As máximas de
Clotilde
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Tratar de Clotilde de Vaux é ao mesmo tempo
importantíssimo e um tanto difícil
o É
importante porque ela foi a
cofundadora da Religião da Humanidade, nas palavras do próprio Augusto Comte
§ Na
verdade, é difícil exagerar essa importância: sem Clotilde, o Positivismo seria
apenas um cientificismo; com Clotilde, o Positivismo pôde desenvolver-se até a
bela e inspiradora Religião da Humanidade
o É
difícil porque a sua vida, a sua
produção literária e a sua relação com Augusto Comte são muito “estranhos” à
nossa época
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Consideremos a sua produção literária: ela era
poetisa e romancista
o A
sensibilidade estética de Clotilde era claramente romântica
o Mas
a principal dificuldade não está em sua sensibilidade romântica da época: o
problema que se apresenta para nós é que a
nossa época é decididamente anti-romântica, ou melhor, é intelectualista e materialista
o Todo
o ciclo romântico integra uma grande tradição de pensar, ou melhor, de
raciocinar usando a poesia; assim, os raciocínios estavam intimamente
vinculados à expressão artística e, portanto, à manifestação e ao estímulo dos
sentimentos
o A
nossa época, ao contrário, é resolutamente intelectualista, materialista e
anti-romântica, isto é, antiafetiva
§ É
necessário termos clareza a respeito desse traço contemporâneo: o materialismo
e o intelectualismo são devidos às metafísicas materialistas (liberalismo e
comunismo), ao desprezo intelectualista pelos sentimentos, ao culto (igualmente
metafísico) da política e da luta do poder – e, englobando tudo isso mas
ajuntando a isso seus próprios erros, devemos também ao desprezo feminista
pelos sentimentos e pela cultura aos sentimentos (vistos como “ideologia
patriarcal e/ou falocrática” contra as mulheres)
§ É
claro que a sensibilidade contemporânea – materialista, anti-romântica,
antiafetiva, politicista – tem profundas conseqüências sobre as artes, que se
tornaram largamente superficiais e/ou intelectualistas – e mesmo quando se
pretendem afetivas, perderam em grande parte seu caráter de elevação moral
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É necessário, então, insistir: é impossível
entender – e sentir – as máximas de Clotilde sem termos clareza de que elas são
a expressão poética de sentimentos e de idéias
o Sem
entender esse íntimo vínculo entre expressão poética, demonstração de
sentimentos e argumentação filosófica, no fundo também não se pode entender o
próprio Positivismo, nem a insistência de Augusto Comte no valor e na
importância dos sentimentos e da poesia
o Duas
frases de Augusto Comte ilustram bem essas concepções:
§ A
primeira refere-se ao papel das mulheres: “Superiores pelo amor, mais bem
dispostas a sempre subordinar ao sentimento a inteligência e a atividade, as
mulheres constituem espontaneamente seres intermediários entre a Humanidade e
os homens” (Augusto Comte – Política
positiva, v. II, p. 63)
§ A
segunda é uma tocante declaração de respeito, de veneração e de afeto de
Augusto Comte em relação a Clotilde: “Tu foste, sem o saber, como eu o repito
cada martedia, a mulher a mais eminente, de coração, de espírito e mesmo de
caráter que a história universal apresentou até hoje. O futuro parece-me
dificilmente suscetível de um melhor tipo” (Augusto Comte – Confissões anuais)
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Feitos esses comentários iniciais, apresentamos
duas poesias de Clotilde, que ela enviou para Augusto Comte em seu epistolário no
final de 1845, após o fundador da Religião da Humanidade já se ter declarado
apaixonado pela moça:
Os pensamentos de
uma flor
(Clotilde
de Vaux; tradução de Raimundo Teixeira Mendes)
Nasci p’ra ser amada: ó, graças, bom Destino!
Que os
soberbos mortais praguejem teus azares!
O vento os
arrebate aos pés de teus altares,
Eu tenho o meu
perfume e o gozo matutino.
Tenho o
primeiro olhar do rei da natureza,
Por gala o seu
fulgor, seu beijo em chama acesa;
Tenho um
sorrir de irmã da juvenil Aurora;
Tenho a brisa
nascente a dulcidão que mora
Na gota
pendurada à borda do meu cális.
Tenho o raio
que brinca a se abismar nos vales;
Tenho o mago
painel, a sena inigualada,
Do universo
entreabrindo as portas da alvorada.
Jamais frio
mortal haurir-me deve a vida:
No seio da
volúpia a manso me adormeço;
Me guarda a
natureza o esplêndido adereço;
Em seu festim
de amor desperto embevecida.
Muita vez
embelezo a formosura;
Num puro seio
o meu candor se côa;
Enlaça-me o
prazer n’alegre cr’ao,
E a seu lado
me prende alma ventura.
Quanto o rouxinol
s’inspira
No meu talo em doce enleio,
Para não turvar-lhe o gorjeio
A
natura inteira espira.
Amor me diz seus votos mais secretos;
Abrigo de seus ais grata saudade;
Dos seus mistérios zelo a f’licidade;
A chave sou dos corações secretos.
Ó! Doce Destino, se as leis que nos baixas
Suspiros profanos pudessem mudar,
Só eu haveria, nas diáfanas faixas,
De amor aos bafejos à vida tornar.
Da tempestade sombria
Poupa-me o
horrendo furor;
Dá que sempre
a leda flor
Nas tuas festas
sorria.
A infância
(Clotilde
de Vaux; tradução de Raimundo Teixeira Mendes)
Vem, criança gentil, mais perto... que m’encanta
Ver-te a
madeixa loura, o meigo olhar formoso,
As graças
naturais que têm tanto invejoso,
A fonte onde
arde a inocência o templo seu levanta.
Vem, qu’eu gosto de ver-te o velho pai prezando
Mais que o
ledo brincar que os anos seus molesta;
Gosto de ver
fugir, dos beijos teus à festa,
A nuvem que,
no olhar materno, ia assomando.
Gosto de ver o
ancião que vai, a lento passo,
O humilde lar
buscando, apoiado ao teu braço;
Gosto de
ver-te a mão encheres, com carinho,
Do pobre que
se senta à borda do caminho.
Por que se hão
de ir embora encantos dessa idade,
Graças que as
nossas mães com tanto amor afagam?
Os sonhos do
porvir, por que se nos apagam?
Ah! Sim! É que
é preciso um dia de saudade!
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Indo às máximas de Clotilde:
o Elas
foram recolhidas e estabelecidas por Augusto Comte a partir das obras
literárias, das cartas e das conversas em visitas que eles mantiveram durante
1845 e 1846
o Elas
foram formalmente apresentadas no Testamento
de Augusto Comte e, a partir daí, reproduzidas nos mais variados livros
o Seja
porque foram estabelecidas por Augusto Comte, seja porque, evidentemente, elas
apresentam valor por si sós, elas integram o conjunto de máximas e fórmulas
próprias à Religião da Humanidade
§ Convém
termos clareza de que elas não têm as características sistemáticas e sintéticas
das máximas elaboradas por Augusto Comte: mas, por outro lado, são observações
morais agudas e profundas, verdadeiramente dignas de um espírito feminino
profundo
As sete máximas de Clotilde de
Vaux (T, p. 99)
1) É indigno dos grandes corações derramar as
perturbações que sentem. (Lúcia, 7ª carta)
a. Os
“grandes corações”, ou seja, as pessoas que buscam aperfeiçoar-se moralmente,
devem evitar descontroles e explosões afetivas, especialmente em público: saber
manter a reserva e até o autocontrole é uma virtude moral e prática
b. Essa
máxima evidentemente não quer dizer
que as pessoas não devam manifestar seus sentimentos, ou que não devam chorar
em momentos de grande tristeza (ou de grande alegria): o que está em questão é
o descontrole do comportamento a partir dos sentimentos, especialmente quando
somos tomados por sentimentos muito intensos
c. Há
um aspecto de exemplo e de liderança subjacente à expressão “grande coração”
2) Que prazeres podem exceder os da dedicação? (Lúcia,
8ª carta)
a. Essa
máxima evidencia que a fórmula da felicidade pessoal é a destinação altruística
dos egoísmos e, mais do que isso, que quando o altruísmo passa a ser
verdadeiramente o parâmetro de nossas condutas, a dedicação aos demais (o
altruísmo) quase que eclipsa a satisfação pessoal (egoística) dessa ação
3) Eu compreendi, melhor que ninguém, a fraqueza de
nossa natureza quando ela não é dirigida para um objetivo elevado e que seja
inacessível às paixões (T, p. 333)
a. As
nossas condutas têm que se basear e orientar em símbolos, objetivos e metas
que, morais por si sós, não se submetam às disputas cotidianas; esse
afastamento das disputas cotidianas implica que os símbolos, os valores e as
metas que nos orientam não se corromperão e poderão manter-se como metas
morais, práticas e intelectuais efetivas
b. É
claro que isso não implica que essas metas não possam ser avaliadas em termos
de exeqüibilidade, de moralidade, de positividade etc.
c. A
Humanidade, claramente e não por acaso, é um desses ideais superiores
inacessíveis às paixões
4) São necessários à nossa espécie, mais que às
outras, deveres para fazer sentimentos. (T, p. 374)
a. Essa
máxima indica que nós precisamos de deveres, de relações mútuas obrigatórias de
uns para com os outros, e que essas relações desenvolvem por seu turno
sentimentos apropriados a essas relações
b. O
que se afirma aí é a necessidade primária de sairmos de qualquer egoísmo e/ou
de qualquer imobilismo e/ou de qualquer isolamento para lançar-nos em relações
com outras pessoas, outros grupos, outras idéias
c. Além
de tirar-nos de nossos egoísmos, nossos isolamentos, nossos imobilismos e
nossos individualismos, essas relações obrigam-nos a considerar, de maneira
cada vez mais sistemática, as concepções, os valores, os sentimentos de outras
pessoas e outros grupos: isso significa que desenvolvemos a empatia, que se
torna cada vez mais generalizada (de outras pessoas específicas para outros grupos em
geral)
5) Não há na vida nada de irrevogável senão a morte.
(T, p. 419)
a. Essa
máxima indica que quase tudo na vida pode ser desfeito; mas a única coisa que,
com toda a certeza, não pode ser desfeita, é a morte (individual, em
particular)
6) Todos temos ainda um pé no ar sobre o limiar da
verdade. (T, p. 484)
a. Essa
máxima tem um caráter mais filosófico e epistemológico que propriamente moral:
ela sugere a cautela e a humildade nas ações e em nossos conhecimentos; assim,
ela também evita o absolutismo filosófico
7) Os maus têm com freqüência maior necessidade de
piedade que os bons. (T, p. 537)
a.
Essa máxima é bastante direta e clara, embora
sugira uma reflexão que nem sempre é entendida e seguida com clareza na prática:
para avaliarmos quem age de maneira errada e/ou má, com freqüência precisamos
ser mais altruístas que com aqueles que agem de maneira correta, a fim de não
sermos injustos
b.
Além disso, em um sentido mais profundo, essa
máxima indica que não podemos entregar-nos ao ódio e à raiva ao tratarmos (de
maneira ocasional ou permanente) de e/ou com pessoas, grupos ou assuntos que
despertem o ódio ou a raiva: afinal, como se diz, apenas o amor constrói