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04 setembro 2025

A frase "fazer o bem, não importa a quem"

No dia 21 de Gutenberg de 171 (2.9.2025) realizamos nossa prédica, dando continuidade à leitura comentada do Apelo aos conservadores (em sua Primeira Parte - doutrina apropriada aos verdadeiros conservadores).

No sermão abordamos a frase popular "fazer o bem, não importa a quem", indicando que, se ela tem bons sentimentos, sua orientação é cega e tem resultados daninhos e injustos.

No final do sermão apresentamos trechos do belíssimo poema de Raimundo Teixeira Mendes, Exortação à Fraternidade.


As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

*   *   *


A expressão “Fazer o bem, não importa a quem”

(21.Gutenberg.171/2.9.2025) 

1.       Invocação inicial

2.       Datas e celebrações:

2.1.    Dia 23 de Gutenberg (4.9): nascimento de Richard Congreve (1818 – 207 anos)

2.2.    Dia 24 de Gutenberg (5.9): transformação de Augusto Comte (1857 – 168 anos); comemoração de Sofia Bliaux

2.3.    Dia 25 de Gutenberg (6.9): nascimento de Henrique Oliveira (1908 – 117 anos)

2.4.    Dia 26 de Gutenberg (7.7): Independência do Brasil (1822 – 203 anos); glorificação de José Bonifácio

3.       Leitura comentada do Apelo aos conservadores

3.1.    Antes de mais nada, devemos recordar algumas considerações sobre o Apelo:

3.1.1. O Apelo é um manifesto político e dirige-se não a quaisquer pessoas ou grupos, mas a um grupo específico: são os líderes políticos e industriais que tendem para a defesa da ordem (e que tendem para a defesa da ordem até mesmo devido à sua atuação como líderes políticos e industriais), mas que, ao mesmo tempo, reconhecem a necessidade do progresso (a começar pela república): são esses os “conservadores” a que Augusto Comte apela

3.1.1.1.             O Apelo, portanto, adota uma linguagem e um formato adequados ao público a que se dirige

3.1.1.2.             Empregamos a expressão “líderes industriais” no lugar de “líderes econômicos”, por ser mais específica e mais adequada ao Positivismo: a “sociedade industrial” não se refere às manufaturas, mas à atividade pacífica, construtiva, colaborativa, oposta à guerra

3.2.    Outras observações:

3.2.1. Uma versão digitalizada da tradução brasileira desse livro, feita por Miguel Lemos e publicada em 1899, está disponível no Internet Archive: https://archive.org/details/augustocomteapeloaosconservadores

3.2.2. O capítulo em que estamos é a “Primeira Parte”, cujo subtítulo é “Doutrina apropriada aos verdadeiros conservadores”

3.3.    Passemos, então, à leitura comentada do Apelo aos conservadores!

4.       Exortações

4.1.    Sejamos altruístas!

4.2.    Façamos orações!

4.3.    Como Igreja Positivista Virtual, ministramos os sacramentos positivos a quem tem interesse

4.4.    Para apoiar as atividades dos nossos canais e da Igreja Positivista Virtual: façam o Pix da Positividade! (Chave Pix: ApostoladoPositivista@gmail.com)

5.       Sermão: a fórmula “fazer o bem, não importa a quem”

5.1.    O sermão de hoje abordará alguns temas que se referem a situações com que todos nós defrontamo-nos todos os dias e que, além disso, também se referem diretamente à Religião da Humanidade: a obrigação de sermos corteses, a tolerância mútua como base da fraternidade

5.2.    Comecemos com a máxima popular “fazer o bem, não importa a quem”

5.2.1. Essa fórmula apresenta um imperativo que, a princípio, é convergente com a Religião da Humanidade: nossa obrigação de sermos altruístas

5.2.2. Todavia, essa fórmula é extremamente vaga – e essa vagueza é fatal

5.2.3. Adiantando o tema, convém desde já reconhecer que, apesar da vagueza da fórmula, ainda assim ela procura resolver uma condição que é difícil por si só

5.3.    Ainda antes de seguirmos adiante, também vale a pena indicar que esse tema na verdade foi-me perguntado pelo nosso correligionário Eugênio Macedo

5.3.1. A dúvida do Eugênio era pessoal, dele, mas evidentemente ela pode e deve ser tratada de maneira mais ampla, na medida em que afeta todos nós e que, de qualquer maneira, mesmo que não fosse comum a todos nós, poderia interessar a outras pessoas

5.3.1.1.             É claro que essa dúvida pode ser tratada publicamente sem dificuldades, isto é, sem criar nenhum constrangimento

5.3.1.2.             O “viver às claras” refere-se aos nossos atos, mas também às motivações de nossas ações; a publicidade de nossas vidas não pode corresponder a indiscrições nem a situações vexaminosas

5.3.2. Transformar dúvidas individuais de nossos correligionários em temas de sermões é uma forma simples e eficiente de ajudar as pessoas e de demonstrar que o Positivismo é, e deve ser, útil

5.3.2.1.             Dessa forma, fica aqui o convite e o estímulo: quem tiver dúvidas, questões, comentários, apresente-os sem medo, que procuraremos responder, orientar e aconselhar

5.4.    A Religião da Humanidade proclama que a lei do dever e a fórmula da felicidade são uma única: é o “viver para outrem”

5.4.1. Devemos notar que a fórmula positivista tem um imperativo geral – devemos ser altruístas e dedicarmo-nos aos demais –, mas não é um imperativo vago; além disso, ela pressupõe o cuidado com nós mesmos e veda a autoimolação

5.5.    O problema da vagueza da fórmula popular é que ela não faz distinções de merecimento das pessoas que receberão o benefício, nem afirma os cuidados com nós mesmos

5.5.1. No que se refere ao mérito dos beneficiários: devemos, sim, considerar quem recebe o bem, pois diferentes pessoas têm diferentes comportamentos, diferentes necessidades, diferentes possibilidades; evidentemente, algumas são melhores que outras, enquanto algumas são piores que outras: tudo isso deve necessariamente ser levado em conta

5.5.2. O nosso dever de altruísmo não é unilateral; na verdade, como se trata de um dever, é uma relação, ou seja, é uma obrigação mútua: assim como cada um de nós deve ser altruísta, os demais também devem ser altruístas; a reciprocidade deve ser levada em conta e valorizada

5.5.2.1.             O “fazer o bem, não importa a quem”, especialmente na parte do “não importa a quem”, deixa de lado o aspecto relacional da vida humana; portanto, ele ignora de verdade o seu caráter de dever, apenas criando direitos para os outros, sem lhes impor também deveres mútuos

5.5.3. Devemos considerar também a justiça de nossas ações: pessoas boas que sofrem injustiças devem ser bem tratadas; pessoas que erraram mas que manifestam desejar melhorar também devem ser valorizadas; a quem errou deve ser dada a oportunidade real de emendar-se; mas quem errou, persistiu no erro e rejeitou a emenda, qual o sentido de fazer indefinidamente o bem para ela?

5.5.4. Assim, há um aspecto de valorizar a bondade e de punir a maldade – sem que haja injustiça, crueldade nem que se vede a possibilidade de emendar-se o mal

5.6.    À parte esses graves problemas de mérito e de justiça – que a fórmula popular “fazer o bem, não importa a quem” é incapaz de enfrentar –, devemos convir que a dificuldade prática nessa condição é que, qualquer que seja a fórmula – “viver para outrem”, ou “fazer o bem, não importa a quem” –, desejamos ser altruístas e generosos, mas defrontamo-nos com a necessidade concreta de limitarmos esse altruísmo e mesmo de fazermos valer o nosso egoísmo

5.6.1. Indiscutivelmente, essa é uma situação frustrante; não há como a evitar

5.6.2. Um aspecto que se evidencia a partir dela é que o também altruísmo deve ser bem orientado

5.6.2.1.             Na verdade, a correta orientação do altruísmo foi afirmada por Augusto Comte quando ele apreciou o comunismo, que, para ele, consistia em uma orientação incorreta do altruísmo e que, mesmo por isso, era superior ao individualismo liberal-burguês, que consiste no exagero do egoísmo

5.6.3. A solução para esse problema, parece-me, consiste em que devemos ser generosos, tolerantes e ter uma orientação altruísta geral; além disso, devemos considerar que todos a princípio merecem nosso respeito, nossa estima, nosso altruísmo; mas essa estima básica também deve ser confirmada cotidianamente, especialmente lembrando que o viver para outrem é uma obrigação mútua

5.6.4. O “fazer o bem, não importa a quem” tenta lidar com o egoísmo por meio da sua negação; mas, ao negar, ele não lida de verdade com ele e, em particular, ele não regula o egoísmo: mas a questão, no caso, é exatamente essa: é necessário ao mesmo tempo estimular o altruísmo e regular (pelo altruísmo) o egoísmo

5.7.    Um outro aspecto que devemos considerar é que, se devemos viver para outrem, o nosso altruísmo não se desenvolve nem se mantém no vazio, como pura abstração: ele exige objetos concretos, relações reais

5.7.1. Em outras palavras, o desenvolvimento e a manutenção iniciais do altruísmo necessitam de focalização e personalização

5.7.2. Nosso mestre indicou com clareza, na parte do culto, os objetos de nosso altruísmo; eles são ascendentes, passando de relações pessoais para relações familiares, então para relações cívicas e daí para relações universais

5.7.3. Em outras palavras, começamos com nossas mães, nossos cônjuges, nossos filhos, pais e irmãos; seguimos para nossas famílias ampliadas; então vamos para as relações cívicas (colegas de trabalho, chefes, subordinados, concidadãos, líderes); ampliamos então para a Humanidade; tudo isso começando com relações objetivas mas logo devendo estender-se também para as relações subjetivas

5.7.4. Bem vistas as coisas, essa seqüência ascendente corresponde a uma aplicação da terceira lei dos três estados, ou seja, da lei afetiva (de que tratamos em uma prédica anterior)

5.7.5. Esse desenvolvimento progressivo do altruísmo, para o que estamos tratando aqui, consiste também na ampliação progressiva do “fazer o bem” – mas que, como estamos afirmando, não pode ser “não importa a quem”

5.8.    Um problema relacionado com o do “fazer o bem, não importa a quem” é: como estimular o altruísmo?

5.8.1. A teologia e a metafísica prometem recompensas ou punições; em qualquer caso, os móveis são sempre egoístas

5.8.2. A Religião da Humanidade, a partir da experiência cotidiana e multimilenar, afirma que o altruísmo é a própria recompensa

5.8.3. Como sintetizou com beleza Clotilde de Vaux, “Não há prazeres maiores que os da dedicação”

5.9.    Para concluir estes comentários, quero aproveitar para referir-me a um poema de Teixeira Mendes

5.9.1. Trata-se do Exortação à Fraternidade, que foi composto no aniversário de transformação de Clotilde, ou seja, em 5 de abril de 1911

5.9.2. Esse poema tem o seguinte comentário explicativo: “Ensaio de uma paráfrase positivista do Capítulo XVI, Livro I, da Imitação de Tomás de Kempis, segundo a tradução em verso de Corneille: Como se deve sofrer os defeitos de outrem

5.9.3. Em outras palavras, Teixeira Mendes afirma, ou lembra, que a fraternidade exige que todos tenhamos paciência uns com os outros, pois todos temos defeitos

5.9.4. É claro que o poema todo vale a pena; mas citaremos só as partes III e IV

III. Queremos cada qual sujeito à disciplina,

            Sofrendo a necessária correção;

Revolta-nos, porém, se alguém nos examina,

E à conduta nossa o seu valor assina,

            Realçando qualquer imperfeição.

 

Exprobramos aos mais o quanto d’indulgência

            Consigo têm e o que se dão de gozos;

E é ofensa atroz não ter-se a complacência

De nada recusar, com suma deferência,

            Aos nossos movimentos caprichosos.

 

Estatutos prendendo em rigoroso laço

            Severamente aos outros desejamos;

E, seja de quem for, o mais ligeiro traço,

Ao nosso bel-prazer, criando um embaraço

            D’império absoluto, a mal levamos.

 

Onde se esconde, pois, o férvido Altruísmo,

            Que Viver para outrem nos sugere?

E como então sentir que, ou seja no heroísmo,

Ou na dedicação comum, ou no ascetismo,

            Prazer algum não há que os seus supere.

 

No Mundo, a imperfeição por toda parte abunda,

            A jerarquia eterna acompanhando,

Que, sob a mais grosseira, a lei mais nobre funda;

Somente a paciência, em méritos fecunda

            Essa ordem fatal vai mitigando.

 

IV. É pois na sujeição qu’ensina a Humanidade

            O aperfeiçoamento basear-se;

Não há beleza inteira, ou íntegra bondade;

Assim é dever nosso e nossa felicidade

            Uns aos outros o fardo aliviar-se.

 

Ninguém é sem senão, ninguém é sem fraqueza;

            Ninguém sem precisar d’algum amparo;

Ninguém tem de ciência, em si, assaz riqueza;

Ninguém é forte assaz com a própria fortaleza.

            Para não sentir faltar-lhe apoio caro.

 

Urge pois entre-amar-se, urge pois entre-instruir-se

            Urge pois, em tudo, entre-auxiliar-se;

Urge entre-prestar-se o olhar a dirigir-se;

Urge entre-estender-se a mão conduzir-se;

            Urge um ao outro dar com quem curar-se.

 

Quanto maior a dor, mais fácil prova of’rece

            Até que ponto fora alguém perfeito;

E os golpes mais cruéis que uma alma então padece

Não são que a fazem fraca; apenas se conhece

            Assim o que ela vale com efeito.

6.       Invocação final

 

Referências

- Augusto Comte (franc.), Sistema de filosofia positiva (Paris, Société Positiviste, 5e ed., 1893)

- Augusto Comte (franc.), Sistema de política positiva (Paris, L. Mathias, 1851-1854)

- Augusto Comte (port.), Apelo aos conservadores (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1898): https://archive.org/details/augustocomteapeloaosconservadores.

- Augusto Comte (port.), Catecismo positivista (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 4ª ed., 1934)

- Gustavo Biscaia de Lacerda (port.), Prédica "O início do Positivismo: as três leis dos três estados" (Curitiba, Igreja Positivista Virtual, 26.8.2025): https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2025/08/o-inicio-do-positivismo-as-tres-leis.html

- Raimundo Teixeira Mendes (port.), As últimas concepções de Augusto Comte (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1898): https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-ultimas-concepcoes-de-augusto-comte-i e https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-ultimas-concepcoes-de-augusto-comte-ii.

- Raimundo Teixeira Mendes (port.), O ano sem par (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900): https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-o-ano-sem-par-portug._202312/page/n7/mode/2up.

- Raimundo Teixeira Mendes (port.): Exortação à Fraternidade (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1911; opúsculo n. 316): https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2025/08/teixeira-mendes-exortacao-fraternidade.html

30 maio 2024

Instintos e genética não são fatalidades

Instintos e genética não são fatalidades

Os trechos abaixo são particularmente impressionantes. Escritos originalmente em 1838, no volume III do Sistema de filosofia positiva, eles integram o capítulo dedicado ao exame das investigações sobre o cérebro, especificamente sobre as funções e os órgãos do cérebro[1]. Naquele momento do desenvolvimento da carreira filosófica de Augusto Comte, esse exame constituía a última etapa lógica e teórica no exame das ciências antes de avançar para a fundação direta e imediata da Sociologia (que, por sua vez, realizar-se-ia nos três volumes seguintes da Filosofia positiva, da Lição 46 à Lição 60).

Nesses dois trechos, após passar em revista as concepções teológicas e metafísicas sobre a natureza humana, Augusto Comte examina as investigações mais positivas à sua época e que, em sua opinião, eram as de Joseph Gall e seu assistente e colaborador Johann Spurtzheim; esse exame, também vale notar, era elogioso, o que não equivale a dizer “desprovido de críticas” e/ou de retificações mais ou menos importantes.

Os teológicos e os metafísicos partiam da noção de “alma”, que seria uma graça concedida pela divindade para animar os corpos dos seres humanos e dotá-los de inteligência. Com isso, eles consideravam que a inteligência seria um atributo exclusivo do ser humano, da mesma forma que o ser humano teria uma sempre e necessária unidade subjetiva, um núcleo duro e profundo de si mesmo irredutível de um ser humano para outro. Daí se seguia, como se segue, que haveria uma divisão radical, profunda e intransponível entre o ser humano e os “animais”; que o ser humano seria um ser principalmente raciocinante; que cada ser humano é um mundo radicalmente à parte dos demais. Essas concepções, embora tenham sido criticadas pelas mais elementares pesquisas da “neurociência” e da filosofia desde o final do século XVIII, ainda hoje impregnam os debates e as reflexões científicos, filosóficos, morais, políticos – e até midiáticos (como se vê nos filmes e seriados estadunidenses).

Além dessas concepções evidentemente de origem teológica, Augusto Comte também comenta concepções mais claramente metafísicas, que chamaríamos hoje em dia de “mecanicistas”, ou “fatalistas”, ou – como são popularmente denominadas, mesmo no âmbito acadêmico – “deterministas”. Essas outras concepções postulam que os animais (e, às vezes, o ser humano) possuem “instintos” e que esses instintos conduzem sempre, necessariamente, a comportamentos específicos automáticos. Isso corresponde às noções de que somente o ser humano é “racional” (ou seja, que somente ele controlaria seu comportamento) e que, portanto, os animais agem sempre sem nenhum autocontrole.

A concepção mecanicista-fatalista do instinto, quando transposta para o ser humano, conduz igualmente à noção de que o ser humano, como seria um “animal”, seria incapaz de controlar-se, de aprender, de modificar seu comportamento conforme as circunstâncias, as conveniências, os valores. A esse respeito, o comentário específico de Augusto Comte, nesse caso, consiste em uma nota de rodapé em sua apreciação da obra de Joseph Gall e de Johann Spurtzheim, valorizando uma retificação, ou uma correção, feita por este último às concepções do primeiro: a existência de órgãos específicos não conduz a comportamentos específicos (além de que, de qualquer maneira, não há órgãos para o roubo, para o assassinato etc.).

Novamente: esses comentários foram feitos há quase 200 anos, em 1838, como preparatórios para a Sociologia. Talvez pareçam meras curiosidades filosóficas – afinal, sendo tão antigos, não teriam valor “científico” –; talvez pareçam curiosidades históricas – afinal, sendo tão antigos, seriam “peças de museu”. De fato, muito da mentalidade contemporânea aponta para essas maneiras de ver, tanto a partir da ciência quanto do frenesi tecnológico atual, ambos cultores de um degradante “presentismo”, de um culto ao presente, ao que é “atual” (e que, por ser “atual”, seria “moderno”, “melhor”).

Mas, deixando de lado esses preconceitos presentistas, academicistas, cientificistas e tecnologistas, o fato é que esses comentários são profundamente, são radicalmente atuais. Em apenas dois parágrafos, a partir das pesquisas científicas anteriores (não somente biológicos e/ou de “neurociência”, mas do conjunto da produção científica) e de sua reflexão autônoma, Augusto Comte faz o seguinte:

1)      Define (e reafirma) o que é instinto e inteligência

2)      Define (e reafirma) que os instintos e a inteligência são comuns aos seres humanos e aos animais

a.       Define (e reafirma) que, portanto, os animais também são inteligentes e que, assim, não faz nenhum sentido estabelecer uma divisão radical, profunda e intransponível entre seres humanos e animais

3)      Define (e reafirma) que a inteligência é um atributo relacional, dos animais em relação ao ambiente que os cerca

a.       Define (e reafirma) que a inteligência – e a razão – é a capacidade de mudar o comportamento, conforme as circunstâncias

4)      Define (e reafirma) que os instintos são apenas disposições inatas que buscam alguma satisfação

a.       Define (e reafirma), portanto, que os instintos não correspondem a fatalismos comportamentais

5)      Define (e reafirma) que a presença de determinados órgãos não implica necessariamente determinados comportamentos

a.       Define (e reafirma) que os comportamentos concretos dependem das disposições internas aos seres vivos (o que inclui, evidentemente, a inteligência), e das circunstâncias ambientais (ou seja, do “contexto”), incluindo-se aí também os variados processos de educação

Todos esses aspectos têm que afirmados e reafirmados constantemente; eles têm influências profundas sobre as concepções sobre os animais e sobre o ser humano (e este em termos coletivos e individuais).

Por exemplo: a Biologia, a Sociologia e a Moral (chamada contemporaneamente de “Psicologia”), a partir das concepções teológico-metafísicas criticadas em 1838 por Augusto Comte, hoje em dia mantêm acirradas polêmicas sobre as relações entre a “natureza” e a “cultura”, discutindo se a herança genética é ou não um fatalismo, ou seja a educação serve ou não para mudar as disposições genéticas, ou se a educação (no caso do ser humano) não tem que se preocupar em absoluto com as disposições genéticas.

Para facilitar a identificação e o entendimento das passagens citadas, incluí pequenos títulos descritivos antes de cada uma delas.

*   *   *

Definições de “instintos”, “inteligência” e “razão”

“Conquanto, pelos motivos precedentemente indicados, as diversas escolas psicológicas ou ideológicas tenham estado de acordo em descurar essencialmente o estudo intelectual e moral dos animais, felizmente abandonado, desde a origem imediata da filosofia moderna, aos puros naturalistas, importa assinalar aqui a influência funesta que as concepções metafísicas exerceram todavia também, a este respeito, de uma maneira indireta, pela sua vaga e obscura distinção entre a inteligência e o instinto, estabelecendo, da natureza humana para a natureza animal, uma ideal separação, da qual os zoologistas não se libertaram ainda suficientemente, mesmo hoje. A palavra instinto não tem, em si mesma, outra acepção fundamental senão de designar todo impulso espontâneo para uma direção determinada, independentemente de alguma influência estranha. Nesse sentido primitivo, tal termo aplica-se evidentemente à atividade peculiar e direta de qualquer faculdade, tanto das faculdades intelectuais quanto das faculdades afetivas; ele não contrasta então de modo algum com o nome de inteligência, como se vê tantas vezes quando se fala daqueles que, sem nenhuma educação, manifestam um talento pronunciado para a musica, para a pintura, para as matemáticas etc. Sob esse ponto de vista, há certamente instinto, ou antes instintos, tanto ou mesmo mais no homem do que nos animais. Caracterizando, por outro lado, a inteligência mediante a aptidão de modificar a sua conduta conforme as circunstância de cada caso, o que constitui, com efeito, o principal atributo prático da razão propriamente dita, é ainda evidente que, a esse respeito, como pelo motivo precedente, não há lugar de estabelecer realmente, entre a humanidade e a animalidade, nenhuma outra diferença essencial senão a do grau mais ou menos pronunciado de que é suscetível o desenvolvimento de uma faculdade, necessariamente comum, pela sua natureza, a toda vida animal, e sem a qual não se pode mesmo conceber a existência desta”.

(Augusto Comte, Sistema de filosofia positiva, v. 3, lição 45, apud Raimundo Teixeira Mendes, O ano sem par, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900, p. 5-6[2]; itálicos do próprio Augusto Comte.)

*   *   *

Os instintos e a presença de órgãos não implicam fatalmente comportamentos

 “Aqueles dos meus leitores que não considerarem esta teoria senão na sua fonte mais pura, isto é, na grande obra de Gall, não devem esquecer um indispensável aperfeiçoamento geral introduzido por Spurtzheim, conquanto, penetrando-se o fundo do pensamento de Gall, se deva achar talvez que tal progresso concerne antes as simples denominações do que as próprias idéias. Seja como for, esse melhoramento consiste em reconhecer que as diversas faculdades fundamentais não conduzem a atos, e sobretudo a modos e graus de ação, necessariamente determinados, como Gall parecia estabelecer a princípio; mas que os atos efetivos dependem, em geral, da associação de certas faculdades, e do conjunto das circunstâncias correspondentes. É assim que não pode existir, propriamente falando, nenhum órgão do roubo, pois que tal ato não é senão uma aberração do sentimento da propriedade, quando o seu exagero não é suficientemente contido pela moral e pela reflexão; o mesmo dá-se com o pretenso órgão do assassinato, comparado com o instinto geral da destruição. Igual consideração aplica-se, com mais forte razão, às faculdades intelectuais, que, por si mesmas, só determinam tendências, e de modo algum resultados acabados”.

(Augusto Comte, Sistema de filosofia positiva, v. 3, lição 45, apud Raimundo Teixeira Mendes, O ano sem par, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900, p. 9, nota de rodapé[3].)



[1] Deve-se ter claro, então, que o cérebro é um órgão composto, ou seja, na verdade ele é um verdadeiro aparelho, composto por uma pluralidade de órgãos, cada um responsável por diferentes funções. O capítulo em questão é o último capítulo do v. III da Filosofia positiva, ou seja, é a Lição 45.

[2] Nesta versão eletrônica – facsimilar da primeira edição do livro –, pode-se ler a passagem acima nas páginas 783 a 785: https://archive.org/details/bub_gb_i-cx5K6kWVMC/page/783/mode/2up?view=theater.

[3] Pode-se ler a passagem acima nas páginas 796 e 797 desta versão eletrônica: https://archive.org/details/bub_gb_i-cx5K6kWVMC/page/797/mode/2up?view=theater.

18 maio 2023

Teoria positiva da confiança

No dia 24 de César de 169 (16.5.2023) realizamos nossa prédica positiva. Após darmos continuidade à leitura comentada da sexta conferência do Catecismo positivista (dedicada ao conjunto do dogma positivo), proferimos um sermão sobre a teoria positiva da confiança. As anotações que serviram de base para essa exposição, acrescidas de comentários sugeridos pelo público, estão reproduzidas abaixo.

A prédica pode ser vista nos canais Positivismo (aqui: https://l1nq.com/gl2k6) e Apostolado Positivista do Brasil (aqui: https://l1nk.dev/vPER3). O sermão pode ser visto a partir de 41' 45".

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Sobre a confiança

 -        Podemos dizer que a confiança é a base todas as relações sociais

o   Assim, a confiança é um dos conceitos sociais, políticos e morais mais importantes de qualquer sociedade e de qualquer pessoa

o   A confiança seria importante para o Positivismo de qualquer maneira; mas, além disso, o Positivismo fundamenta de diferentes maneiras e tira inúmeras conseqüências da confiança

-        A confiança em si mesma tem aspectos subjetivos e outros objetivos

-        À primeira vista, a confiança seria apenas subjetiva e individual

o   Podemos defini-la basicamente como a crença de que alguém e/ou alguma instituição merece respeito e apoio

§  Em certo sentido, a confiança aproxima-se da esperança: mas, enquanto a esperança tem um aspecto mais abstrato e de longo prazo, a confiança é mais concreta e de curto prazo

o   Mais do que apoio e respeito: trata-se da crença de que, em um determinado âmbito da vida, podemos confiar no julgamento e nas ações tomadas por outras pessoas e/ou instituições

§  Assim, esse aspecto puramente subjetivo assume um âmbito coletivo e tem conseqüências diretas também coletivas

o   Um outro aspecto importante, também subjetivo e objetivo, individual e coletivo: a confiança exige sempre a liberdade e, portanto, a autonomia dos indivíduos

§  Inversamente, isso equivale a dizer que em face do medo, da coerção, da ameaça de violência, não é possível a confiança

 

[Comentários de Hernani Gomes da Costa, feitos em 14.5.2023.]

Boa tarde, Gustavo! Tudo bem? Acabei de ler a sinopse de seu próximo sermão. Pareceu-me capaz de fornecer as bases necessárias para uma apresentação completa do assunto em seu próprio âmbito.

Assim, tenho pois a acrescentar aqui apenas uma sugestão, que embora me pareça acessória (e dispensável, portanto, à compreensão do assunto) proveria o sermão de uma base mais geral e sistemática.

Ela consiste em ligar o tema específico da confiança fazendo-o derivar do conjunto inteiro do dogma, isto é, vinculando-o à concepção fundamental deste.

Se a base da nossa confiança reside na fé demonstrável segundo a qual a Humanidade habita um mundo onde os fenômenos quaisquer seguem leis apreciáveis, é esta precisamente a confiança que nos haverá de conferir toda a segurança emocional necessária à nossa harmonia mental nas relações humanas. O “mundo assombrado pelos demônios”, de que fala Carl Sagan, é o mundo onde se imagina que “tudo pode acontecer”, e que longe de nos favorecer a confiança seja lá no que for, apenas pode nos fazer mergulhar a mente nas mais delirantes e antipáticas possibilidades todas elas tornadas igualmente plausíveis.

Einstein em contrapartida (que costumava “jogar pra a platéia” servindo-se de metáforas teológicas para exprimir seu pensamento, de maneira atraente) certa vez afirmou que “o Senhor é sutil mas não malicioso”, querendo, no fundo, dizer com isso que a Natureza não se furta nunca a dar-se a conhecer à Humanidade, podendo cada um de nós, confiar nela tal como confiaria em alguém radicalmente honesto. Essa fé na regularidade dos fenômenos quaisquer corresponde à mais longínqua referência a que podemos levar o conceito de confiança.

Aquele mesmo pensamento que Einstein exprimiu em termos teológicos, Carl Rogers o expressou vantajosamente em termos fetíchicos, quando afirmou que “os fatos são amigos”. Ora se um amigo é fundamentalmente digno de confiança, nada nos impede de dizer, inversamente, que o que é digno de confiança é amigo.

Assim, a transparência que fundamenta as relações fraternas entre os homens não é um sentimento que precise ser procurado e desenvolvido apenas no interior da ordem moral. Ao contrário ele nos é desde sempre e o tempo todo exemplificado e robustecido por uma concepção diretamente sugerida já pela própria ordem física e mesmo pela ordem lógica. Com efeito, o mundo espontaneamente se oferece à Humanidade tal como sistematicamente as pessoas se propõem a fazê-lo guiadas pelo altruísmo. Ao apenas ser tal como é, e portanto ao tão só manifestar-se a nós apenas (e totalmente) pelo que é, o mundo vem assim a nos prover do mais recuado exemplo físico e lógico de tudo aquilo que nós devemos ser e desenvolver moralmente.

Um outro ponto que talvez merecesse comentar é o contraste radical entre os conceitos teológico e positivo de confiança: o mesmo teologismo que nos convida (ou antes nos intima) a confiar cegamente num ser que - a menos de ser concebido a priori como bom - não poderia deixar de ser tomado como o responsável direto por todas as nossas misérias (sempre então imaginadas como devendo obedecer a algum propósito maior que nos escapa) esse mesmo teologismo, dizia, é também aquele que não hesita em pôr sob suspeita e em difamar a Humanidade inteira, declarando maldito o homem que confia no próprio homem; e isso, note-se, não importando quais possam ter sido as maiores e as mais numerosas provas reconhecíveis e decisivas de sua sempre e inconfundível benevolência progressiva para com seus filhos.

 

-        A confiança exige comportamentos práticos reiterados:

o   É uma questão (1) de honestidade; (2) de coerência dos comportamentos entre si ao longo do tempo; (3) de coerência das idéias e dos valores entre si ao longo do tempo; (4) de coerência entre idéias/valores e atos ao longo do tempo

o   Daí, portanto, o “viver às claras”: sem a publicidade dos atos, é impossível averiguar a coerência e a constância dos comportamentos

-        A Religião da Humanidade estabelece que o dever de simpatia implica uma postura geral de boa vontade de todos para com todos: essa boa vontade implica, por sua vez, uma boa-fé generalizada, o que equivale a uma confiança generalizada

o   Essa é uma das conseqüências da lei-mãe da Filosofia Primeira, “formular a hipótese mais simples, mais estética e mais simpática que comporte os dados disponíveis”

o   Entretanto, como indicamos antes, a confiança tem que ser comprovada e merecida na prática

§  Os atributos que nos permitem desenvolver a confiança são pelo menos estes: liberdade (e/ou autonomia), honestidade, coerência, constância (ou consistência), publicidade

o   Aquele que deixa de merecer a confiança de outrem tem que tratar de reconstituí-la, agindo de maneira adequada

§  Nesse caso, evidentemente, o esforço de recuperar a confiança é daquele que a perdeu, não daquele(s) que foi(ram) frustrado(s)

-        Dois aspectos do “viver às claras”, ambos evidentemente relacionados entre si: um mais moral, outro mais político

o   O sentido moral é o sentido básico e corresponde à moralidade dos atos quaisquer, em que se deve sempre poder justificar publicamente nossas condutas e nossas decisões

o   O sentido político é o da publicidade dos atos quaisquer, sejam públicos, sejam privados

-        A confiança abrange também aspectos sociais e mais objetivos:

o   Há a confiança diretamente nas instituições

§  Exemplos: na ciência; no Estado; nas igrejas; nas escolas

o   Diferentes sociedades, filosofias e modos de entender a realidade estimulam mais ou menos a confiança nas pessoas e/ou nas instituições

§  Exemplo positivo, que comprova diretamente a importância e a validade da confiança: na China pré-comunista, havia uma confiança generalizada e espontânea no governo

§  Exemplos negativos, que comprovam indiretamente a importância da confiança: (1) a teoria política ocidental, herdando a concepção monoteísta e teológica de que qualquer crítica ao governo é uma sublevação (quase) herética, tende a consagrar a revolta sistemática como sinal de afirmação da liberdade; (2) da mesma forma, herdando no fundo uma concepção absolutisto-monoteísta, a teoria política ocidental tende a considerar que a liberdade é ausência de qualquer parâmetro, ou seja, que a liberdade é anárquica e/ou caprichosa; (3) a metafísica consagra a concepção de que todos os poderes e, no fundo, todas as instituições são imerecedoras de confiança

§  Devemos insistir, a partir das considerações acima, em que a metafísica, com seu caráter corrosivo, é completamente contrária à confiança

§  Como, no Ocidente, vivemos em uma época metafísica, a valorização efetiva da confiança torna-se uma tarefa complicada, difícil e até heróica

-        O Positivismo distingue vários tipos de relações sociais; daí, podemos determinar várias “direções” da confiança:

o   Sentidos vertical e horizontal da confiança:

§  Sentido horizontal: entre “iguais” (amigos, correligionários, namorados, cônjuges etc.)

§  Sentido vertical de baixo para cima: dos seguidores para os líderes

§  Sentido vertical de cima para baixo: dos líderes para os seguidores

o   Sentidos restrito e ampliado da confiança:

§  Assim como todo ser humano é um servidor da Humanidade (nesse sentido amplo e um tanto figurado, um “servidor público”) e tem uma atuação restrita (sua profissão, seu ofício) e outra ampliada (a preocupação com as atividades coletivas e a respectiva fiscalização), podemos dizer que a confiança também tem um âmbito restrito e outro ampliado

§  Sentido restrito: confiança nas atividades específicas e limitadas de cada qual (exemplos: nos médicos que nos atendem, nos professores que nos ensinam)

§  Sentido ampliado: confiança que depositamos em alguém e/ou alguma instituição de caráter geral (exemplo: no sacerdócio positivo)

·         É importante lembrar que somos todos servidores da Humanidade, quer trabalhemos no setor “privado”, quer trabalhemos no setor “público”

-        Há um aspecto diretamente político da confiança (“político” no sentido de “pólis”, isto é, de vida coletiva):

o   Toda função social sempre se baseia na confiança

§  Isso quer dizer que não é possível a ninguém desempenhar suas funções (sejam elas estritamente privadas, sejam elas públicas) sem que o conjunto da sociedade e os demais concidadãos confiem uns nos outros

§  Sem essa confiança, o exercício das funções e a eficácia social das atividades fica seriamente prejudicada

o   A plena responsabilidade dos atos e do cumprimento das funções sociais baseia-se sempre na plena confiança

§  Ao dever geral de confiança (ou seja, de confiarmos uns nos outros) corresponde, em contrapartida, o dever específico de que os servidores da Humanidade sejam sempre responsáveis perante o conjunto da sociedade e os demais concidadãos

·         Convém lembrar que a “responsabilidade” significa aqui tanto a efetiva capacidade de ação quanto a responsabilização dos servidores da Humanidade

·         Também importa lembrar que, quanto maiores as responsabilidades, maiores os poderes necessários