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19 maio 2025

Marcos Lanna: relações culturais e assimetria

Revendo algumas anotações antigas, encontrei citações de um antropólogo brasileiro a respeito das relações culturais entre diferentes povos (ou diferentes "culturas"). Tais citações foram tiradas de um artigo publicado há já um certo tempo - ele é de 1999 -, mas elas valem a pena de qualquer maneira; embora o autor baseie-se principalmente em Claude Lévi-Strauss e, secundariamente, em Rousseau e Marx, o fato é que os trechos abaixo dialogam diretamente com o Positivismo - daí o nosso interesse.

Entre citações que devem, todas elas, ser objeto de reflexão, a frase final que selecionamos chamou-nos em particular a atenção: "Vimos que é politicamente mais ingênuo desistir da busca de universais do que perseguir este objetivo".

O texto é de Marcos P. D. Lanna, professor de Antropologia da Universidade Federal de São Carlos (em São Paulo). As referências são estas: "Sobre a comunicação entre diferentes antropologias", Revista de Antropologia, São Paulo, v. 42, n. 1-2, 1999. O original pode ser lido aqui: https://doi.org/10.1590/S0034-77011999000100013.

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“Tais estudos deveriam refletir sobre a ingenuidade política do projeto interpretativista e de alguns que o sucederam, inclusive os chamados cultural studies. Isto é, a presença de um diálogo com o outro não garante o fim da ‘autoridade etnográfica’. Entendo aqui este termo num duplo sentido: o primeiro é aquele, já convencional, da perspectiva de uma análise da retórica e da relação entre etnógrafo e seus leitores, como um estilo de escrita etnográfica. O segundo é o que entende a autoridade etnográfica como fato sociológico tout court, tomando-a como um momento da relação entre o etnógrafo (e sua sociedade) e os povos por ele visitados. Em ambos os casos, se a etnografia realmente é uma relação política, muitos de seus mistérios ainda devem ser desvendados. Ora, o diálogo não exclui mas pressupõe a diferença. Ele implica reciprocidade, mas esta relação, por sua vez, não pode ser associada à simples simetria: implica, necessariamente, também assimetria [...]. A relação entre hóspede e anfitrião é um exemplo de reciprocidade assimétrica ou hieráquica. O hóspede não pode, por definição, sentir-se em casa, seja qual for o discurso do anfitrião, independente do fato desse discurso apelar à simetria ou, ao contrário, assumir relações de controle. Se diálogo e reciprocidade não excluem assimetria e diferença, a superação da diferença só pode ser alcançada pela ausência de diálogo. Mais ainda, se a prática antropológica é dialógica, não podemos supor a priori o interesse do outro. Como diz Freire da Costa, ‘o outro é imprevisível (...) não obstante todo cálculo racional que eu faça’ [...]. O conteúdo das trocas que fundamentam o contato não é dado de antemão. Se o trabalho de campo é um trabalho cooperativo, nada garante que aqueles que recebem o antropólogo queiram, como este, ‘rejeitar distinções fundamentais’ entre nós e eles, ou ainda, que o próprio trabalho de campo não recrie essas distinções. Essas distinções variam em cada caso; elas não devem ser reificadas. Alguns [...] chegam a tomá-las como relações entre ‘espertos e leigos’ — o antropólogo sendo o esperto, bem entendido.

[...]

Aqueles que reduzem a antropologia a um registro de ‘múltiplas vozes’ não podem deixar de perceber que ‘o diálogo não é feito pela justaposição de muitas vozes, mas de sua interação’ [...]. Em qualquer situação etnográfica, esta interação implica assimetrias entre essas vozes. No caso analisado por Benedict, uma delas tinha a bomba atômica. A bomba aliada a uma certa ‘capacidade perspectiva’ definia um nós, uma ‘civilização mecânica’ e ‘hiperativa’ [...]. Assim, ao contrário do que sugere Todorov [...], não é apenas a ausência de perspectivismo que se liga a uma história de guerras. Vê-se, porém, haver coerência e honestidade na posição anti-antropológica (como a de Kevin Dwyer, mencionada acima), pois ela se funda no reconhecimento da relação entre uma noção de alteridade específica e uma história de guerras e crimes.

[...]

Em todo caso, fica evidente que, desde pelo menos 1950, quando a ‘Introdução à obra de Marcel Mauss’ foi escrita, Lévi-Strauss entendia de maneira profunda o fato de que a antropologia constrói seu objeto. Cinco anos depois, em Tristes trópicos, Lévi-Strauss tenta demonstrar mais detalhadamente como essa construção ocorreria. A ‘Introdução à obra de Marcel Mauss’ demonstra ainda que não há um momento final em que a dicotomia sujeito/objeto é totalmente superada. Mesmo assim, nós devemos sempre e continuamente buscar superá-la. É isto o que nos define como antropólogos. Não há nada de utópico nesse projeto. Podemos ser bem sucedidos, mas apenas momentaneamente, em micro encontros. Se algumas correntes da antropologia contemporânea pretendem não distinguir ‘o Ocidente do resto’, nem todas se revelam cientes da extrema ambição e das dificuldades, a meu ver insuperáveis, dessa proposta, assim como do simples fato de que há diferença entre superar e suprimir essa e outras dicotomias. A supressão dessa dicotomia traria trágicas conseqüências. Estaríamos então ignorando quem somos nós, antropólogos ocidentais. Por isso propus aqui o reconhecimento da civilização ocidental como uma civilização industrial e pós-industrial. Esta proposta não é nova. Ela havia sido feita por Lévi-Strauss, em Raça e História, baseada na crítica de Rousseau à hiper atividade da civilização mecânica, mas também na obra de Marx, entendida como uma monumental descrição dos aspectos distintivos dessa civilização. Não podemos assim negar a responsabilidade da antropologia em criticar ingênuas pretensões à universalidade. Vimos que é politicamente mais ingênuo desistir da busca de universais do que perseguir este objetivo”.

14 dezembro 2022

Reconstrução da República, universalismo e anti-identitarismo

RECONSTRUÇÃO DA REPÚBLICA COMO TAREFA NECESSARIAMENTE UNIVERSALISTA E ANTI-IDENTITÁRIA[1]

 

A feliz e necessária derrota eleitoral do fascista, no dia 30 de novembro de 2022, muito mais que permitirá, na verdade obrigará o Brasil e os brasileiros a reconstruírem o país a partir de 1º de janeiro de 2023, desde as instituições até os hábitos de convívio. Será um caminho longo, difícil e demorado; o fascismo e os fascistas destruíram muito do país, permanecendo sua capacidade de atrapalhar o país, como se vê nos distúrbios no Norte e no Centro-Oeste do país, na violência em Brasília, na violência disseminada e relegitimada, na ressurgida baderna militar etc.

Mas há um aspecto que está escapando a todos, ou, pelo menos, à maioria.

A reconstrução necessária ao Brasil é em termos de República, de republicanismo: cidadania, valores compartilhados, isonomia (igualdade perante a lei), serviços públicos de qualidade. Todos esses aspectos são universais.

O fascista tornou-se governante com base no ódio e no projeto de destruir o país, mas também no particularismo e no facciosismo.

Assim, para que o país seja reconstruído, para que a sociedade e o Estado brasileiro recuperem-se da destruição sistemática sofrida nos últimos quatro anos, serão necessárias políticas e práticas universalistas.

Pois bem: as práticas e as políticas universalistas são práticas republicanas e dirigem-se a todos (ainda que, às vezes, concentrem-se em determinados grupos específicos). Essas práticas são universalistas e, por definição, são contra os particularismos e os facciosismos.

O republicanismo necessário à reconstrução do país repele, portanto, a política identitária. Repito: o necessário republicanismo repele a política identitária. Não adianta dizer que existe política identitária “do bem” (que seria, supostamente, a política identitária da esquerda) contra a política identitária “do mal” (a da direita): a política identitária por si só já é daninha, ruim e do mal. A política identitária é exclusivista, facciosista, particularista; ela baseia-se na afirmação de um grupo particular contra todos os outros; ela baseia-se no ressentimento social e político. Não é nenhum acaso que a política identitária recuse terminantemente o republicanismo e, por extensão, o universalismo.

A necessária reconstrução social e institucional interna do Brasil, bem como a necessária reconstrução da atuação internacional do Brasil, exigem a visão de conjunto; mas a política identitária rejeita (ou melhor, despreza) a visão de conjunto.

Aceito sem dificuldade que muitos grupos identitários apóiam a saída do fascista: isso é uma questão fática. Entretanto, tenhamos claro: os grupos identitários que se opuseram ao fascista opuseram-se a ele não porque esses grupos apoiam o republicanismo ou universalismo, mas apenas porque o identitarismo do fascista opõe-se ao identitarismo desses grupos. Em outras palavras, os identitários de esquerda opõem-se aos identitários de direita apenas porque só sabem locomover-se no âmbito de seus particularismos e seus facciosismos, não porque defendam o republicanismo e o universalismo.

Repito novamente: a reconstrução do Brasil exige, como deveria ser evidente, uma perspectiva universalista (seja em termos nacionais, seja em termos internacionais), mas a política identitária rejeita esse necessário universalismo.

Por que eu faço essas observações? Porque eu tenho certeza de que a partir de 1º de janeiro de 2023 o facciosismo identitário (de esquerda) dirá que quem é contra esse facciosismo é “retrógrado” ou contra o “progresso” – como se o verdadeiro progresso aceitasse o facciosismo ou como se os identitários valorizassem de verdade o progresso.

 



[1] Este texto é uma versão levemente alterada de uma postagem feita em 6 de dezembro de 2022, em minha conta pessoal do Facebook. Disponível em: https://www.facebook.com/gblacerda1977/posts/pfbid0gat4SevMeX2r6sDGSMc7uCNfyiSWq4zAGv1zFvTgTJHipjzyVzErq8viuCznYXz6l; acesso em: 14.12.2022.

08 outubro 2015

Demétrio Magnoli: "História sem tempo"

Embora este blogue dedique-se a temas bastante específicos - em particular o Positivismo de Augusto Comte e a separação entre Igreja e Estado -, o texto abaixo expõe um problema suficientemente sério e grande para que abramos uma exceção em nossa política editorial.

Na verdade, o problema descrito no texto de Demétrio Magnoli e Elaine Senise Barbosa refere-se diretamente ao Positivismo, seja porque há uma referência explícita ao que cientistas sociais e historiadores erroneamente chamam de "positivismo", seja porque a política educacional decretada pelo Ministério da Educação durante o curtíssimo mandato do "filósofo" Renato Janine Ribeiro põe-se radicalmente contra os valores e as propostas positivistas.

Quais são os valores e as propostas positivistas negados pelas novas diretrizes pedagógicas? Entre inúmeros outros, podemos indicar pelo menos estes:

  • o universalismo nos valores sociais, sociológicos e nas políticas públicas; 
  • a concepção de que o ser humano é um ser histórico; 
  • a rejeição da importância política e sociológica das "raças" e das "culturas" (perenes); 
  • a afirmação da fraternidade universal; 
  • a concepção de que o Brasil resulta da interação combinada e desigual entre três grandes sociais (portugueses, índios e negros africanos), sob a liderança do elemento português, no movimento de expansão política, social e econômica da Europa, a partir do século XV;
  • a concepção de que, apesar dos sérios crimes e problemas envolvidos na constituição social e política do Brasil, a interação entre esses grupos sociais tem resultados positivos e deve ser valorizada e incentivada;
  • a concepção de que as interações humanas e as trocas culturais, sociais, políticas e econômicas devem ser incentivadas e que, com base nos valores do humanismo e da fraternidade universal, são em última análise o único instrumento verdadeiro para solução dos problemas humanos.

As novas diretrizes pedagógicas decretadas pelo MEC apresentam, portanto, sérios problemas científicos e políticos, em que a ciência torna-se servil a projetos políticos exclusivistas e excludentes.

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O texto abaixo foi publicado em 8.10.2015 no jornal Gazeta do Povo; o original encontra-se disponível aqui.

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ARTIGO

História sem tempo

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Texto publicado na edição impressa de 08 de outubro de 2015

Renato Janine, o Breve, transitou pela porta giratória do MEC em menos de seis meses. No curto reinado, antes da devolução do ministério a um “profissional da política”, teve tempo para proclamar a Base Nacional Comum (BNC), que equivale a um decreto ideológico de refundação do Brasil. Sob os auspícios do filósofo, a História foi abolida das escolas. No seu lugar, emerge uma sociologia do multiculturalismo destinada a apagar a lousa na qual gerações de professores ensinaram o processo histórico que conduziu à formação das modernas sociedades ocidentais, fundadas no princípio da igualdade dos indivíduos perante a lei.
O ensino de História, oficializado pelo Estado-nação no século 19, fixou o paradigma da narrativa histórica baseado no esquema temporal clássico: Antiguidade, Idade Média, Idade Moderna, Idade Contemporânea. A crítica historiográfica contesta esse paradigma, impregnado de positivismo, evolucionismo e eurocentrismo, desde os anos 60. Mas o MEC joga fora o nenê junto com a água do banho, eliminando o que caracteriza o ensino de História: uma narrativa que se organiza na perspectiva temporal. Segundo a BNC, no 6.º ano do ensino fundamental, alunos de 11 anos são convidados a “problematizar” o “modelo quadripartite francês”, que nunca mais reaparecerá. Muito depois, no ensino médio, aquilo que se chamava História Geral surgirá sob a forma fragmentária do estudo dos “mundos ameríndios, africanos e afrobrasileiros” (1.º ano), dos “mundos americanos” (2.º ano) e dos “mundos europeus e asiáticos” (3.º ano).
O esquema temporal clássico reconhecia que a mundialização da história humana derivou da expansão dos Estados europeus, num processo ritmado pelas Navegações, pelo Iluminismo, pela Revolução Industrial e pelo imperialismo. A tradição greco-romana, o cristianismo, o comércio, as tecnologias modernas e o advento da ideia de cidadania difundiram-se nesse amplo movimento que enlaçou, diferenciadamente, o mundo inteiro. A BNC rasga todas essas páginas para inaugurar o ensino de histórias paralelas de povos separados pela muralha da “cultura”. Os educadores do multiculturalismo que a elaboraram compartilham com os neoconservadores o paradigma do “choque de civilizações”, apenas invertendo os sinais de positividade e negatividade.
No altar de uma educação ideológica, voltada para promover a “cultura”, a etnia e a raça, o MEC imolava o universalismo


A ordem do dia é esculpir um Brasil descontaminado de heranças europeias. Na cartilha da BNC, o Brasil situa-se na intersecção dos “mundos ameríndios” com os “mundos afrobrasileiros”, sendo a Conquista, exclusivamente, uma irrupção genocida contra os povos autóctones e os povos africanos deslocados para a América Portuguesa. A mesma cartilha, com a finalidade de negar legitimidade às histórias nacionais, figura os “mundos americanos” como uma coleção das diásporas africana, indígena, asiática e europeia, “entre os séculos 16 e 21”. O conceito de nação deve ser derrubado para ceder espaço a uma história de grupos étnicos e culturais encaixados, pela força, na moldura das fronteiras políticas contemporâneas.
A historiografia liberal articula-se em torno do indivíduo e da política. A historiografia marxista organiza-se ao redor das classes sociais e da economia. Nas suas diferenças, ambas valorizam a historicidade, o movimento, a sucessão de “causas” e “consequências”. Já a Sociologia do Multiculturalismo é uma revolta reacionária contra a escritura da história. Seus sujeitos históricos são grupos etnoculturais sempre iguais a si mesmos, fechados na concha da tradição, que percorrem como cometas solitários o vazio do tempo. Na História da BNC, o que existe é apenas um recorrente cotejo moralista entre algoz e vítima, perfeito para o discurso de professores convertidos em doutrinadores.
Na BNC, não há menção à Grécia Clássica: sem a Ágora, os alunos nunca ouvirão falar das raízes do conceito de cidadania. Igualmente, inexistem referências sobre o medievo das catedrais, das cidades e do comércio: sem elas, nossas escolas cancelam o ensino do “império da Igreja” e das rupturas que originaram a modernidade. O MEC também decidiu excluir da narrativa histórica o Absolutismo e o Iluminismo, cancelando o estudo da formação do Estado-nação. A Revolução Francesa, por sua vez, surge apenas de passagem, no 8.º ano, como apêndice da análise das “incorporações do pensamento liberal no Brasil”.
Sob o sólido silêncio de nossas universidades, o MEC endossa propostas pedagógicas avessas à melhor produção universitária, que geram professores “obsoletos” em seus conhecimentos e métodos. Marc Bloch disse que “a História é a ciência dos homens no tempo”. Suas obras consagradas, bem como as de tantos outros, como Peter Burke, Jules Michelet, Perry Anderson, Maurice Dobb, Eric Hobsbawm, Joseph Ki-Zerbo, Marc Ferro, Albert Hourani, Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda e José Murilo de Carvalho, não servem mais como fontes de inspiração para o nosso ensino. A partir de agora, em linha com o decreto firmado pelo ministro antes da defenestração, os professores devem curvar-se a autores obscuros, que ganharão selos de autenticidade política emitidos pelo MEC.
Não é incompetência, mas projeto político. Num parecer do Conselho Nacional de Educação de 2004, está escrito que o ensino de História e Cultura Afrobrasileira e Africana “deve orientar para o esclarecimento de equívocos quanto a uma identidade humana universal”. Equívocos! No altar de uma educação ideológica, voltada para promover a “cultura”, a etnia e a raça, o MEC imolava o universalismo, incinerando a Declaração Universal dos Direitos Humanos. A trajetória iniciada por meio daquele parecer conclui-se com uma BNC que descarta a historicidade para ocultar os princípios originários da democracia.
Doutrinação escolar? A intenção é essa, mas o verdadeiro resultado da abolição da História será um novo e brutal retrocesso nos indicadores de aprendizagem.
Demétrio Magnoli é sociólogo. Elaine Senise Barbosa é historiadora.

23 maio 2007

Positivismo como eurocentrismo

Há alguns dias, em um fórum de discussões humanistas, surgiu a afirmação, de caráter acusatório, de que o Positivismo é “eurocêntrico” e, portanto, não poderia ser um verdadeiro humanismo nem uma verdadeira religião da “humanidade” (pois seria restrito à Europa)[1]. Essa afirmação é falaciosa – como veremos abaixo.

Todo humanismo, aliás como toda filosofia, é “impregnado” pelo ambiente em que é formulado, mesmo que afirme ou que pretenda a universalidade. Os humanismos formulados na Índia são “hinducêntricos”; os humanismos feitos na América Latina são “latino-americanocêntricos” e assim por diante. Não reconhecer isso revela simplesmente desconhecimento da história das idéias e da amplitude dos humanismos.

Por outro lado, ao considerar que o Positivismo é “eurocêntrico”, deve-se reconsiderar a ciência que, supostamente, pratica-se, assim como as posições céticas, atéias ou agnósticas, pois todas elas são “eurocêntricas” (nem adianta citarem-se os Estados Unidos, pois eles fazem parte da civilização ocidental, isto é, da civilização originada na Europa).

Essa “crítica” lembra muito o que os pós-modernos e os multiculturalistas falam dos céticos, dos humanistas e de todos aqueles que são contra o primado da teologia e da metafísica na vida dos seres humanos; para essas pessoas, os humanismos são discursos discriminatórios, eurocêntricos (ou “ocidentocêntricos”), burgueses, machistas e brancos que lançam mão de um apelo à universalidade para afirmar a supremacia da burguesia branca masculina ocidental. Com isso, os pós-modernos e os multiculturalistas afirmam a validade teórica e científica de todas as formulações absolutas e “questionam” (isto é, rejeitam) o relativismo ocidental. Os criacionistas são alguns que se aproveitam disso, de braços dados com os radicais islâmicos e com aqueles que, por exemplo, querem implantar a xaria (a lei tradicional islâmica) no Canadá.

Por outro lado, o Positivismo não é um “culto ao eurocentrismo”, mas exatamente ao contrário: ele é um culto a toda a Humanidade. O Positivismo celebra toda a Humanidade, isto é, todos os povos, de todas as épocas e de todos os lugares. Aliás, na época do neocolonialismo europeu e do início das violências nacionalistas, o Positivismo afirmava o seu humanismo radical, afirmando a ética universal como único princípio de conduta válido para o ser humano tomado como indivíduo, como integrante de uma família, de um país e de uma civilização. A fraternidade universal, esclarecida pela positividade, é o objetivo supremo do Positivismo. É assim que os Positivistas procuram conhecer, respeitar e valorizar ativamente todas as culturas; é por esse motivo que celebramos as civilizações não-ocidentais: chineses, hindus, islâmicos, japoneses, as várias culturas africanas etc., lendo suas literaturas e seus livros sagrados. (Para não perder o hábito: basta ler Comte para confirmar essas posições e perspectivas.)

Algumas referências bibliográficas de acesso relativamente fácil ilustram essas questões. No volume organizado por Hélgio Trindade, Positivismo – teoria e prática, publicado há alguns anos pela editora da UFRS, encontrará um interessante artigo de Abdelwahbab Bouhdiba, em que o autor, de origem tunisiana, afirma a importância de Comte para a afirmação das identidades nacionais africanas, na medida em que o fundador do Positivismo sempre foi, claramente, contra o colonialismo: ele punha-se desde a primeira metade do século XIX contra a colonização francesa da Argélia. (Como sabemos, a Argélia tornou-se independente apenas no final dos anos 1950, após uma sangrenta guerra suja.)

O humanismo positivista também se manifestou em várias outras ocasiões. Durante a Grande Guerra, isto é, durante a I Guerra Mundial, os positivistas conclamavam todos os povos à harmonia e ao entendimento mútuo, afirmando a fraternidade universal.

Após a II Guerra Mundial, o positivista Paulo Berredo Carneiro foi o idealizador e criador de nada menos que a Unesco, isto é, do órgão das Nações Unidas que busca a fraternidade universal por meio de um humanismo universal, laico e positivo. Depois de criada a Unesco, Paulo Carneiro foi o embaixador brasileiro no órgão por décadas. (Veja-se: Ciência, política e relações internacionais, organizado por Marcos Chor Maio (Rio de Janeiro, Unesco-Fiocruz, 2004); disponível aqui).

Assim, mais uma vez as perguntas: como assim o Positivismo é um “culto ao eurocentrismo”? Como assim ele não é um humanismo? Como é possível que preconceitos tão superficiais (poderiam ser profundos – não faria diferença: são preconceitos) persistam? E como é possível que se possa afirmar o humanismo brandindo tais preconceitos?

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Nota de 19 de outubro de 2024: em 2 de outubro de 2024 fizemos uma prédica positiva em que abordamos mais extensamente a questão de se o Positivismo é ou não eurocêntrico (e, claro, a resposta é negativa). 

Essa prédica pode ser vista e as respectivas anotações, lidas, aqui: https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2024/10/o-positivismo-e-eurocentrico.html.



[1] Mensagem n. 5013, de 19 de maio de 2007, do fórum Curitibacetica, hospedado no Yahoo! Grupos. Este texto funde as respostas que formulei, postadas como as mensagens de n. 5015 e 5016, de 20 de maio de 2007, do mesmo fórum.