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06 janeiro 2013

Reinaldo Azevedo e revista Veja contra a laicidade

Sabe-se que a revista Veja é particularmente oposicionista no Brasil. Ela é oposicionista no pior sentido da palavra; partindo de perspectivas de "direita" e liberais, ela segue a fórmula que se popularizou no mundo ibero-americano: "se hay gobierno, soy contra" - ou seja, seu comportamente é o mais virulento e daninho possível; lançando mão da liberdade de expressão, faz o que pode (o que inclui muitas coisas que não poderia, isto é, não deveria em hipótese alguma fazer) para minar a legitimidade do governo.

A revista Veja adota essa postura especificamente contra o Partido dos Trabalhadores e, de modo geral, contra qualquer coisa que se pareça ou lembre a "esquerda". Evidentemente, nem o PT nem a esquerda estão isentos de falhas; como se sabe, a chamada "esquerda" foi historicamente marcada pelos marxismos, que são correntes que acarretaram terríveis malefícios para as várias sociedades; além disso, até obter o governo federal, o PT caracterizou-se pelo mesmo estilo daninho de "oposição" e, uma vez no poder federal, notabilizou-se por um dos maiores esquemas de corrupção e hipocrisia que o Brasil já teve a infelicidade de testemunhar.

A revista Veja tem por linha editorial o combate sistemático ao governo federal e a uma concepção que tem da "esquerda". Essa linha é engajada; adota alguns princípios gerais e segue-os até o fim, independentemente de se são adequados ou não à realidade e, pior, independentemente de se a realidade corresponde ou não a eles. Desse modo, é uma linha editorial profundamente ideológica. Não há preocupação com a coletividade, com o bem comum; não há a menor preocupação com a república e com as instituições.

Seus articulistas caracterizam-se, então, pelo anti-esquerdismo, pelo ferrenho liberalismo e por tudo que tenha uma certa impressão de "antipetismo". Em alguns casos, os articulistas também se caracterizam pelo clericalismo, talvez mesmo pela carolice. No conjunto, o que a revista Veja consegue é ser mais que "liberal" ou de "direita": ela demonstra ser no mínimo conservadora, no máxima reacionária. Exemplo cabal dessa postura é Reinaldo Azevedo.

Na matéria "De vez em quando, o bom senso se lembra do Brasil: juíza mantém “Deus seja louvado” nas notas de real", publicada em 30.11.2012 (e disponível aqui), o articulista considera tolice a retirada da frase "Deus seja louvado" das cédulas do Real, pedida há alguns meses por um procurador do Ministério Público Federal atuante em São Paulo. Para Azevedo, seguindo a argumentação da juíza que indeferiu o pedido do MP, nenhuma instituição religiosa, atéia ou agnóstica posicionou-se contrariamente à frase nas cédulas; da mesma forma, tal frase não ofende nem os brasileiros em particular nem a moral pública de modo geral; também não é um problema de relações entre maiorias e minorias. E, para acabar, Azevedo considera o procurador público um "macho", um encrenqueiro que se aproveita de seu cargo.

As observações de Azevedo - bem como as da juíza - são especiosas, falaciosas e/ou falsas. Há muito, muito tempo inúmeras instituições, não apenas representativas de ateus, agnósticos, humanistas e/ou laicos, mas também de teológicos e místicos defendem a retirada dessa frase carola das cédulas brasileiras: se o procurador federal não consultou nenhuma delas é porque há já, faz tempo, uma demanda clara nesse sentido. Azevedo - e a juíza - preferem ignorá-la.

A frase "Deus seja louvado", inserta nas cédulas brasileiras desde 1986 por obra do grão-senhor do Maranhão e Amapá, então Presidente da República, José Sarney, é um problema de relações entre maioria e minoria. Mas, mais do que isso, é um problema de saúde das instituições públicas e das condições que permitem que as instituições permaneçam sadias.

A condição básica da República é a separação entre igreja e Estado. Isso tem um nome claro: laicidade; também tem uma dinâmica simples e clara: o Estado não tem doutrina oficial e nenhuma igreja pode lançar mão do poder do Estado para difundir-se. É isso que garante aos católicos não serem oprimidos pelos dogmas e cultos protestantes, assim como os ubandistas podem ficar livres da imposição dos ritos do catolicismo romano; é por isso que os católicos podem questionar a violência sofrida pela imagem da santa em 1995 e que os adventistas não são obrigados a trabalhar no sábado. É por isso que, ao contrário de outros países, não há no Brasil o crime de heresia.

Também é a laicidade que permite às pessoas manifestarem suas opiniões com liberdade. Em outras palavras, é graças à laicidade que Reinaldo Azevedo pode fazer suas péssimas diatribes no portal da revista Veja. Ele pode considerar que uma frase - uma simples frase - seja algo secundário, mas não é. Uma frase em uma cédula é uma idéia que goza do endosso público e oficial; ela representa uma visão de mundo e um valor, que ainda por cima tem circulação obrigatória.

Se uma frase fosse uma "simples frase", algo de importância secundária, poderíamos perfeitamente pensar em qual a utilidade de usarmos a palavra (falada, mas principalmente escrita). Se as palavras fossem secundárias, talvez os (longos) textos do próprio Azevedo fossem inúteis. Mas o sr. Azevedo escreve e polemiza: supostamente, para ele as palavras e as frases têm importância, supostamente porque mobilizam idéias e confirmam ou modificam comportamentos.

Além disso, convém notar que não apenas as mais importantes religiões do mundo atualmente são religiões dos livros, isto é, das palavras escritas: catolicismos, islamismos, budismos - mas também os comunismos e os liberalismos.

R. Azevedo é um liberal católico. Sua defesa da frase "Deus seja louvado" indica que ele prefere ser católico a ser liberal. Afinal de contas, supostamente os liberais são contrários à doutrinação oficial do Estado: essa posição é mais clara no que se refere ao comunismo, mas o fato é que alguns liberais brasileiros defenderam, pelo menos no início da República, a separação entre igreja e Estado: essa foi a postura de Rui Barbosa em 1889-1890 (que tomou para si o projeto elaborado pelos positivistas Demétrio Ribeiro e Benjamin Constant).

Já os católicos - com raríssimas exceções - sempre foram pela junção entre igreja e Estado. Ou melhor: pela subordinação do Estado à igreja. Isso ocorreu durante todo o Império e durante a I República; ocorreu com a chantagem feita por Sebastião Leme a Getúlio Vargas em 1931, na inauguração do Cristo Redentor e ao longo da Era Vargas; ocorreu na República Nova e na primeira metade do regime militar. Diminuiu na segunda metade do regime militar, mas na Nova República voltou - e foi sacralizado via acordo internacional com a concordata de 2009.


A frase "Deus seja louvado" é uma profissão de fé e é um apoio do Estado ao cristianismo. Em outras palavras, é um atentado violento à moralidade pública. É um ato de lesa-República.

Há muitas pessoas para defenderem a intromissão do Estado nas consciências privadas, ou melhor, a instrumentalização do Estado para imposição de suas crenças. Mas há bem poucas para defender a República e suas instituições fundamentais. Reinaldo Azevedo, a revista Veja e a juíza favorável ao "deus seja louvado" são contrários à laicidade: quem temos a favor dela?