado.

No sermão abordamos um tema um pouco diferente, mais a título de esclarecimento que de reflexão: quem são os republicanos e os democratas dos Estados Unidos?

Antes do sermão, fizemos duas exortações: sejamos altruístas! E façamos as orações positivas!

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://acesse.dev/CvuES) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/NSvMW). O sermão começou aos 46 min 50 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se abaixo.

*   *   *


Quem são os democratas e os republicanos... dos EUA? 

-        O tema da prédica desta semana é “quem são os democratas e os republicanos dos EUA?”

o   Naturalmente, surge aí a pergunta: por que esse tema, tão específico e tão fora do habitual das prédicas?

o   Os motivos são bem simples e bem claros:

§  Por um lado, as clivagens da política interna dos EUA têm sido cada vez mais importadas para o Brasil, afetando cada vez mais a nossa própria política: basta considerarmos o conservadorismo arquirreacionário evangélico e trumpista, à direita, e o agressivo particularismo e exclusivismo identitário, à esquerda

§  Por outro lado, os sentidos bastante específicos que assumem os termos “democrata” e “republicano” nos EUA (sentidos que têm sido importados para o Brasil) influenciam a maneira como os entendemos aqui no Brasil e, portanto, distorcem e dificultam a maneira como nós, positivistas, entendemo-los

-        Antes de passarmos ao tema deste sermão, convém revermos dois pares de conceitos: por um lado, (1) direita/esquerda e, por outro lado, (2) democracia/republicanismo para o Positivismo

-        Sobre direita e esquerda:

o   Os sentidos desses dois conceitos variaram (e variam) muito ao longo do tempo

o   Esses dois conceitos surgiram na Revolução Francesa, na fase da Assembléia Nacional (1789-1792), em que os favoráveis ao fim do feudalismo e dos privilégios sentavam-se à esquerda no alto da sala de reuniões e os defensores dos privilégios sentavam-se à direita embaixo (a sala do plenário da Assembléia era um anfiteatro)

§  Assim, inicialmente a noção política de “progresso” foi associada à noção espacial da esquerda; as noções de “conservadorismo” e/ou de defesa da “ordem (antiga)” foi associada à noção espacial da direita

§  Esse sentido mais ou menos atravessou o século XIX

§  Vale notar que o progressivismo foi associado, ao longo do século XIX, também ao republicanismo e/ou ao “socialismo”

o   Após a Revolução Russa (1917), e ainda mais com a Guerra Fria (1947-1991), a esquerda passou a ser vinculada ao marxismo e, de modo mais específico, ao comunismo/sovietismo; a partir disso e em contraposição complementar, a direita associou-se a diversas oposições: conservadorismo, “ordem”, liberdade, liberalismo, livre mercado, autoritarismos de direita e até Ocidente e ocidental

o   O fim da Guerra Fria tornou essa oposição confusa e um pouco esvaziada, em que todos os sentidos anteriores mais ou menos se mantêm e confundem-se mutuamente, ao sabor das disputas políticas locais e momentâneas

o   Em 1994 Norberto Bobbio propôs que a esquerda é a favor da igualdade e que a direita é a favor da liberdade

§  A proposta de Bobbio tornou-se famosa, mas apresenta defeitos históricos e empíricos evidentes

§  Em todo caso, a proposta de Bobbio apresenta direita e esquerda como propositoras de conceitos afirmativos e moralmente (mais ou menos) defensáveis

-        Sobre democracia e republicanismo no âmbito do Positivismo:

o   Como sabemos, no Positivismo a república é um dos conceitos políticos mais importantes; na verdade, o conceito fundamental é a sociocracia

§  Tanto a sociocracia quanto, por extensão, a república apresentam o duplo caráter de garantir a ordem social e estimular o progresso social, com as liberdades de consciência, expressão e associação, orientada pela opinião pública positiva, sob o primado da fraternidade universal e, portanto, da paz

o   A república, no Positivismo, tem um duplo caráter:

§  Um negativo, que constitui a ausência de monarquia – ou seja, tanto da instituição monárquica quanto, de maneira mais profunda, do seu fundamento filosófico, que é o absolutismo político de tipo teológico

§  Um positivo, que constitui o primado do bem comum pacífico como regulador de todas as relações sociais e de todas as instituições; em particular, essa república deve ter um caráter social e não meramente político

·         Novamente: as liberdades de consciência, de expressão e de associação, bem como as garantias individuais e o primado da opinião pública positiva, são fundamentos políticos da república

·         O caráter “social” da república significa que ela deve ser voltada para a satisfação das necessidades sociais, especificamente dos trabalhadores; o caráter “meramente político” conferir-lhe-ia um aspecto burguês, ou burguesocrático, servindo apenas para manter a dominação política e a exploração econômica da burguesia (associada ou não à nobreza) sobre o proletariado

o   A democracia, por outro lado, é um conceito metafísico, criado para contrapor a “soberania popular” à “soberania divina (dos reis)”; em outras palavras, é um conceito crítico, destrutivo, dissolvente, feito sob medida para negar o poder da monarquia e os seus fundamentos filosóficos

§  A soberania popular é absoluta: ela está sempre certa; por isso, ela rejeita discussão; ela impõe-se a todos e despreza preocupações individuais; como se isso não fosse pouco, há a imposição de uma religião civil (naturalmente, um cristianismo); a opção a tudo isso é a prisão e/ou o exílio

§  A soberania popular – teorizada por Rousseau – apresenta, portanto, todas as características da soberania divina dos reis; o que ela faz é transferir para um “povo” indefinido o que antes era atribuído com clareza aos reis

§  De maneira muito confusa há uma certa noção de “bem comum” ou de “interesse social” na soberania popular; entretanto, muito mais claro e mais forte são suas características evidentemente autoritárias (ou melhor, totalitárias)

§  O que atualmente se chama de “democracia” é uma combinação de limitação liberal do poder, afirmação das liberdades públicas e metafísica da soberania popular, a que se somam as eleições periódicas

·         Ou seja: a chamada democracia atual é um nome de qualquer maneira inadequado para regimes políticos incoerentes – em que, ainda assim, considera-se que as liberdades e alguma concepção de bem comum são importantes

-        Passando para democratas e republicanos nos EUA:

o   Considera-se que a independência dos EUA ocorreu em 4 de julho de 1776, em meio à Guerra de Independência (1775-1783)

o   Vale notar que entre 1781 (com redação em 1777) e 1788 os Estados Unidos constituíram-se na forma de uma confederação

§  Essa confederação era regulada pelos “Artigos da Confederação”

§  Embora os Estados Unidos fossem, então, um único país, ele era uma confederação, em que cada estado tinha amplos poderes; não havia um governo nacional, apenas um congresso nacional cujos poderes eram limitados (paz e guerra; moeda; pesos e medidas; comércio exterior)

§  O Presidente do Congresso exercia as funções de chefe do governo

o   Com a promulgação da constituição de 1787, que entrou em vigor em 1788, os Estados Unidos assumiram a atual estrutura política: três poderes (“branches”), Presidente da República com poderes nacionais efetivos, congresso bicameral (Senado para representação estadual, Câmara para representação popular), eleição do presidente em dois níveis (via colégio eleitoral)

§  Essa estrutura política dos EUA conjuga diversos mecanismos refletindo as preocupações do final do século XVIII: um federalismo muito intenso, um grande país (com intenções de ampliar-se cada vez mais), a doutrina metafísica da divisão dos três poderes

§  Essa estrutura foi elaborada tanto para limitar o poder efetivo (em particular do governo nacional) quanto para evitar as paixões populares

o   A partir daí surgiram dois grupos, ou partidos: de um lado, os republicanos de Jefferson e Madison; de outro lado, os federalistas, de Hamilton

§  Esses partidos tinham esse nome mas não eram partidos no sentido atual; eram mais ajuntamentos de políticos com perspectivas próximas

§  Os republicanos de Jefferson também eram chamados de antifederalistas ou antiadministração (ou antigoverno); apesar do seu nome e do nome do outro partido, eles eram a favor do federalismo, isto é, da autonomia dos estados e da limitação do poder do governo central; também temiam as propostas centralizadoras, por vezes mesmo monarquistas, de Hamilton, que consideravam como potencialmente despóticas, aristocratizantes e antirrepublicanas

·         Não é à toa que Jefferson foi o propositor das primeiras dez emendas à constituição dos EUA; essas emendas foram propostas imediatamente após a promulgação da constituição e são consideradas, em seu conjunto, como a “carta de direitos” dos EUA

·         Também vale notar que Jefferson foi um dos grandes promotores do republicanismo como filosofia política e também foi o principal defensor da separação entre igreja e Estado

§  Os federalistas de Hamilton, apesar de seu nome, eram centralizadores (e potencialmente antifederalistas) e defendiam maiores poderes para o governo central e poder de ingerência nos estados subnacionais

·         Hamilton realizou um importante trabalho de fortalecimento do dólar e de criação de condições para o desenvolvimento nacional dos EUA

o   Jefferson foi eleito e reeleito presidente, governando entre 1801 e 1809; a ele sucedeu Madison, que era partidário de Jefferson e que também governou durante dois mandatos (1809-1817); em seguida, também pelo partido republicano de Jefferson, foram eleitos James Monroe (dois mandatos: 1817-1825) e, por fim, John Quincy Adams (1825-1829)

§  Em outras palavras, o partido republicano de Jefferson governou durante cerca de 40 anos; a partir dos anos 1810, viu-se em uma situação de unipartidarismo, na medida em que o partido federalista de Madison dissolveu-se àquela época

§  Ao longo da década de 1820, o partido republicano de Jefferson acabou perdendo sua identidade, perdendo seus valores e tornando-se na prática um partido catch-all, que visava apenas à busca do poder; com isso, acabou desfazendo-se

o   Em 1828 constituiu-se o partido democrata, sob Andrew Jackson, para que ele disputasse a presidência da república; ele foi de fato eleito e governou de 1829 a 1837

§  A plataforma de Andrew Jackson podia ser considerada “populista”: apelava para o homem comum (de modo geral agricultor), era contra o Estado forte e contra as elites (que ele via como corruptas e autocentradas); também defendia o protecionismo econômico nos EUA – e, isto é central, era contra a abolição da escravidão (e a favor da remoção forçada dos índios)

§  O partido democrata de Jackson, em termos de continuidade institucional, é o mesmo que existe atualmente

§  Ele manteve-se no poder entre 1829 e 1861

o   Em 1854 foi fundado o atual partido republicano, a partir da reunião de antigos adversários dos democratas com democratas contrários à escravidão; ele defendia então o republicanismo, o fim da expansão territorial da escravidão e o fim da escravidão em termos gerais

§  O primeiro presidente republicano foi Lincoln (1861-1865); dessa época até 1932 quase todos os presidentes dos EUA foram republicanos (as exceções foram Grover Cleveland e Woodrow Wilson)

o   O partido republicano, no século XIX, tinha sua base no norte e no oeste dos Estados Unidos; de modo geral eram contrários à escravidão (a postura de Lincoln a respeito acabou levando à guerra civil); em oposição, o partido democrata tinha sua base no sul dos Estados Unidos e eram favoráveis à escravidão e, depois da guerra civil, contrários à integração racial

-        Em 1929 iniciou-se a grande crise econômica e social; os republicanos então no poder (Hoover) adotaram uma política econômica conservadora, que aprofundou a crise; contra essa política lançou-se o democrata Franklin Roosevelt, que adotou uma plataforma de centro-esquerda, marcada pelo forte intervencionismo econômico

o   Governando durante quatro mandatos (1933-1945), Roosevelt lançou o New Deal (“Novo Acordo”, ou “Nova Negociação”), que seria um esforço de Estado de bem-estar social nos EUA

o   Em 1942 Roosevelt levou os EUA a participarem da II Guerra Mundial e a promover um novo internacionalismo (via ONU); após 1945, já sob Truman, os EUA surgiram como os grandes vencedores da guerra, com a bomba atômica, líderes do Ocidente e em disputa com a União Soviética

o   Tanto o New Deal quanto a guerra alteraram profundamente a política dos EUA, estabelecendo um padrão que foi seguido nas próximas décadas tanto por democratas quanto pelos republicanos: atuação do Estado na economia e preocupações sociais, internacionalismo, ativismo político-militar no exterior

§  Esse padrão foi seguido por democratas e republicanos; os democratas eram mais sociais e mais inclusivos internamente, mas mais agressivos externamente; os republicanos eram menos sociais e inclusivos internamente, mas mais negociadores externamente

o   O padrão surgido entre 1932 e 1945 foi modificado em 1981, quando o republicano Ronald Reagan adotou um novo discurso político-social, desprezando o sentido social do New Deal e defendendo a correção moral do individualismo e do egoísmo, no neoliberalismo; na política externa, ele adotou ações externas bastantes agressivas contra o bloco soviético

§  O novo padrão individualista e neoliberal de Reagan é o que vige atualmente

o   O democrata Bill Clinton manteve um internacionalismo mais ou menos pacifista e integrador; já em termos econômicos ele promoveu a desregulamentação da economia, em particular do mercado financeiro, estimulando a especulação e os ataques às economias nacionais

§  Na década de 1990 vários elementos juntaram-se: esvaziamento dos movimentos sociais classistas (devido ao fim da Guerra Fria); fim do movimento dos direitos civis dos anos 1960 (devido à vitória desse movimento); aprofundamento do caráter individualista próprio aos EUA e reforçado pelo neoliberalismo de Reagan; moda irracionalista pós-moderna: tudo isso se juntou na esquerda dos EUA, que passou a professar com intensidade o particularismo exclusivista e excludente do identitarismo

o   O republicano George W. Bush promoveu um internacionalismo agressivo e unilateral, a que deu fortes elementos nacionalistas e teológicos

§  Os traços do nacionalismo e da teologia política eram profundamente estranhos à tradição dos EUA desde a década de 1930

§  Esses dois traços deitaram raízes e encontraram eco nas décadas seguintes

o   Ao longo das décadas de 2000 e 2010 alguns outros elementos surgiram ou ressurgiram: o tradicionalismo reacionário anti-intelectual, antiprogressista e, cabe notar, (paradoxalmente) antiocidental; o desenvolvimento das redes sociais, devido à expansão da internet, e o estímulo da cultura do ódio que é próprio ao modelo de negócios do Vale do Silício; a percepção dos limites e dos problemas da globalização e do neoliberalismo, gerando deslocamento de empregos, o empobrecimento de cidades, estados e países e a crise de 2008; a retomada do caráter imperial da Rússia e seu antiocidentalismo militante

§  Tudo isso convergiu para clivagens da sociedade estadunidense; essas clivagens têm-se aprofundado cada vez mais, sem sinal de que possam reverter-se no curto e no médio prazo

§  Tudo isso também convergiu para a vitória de um político agressivamente “populista”, nacionalista, isolacionista, excludente, xenófobo, reacionário, estimulador da teologia política – o republicano outsider Donald Trump

§  Trump afirma-se com clareza e orgulho que é “conservador” e de “direita”

·         Trump é tão agressivo e tão extremos em suas posturas que até mesmo George W. Bush considera-o radical

o   Apesar de Trump, os democratas não deixaram de lado o identitarismo e mesmo uma postura agressiva internacionalmente (como no caso de Hillary Clinton); mas, antes, com Barack Obama, e depois, com Joe Biden, assumiram uma postura de apoio aos trabalhadores dos EUA e de internacionalismo – embora sem o apelo direto junto às massas que Trump apresenta

-        Em suma:

o   Falar de democratas e republicanos dos EUA é importante porque essa é uma clivagem cada vez mais profunda nesse país e que temos cada vez mais importado para o Brasil

o   A dicotomia direita-esquerda mudou de sentido ao longo do tempo; não há um sentido único para ela; apesar disso, forçando um pouco os raciocínios filosóficos e históricos, pode-se dizer que a esquerda tem maiores preocupações sociais e com o progresso, enquanto a direita preocupa-se mais com a ordem

o   Os sentido dos democratas e dos republicanos dos EUA mudou ao longo do tempo, em que as posições direita-esquerda variaram (ou nem seriam aplicáveis)

§  A vinculação do partido democrata com a esquerda começou nos anos 1930, com Franklin Roosevelt

§  A vinculação explícita do partido republicano com a direita começou, ou foi muito reforçada, nos anos 1980, com Ronald Reagan

§  Trump em particular tem conseguido forçar cada vez mais o partido republicano e a direita dos EUA no sentido do exclusivismo, do particularismo, da teologia cristã, do isolacionismo, de um populismo “branco”