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18 novembro 2022

Crítica à República e desistência de uma utopia libertária, inclusiva e progressista

A República foi proclamada em 1899, tendo amplo apoio popular e de intelectuais. Nos anos seguintes à proclamação, muitos desses intelectuais republicanos passaram a desiludir-se com o novo regime político, pois esperavam mudanças sociais, políticas, econômicas imediatas. As mudanças sociais, como sabemos, são lentas por si sós; a implantação da República teve suas próprias dificuldades e, por fim, de fato muitas mudanças necessárias e desejadas acabaram não sendo implantadas.

A partir de então, esses intelectuais desiludidos passaram a criticar os limites, as falhas e as promessas não cumpridas da República.

O problema é que nessas críticas esses intelectuais - antigos entusiastas do republicanismo - passaram a abandonar moral, intelectual e politicamente a República. Ou seja, em vez de persistirem no projeto, em vez de cobrarem a realização das promessas e das necessidades sociais, eles passaram a deixá-lo de lado. Nessa toada associaram-se aos críticos novos intelectuais, que, por sua vez, tinham cada vez menos compromisso com o republicanismo e, em particular, com a defesa das liberdades.

Assim, esse abandono do projeto republicano, da parte dos intelectuais antigos entusiastas da República (e mesmo da parte de alguns novos intelectuais), teve pelo três ou quatro resultados, não necessariamente mutuamente excludentes:

(1) abriram espaço para a irresponsabilidade social, política e econômica das elites brasileiras;

(2) abriram espaço para a posterior rejeição da República, que acabou realizando-se na forma da Revolução de 1930, e, em particular, para os autoritarismos "puros" e/ou os autoritarismos que tendiam para os totalitarismos, próprios ao Brasil entre 1935 e 1945;

(3) permitiram que a memória da monarquia - tão corretamente criticada nas décadas de 1870 e 1880 (escravidão, castas, degradação do trabalho, filhotismo, igreja oficial, centralização autoritária, imperialismo internacional etc.) - fosse reabilitada, como se os inúmeros e profundos defeitos morais, intelectuais, sociais e políticos da monarquia nunca tivessem ocorrido e como se república não tivesse sido de fato um progresso necessário, com ou sem promessas não cumpridas;

(4) a transmutação, explícita ou implícita, de alguns desses intelectuais republicanos em defensores da monarquia;

(5) uma combinação variada desses aspectos todos.

Ora, bem vistas as coisas, a desistência do projeto republicano da parte desses intelectuais foi um enorme erro. Até então e desde o século XVIII, na história do Brasil o republicanismo era um ideal em si mesmo, uma concepção densa a concentrar, estimular e orientar os esforços morais, intelectuais, políticos, sociais - em outras palavras, o republicanismo era própria e verdadeiramente uma utopia.

Desde então, o Brasil ficou órfão dessa utopia. A muito custo, o republicanismo foi substituído pela "democracia"; mas, como se sabe, tal substituição foi demorada; mas, como não se sabe, a democracia é um substituto muito, muito imperfeito e inadequado para o republicanismo, na medida em que ela (a democracia) é o governo do povo, o que pode ser entendido como "massas", quer sejam as massas que nunca erram ("a voz do povo é a voz de deus", como poderia ser subscrito por Rousseau), quer sejam as massas de indivíduos justapostos (como pode ser subscrito pelos liberais). Quando se estuda a "democracia" de um ponto de vista da teoria política, levando em consideração o republicanismo, torna-se bastante evidente que ela, a democracia, só se torna um regime de liberdades com conteúdo social quando na verdade ela é apenas um nome que corporifica de fato e no fundo a República.

Desde os anos 1930, essa desistência do republicanismo da parte dos intelectuais antigos republicanos é estudada na academia como "crítica à república" e/ou como "crítica ao liberalismo", não como desistência do republicanismo. Em outras palavras, o enfoque básico nesses estudos é o da crítica social e, curiosamente, de um forte mas implícito "evolucionismo", em que nada do que veio antes dos "estudiosos contemporâneos" presta (e, em particular, nada do que veio antes da "democracia", presta); com isso, a história política, social e intelectual está sempre, perpetuamente, recomeçando. Aliás, como já indicamos, além desse curioso evolucionismo anti-histórico, tabula rasa, uma outra consequência dessa perspectiva é a revalorização da monarquia - em que se passa água sanitária sobre todos os sérios, inúmeros e profundos problemas da monarquia e em que esta passa a ser vista como um modelo de virtudes intelectuais, morais, sociais, políticas e econômicas.

Um representante perfeito dessa mentalidade tabula rasa é o famoso (mas, como é fácil de perceber, exageradamente celebrado) sociólogo Florestan Fernandes; antes dele, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda fez a mesma coisa (Sérgio Buarque tem o grave defeito adicional de repetir o preconceito anti-ibérico, ou antiportuguês, que considera que só os anglossaxões prestam e que os ibéricos são burros, preguiçosos, autoritários etc.).

Uma outra maneira de entender a perspectiva academicista básica para estudo dos intelectuais antigos republicanos é a seguinte: desiste-se do republicanismo e desiste-se da utopia republicana; mas, mais importante que isso, também se desiste de entender a desilusão dos intelectuais antigos republicanos como uma etapa de aprendizado intelectual, moral e político, em termos coletivos e históricos da realidade brasileira. Ou seja, desiste-se de entender que a desilusão desses intelectuais era correta e compreensível em um certo sentido; mas que eles erraram profundamente em passar da desilusão para a desistência do projeto republicano e, daí, que eles erraram em deixar o Brasil órfão da utopia republicana e de seu denso conteúdo social e libertário. (De passagem: na França e em Portugal não se cometeu esse erro; não por acaso, o republicanismo nesses países tem um conteúdo denso, ou seja, é uma utopia atual, verdadeira, pulsante.)

Em suma: lamentavelmente, apesar de si mesmos, os intelectuais antigos republicanos erraram - e nós insistimos em não aprender com esse erro.

Uma última observação. Muitos intelectuais antigos republicanos desiludiram-se com a república e acabaram desistindo do projeto republicano; essa perspectiva - a desilução-com-desistência - é a perspectiva-padrão das análises academicistas atuais: é o que argumentei até agora. Se a atuação dos intelectuais desiludidos-desistentes oferece a perspectiva atualmente celebrada e vista como correta, o resultado é que aqueles intelectuais que persistiram no republicanismo, que persistiram valorizando a República e sua utopia, passam a ser vistos como intelectuais alienados, tolos, idealistas, desconectados da realidade - ou, ainda pior, como defensores implícitos ou explícitos da exclusão social, do elitismo, das oligarquias etc. Ora, como os positivistas foram alguns, se não verdadeiramente os únicos, intelectuais organizados e públicos a defender a República e o republicanismo, naturalmente recaem sobre eles todos esses adjetivos negativos que acabamos de enumerar. Aí se evidencia um dos motivos do ridículo com que os academicistas gostam de apresentar os positivistas: não tem nada a ver com as propostas e os comportamentos efetivos dos positivistas, mas com preconceito, com recusa de aprender com a história e com a recusa em persistir em projetos sociais, libertários, inclusivos e progressistas.

01 julho 2021

Sobre o livro "Passado imperfeito", de Tony Judt

O livro Passado imperfeito, do historiador Tony Judt (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2008), é muito interessante e suscita muitas reflexões; essas reflexões concernem tanto ao tema de que o autor trata quanto dos defeitos que o livro apresenta. Como não poderia deixar de ser, a forma como o autor cita Augusto Comte e o Positivismo é exemplar dos defeitos desse livro. Assim, por todos os motivos - positivos e negativos -, parece-me que vale a pena divulgar estas pequenas anotações sobre ele.

O livro pode ser comprado, entre outras lojas, aqui.

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Sobre o livro Passado imperfeito, de Tony Judt



O livro expõe e critica, com base em um certo liberalismo, o comportamento dos intelectuais franceses nos dez anos que se seguiram à II Guerra Mundial. Na última seção do livro essas diversas escolhas são explicadas e justificadas: por que os franceses; por que os dez anos após a II Guerra; até mesmo por que o liberalismo. De modo geral, essas escolhas temáticas fazem pleno sentido: os intelectuais franceses costumavam ser a consciência moral e intelectual da Europa e, daí, do mundo; além disso, o período posterior à II Guerra foi o de acerto de contas com a devastação feita pelo nazismo (antes e durante o conflito). Mas, de modo mais importante, após a II Guerra ocorreu o início da Guerra Fria, o engajamento político estridente dos intelectuais, após uma atividade em geral apolítica e antipolítica até 1940 (ou, pior, até 1944, isto é, até a libertação da França pelos aliados), a adesão da maioria desses intelectuais ao comunismo (quer fossem, quer não fossem eles mesmos comunistas, incluindo aí muitos católicos e todos os existencialistas) e o conseqüente silêncio sistemático desses intelectuais às atrocidades stalinistas e/ou as justificativas mirabolantes que eles davam aos crimes stalinistas.

O argumento do autor em linhas gerais é simples e convincente: antes e durante a II Guerra, muitos intelectuais eram apolíticos ou antipolíticos; o conflito e a Libertação, com o acerto de contas político e moral dos colaboracionistas, acarretou uma crise de consciência dos intelectuais, levando-os ao engajamento; quanto maior a crise (e, antes, quanto mais irracionais e sem sentido os sistemas filosóficos esposados pelos intelectuais, como nos casos paradigmáticos dos existencialistas, Sartre e sua consorte à frente), mais estridente era o engajamento. Na conjuntura da época, esse engajamento era necessariamente esquerdista, na medida em que ele decorria, por um lado, da luta contra o fascismo e, por outro lado, da então recente aliança da União Soviética como “país democrático”. Entretanto, a má consciência dos intelectuais franceses, seja por sua atuação antes da guerra, seja por sua atuação durante a guerra, levou-os a serem cada vez mais radicais em seus engajamentos; a isso se associava também o antiamericanismo e uma valorização extremada da “francesice”: o resultado disso tudo foi uma valorização intensa e intensamente acrítica da União Soviética e uma desvalorização do “liberalismo”; assim, na década que se seguiu à II Guerra, a grande maioria dos intelectuais franceses silenciou-se a respeito dos crimes cometidos por Stálin e/ou pelo comunismo, quando não os justificaram das maneiras mais estapafúrdias possíveis. (Quais os crimes do comunismo? Invasão de países; antissemitismo; aprisionamentos, julgamentos e execuções arbitrárias e em massa; incoerências sistemáticas; censura sistemática.) Essa submissão dos intelectuais ao comunismo tinha elementos messiânicos e milenaristas, bem como de auto-rejeição: no que se refere a este último aspecto, os intelectuais afirmavam com todas as letras, em seus artigos e livros, que, como burgueses, eram desprezíveis e que precisavam do povo, ou do proletariado, para justificarem-se socialmente; por sua vez, o comunismo – e o Partido Comunista em particular – era o canal por definição desse acesso ao proletariado; entretanto, o próprio Partido Comunista (francês, no caso) era explicitamente contra esses mesmos intelectuais.

Esse quadro só mudou após a morte de Stálin, em 1953, e, ainda mais, após o “vazamento” do relatório de 1956 de Kruschev, no XX Congresso do PCUS, em que o novo líder soviético denunciava o culto à personalidade e os crimes de Stálin. O autor observa que, embora a partir disso os intelectuais franceses tenham-se “libertado” do comunismo (ou, pelo menos, tenham passado a “libertar-se” dele), tal libertação foi apenas dos próprios intelectuais, que não deixaram de adotar o mesmo comportamento em relação a outros temas – fosse o anticolonialismo (em face da independência da Argélia), fosse o terceiromundismo (em que a revolução comunista camponesa fora da Europa ganhava o espaço da admiração pelo comunismo europeu) – e, em particular, os intelectuais não passaram, após 1956, a mudar de comportamento em relação ao comunismo na Europa Oriental e na União Soviética: eles simplesmente abandonaram o tema do comunismo europeu (sendo, todavia, obrigados a enfrentá-lo novamente a partir de 1974 – embora o autor não esclareça o que teria ocorrido em 1974 na França).

A exposição que o autor faz das idéias e do comportamento dos intelectuais franceses entre 1944 e 1956 é o ponto forte do livro; essa exposição é organizada tematicamente. Não resta pedra sobre pedra do que ele expõe; os intelectuais franceses foram mesmo infantis e irresponsáveis.

Entretanto, há uma série de problemas metodológicos e teóricos no livro. Em primeiro lugar, o autor faz suas reflexões muito com base em literatura de segunda mão; embora ele cite com freqüência textos dos intelectuais franceses, tais citações com grande regularidade – talvez em pelo menos metade das citações – são obtidas em livros de outros pesquisadores, que já selecionaram as passagens que julgam importantes e interessantes; em outras palavras, o autor não fez de fato uma pesquisa sistemática sobre os originais. Em segundo lugar, embora à primeira vista possa parecer secundário, faltam exposições historiográficas elementares; por exemplo, não faria nenhum mal indicar aos leitores quando ocorreu a invasão nazista da França, a instalação do regime de Vichy, a tomada total do território francês pelos nazistas – ou, então, quando ocorreu o governo socialista de Léon Blum nos anos 1930 ou o que ocorreu na França em 1974.

Mas é nas explicações sociológicas e até psicológicas que o autor oferece para os comportamentos dos intelectuais franceses que estão os seus aspectos mais fracos. O autor argumenta que os intelectuais que atuaram após 1944 desprezavam o liberalismo; o conjunto de sua exposição parece confirmar com clareza esse diagnóstico; mas o autor recua até a Revolução Francesa, ou melhor, até o século XVII (até antes do Iluminismo!) para explicar esse desprezo. Ao tratar das tentativas dos liberais franceses de terem e manterem o poder, ele observa que eles fracassaram mas que a culpa pela falta de êxito do liberalismo na França, em última análise, seria da III República (1870-1940) e dos republicanos, que estavam mais preocupados em serem republicanos que em serem liberais. Ora, os liberais que ele defende eram monarquistas e parlamentaristas (Guizot e Tocqueville, por exemplo), ou seja, defensores da sociedade de castas, dos privilégios de classe, da censura, da repressão e até do colonialismo: nada disso é exposto pelo autor e, assim, muito menos entendido como defeito. Já os republicanos, preocupados em acabar com a instabilidade política e social que caracterizava a França desde 1789, são acusados de não serem liberais, apesar de garantirem as liberdades públicas e mesmo tendo que lidar com o reacionarismo da Igreja Católica e do Exército. Em outras palavras, se a França republicana estava preocupada em garantir a estabilidade e em ser moderna e com liberdades, isso não é problema do e para o autor; na verdade, isso é um defeito a ser criticado. Não é que os “liberais” franceses fossem ruins – para o autor, assim como para outros historiadores (como Pierre Rosanvallon), os liberais franceses seriam bons, a despeito de suas ações concretas e dos regimes que eles apoiaram, justificaram e legitimaram ativamente –; os políticos não liberais é que seriam ruins, mesmo que tais políticos (na III República francesa) tenham procurado agir da melhor maneira possível, de modo a estabilizar o regime, legitimá-lo, combater os reacionários e garantir as liberdades públicas. (Isso não quer dizer que a III República tenha sido perfeita: por exemplo, ela reforçou o colonialismo no Norte da África; mas por outro lado, ela conseguiu manter-se durante 70 anos, enquadrou os reacionários militares ao longo do caso Dreyfus, separou (imperfeitamente) igreja e Estado, passou pela prova duríssima da I Guerra, conseguiu manter-se relativamente ilesa da crise econômica iniciada em 1929 e ainda elegeu um governo socialista em 1936: tudo isso é muito mais do que os liberais franceses fizeram e pretenderam.) Em um aspecto o autor está certo, todavia: a concepção – democrática – de que a Assembléia Nacional seria todo-poderosa; essa idéia, em si mesma puramente democrática, já é em si mesma desastrosa e era criticada por muitos (por exemplo, Augusto Comte) desde antes da III República; no parlamentarismo – que, aliás, é o regime que se segue naturalmente dessa concepção totalitária – isso se torna desastroso. Entretanto, mesmo ao indicar o defeito congênito da democracia rousseauniana, o autor é superficial, seja porque não considera a história política e intelectual efetiva da III República, seja porque, como conseqüência do problema anterior, o autor procede dedutivamente a respeito dessa fase histórica da França.

Essa concepção curiosa que o autor defende baseia-se no seu liberalismo anticomunista. Esse liberalismo anticomunista não é de tradição estadunidense; é mais próximo do liberalismo anticomunista francês, conforme exposto e defendido por Raymond Aron (citado em muitas e elogiosas ocasiões) e, depois, retomado por François Furet. Esse liberalismo anticomunista seguia a tradição do conservadorismo britânico, à la Burke, que rejeitava os projetos de mudança racional e planejada da sociedade, bem como a visão correlata de homens aperfeiçoados: deixando de lado a necessária e correta crítica da total irresponsabilidade dos intelectuais franceses entre 1944 e 1956, o autor considera que eles estavam fadados a serem errados devido ao projeto de mudança racional e planejada do homem e da sociedade; esse projeto seria em si mesmo errado e até imoral, sendo a base para a crítica da Revolução Francesa, da III República francesa, da Revolução Russa e do que veio depois. É bem verdade que os comunistas russos fizeram o possível para estabelecer uma conexão histórica e moral entre 1917 e 1789; mas, em vez de perceber que a história da França era uma coisa e a da Rússia, outra, o autor compra a tese dos comunistas e condena em bloco todo o projeto. Aliás, mais do que isso; o liberalismo anticomunista do autor fá-lo adotar as mesmas concepções historiográficas e sociológicas de François Furet, cuja “nova história crítica” da Revolução Francesa consistia em entender os acontecimentos de 1789-1799 meramente como a sucessão de eventos sociais e políticos – eventos de grande porte, mas em si mesmos sem maiores conseqüências ou importâncias filosóficas, sociológicas e históricas; em outras palavras, para combater o determinismo materialista dos comunistas, o melhor que Furet (e, no presente caso, Judt) tem para oferecer é um historicismo hipercontextualista e politicista, que rejeita qualquer filosofia da história e qualquer filosofia do progresso do ser humano.

Resumindo em si os defeitos do livro, a postura que o autor adota a respeito de Augusto Comte e do Positivismo é exemplar: são poucas citações e referências, mas essas poucas são todas elas negativas e superficiais. Por um lado, as breves exposições que o autor faz do Positivismo são todas erradas e baseiam-se em procedimentos “dedutivos”: o autor tem uma idéia preconcebida (um preconceito, em outras palavras) e quer usar o Positivismo para ilustrar um argumento qualquer; a fim de realizar tal ilustração, ele deduz as conseqüências que lhe interessa no momento. Nenhum dos seus argumentos baseia-se em qualquer tipo de citação ou de referência – e, evidentemente, não há nenhuma do próprio Comte ou dos positivistas –, mas com freqüência, e injustificadamente, o autor associa Comte a Saint-Simon, como se o fundador do Positivismo fosse uma derivação, e uma versão piorada, do conde falido. Por outro lado, o Positivismo é mobilizado para explicar traços que interessam ao autor: por exemplo, um culto às estatísticas; entretanto, não apenas esse traço não corresponde ao Positivismo (Comte era contrário à sociometria como sinônima de Sociologia, como no projeto de Quétélet), como o autor só faz aparecer no presente traços longínquos do Positivismo se esses traços antigos forem, supostamente, negativos, mas nunca positivos; em outras palavras, todas as vezes em que ele invoca o Positivismo ele comete o vício teórico-metodológico do viés de seleção. (Além disso, o autor é incoerente, ao afirmar, no começo do livro, que no início da IV República havia uma preocupação entre muitos intelectuais com as estatísticas oficiais, mas, no final do livro, insistir na idéia de que os intelectuais buscavam manter-se ignorantes da realidade (fosse francesa, fosse estrangeira)).

No que se refere ao tema específico do livro – a exposição das imbecilidades dos intelectuais franceses entre 1944 (ou, talvez, 1940) e 1956 –, isto é, em termos de história das idéias no período subseqüente à II Guerra, o autor é muito bem-sucedido, embora haja diversas limitações, como as indicadas acima. Entretanto, assim que o autor afasta-se do tema específico do livro, as limitações indicadas ganham peso e maculam o seu esforço; sua interpretação filosófica, sociológica e histórica das fontes do irracionalismo, da irresponsabilidade e da imoralidade dos intelectuais franceses desde a década de 1930 e até, pelo menos, 1956 (mas estendendo-se até 1974) revela-se profundamente falha e insatisfatória.

O conjunto do livro deixa, então, um sabor misto, ambígüo, para o leitor. Por um lado, o núcleo duro da pesquisa do autor é importante e em linhas gerais é convincente; a crítica moral que ele realiza funciona, em termos amplos. Mas, por outro lado, a interpretação sociológico-filosófica que ele propõe das origens do problema que denuncia é fraca e, se isso não fosse pouco, a concepção que ele esposa do ser humano e da sociedade, na qual baseia a sua crítica, é ainda mais frágil e superficial (ainda que tenha alguns elementos relevantes – basicamente, a idéia moderna de que as liberdades individuais devem ser preservadas).

Anos depois, o autor pelo menos abrandaria esse liberalismo em favor da defesa de uma certa social-democracia; como o seu liberalismo não é exatamente o anglossaxão (ao estilo Tatcher-Reagan, ou Popper-Hayek-Friedman), mas segue as linhas do liberalismo conforme entendido e praticado por Aron e Furet, essa defesa posterior da social-democracia não é totalmente incoerente; mas, mesmo assim, a ênfase estrita no indivíduo (contra a sociedade) passa para o respeito às noções de coletividade e de bem público. Da mesma forma, Tony Judt tornou-se famoso por seu gigantesco livro Pós-guerra e por centenas de resenhas e comentários sobre livros e pesquisas históricas, filosóficas e políticas: não deixa de ser motivo de tristeza percebermos que uma investigação prévia que ele fez, relevante e útil em si mesma, apresenta uma quantidade enorme de falhas, limitações e equívocos.

(Vale notar que a tradução brasileira é péssima, o que também não ajuda o livro.)

25 agosto 2018

Gazeta do Povo: "Intelectuais no Brasil, mais uma 'traição dos clérigos'"

Artigo de minha autoria publicado em 25.8.2018 no jornal Gazeta do Povo, de Curitiba. O original encontra-se disponível aqui.

Como se verá, o texto é um pouco longo para um artigo de jornal. Todavia, essa extensão foi necessária para que eu pudesse tratar com um mínimo de cuidado do tema abordado - tão cheio de dificuldades conceituais e, ao mesmo tempo, tão repleto de conseqüências.

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Intelectuais no Brasil, mais uma “traição dos clérigos”
  
Em 1927 o francês Julien Benda publicou um livro com um intrigante título: La trahison des clercs, cuja tradução para português é A traição dos clérigos. Esse intrigante nome apresentava uma não menos provocativa idéia: a de que os intelectuais (os “clérigos”) estavam traindo a sua missão e a sociedade ao vincularem-se demais, e de modo inadequado, à política. Essa tese é polêmica em si mesma; a forma como Benda expressou-se não ajudou muito em sua compreensão, ainda que o livro tenha obtido um grande sucesso.

A tese do autor é que o papel dos intelectuais é o de serem a consciência crítica da sociedade, elaborando princípios morais e intelectuais que servem de guia e parâmetro de avaliação da atividade política. Isso significa que os intelectuais podem, e até devem, interessar-se pela política, mas não devem sacrificar a sua autonomia pela política. É importante notar que os intelectuais devem ser os guias em todas as áreas da vida, incluindo aí as artes, as ciências, as relações familiares etc., estabelecendo os ideais mais elevados; como intelectuais, sua atividade consiste precisamente nisso e, inversamente, aqueles que elaboram os parâmetros são os intelectuais (ou os clercs, “clérigos”), independentemente do nome específico que adotem. Mas o âmbito político tem algumas particularidades, em particular o risco de que ele pode conduzir à perdição, ou melhor, à “traição”.

O problema dessa tese está no significado de “autonomia” dos intelectuais: afinal, eles podem ou não participar da vida política? Nesse caso, Benda foi um pouco ambíguo; para ele, como os intelectuais devem ser os guias morais da sociedade e como, de qualquer maneira, os intelectuais são tão cidadãos quanto qualquer outro indivíduo, tratar da política é algo normal e necessário.

Esse “tratar da política” pode consistir em (1) propor parâmetros de ação e ideais a serem perseguidos; também pode consistir em (2) manifestar-se sobre temas políticos correntes (como, por exemplo, campanhas eleitorais); também pode significar (3) lançar-se candidato em pleitos e/ou assumir cargos públicos; por último, pode significar (4) sacrificar a missão de guiar a sociedade para, ao contrário, justificar projetos políticos. Uma outra forma de distinguir os âmbitos de atuação é por meio das palavras que a língua inglesa adota para tratar da política: a discussão moral, institucional e técnica dos arranjos constitucional-legal-institucionais consiste nos debates sobre a polity; as considerações morais, institucionais e técnicas sobre as políticas públicas ocorrem no âmbito das policies; por fim, a política prática do dia-a-dia, incluindo as eleições e os arranjos governativos, ocorrem na politics.

A “traição dos intelectuais” consiste justamente quando os intelectuais pretendem atuar na possibilidade (4) – sacrificar a missão intelectual-moral-técnica em nome dos projetos políticos práticos – ou quando os intelectuais abandonam os debates próprios à polity, às policies ou à fiscalização da politics para, eles próprios, engajarem-se como intelectuais na arena da politics. A traição ocorre quando os pensadores abrem mão justamente do seu papel de elaboradores de idéias, valores e juízos para aderirem ao que outros – que não são intelectuais – elaboram. Os intelectuais “traidores”, portanto, abdicam de seu papel de intelectuais, mas mantêm o título de “intelectuais” (ou a fama de pensadores – não faz diferença).

A explicação que apresentamos acima simplifica e esquematiza muito o argumento de Benda; ele mesmo não foi tão claro, nem tão sistemático, em sua própria exposição. A tese da “traição dos intelectuais” é polêmica por si mesma e permite com enorme facilidade más interpretações, confusões e equívocos, com boa fé ou má fé; além disso, o autor vazou-a em termos que eram ambíguos e bastante idealistas, quase platônicos. De qualquer maneira, tendo elaborado a tese em 1927, Julien Benda escrevia movido por um espírito ainda do século XIX, marcado pelo generoso racionalismo progressista que se iniciou no Iluminismo e consagrou-se na III República francesa (1870-1940). Entretanto, Benda tinha os olhos no século XX e, não por acaso, foram as violentas paixões políticas dos 1900 que ilustraram à perfeição a trahison des clercs: pensemos nos nazistas Carl Schmitt e Martin Heidegger ou nos comunistas Trofim Lysenko ou György Lukács ou o inclassificável (e confuso) Jean-Paul Sartre – todos eles submeteram seguidamente suas idéias às diretrizes políticas de governantes autoritários. Aliás, convém notar que, lamentavelmente, com exceção de Lysenko, todos esses autores continuam sendo lidos e – pior! – respeitados. Não deixa de ser grande motivo de lamento o fato de que o próprio Benda, no final de sua vida, na década de 1950 tornou-se ele próprio um “intelectual traidor”, ao justificar os crimes perpetrados por Stálin e pelo regime comunista na União Soviética: embora tenha escrito com um espírito do século XIX, Benda não resistiu aos terríveis impulsos do século XX.

A melhor forma de entender as idéias de Benda é adotarmos com clareza como parâmetro as idéias de um dos autores que melhor representa o que o século XIX produziu de melhor, o francês Augusto Comte. Este autor, fundador da Sociologia, propôs uma divisão entre o “poder Temporal” e o “poder Espiritual”. O poder Temporal é responsável pela ordem material das sociedades; ele é o governo, ou o Estado, e baseia-se em última análise força física (em um sentido que foi, depois, popularizado pelo alemão Max Weber): ele faz e impõe as leis; assim, ele modifica “objetivamente” as condutas dos cidadãos. Já o poder Espiritual é o responsável pelas idéias e pelos valores das pessoas; em vez de modificar o comportamento das pessoas pela força, ele baseia-se no aconselhamento, ou seja, seu funcionamento é subjetivo.

Ora, além da distinção entre essas duas potências, o interessante é que A. Comte recomendava que os integrantes de cada uma delas mantivessem-se cuidadosamente separados da outra. Não é que os membros do poder Temporal – de modo específico: os políticos, os juízes, os procuradores – não possam ter valores e idéias; é claro que eles têm valores e idéias e é necessário que eles tenham: o que importa é que eles não defendam em caráter oficial idéias e valores; em particular, eles não podem estabelecer doutrinas oficiais. As “doutrinas oficiais” são as crenças impostas pelo Estado como necessárias para a cidadania, no sentido de que, sem aderir oficialmente, o indivíduo não é cidadão nem goza de cidadania. Exemplos fáceis de “doutrinas oficiais”: no Brasil Império, no século XIX, todos os políticos tinham que ser católicos; na Inglaterra de hoje (e desde o século XVI), somente anglicanos podem ser primeiros-ministros; na União Soviética, somente os comunistas tinham direitos e, aliás, somente o comunismo era aceito como “verdade”.

Mas, de maneira mais fundamental, no esquema comtiano os membros do poder Espiritual – os intelectuais – não podem aspirar ao poder Temporal. Essa vedação foi proposta por A. Comte para garantir a completa autonomia dos intelectuais, no sentido indicado antes: não é que não possam ou não devam ocupar-se da política; bem ao contrário, eles devem estar bastante atentos aos rumos dos destinos comuns; mas “preocuparem-se com a política” é diferente de “ocuparem-se diretamente com política”. Quando os intelectuais assumem cargos políticos e, ao mesmo tempo, querem manter-se atuando como intelectuais, eles misturam as lógicas de cada um dos dois poderes: suas decisões como políticos práticos são implementadas em última análise pela força, mas não se sabe se as idéias e os valores devem aconselhar ou se devem ser impostos. O importante a notar aqui é que essa dúvida – os valores e as idéias propalados pelos intelectuais que desempenham ao mesmo tempo atividades de políticos práticos são aconselhamentos ou são imposições? – permanece mesmo que se afirme, em caráter oficial, que as idéias e os valores não são oficiais. Nos termos comtianos, quando os intelectuais deixam de lado a sua autonomia, eles deixam de subordinar a política ao crivo moral e põem em prática a ação inversa, subordinando a moral à política. A única forma garantir a plena autonomia e evitar de qualquer maneira essa ambigüidade é os intelectuais retirarem-se de maneira clara e formal da política prática: uma aplicação simples e poderosa desse princípio seria a vedação de candidaturas (a vereadores, deputados, governadores, senadores, presidente) a sacerdotes. No final das contas, não se trata de os intelectuais terem o “direito” de manifestarem-se politicamente: eles têm o dever de manterem-se nas condições morais e institucionais adequadas e necessárias à boa consecução das suas responsabilidades – responsabilidades que, diga-se de passagem, os intelectuais escolhem por livre e espontânea vontade.

Ora, Comte reconhecia já no século XIX que muitos intelectuais têm impulsos (secretos ou não) pelo poder; esses impulsos revelam na verdade que tais “intelectuais” desejam de fato ser políticos práticos, mas devido a um sem-número de motivos – incapacidade moral, incapacidade prática, falta de oportunidades, vaidade etc. – eles acabam mantendo-se como “intelectuais”. Dessa forma, não seriam pensadores que, como pensadores, contribuem para a vida política, mantendo-se afastados da política cotidiana mas que fiscalizam as práticas, sugerem políticas públicas, propõem idéias e valores; em seu lugar, seriam políticos práticos frustados que usam o espaço social próprio aos intelectuais para fazerem política prática. Essa ação político-prática dos intelectuais não apenas indica deficiências morais da parte desses supostos pensadores; ela tem conseqüências sociais mais amplas, na medida em que degradam a reflexão intelectual mais ampla e põe sistematicamente sob suspeita as reflexões morais e intelectuais sobre a política. Em outras palavras, a traição dos intelectuais é uma prática profundamente tóxica, para os intelectuais, para os políticos práticos e, assim, para o conjunto da sociedade.

Como indicamos há pouco – e como é amplamente sabido –, o século XX assistiu a inúmeros intelectuais que sacrificaram suas posições como intelectuais em benefício de projetos políticos; aliás, em muitos casos esses sacrifícios deram-se na forma de subordinações e humilhações sistemáticas, de que basta citarmos o caso de Lukács como caso exemplar. Todavia, temos que dar um passo além na presente discussão: não basta termos clareza de que os pensadores como pensadores têm que se manter cuidadosamente afastados da arena política; também não basta sabermos que a traição dos intelectuais acarreta os problemas morais, intelectuais e práticos ligados às traições: é importante notarmos que o século XX sistematizou intelectualmente a traição dos intelectuais como prática “legítima”.

O autor que sistematizou a traição dos intelectuais foi o italiano Antônio Gramsci, com a figura do “intelectual orgânico”. Esse intelectual orgânico é o pensador que é também membro do partido político (no caso teorizado por Gramsci, do partido comunista) e está a serviço do partido. Não é um um mero intelectual filiado a um partido; é um “intelectual” que atua como braço filosofante do partido político. No esquema gramsciano, esse pensador teria por missão realizar a “hegemonia cultural”, isto é, criar idéias, valores, teorias próprios à classe proletária e que substituam as idéias, os valores e as teorias próprios à classe burguesa; realizando essa substituição no âmbito da cultura, a tomada do poder político ocorreria naturalmente, sem maiores dificuldades.

Talvez seja possível argumentar que o “intelectual orgânico” mantém uma autonomia e que, portanto, não realiza por si só a “traição dos intelectuais”: mas, nesse caso, qual seria a particularidade desse intelectual face a qualquer outro intelectual “crítico”, dito “burguês”? De qualquer maneira, como garantir a priori que os intelectuais orgânicos não incorrerão na traição dos intelectuais? Mas, deixando de lado essas questão, surge antes uma outra, mais importante, mais central: será que a preocupação com a “traição dos intelectuais” está no âmbito dos “intelectuais orgânicos”? A resposta é claramente “não”: para os “intelectuais orgânicos”, a “traição dos intelectuais” no sentido esboçado por Julien Benda e advertido antes por Augusto Comte não é um problema. Na verdade, se há uma traição que os intelectuais orgânicos evitam realizar é a traição a propósito dos ideais políticos e partidários, buscando serem “politicamente corretos”.

A posição dos “intelectuais orgânicos” permite entendermos a traição dos intelectuais de uma outra forma: não são os intelectuais que têm que se subordinar aos partidos políticos e aos chefes partidários, mas, bem ao contrário, são os chefes e os partidos que têm que se subordinar aos intelectuais. É claro que essa subordinação é moral e intelectual: os pensadores elaboram as idéias e os valores, enquanto os partidos e seus chefes põem-nos em prática nas disputas políticas, tendo, para isso, a liberdade própria à atividade prática que escolheram.

No Brasil contemporâneo a traição dos intelectuais (conforme Benda), a subordinação da reflexão intelectual autônoma sobre a política à prática política cotidiana (ou, o que dá no mesmo, a projetos estritamente políticos, ou seja, de poder) (conforme Comte) ou a realização dos intelectuais orgânicos (segundo Gramsci) é algo que ocorre largamente, em particular no espaço institucional que consagra os “intelectuais”, ou seja, as universidades, mormente as universidades públicas (federais ou estaduais) e, secundariamente, algumas PUCs (pontifícias universidades católicas). Aliás, isso é (mais) notável nas universidades públicas devido a um único e simples motivo: como as públicas têm estabilidade no serviço, garante-se a liberdade de cátedra; como as universidades particulares são empresas particulares, que visam ao lucro, suas preocupações são bastante diversas (e, embora isso não seja algo necessariamente ruim, também não é necessariamente bom).

Assim, muitos professores universitários valem-se da liberdade de cátedra para fazerem propaganda política e política partidária; evidentemente, isso ocorre mais e com maior facilidade nas Ciências Humanas. Antes de continuarmos, para evitar que se difunda a idéia estapafúrdia, burra e irracionalista de que isso justifica a extinção dos cursos de Ciências Humanas (pelo menos nas universidades públicas), é importante notar que esse problema “ocorrer largamentenão é o mesmo que “ocorrer sempre” ou “ocorrer em todos os lugares” ou “ocorrer com todos os professores”; entretanto, ele é difundido o suficiente para que seja notado, para que incomode e para que suscite justas reclamações sistemáticas. Assim, sem desprezar o aspecto quantitativo, é acima de tudo um problema qualitativo – como, aliás, a noção de “traição” já sugere.

De qualquer maneira, a afirmação de que nas universidades ocorre a traição dos intelectuais é um problema, em mais de um sentido. O primeiro deles é que mesmo os intelectuais, com boa ou má fé, costumam confundir(-se) a respeito de qual seria o âmbito adequado de suas atuações políticas: a primeira e mais imediata reação dos intelectuais, mesmo aqueles que não cometem a trahison des clercs, é a de questionar uma suposta impossibilidade de manifestar-se politicamente, seja como cidadãos, seja como intelectuais que se dedicam à política. Isso revela ao mesmo tempo a extensão com que a idéia de “intelectual orgânico” difundiu-se nas universidades e a falta, ou ausência completa, de conhecimento das reflexões de Comte sobre a “separação dos dois poderes”.

O segundo problema consiste em que uma reação quase imediata de muitos intelectuais – e é necessário reconhecer que, não por acaso, a vários desses professores é merecida a acusação de “traição dos intelectuais” – é atribuir ou filiar a denúncia desse comportamento ao movimento “Escola Sem Partido”. Associar a denúncia da “traição dos intelectuais” ao “Escola Sem Partido” é uma tática bastante eficiente para tirar a legitimidade da denúncia; em alguns casos é equivalente a dizer que a denúncia tem um caráter “fascista”. Não há dúvida de que há intelectuais e professores que sugerem tal associação com boa fé; isso não impede, todavia, de que sejam freqüentes os casos de má fé.

Mas o que importa notar a respeito do Escola Sem Partido é o seguinte. Atualmente, de maneira clara, ele é um movimento ao mesmo tempo irracionalista e anti-intelectualista, clericalista e autoritário; seus grandes defensores, em particular os parlamentares em Brasília, são indivíduos ligados a igrejas (notadamente as evangélicas) e a movimentos mais à “direita”, que buscam combater a “esquerda” utilizando essa plataforma como arma, mas que, ao mesmo tempo, não têm pudor em propor seja a teologia de Estado, sejam medidas anti-intelectualistas (como a fantástica supressão dos cursos de Ciências Humanas das universidades públicas). Ora, se é assim atualmente, o fato é que a primeira inspiração do Escola Sem Partido foi como um movimento da sociedade civil que reagia contra evidentes abusos de professores universitários, que realizavam a traição dos intelectuais à “esquerda”: não por acaso, era escola sem partido mas também sem igreja. Nesse sentido, é motivo de profundo lamento o seqüestro que o movimento, ou, pelo menos, a bandeira do Escola Sem Partido pelos grupos indicados acima; em vez de ser uma reação contra a trahison des clercs, ele acabou sendo, ele mesmo, uma nova modalidade dessa traição.

Em terceiro lugar, é importante indicarmos que a traição dos intelectuais no Brasil está ocorrendo à “esquerda” – como é, por assim dizer, “tradicional” –, mas também e cada vez mais à “direita”. Desde pelo menos a década de 1960 as esquerdas têm forte peso nas universidades brasileiras; a instalação do regime militar, em 1964, aumentou essa presença. As décadas de 1980 e 1990 foram de verdadeira hegemonia esquerdista (ainda que a esquerda não fosse unânime nem nunca tenha sido um bloco homogêneo); mas desde os anos 2000 a direita tem crescido nas universidades. Em si mesmo esse crescimento poderia ser considerado algo “bom”, na medida em que se poderia considerar uma pluralização intelectual. O problema é que muitos integrantes dessa direita assumem uma postura militante, ou melhor, agressiva e partidariamente militante, de tal sorte que a traição dos intelectuais no Brasil tem-se tornado um problema à direita e à esquerda. A crise do governo Dilma Rousseff e seu subseqüente fim abrupto exacerbou essas tendências: a virulenta militância contra o Partido dos Trabalhadores (PT) e a igualmente virulenta militância de reação dos petistas, com sua retórica do “golpe” e da prisão de Lula como sendo uma prisão política, intensificaram muito o gênero de comportamento característico da “traição dos intelectuais”: na verdade, bem vistas as coisas, a presente traição dos intelectuais dá-se justamente a respeito do PT e de Lula, seja a favor deles, seja contra eles.

Para concluir estas observações, é importante notar que a trahison des clercs não é um problema apenas universitário; aliás, ele não é nem mesmo um problema de destinação de verbas públicas e de subvenção de atividades partidárias travestidas de atividade universitária. No âmbito acadêmico, vale lembrar que os primeiros prejudicados são os alunos, que se vêem obrigados a aceitar a opinião dos professores imposta sobre eles, sem condições efetivas de discussão; muitos alunos, além disso, acabam deixando-se seduzir por essa falsa atividade intelectual e passam a considerar que a legítima, verdadeira e única possibilidade de ação nas universidades é a que caracterizamos aqui como a trahison des clercs.

Mas, de maneira mais ampla, quem perde com a traição dos intelectuais é toda a sociedade, que vê importantes recursos desperdiçados. Não nos referimos aqui aos recursos materiais (salários, salas, pessoal técnico-administrativo): consideramos as idéias e os valores que acabam deixando de serem respeitados. A traição dos intelectuais produz uma espécie de “inflação discursiva”: assim como na inflação monetária o dinheiro perde cada vez mais o seu valor, em que cada vez mais moeda vale menos, nessa “inflação discursiva” as palavras e os discursos cada vez valem menos. Associado a isso, as atividades que os intelectuais teriam legitimamente para exercer no âmbito político também perdem valor: a fiscalização do Estado, a manutenção da legitimidade das instituições, a pesquisa sobre a dinâmica institucional e a sugestão de alternativas etc. Aliás, exacerbando muito uma tendência própria às universidades, a traição dos intelectuais transforma os “debates” em brigas de torcida e os intelectuais que lideram a traição em chefes dessas torcidas: nessas horas, os líderes das pedantocracias acadêmicas viram também juízes e executores. Acima de tudo, os verdadeiros problemas sociais, políticos, culturais, morais acabam sendo ocultados, rejeitados, ignorados ou mistificados: com isso, suas soluções não são discutidas nem enfrentadas e o grande público não é esclarecido. Como diria Comte, a característica central da política moderna e da política republicana – a subordinação da política à moral – deixa de ser possível.

Gustavo Biscaia de Lacerda é Doutor em Sociologia Política (UFSC) e Sociólogo da UFPR.