Um elogio à política,
ou reflexões didáticas a partir
de O discurso do rei
Gustavo Biscaia de Lacerda
O filme O discurso do rei (2010) é um grande filme; a história é bem
contada e os atores têm grandes desempenhos. Sem ser uma história muito densa,
ela entra na categoria de “drama político” ou até “drama histórico”, em que as
dificuldades pessoais de um herdeiro do trono inglês são mostradas como um
problema, eventualmente um obstáculo, à sua atuação política; assim, a solução
do drama pessoal é condição para solução (ou encaminhamento) do drama político.
Mais uma vez: isso rende uma excelente história, que é muito bem contada; não
foi à toa que ganhou os prêmios Oscar de melhores filme, direção e ator, entre
outros, em 2011.
Há diversos aspectos políticos e
sociológicos que valem a pena ser destacados a respeito do filme. Esses
aspectos são bastante evidentes na história, compõem o seu pano de fundo e
também a sua moldura e, portanto, integram o rol de elementos que tornam o
filme tão interessante – aliás, interessante e instrutivo.
Sem procurar esgotar as
possibilidades teóricas e históricas, vejamos alguns desses aspectos.
Procurarei apresentar esses elementos com alguns exemplos, às vezes tirados da
história da Inglaterra, às vezes da França, às vezes do Brasil; ainda assim,
evitarei ao máximo referir-me aos problemas brasileiros atuais – não porque as
reflexões abaixo não podem ser aplicadas ao nosso país (elas podem, sim!), mas
para evitar a dispersão mental e polarizações político-intelectuais a respeito
de um escrito que é para ser, antes de mais nada, didático. (Aliás, por esse
mesmo motivo, não incluirei nenhuma nota de rodapé e reduzirei ao máximo as
referências eruditas e a pensadores.)
- O respeito aos governantes como elemento integrante da vida política.
Antes de mais nada, é importante
notar que sou republicano e que abomino as monarquias existentes neste século
XXI; aliás, desde a Revolução Francesa (1789-1799) as monarquias já são
relíquias históricas, a despeito de suas sobrevivências mundo afora e dos
discursos laudatórios a seu favor. No caso da monarquia inglesa, ela sofreu uma
importante solução de continuidade no século XVII, após a Guerra Civil, durante
o Protetorado e o Commonwealth de Oliver Cromwell; além disso, até meados do
século XVIII, a monarquia inglesa apresentou inúmeras mudanças dinásticas, com
golpes orquestrados pela nobreza local e líderes escoceses, franceses,
neerlandeses (“holandeses”) e até alemães assumindo o trono.
Dito isso, a noção de respeito
aos governantes perpassa todo o filme. Evidentemente, como se trata de uma
história centrada no relacionamento entre o Duque de Iorque (futuro Jorge VI) e
o fonoaudiólogo Lionel Logue e a importância atribuída ao sucesso do tratamento
do herdeiro, não se vê no filme outros atores políticos relevantes além do
irmão mais velho do Duque, o futuro Eduardo VIII, bem como alguns
primeiros-ministros, Winston Churchill e o arcebispo de Cantuária em papéis
secundários. Dito de outra forma, não há verdadeiramente conflitos políticos no
filme: não se vê situação e oposição, não se vê os trabalhadores etc. Ainda
assim, está subjacente o respeito às tradições e aos governantes; na verdade,
em alguns momentos do filme, esse respeito é tornado explícito, como quando o
Duque de Iorque afirma que Logue está sugerindo traição.
Na Inglaterra, a monarquia é
vista como esteio moral, social e político do país, precisamente por ser uma
instituição antiga e tradicional; ela é vista como integrando a identidade do
país. A função da monarquia, portanto, é simbólica, não “prática”. Nesses
termos, poder-se-ia argumentar que é muito mais fácil respeitar os governantes
em monarquias que em repúblicas e que, por outro lado, o que se chama de
“política democrática” incentiva precisamente o desrespeito aos governantes.
Até certo ponto isso é verdade;
instituições tradicionais, pelo mero fato de sua longevidade, inspiram um
respeito “primordial”; da mesma forma, as disputas políticas das democracias
estimulam as críticas sistemáticas aos governantes. Mas no caso inglês, o
respeito à monarquia deve-se a outros dois aspectos: por um lado, o fato de que
o rei (ou rainha) reina mas não governa, ou seja, como já indicamos, o fato de
que a monarquia cumpre funções puramente simbólicas: a monarquia em si está
afastada, e cada vez mais afastada, da vida política; as notícias mais
importantes a seu respeito cabem cada vez mais nas páginas das chamadas
“colunas sociais”, isto é, nas páginas de fofocas. Por outro lado, como é
expressamente dito em um momento de conflito no filme, a legitimidade da
monarquia reside, em última análise, na concepção do direito divino dos reis,
que consiste em que os reis governariam por serem emissários dos deuses na
Terra – algo feliz e evidentemente fora de propósito nos dias atuais.
Todavia, na república romana – e mesmo no império romano –, dizia-se com
freqüência que só pode governar quem soube antes obedecer; em outras palavras,
a obediência dos governados integra suas obrigações e permite aos governantes
entender os ônus da própria obediência e as responsabilidades vinculadas ao
mando, ao exercício do governo, da parte dos governantes. Uma outra forma de
entender essa regra romana é que os governados não podem estimular a anarquia;
o escrutínio público a que o governo deve ser continuamente submetido não pode
equivaler a desprezar sem mais os governantes e, de modo mais direto, não pode
equivaler a desrespeitar as instituições governativas. Nesse sentido, observava
Pierre Laffitte, no final do século XIX, que uma das obrigações políticas básicas
de qualquer cidadão – e, note-se: estamos tratando aí da cidadania, isto é, da participação ativa nos assuntos públicos e
coletivos – é justamente respeitar os governantes.
Nesse aspecto, a idéia de
democracia como “governo do povo” simplesmente não ajuda muito, na medida em
que permite e mesmo estimula concepções como a de que o “povo” governará
diretamente a sociedade, o que equivale a dizer que não haverá governo e que
qualquer indivíduo, independentemente de sua formação, de sua experiência, de
suas reflexões, é capaz de fazer quaisquer críticas que quiser, no tom e na
forma que quiser, aos governantes. Nesse caso, a idéia de “república” – como
conjunto de instituições e também de práticas voltadas para o bem comum – é
muito superior à de “democracia”.
- O papel da noção dever na condução da vida.
Ao longo do filme, em diversos
momentos o Duque de Iorque observa que suas ações vão no sentido de ajudar ao
máximo o reinado de seu irmão mais velho, o rei Eduardo VIII, mesmo apesar da
futilidade desse rei, em especial ao descuidar dos assuntos públicos em
benefício de uma tola aventura amorosa. O respeito do Duque de Iorque às suas
próprias obrigações fica evidente quando ele chama de “traição” a sugestão
feita pelo fonoaudiólogo Logue no sentido de que o próprio Duque poderia, em
breve, assumir o trono inglês.
O respeito escrupuloso às
obrigações pauta-se em uma certa concepção de honra e, de maneira vinculada, à
noção de dever. Se deixarmos as ilhas britânicas e passarmos ao arquipélago
japonês, é fácil lembrarmos quantos filmes ambientados no Japão feudal tratam
de honra: basta pensarmos no um tanto fabuloso 47 ronins (de 2013) e no mais estereotipado O último samurai (de 2003).
A “honra” que aparece nesses
filmes é uma virtude ao mesmo tempo militar e pessoal; refere-se por um lado ao
respeito que cada um deve às inúmeras obrigações sociais e, por outro lado, à
reputação de cada qual. Os valores sociais são internalizados e orientam a
conduta dos indivíduos; o desrespeito às regras coletivas é punido e a punição
é aceita como correta e necessária pelos punidos. Não há dúvida nenhuma de que
uma parte importante do apelo desses filmes do Japão feudal deve-se,
precisamente, ao respeito prestado por indivíduos de personalidades fortíssimas
às regras sociais, chegando ao limite da auto-imolação. Sem pretender chegar ao
ponto do suicídio, o público que assiste a esses filmes com freqüência fica
mais que impressionado com essas demonstrações de força de vontade; na verdade,
o público reconhece um valor moral em tão possante obediência às regras. Mais
que leis externas, a obediência interna impressiona e é valorizada: os deveres,
de caráter social, são poderosos.
A dificuldade está no caráter
marcial dessa noção de honra. Nos filmes ambientados no Japão feudal, a ordem social
é imutável (47 ronins); quando não é
mais imutável (O último samurai), a
mudança é vista como algo ruim, como necessariamente decadência. Não apenas a
ordem social é sacrossanta, como ela é profundamente militarista: como fica
evidente de maneira caricata em O último
samurai, enquanto o militarismo é visto como virtuoso, a indústria é vista
como corrupta e corruptora. Ora, por definição a riqueza e o bem-estar são
possíveis apenas com o trabalho, a indústria e o comércio; a guerra produz
apenas destruição e dominação. Nesses filmes, a “honra” tem que ser, sempre,
recuperada apenas por meio dos conflitos militares. Se sairmos do Japão feudal
e voltarmos à Europa, é fácil reconhecermos essa mesma “honra” em ação nos
duelos: os duelos eram uma forma privada, militar e feudal de resolver as
disputas, entendidas sempre como “honra” ofendida. Não por acaso, no início do
século XX a Alemanha militarista caracterizava-se pela prática ritual dos
duelos. (Em contraposição, pelo menos desde o século XVII a França envidou
sérios esforços para coibir, quando não proibir, os duelos.)
Retornando a O discurso do rei: o respeito do Duque
de Iorque às suas obrigações não tem esse caráter militarista e feudal da
honra, a despeito de a monarquia inglesa ser propriamente feudal. Como
indicamos antes, esse respeito vincula-se muito mais à noção de dever, constituindo-se em obrigações
auto-impostas e seguidas com bastante escrúpulo.
É interessante notar que esses
deveres são assumidos com liberdade; embora o Duque de Iorque em diversos
momentos lamente não poder escolher suas ações – ou seja, lamente não ter
liberdade –, nem por isso ele deixa de respeitar suas obrigações. Sua própria
vida e a comparação com a vida do irmão realçam esses aspectos: o Duque de
Iorque era canhoto, tinha as pernas tortas e era maltratado por uma das babás;
agüentou os mal-tratos, foi obrigado a tornar-se destro e a usar doloridos
aparelhos corretivos nas pernas; aliás, sendo gago, enfrentava dificuldades
quase intransponíveis no início para ler discursos: apesar disso tudo, aceitou
suas responsabilidades, persistiu em suas metas, superou suas dificuldades. Seu
irmão mais velho livremente escolheu renunciar ao trono para consumar sua
aventura amorosa; após isso, o Duque de Iorque livremente aceitou coroar-se.
É certo que se pode argumentar
que as obrigações assumidas pelo Duque do Iorque eram próprias à sociedade
inglesa, ao ambiente real e ao início do século XX; nesse sentido, o quadro de
deveres a serem assumidos pelo futuro Jorge VI estava estruturado com clareza e
sua aceitação era mais ou menos “automática” e obrigatória. Todas essas
afirmações são verdadeiras; a conseqüência desse fato é que pode parecer um
pouco estranho, mesmo um pouco anacrônico, defender a validade dos deveres no
início do século XXI, na sociedade civil do Brasil. Ainda assim, parece-me que
o fascínio causado pelo respeito aos deveres em O discurso do rei e mesmo nos filmes sobre o Japão feudal vai além
da mera admiração pelo exótico e fundamenta-se no reconhecimento de uma realidade
humana mais profunda.
Desde o final da II Guerra
Mundial o Ocidente passa cada vez mais por “liberações” e “revoluções” nos
comportamentos; os movimentos Beat, Hippie, feminista e outros são
ilustrações e agentes dessas mudanças. De modo geral, essas alterações
consistiram em criticar e, de modo geral, rejeitar os padrões anteriores de
comportamento: a expressão “conflito de gerações” era bastante literal e
descritiva até há alguns anos. Ora, a crítica aos comportamentos, as
“liberações” referiam-se aos padrões, aos hábitos e aos costumes anteriores:
nesse caso, os “direitos” ganham espaço, na medida em que a noção dos direitos
é basicamente destrutiva; por outro lado, os deveres perdem espaço, na medida
em que eles pressupõem valores socialmente compartilhados, não apenas entre
indivíduos da mesma geração, mas também de gerações distintas. Nesse sentido, é
notável como o “politicamente correto” é uma tentativa bastante acadêmica, de
caráter multiculturalista, de tentar converter essas “liberações” (que
consistem na ausência de padrões) em novos padrões de relacionamento; em outras
palavras, o “politicamente correto” é um esforço (malogrado) para tentar
constituir deveres a partir de uma ética radicalmente contrária aos deveres.
A dificuldade em aceitar
contemporaneamente os deveres reside, então, em aceitar livremente uma
restrição no próprio comportamento em benefício dos demais. O problema está (1)
na restrição e (2) no benefício aos demais. Os dois impedimentos consistem na
consagração da individualidade, do individualismo, e ambos entendem a liberdade
de maneira antissocial e anárquica. A liberdade, nesses termos, não é entendida
como passível de fundar uma “ordem” social, pois seria contrária a qualquer
ordem; a ação individual, de maneira correlata, é sempre entendida como
impassível de ser orientada para os demais, pois essa orientação altruísta é
entendida como negadora, como limitadora da própria individualidade. Assim, a
rejeição contemporânea aos deveres baseia-se em concepções simplistas e extremas
da vida social e dos próprios indivíduos.
Ora, os deveres são parte
integrante da sociedade: é necessário, é imperativo que os indivíduos
internalizem os valores coletivos, que compartilhem os valores, e que, com base
nisso, ajam uns em benefício dos demais. A ação individual em benefício dos
demais não impede nem evita o benefício individual; o que ocorre é que a ação
individual pode ser orientada para melhorar as condições dos demais, para
piorá-las; para satisfazer única e exclusivamente as próprias necessidades ou
para satisfazer tanto as próprias necessidades quanto as alheias. Como Augusto
Comte indicou faz mais de 150 anos, a harmonia social – e mesmo o progresso – é
impossível tendo como base apenas a satisfação egoísta; ao contrário, a orientação
altruísta dos egoísmos permite a coordenação das diversas atividades sociais.
Assim, os deveres permitem
também a regulação de cada um dos indivíduos, permitindo a harmonia pessoal e
evitando o isolamento individualista. Até o início do século XX entendia-se por
“disciplina” a regulação das diversas forças disponíveis; a “autoridade” era a
figura a ser respeitada e seguida. Não deixa de ser significativa o fato de que
a disciplina signifique atualmente militarismo e/ou vigilância, assim como a
autoridade seja sempre entendida como autoritarismo: nesses termos, a ordem é
sempre entendida como despotismo, a liberdade é sempre anárquica e os deveres
tornam-se impossíveis – o que está bem longe de ser o melhor projeto
político-social.
- A importância da qualidade da liderança política.
O contraste entre os dois
irmãos, os sucessivos reis Eduardo VIII e Jorge VI, ressalta um aspecto
importante na vida política de qualquer lugar: a importância da qualidade da
liderança política. É claro que no filme o comportamento de Eduardo VIII é um
tanto caricato e, de qualquer maneira, o seu comportamento objetivo foi
bastante insensato, de um romantismo infantil e mesmo idiota. Da mesma forma, é
necessário termos clareza de que as lideranças políticas podem ter diferentes qualidades
e que mesmo essas qualidades podem ser necessárias em diferentes doses ao longo
do tempo: às vezes é necessária maior moderação, às vezes é necessária maior
energia etc.
Isso já nos permite duas ordens
de reflexões. Em primeiro lugar, há personalidades que não possuem a menor
qualificação para ocuparem cargos públicos. Esse, aliás, é um dos grandes
problemas práticos ligados às monarquias: se, por um lado, os problemas conexos
da sucessão entre os governantes e da continuidade administrativa estão mais ou
menos resolvidos previamente, por outro lado os líderes são “escolhidos” apenas
porque tiveram a sorte, ou o azar, de nascerem em determinada família. Esse
sério problema anda em conjunto com a concepção estamental da sociedade – em
que as ocupações dos indivíduos são dadas pelo berço e não pelas qualificações
e pelos interesses individuais – e com a legitimação sobrenatural do Estado –
em que o governante governa por ordem divina e não como um servidor da
sociedade –; o resultado é que as monarquias não são aceitáveis em sociedades
livres e racionais.
Em segundo lugar, vale a pena
insistirmos na idéia de que diferentes indivíduos possuem diferentes
qualidades, que são requeridas em diferentes situações. Isso quer dizer que um
político pode desenvolver uma atuação fundamental em um determinado momento,
mas que em uma outra conjuntura suas habilidades já não serão úteis ou mesmo
acabarão atrapalhando. Há situações que exigem determinadas qualidades para
serem enfrentadas, mas nas quais não se apresentam líderes capazes de lidar com
eles, isto é, não se apresentam políticos com as habilidades requeridas pelo
momento.
É claro que, mesmo quando
adequados ao momento, isto é, quando ocupam o poder e possuem as qualidades
necessárias para lidar com os problemas que enfrentam, muitas vezes os líderes
políticos podem ter idéias parciais sobre como lidar com os problemas e mesmo
as soluções que implementarem podem ter implementadas de maneira parcial ou
simplesmente não serem as soluções ideais. Isso tudo lembra-nos de que a
política é um processo, ou seja, de que ela desenvolve-se ao longo do tempo;
soluções parciais de hoje podem ser completadas amanhã; soluções parciais de
hoje podem modificar as condições sociais de tal maneira que amanhã tenhamos
outras dificuldades, completamente diferentes, para serem enfrentadas;
problemas a serem enfrentados hoje podem tornar-se completamente irrelevantes
amanhã.
Um exemplo histórico brasileiro.
Em 1822, o Brasil enfrentava um sério dilema: após ser explorado economicamente
e dominado politicamente ao longo do século XVIII, mesmo a despeito de várias
revoltas (como a da Inconfidência Mineira), após a vinda da família real para o
país em 1808 as coisas mudaram, para melhor; a antiga colônia subira de status para “reino unido” e a sua
infra-estrutura econômica, política, cultural e educacional estava sendo
desenvolvida com rapidez. Mas em 1821 o rei português voltou à Europa e eram
grandes as chances de os avanços obtidos nos anos anteriores serem todos
revertidos, com o Brasil voltando à posição de colônia. O governo do país
estava entregue ao príncipe regente, um rapaz de boa vontade mas estouvado,
mais preocupado com diversões e casos amorosos que com questões políticas.
Nesse momento, surge José Bonifácio, um cientista brasileiro de renome
internacional, que, começando uma atividade política como deputado provincial
em São Paulo, em pouco tempo tornou-se conselheiro do príncipe regente. Nessa
condição, José Bonifácio conseguiu que a independência nacional fosse feita
pelo próprio herdeiro do trono – evitando, assim, um conflito armado que seria
danoso tanto para o Brasil quanto para Portugal. Além disso, é interessante
notar que José Bonifácio era a favor da república e contra a escravidão; mas,
ao mesmo tempo, ele entendia ser importante manter a unidade nacional: a
república permitiria um fim rápido na escravidão, mas daria azo à fragmentação
política; já a monarquia manteria a unidade mas também a escravidão. Face a
essas opções, José Bonifácio optou pela segunda melhor, mas que respondia mais
prontamente às dificuldades do momento: a monarquia permitiria a independência
nacional com integridade territorial e ainda aceitaria a escravidão (que, como
se sabe, perdurou até o final do regime dinástico no país).
Um aspecto que ficou
subentendido nos comentários acima é o relativo ao “conjunto da sociedade”.
Como nos referimos aqui aos líderes políticos, aos indivíduos, pode parecer que
eles agem no vácuo, no vazio, mas isso não ocorre; aliás, como são líderes políticos, por definição eles não agem
no vácuo. Os líderes só podem liderar
se agirem em meio aos vários grupos sociais que, por sua vez, podem facilitar
ou dificultar as várias ações sociais. É certo que por vezes os líderes assumem
posições proeminentes devido a atuações mais isoladas – foi o caso de
Churchill, na Inglaterra –, mas de modo geral os líderes políticos destacam-se
em grupos sociais específicos e é como líderes de tais grupos que ascendem ao
poder (Um dos principais grupos que permite o acesso ao poder – mas, claro, não
o único grupo que o permite – é o partido político.) A ascensão é apoiada ou
recusada por outros grupos e outros políticos – e é essa dinâmica que constitui
o dia-a-dia da política.
Procuramos insistir até agora
nas qualidades dos políticos, isto é, nas suas boas qualidades, mas algumas
palavras devem ser ditas sobre as más
qualidades, ou seja, sobre os seus defeitos – dois, em particular. Observamos
acima que um líder costuma surgir como representante de um grupo específico:
ora, ao passar do grupo específico para um cargo de direção, esse líder não
deixa de lado seus valores e preocupações anteriores, mas deve ampliá-los,
considerando que trata de interesses de toda a sociedade e não mais grupos
particulares. Uma frase do francês François Mitterrand ilustra maravilhosamente
bem o ponto: eleito Presidente da França por uma coligação entre socialistas e
comunistas em 1981, perguntaram-lhe se ele governaria para esses grupos;
Mitterrand respondeu que era Presidente dos franceses, isto é, de todos os franceses
e não apenas dos socialistas e dos comunistas.
Ora, não é incomum líderes
políticos fazerem a transição de cargos ou de funções mas não fazerem a
transição de perspectivas, assumindo posições de poder mas mantendo idéias e
posturas particularistas. O resultado disso costuma ser desastroso, geralmente
com a divisão da sociedade em grupos rivais gradativamente inconciliáveis – o
que, em última análise, pode resultar em guerra civil.
O segundo defeito que queremos
comentar é o da demagogia. Um dos principais traços dos políticos é sua
capacidade retórica; de modo geral, um bom político é um bom orador (embora nem
sempre). No filme O discurso do rei,
o papel central da retórica fica bastante evidente – mas também fica evidente a
crítica aos políticos e aos líderes que são apenas
oradores, como no momento em que o rei Jorge V reclama ao Duque de Iorque que o
rádio transformou o rei em um mero ator. Assim como indicamos vários e sérios
defeitos da monarquia, é importante indicar que a república (mas a monarquia
também!) pode ficar sujeita a demagogos, a puros retóricos, a políticos que se
destacam por suas habilidades com as palavras mas que são somente faladores
habilidosos, sem força de caráter, sem idéias gerais, sem preocupações com o
bem comum etc. Nesse sentido, talvez uma das piores combinações é aquela em que
um mero orador é fraco de caráter e/ou só entende a política em termos de
divisões sociais.
- A importância da fala e dos discursos para a vida política.
O tema central do filme é o
problema da fala do Duque de Iorque, futuro rei Jorge VI; esse problema é
especificamente grave porque, mesmo sem desejar, ele ocupa uma posição social
de destaque, podendo ocupar o trono (o que de fato ocorre). Assim, no filme a
dificuldade da fala é acima de tudo uma dificuldade política.
No início do filme o idoso rei
Jorge V observa, em tom de reclamação, que “até há pouco tempo” (ou seja, até o
início do século XX) não fazia muita diferença se um líder não era ouvido pelas
massas; conversas mais reservadas eram o comum da política. Mas com a invenção
e a difusão do rádio, a palavra falada disseminou-se e tornou-se um elemento
central na vida política dos povos. Em sentido semelhante, podemos também notar
que até a década de 1950 – quando surgiu a televisão – a aparência física dos
políticos também não tinha tanta relevância.
Essas constatações históricas
são importantíssimas e realçam um traço da nossa vida contemporânea. Mas o
filme também evidencia um outro aspecto, mais amplo e que merece ser comentado:
a importância da palavra em geral, dos discursos, para a realização prática da
política e para a vida em sociedade. Há pelo menos duas ocasiões em que isso se
evidencia, ambas no final do filme: (1) ao ensaiar para o discurso que
conclamará a Inglaterra (e, de modo mais amplo, o Império Britânico) para a II
Guerra Mundial, Jorge VI reclama que, apesar de ser nominalmente rei, ele não
tem poder nenhum: não institui nenhuma lei, não contrata nem demite ninguém,
não forma gabinetes etc.; em suma, ele reina mas não governa. A despeito disso
tudo, seu papel é o de representar, incorporar a nação – e de ser a sua voz, o
que é um trágico problema para ele pessoalmente e para a nação em geral. (2) Em
seguida, durante a leitura do discurso, a população inglesa está parada, ouvindo
ao redor dos aparelhos de rádio e das torres de difusão: vê-se aí que a própria
nação, ou pelo menos a sua unidade, é constituída por meio do discurso.
Vivemos em um mundo
caracterizado pela internet; isso,
como se sabe, significa muito mais que apenas uma tecnologia largamente
utilizada; aliás, assim como nos casos anteriores do rádio e da televisão, a internet modificou profundamente as
formas como as sociedades e os indivíduos relacionam-se e, a partir daí, como a
política é entendida e praticada. Todavia, no caso específico da internet, há características todas
particulares que a distinguem das demais tecnologias de telecomunicações (ou,
talvez, que aprofundam bastante algumas tendências sugeridas ou já existentes
nas tecnologias anteriores). Deixemos de lado a instantaneidade das
informações, pois isso já ocorria desde o rádio: o ponto central aqui é a possibilidade
de cada indivíduo ser produtor das próprias mensagens, a todo instante; essa é
a diferença que faz absolutamente toda a diferença.
Com o rádio e a televisão, o
comum das pessoas era apenas consumidor das mensagens; já houve inúmeros e
acerbos debates sobre se esse consumo seria ativo ou passivo, isto é, se as
pessoas mais ou menos entenderiam do jeito que quisessem as mensagens ou se as
mensagens seriam recebidas prontas e acabadas pelas pessoas. Esse é um debate
interessante e importante, mas o fato é que, com a internet e a respeito da internet,
essa discussão torna-se um pouco obsoleta, na medida em que com a internet todos podem reagir às mensagens
alheias, modificá-las, transmiti-las, aumentá-las, deturpá-las, corrigi-las
etc.
É indiscutível que isso
representa um passo importante na chamada "democratização do
conhecimento", assim como facilita as trocas de informações e de idéias.
Contudo, ao mesmo tempo, o imediatismo da produção das mensagens e das
respostas virtualmente reduziu a zero o tempo de assimilação e reflexão sobre
as mensagens: em outras palavras, as pessoas escrevem o que simplesmente lhes
vem à cabeça e reagem imediatamente. Da mesma forma, embora corresponda a um
avanço importante a possibilidade de todos expressarem-se a respeito do que
lhes interessa – sejam os interesses particulares (como as músicas de que gosta
ou desgosta), sejam os interesses públicos (no caso da política) –, essa
expressão desimpedida e imediata recusa filtros de inteligibilidade, ou pelo
menos reduz suas possibilidades de atuação. O que entendemos por "filtros
de inteligibilidade"? Os indivíduos responsáveis pela elaboração de
idéias, de valores e de concepções sobre o mundo, que de modo geral também são
conhecidos por "intelectuais" e que em outras épocas eram sacerdotes.
É certo que estou entendendo aqui que os "filtros de
inteligibilidade" teriam o papel de elaborarem idéias e de, ao transmiti-las,
apresentarem-nas evitando radicalismos, intolerâncias etc. Também é certo que,
historicamente, à direita e à esquerda, muitos desses mesmos intelectuais foram
(e são) os responsáveis pela elaboração e pela transmissão de concepções
violentas, agressivas, intolerantes; não se deve pensar apenas nas formulações
racistas, que são as mais simples de considerar e (com justiça) as mais
facilmente criticáveis, mas temos que incluir também pensadores que se diziam
(e dizem) "progressistas" e que, em nome de suas concepções de
"progresso", incentiva(va)m a violência, a agressividade e por aí
vai. Como em outros momentos destas reflexões, é necessário observarmos que,
mesmo que haja casos contrários ao ideal que propomos, nem por isso esse ideal
torna-se menos correto e menos necessário.
Enfim, a redução brutal da
importância dos "filtros de inteligibilidade", dos intelectuais, tem
duas conseqüências importantes para a presente discussão.
(1) Cada indivíduo que está
postado em frente ao seu computador, ou ao seu tablet, ou ao seu smartphone,
arroga-se capacidades intelectuais, morais, técnicas, científicas que o mais
das vezes não possui, apenas porque possui os meios técnicos – o acesso à internet – para tal arrogância e porque há
a concepção difusa e confusa segundo a qual a cidadania consiste em todos poderem
palpitarem sobre tudo o tempo todo. O que está em questão aí é a qualidade
moral, científica, técnica e mesmo política dos cidadãos, assim como a
responsabilidade que todos deveriam ter ao manifestarem-se na vida política.
Muitos pensadores políticos e muitos pensadores ligados à cultura (e mesmo à
criação da internet) já alertaram
para os sérios problemas políticos e sociais relacionados a tal tipo de
comportamento. Sim, sem dúvida que a cidadania implica a participação;
entretanto, para participar é necessário estar preparado para isso, além de
considerar as conseqüências dos próprios atos: embora palpitar na internet possua custos financeiros
baixíssimos, os resultados morais, sociais e políticos do palpitismo
desenfreado não são baixos.
(2) De maneira estreitamente
relacionada ao problema anterior está o caráter isolado das interações realizadas
por meio da internet. A despeito da
expressão "redes sociais", não há propriamente interação interpessoal
e, daí, social entre os indivíduos na internet;
como já se observou inúmeras vezes, o que há são indivíduos que, isolados em
seus computadores, publicam mensagens e reagem a elas: o relacionamento
pessoal, o tête-à-tête vai perdendo
espaço. Em termos políticos, o problema com isso não é somente a perda das
relações pessoais diretas, mas a perda dos limites que as interações pessoais
impõem à emissão e à reação das mensagens políticas: por exemplo, é muito
diferente xingar alguém que não se vê, cujo conhecimento é dado apenas por um
abstrato "perfil" na internet,
e xingar pessoalmente, face a face, essa mesma pessoa; a diferença em cada um
dos casos está em que o tête-à-tête torna muito mais difícil esse gênero de
comportamento. Ora, a assustadora facilidade com que se reage na internet tem, cada vez mais, extravasado
do ambiente eletrônico para a vida real, de tal sorte que os indivíduos e os
grupos tornam-se mais e mais agressivos e menos reflexivos. Um outro aspecto
negativo do declínio das interações interpessoais é que a quantidade gigantesca
de recursos e elementos presentes na comunicação não-verbal e mesmo variados os
recursos da comunicação verbal, como as entonações, os olhares, a linguagem das
mãos e do corpo etc., perdem-se na internet;
essa perda empobrece a comunicação e facilita os mal-entendidos e os
desentendimentos.
Vale notar que os dois pontos
acima, conjugados, sugerem que a chamada "democracia digital" é, em
larga medida, irrealizável: as propostas de plebiscitos, referendos e mesmo
eleições realizadas diretamente dos computadores de cada um prescindem
justamente do diálogo, dos debate, das interações interpessoais, além de
estimular e basear-se no palpitismo.
Após essa longa e importante
digressão, voltemos ao ponto que nos interessa neste momento: o valor dos
discursos para a vida política. Já observamos em diversos momentos que a boa
política é aquela orientada para o bem comum, para a realização da res publica; ora, para conseguir-se
isso, é necessário que os vários indivíduos e grupos interajam entre si – e
essa interação ocorre por meio das palavras, dos discursos. As conversas, as
negociações, as discussões, os compromissos ocorrem todos por meio das
palavras; como se diz popularmente no Brasil, "é conversando que a gente
se entende".
O valor que podemos atribuir às
palavras e aos discursos é tão grande que já houve autores que afirmaram que a
"essência" da política são os discursos – e que, inversamente, quando
os discursos cessam, quando as palavras calam-se, acaba-se também a política e
entra-se no âmbito da violência. Em sentido um pouco próximo, alguns autores
afirmaram que há ações que se realizam única e exclusivamente por meio das
palavras: o juiz que declara casados
os cônjuges realiza uma ação falando: nesses termos, podemos entender o meio da
política como sendo o discurso.
Falamos antes que um dos
defeitos que se pode identificar nos líderes políticos é a demagogia, entendida
como o traço do político cujos discursos são vazios. É claro que podemos
entender a demagogia de outras formas, como no caso do "populismo",
isto é, da exploração política das paixões do povo; mas, para as reflexões que
desenvolvemos aqui, entender a demagogia como a prática de discursos vazios é
aceitável e útil.
As palavras ditas e os discursos
pronunciados devem ser valorizadas. Quando, há pouco, notamos que a internet estimula o palpitismo, quisemos
com isso preparar o terreno para indicar que nossa época caracteriza-se,
tristemente, pelo desperdício das palavras, pela desvalorização dos discursos
pronunciados. Há algumas patologias político-intelectuais ligadas às idéias de "discurso"
e de "discurso político" e que se desenvolveram nas últimas décadas:
por um lado, o pós-modernismo afirma que "tudo é discurso", chegando
às vezes a afirmar que "não existe nada fora do discurso": com isso,
a realidade concreta, aquela a que a política faz referência e sobre a qual
produz seus efeitos, é negada e obscurecida; a vida, suas dificuldades e suas
belezas são reduzidas a meros jogos de palavras. Por outro lado, o "politicamente
correto" estipula censuras sistemáticas sobre as palavras e os discursos
políticos, ou melhor, sobre quaisquer palavras e discursos, em nome da defesa
da sensibilidade de minorias que se entendem como essencialmente frágeis e
particularistas.
Essas duas patologias deturpam e
prejudicam o entendimento do discurso político. Em contraposição a tais
patologias, bem como em contraposição às palavras vazias e inflacionadas, à
verborragia que caracteriza o demagogo, assistimos no filme a um belo e emocionante
discurso, apresentado em sua inteireza como clímax e conclusão da trama: é o
pronunciamento de Jorge VI no final de setembro de 1939, conclamando a união
nacional da Inglaterra, alertando o povo sobre os terríveis sofrimentos e
sacrifícios vindouros, mas afirmando também o apoio dos líderes políticos ao
povo, a responsabilidade pelos destinos coletivos, o evitar até o último
momento da guerra e defesa incessante dos interesses nacionais (entendidos aí
como o combate a um inimigo agressivo). Dito de outra maneira, um grande
discurso é aquele que condensa, expõe e orienta os valores, as idéias e os
sentimentos coletivos em determinada direção, com isso inspirando a população:
é o que vemos Jorge VI fazer de modo exemplar no final do filme.
Podemos pensar em outros
exemplos; vêm-nos à mente três trechos de discursos, todos eles tirados da
história dos Estados Unidos. Em 1942, quando esse país também ingressava na II
Guerra Mundial, Franklin Roosevelt, após afirmar que não queria entrar no
conflito e que sacrifícios avizinhavam-se, observou que a única coisa que
deveriam temer era o próprio medo. Dando um salto no tempo, nos anos 1960 John
Kennedy pronunciou dois discursos que se tornaram justamente lendários: em
1962, ao tratar do programa espacial estadunidense, que acabaria resultando na
primeira alunissagem em 1969, Kennedy questionava-se porque se tinha decidido
fazer algo tão complicado; sua resposta foi que a viagem à Lua deveria ocorrer
não porque era fácil, mas, ao contrário, justamente porque era difícil. No ano
seguinte, em 1963, em Berlim, logo após a construção do Muro de Berlim (que
dividia a cidade em duas partes, uma controlada pela União Soviética e outra,
isolada do resto do país, controlada pelos Estados Unidos), Kennedy disse que o
apoio dos EUA à Berlim ocidental era tão grande e tão sério que ele mesmo
via-se como um berlinense (é o seu famoso "Ich bin ein Berliner" –
"eu sou um berlinense"). Nesses três exemplos, as frases-síntese que
apresentamos são muito inspiradoras, ao mesmo tempo em que indicam a direção
política a tomar; são discursos "densos", ricos, que honram a prática
política.