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26 novembro 2025

Deyvid Antônio: Súmula das ciências para o Comte maduro

As anotações abaixo foram postadas em 17 de Frederico de 171 (21.11.2025) pelo jovem pensador católico Deyvid Antônio, em sua conta pessoal no Facebook.

Essas anotações apresentam uma notável síntese de alguns dos principais aspectos da filosofia das ciências de Augusto Comte (1798-1857), em sua fase madura, isto é, em sua fase religiosa, posterior a 1846.

Tal síntese é notável devido a dois motivos: 

(1) sua extrema qualidade, que une o conhecimento dos argumentos com o respeito ao pensamento de Augusto Comte.

(2) O fato de que Deyvid Antônio é um publicista católico tradicionalista, segundo a orientação de Olavo de Carvalho. A bem da verdade, quem acompanha as publicações de Deyvid logo percebe a variedade de seus interesses - além do catolicismo e do Positivismo, também bramanismo, budismo, islamismo, filosofia ocidental moderna e contemporânea, bem como inúmeros outros temas, e tudo isso sendo ao mesmo tempo estudante de... Engenharia! Isso tudo evidencia que a adesão de alguém a uma determinada filosofia não implica nem a ignorância de correntes filosóficas e políticas rivais, nem, principalmente, a repetição de erros e preconceitos a seu respeito. Em outras palavras, Deyvid demonstra com grande espontaneidade a mais escrupulosa honestidade intelectual.

Essa honestidade moral e esse cuidado filosófico põem Deyvid muito, muito à frente da imensa maioria da produção acadêmica, bem como da quase totalidade da militância político-intelectual, seja brasileira, seja estrangeira, quer ela trate do Positivismo, quer não.

É em virtude dos motivos acima - que, como se pode perceber com facilidade, são distintos entre si, embora o primeiro dependa do segundo - que decidimos reproduzir aqui esse belo texto.

Por fim, vale notar que essa honestidade intelectual de Deyvid, estimulada por uma simpatia generalizada pelo ser humano, estimula em nós uma simpatia recíproca por ele. Isso demonstra e comprova uma das mais importantes, e mais difíceis, lições de Augusto Comte: a solução dos problemas humanos passa necessariamente pela inteligência (ou seja, pelas idéias, pela filosofia), mas reside antes de tudo na simpatia, ou seja, no amor.

As anotações originais estão disponíveis aquihttps://www.facebook.com/photo?fbid=849088594754198&set=a.124491960547202. 

*  *  *

Súmula da filosofia das ciências do Augusto Comte maduro

 Deyvid Antônio

É um equívoco profundo – embora persistente – reduzir Auguste Comte à figura de um simples “cientificista”, sobretudo quando esse termo é associado a empirismo ingênuo, intelectualismo absoluto, materialismo reducionista ou defesa de tecnocracias. Alguns chegam até a afirmar que Comte teria fundado uma suposta “religião da ciência”, fazendo do pai do positivismo o símbolo máximo do ideal cientificista. A Filosofia Positiva comtiana é mais ampla, mais complexa e metodologicamente mais sofisticada do que as correntes posteriores do positivismo científico (como o Positivismo Lógico), com as quais frequentemente é confundida. A desmontagem desse mito exige reconstituir o núcleo do pensamento de Comte, que se articula em torno de uma concepção holística de ciência, sociedade e moral.

O primeiro ponto decisivo é a rejeição comtiana tanto do absolutismo quanto do empirismo puro. O espírito positivo, essencialmente relativo, recusa qualquer pretensão de explicar as causas íntimas dos fenômenos ou os fins últimos do universo; orienta-se apenas pelo estabelecimento de leis invariáveis de sucessão e de similitude, convertendo a pergunta “por quê?” na investigação do “como”. Essa postura, porém, está longe de reduzir-se ao mero acúmulo empírico de fatos: Comte denuncia explicitamente o empirismo como uma prática estéril e incoerente, insistindo que toda observação é guiada por teorias prévias e que o conhecimento real consiste sobretudo em construções teóricas, exigindo uma oscilação permanente entre abstração e experiência.

Outro aspecto central do sistema comtiano é seu caráter sintético e , já citado, holístico, que recusa qualquer redução mecanicista. A positividade não se confunde com a ciência empírica isolada: enquanto a ciência é analítica, a positividade é uma síntese da totalidade humana, envolvendo inteligência, sentimentos e prática. Essa síntese é institucionalizada na célebre classificação das ciências, que organiza os saberes segundo uma hierarquia de complexidade crescente – Matemática, Astronomia, Física, Química, Biologia, Sociologia – culminando na Moral como a ciência final. Esta arquitetura hierárquica tem função explícita de combater o materialismo reducionista, pois impede que fenômenos superiores sejam subordinados a fenômenos inferiores, preservando a autonomia relativa das ordens biológica, social e moral.

Contra qualquer interpretação intelectualista ou cientificista, Comte afirma o primado do sentimento sobre a inteligência. No período maduro, influenciado por Clotilde de Vaux, ele sustenta que o impulso decisivo da ação humana emerge sempre do sentimento, enquanto a inteligência funciona apenas como órgão regulador. Essa inflexão culmina na Religião da Humanidade, cujo fim último é o aperfeiçoamento moral por meio do fortalecimento dos instintos altruístas e da contenção dos instintos egoístas, articulando uma ética da unidade afetiva e social que está longe de qualquer reducionismo científico.

Também é equivocada a associação entre Comte e tecnocracia. O positivismo comtiano estabelece, como princípio político fundamental, a separação rigorosa entre o Poder Temporal – responsável pela ação prática e governamental – e o Poder Espiritual – encarregado da teoria, da educação e do conselho. Comte insiste que filósofos, cientistas e artistas devem constituir um sacerdócio positivo desprovido de mando e de riqueza, cuja função é aconselhar, e não governar. Essa separação visa a garantir a liberdade de crítica e evitar qualquer forma de teocracia laica ou “pedantocracia”, sua expressão para o governo dos sábios, considerado por ele um desvio grave da ordem positiva. A ciência, portanto, não deve governar: deve iluminar a ação prática, preservando sua autoridade exclusivamente moral e intelectual.

Por fim, Comte distingue-se do cientificismo ao reconhecer o valor histórico e pedagógico da Teologia e da Metafísica. Longe de descartá-las como saberes destituídos de sentido, ele as compreende como fases necessárias do desenvolvimento do espírito humano, responsáveis por fornecer a estrutura teórica indispensável para organizar os fatos em épocas em que a observação ainda não podia gerar teoria. Muitas obras teológicas e metafísicas, segundo Comte, conservariam seu valor se fossem “traduzidas” ao espírito positivo.

Referências:

Epítome da vida e dos escritos de Augusto Comte – Joseph Lonchampt

Teoria Política Positivista – Gustavo Biscaia de Lacerda

15 outubro 2025

Espiritualismo, materialismo e positividade

No dia 7 de Descartes de 171 (14.10.2025) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Apelo aos conservadores (em sua Primeira Parte - doutrina apropriada aos verdadeiros conservadores).

No sermão abordamos uma renovada e sofística oposição entre o "espiritualismo" e o "materialismo", bem como a necessária superação pela positividade.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://youtube.com/live/B-27eYhFLh0) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://www.facebook.com/IgrejaPositivistaVirtual/videos/1133894912208527).

As anotações escrivas que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

*   *   *

Espiritualismo vs. materialismo

(7.Descartes.171/14.10.2025) 

1.      Invocação inicial

2.      Datas e celebrações:

2.1.   Dia 11 de Descartes (18.10): nascimento de Frederic Harrison (1831 – 194 anos)

2.2.   Dia 11 de Descartes (18.10): nascimento de Benjamin Constant (1836 – 189 anos)

2.3.   Dia 13 de Descartes (20.10): transformação de José Lonchampt (1890 – 135 anos)

3.      Celebração do fim da guerra Israel-Hamas

3.1.   Esse conflito, iniciado há pouco mais de dois anos, foi trágico para as duas populações envolvidas (ainda que em grau muito maior para os palestinos) e indica a imoralidade, a inutilidade e a irracionalidade das guerras contemporâneas

3.1.1.     Os beligerantes – do Hamas e o Estado de Israel – atuaram de maneira flagrante e escandalosamente contrária aos interesses supremos da Humanidade, ou seja, à fraternidade, à concórdia, à tolerância, ao respeito mútuo; não por acaso, esses grupos são imbuídos de concepções absolutas, intolerantes, fanáticas

3.2.   O Hamas é mesmo um grupo terrorista, que atua para destruir o Estado de Israel, com o apoio do Irã

3.2.1.     A invasão e o seqüestro, realizados em 7 de outubro de 2023, foram brutais, criminosos e serviram como instrumento do Irã contra o Acordo de Abraão, que serviria para normalizar as relações entre Israel e a Arábia Saudita

3.3.   Por outro lado, a reação do Estado de Israel contra o Hamas foi totalmente criminosa, em que a guerra de defesa logo se converteu em genocídio sistemático da população palestina

3.3.1.     Para evitar qualquer ambigüidade, referimo-nos ao “Estado de Israel” e não à população israelense: os responsáveis pelo genocídio e pela política de terra arrasada são os atuais governantes

3.3.2.     O genocídio promovido pelo Estado de Israel foi planejado, executado e apoiado por grupos racistas e fanáticos, totalmente contrários à solução dos “dois estados” e que desejavam transformar a Faixa de Gaza (bem como a Cisjordânia) em resorts de luxo

3.4.   Assim, é motivo de alegria o fim dessa guerra escabrosa, que talvez resulte na regularização da Palestina (ou, pelo menos, da Faixa de Gaza)

4.      Leitura comentada do Apelo aos conservadores

4.1.   Antes de mais nada, devemos recordar algumas considerações sobre o Apelo:

4.1.1.     O Apelo é um manifesto político e dirige-se não a quaisquer pessoas ou grupos, mas a um grupo específico: são os líderes políticos e industriais que tendem para a defesa da ordem (e que tendem para a defesa da ordem até mesmo devido à sua atuação como líderes políticos e industriais), mas que, ao mesmo tempo, reconhecem a necessidade do progresso (a começar pela república): são esses os “conservadores” a que Augusto Comte apela

4.1.1.1.           O Apelo, portanto, adota uma linguagem e um formato adequados ao público a que se dirige

4.1.1.2.           Empregamos a expressão “líderes industriais” no lugar de “líderes econômicos”, por ser mais específica e mais adequada ao Positivismo: a “sociedade industrial” não se refere às manufaturas, mas à atividade pacífica, construtiva, colaborativa, oposta à guerra

4.2.   Outras observações:

4.2.1.     Uma versão digitalizada da tradução brasileira desse livro, feita por Miguel Lemos e publicada em 1899, está disponível no Internet Archive: https://archive.org/details/augustocomteapeloaosconservadores

4.2.2.     O capítulo em que estamos é a “Primeira Parte”, cujo subtítulo é “Doutrina apropriada aos verdadeiros conservadores”

4.3.   Passemos, então, à leitura comentada do Apelo aos conservadores!

5.      Exortações

5.1.   Sejamos altruístas!

5.2.   Façamos orações!

5.3.   Como Igreja Positivista Virtual, ministramos os sacramentos positivos a quem tem interesse

5.4.   Para apoiar as atividades dos nossos canais e da Igreja Positivista Virtual: façam o Pix da Positividade! (Chave Pix: ApostoladoPositivista@gmail.com)

6.      Sermão: espiritualismo vs. materialismo

6.1.   Este sermão adotará inicialmente um tom duro em sua exposição

6.1.1.     Mas, evidentemente, seguindo o método positivo e a inspiração altruísta, é claro que após as necessárias críticas trataremos de apresentar a concepção positiva – isto é, real, útil, relativa, orgânica e simpática – do tema

6.2.   No dia 6 de outubro de 2025 o evangélico e antropólogo Juliano Spyer, que possui uma coluna fixa na Folha de S. Paulo, publicou um artigo intitulado “Ese a ciência provar que a vida continua após a morte?

6.2.1.     Esse título evidentemente foi provocativo – mas, lido o texto, logo se percebe que ele é menos provocativo do que parece à primeira vista e que o objetivo do autor foi afirmar que, para ele, a vida continua após a morte e que a ciência supostamente o comprovaria

6.2.1.1.           Em apoio à sua tese, o autor comenta a obra de um psiquiatra brasileiro, que se vale do apoio do Estado em uma universidade federal para dar apoio às suas teses, o Prof. Dr. Alexander Moreira Almeida, da UFJF, bem como de vários outros pesquisadores que em 2018 publicaram um “Manifesto por uma ciência pós-materialista

6.2.1.2.           Além disso, a afirmação do eufemismo da “espiritualidade” tem sido uma tendência nas últimas décadas, como se comprova nesta matéria: “Faculdadede Ciências Médicas discute impactos da espiritualidade na saúde

6.2.2.     Essas concepções afirmam que a ciência “moderna” e/ou “ocidental” é parcial e “materialista”, ou seja, que ela recorta o ser humano e ao mesmo tempo ignora aspectos importantes da existência humana, em particular adotando preconceitos materialistas e objetivistas que negam a subjetividade e o que esses autores chamam de “espiritualidade”

6.2.2.1.           Essas concepções afirmam a importância da espiritualidade tanto para os tratamentos dos pacientes quanto para os próprios médicos

6.3.   É necessário termos clareza e dizermos sem rodeios: apesar da correção e até da efetiva necessidade de ultrapassar-se o “materialismo” na ciência moderna e em particular na Medicina, o fato é que todos os autores envolvidos nessa proposta de “ciência pós-materialista” (sejam os estadunidenses, sejam o psicólogo brasileiro e os médicos da UERJ, seja o evangélico que escreve para a Folha de S. Paulo) adotam uma argumentação sofística e pseudocientífica

6.3.1.     A argumentação dessas pessoas é sofística porque a afirmada “espiritualidade” é uma forma disfarçada de afirmar as concepções teológicas e de reverter a Medicina científica para padrões teológicos

6.4.   Antes de seguirmos adiante, devemos adiantar bastante o nosso argumento e dizermos com clareza que os apelos para uma ciência (e, de modo mais específico, a medicina) “espiritualizada” baseia-se em anseios humanos profundos

6.4.1.     Esses anseios, todavia, são sempre e especificamente humanos, não sobre ou extra-humanos; em outras palavras, é o ser humano que se manifesta aí e não outras entidades

6.4.2.     Esses anseios correspondem ao desejo de que nós seres humanos sejamos entendidos e tratados como totalidades e não apenas como números, corpos e/ou pedaços de carne

6.4.3.     Como a exigência é a de que o ser humano seja entendido e tratado como uma totalidade, a questão é, por definição, religiosa, isto é, de totalidade

6.4.3.1.           Vale notar, entretanto, que a “espiritualidade” afirmada pelos teológico-metafísicos (mesmo com a página proto ou pseudocientífica empregada), não é positiva (ou seja, é anticientífica), não é uma verdadeira totalidade (pois não abrange todos os âmbitos reais do ser humano) e não é altruísta (pois, em conformidade com a teologia e a metafísica, é individualista e egoísta)

6.4.3.2.           Não por acaso, essa espiritualidade refere-se apenas e tão-somente ao indivíduo (com a noção teológica de “alma”) e lida muito mal, quando não despreza totalmente, a realidade social e a base biológica do ser humano

6.4.3.3.           Trata-se da positividade incompleta, que vai da Matemática até, na melhor das hipóteses, a Biologia, deixando de lado a positividade na Sociologia e, de maneira radical, na Moral

6.4.3.4.           A positividade incompleta resulta na prática do pensamento duplo, tão comum nos dias de hoje e celebrado por exemplo pela metafísica idealista alemã: positividade nas ciências inferiores, metafísica na Sociologia, teologia na Moral

6.4.4.     A espiritualidade verdadeira e real só se realiza e só pode realizar-se com a positividade, com a religião positiva, em que o ser humano é entendido como uma totalidade “biopsicossocial”, em que indivíduos autônomos são formados e atuam inseridos em sociedades, resultantes de processos históricos determinados e com vistas ao altruísmo e ao bem comum

6.5.   Passando ao tema atual e sendo um pouco polêmico, no Brasil dos últimos anos, vimos sofismas políticos semelhantes – semelhantes em suas estruturas, ainda que (suposta e esperançosamente) diferentes em seus objetivos políticos, sociais e morais

6.5.1.     Os sofismas políticos são estes: (1) não gostam do Lula? A única solução seria votar no fascista; (2) “Os cientistas nunca provaram que a cloroquina não cura a covid”; logo, a cloroquina cura a covid

6.5.2.     Em paralelo, os sofismas “pós-materialistas” afirmam: (1) a ciência “materialista” é ruim? Pois a única alternativa é o “pós-materialismo” (ou seja, o espiritualismo teológico-metafísico); (2) a ciência (“materialista”) nunca provou que os espíritos não existem; logo, eles realmente existem de fato

6.5.3.     Esses sofismas correspondem ao non sequitur (em que as conclusões não se seguem às premissas), a partir de um emprego estrito e inadequado do princípio lógico do “terceiro excluído”

6.6.   A atual afirmação espiritualista e “pós-materialista”, apesar de apresentar-se como inovadora e nova, na verdade apenas retoma concepções antigas e atualiza procedimentos espiritualistas e pseudoscientíficos antigos:

6.6.1.     No que se refere às concepções antigas, o espiritualismo e “pós-materialismo” obtém grande prestígio a partir das críticas feitas contra o Ocidente, seja a partir de concepções orientalistas (em que se afirma claramente que os países integrantes do Oriente são superiores ao Ocidente, por mais diversas que sejam as suas filosofias, como nos casos da Rússia, do Islã, da China tradicional, da China comunista etc.), seja a partir de concepções “pós-coloniais”, “decoloniais”, pós-modernas e do “Sul Global” (em que se afirma que o Ocidente não presta e que é bom que ele seja superado pelas civilizações não-ocidentais)

6.6.1.1.           Como vimos nas nossas prédicas dos dias 23 de Shakespeare de 170 (1.10.2024) e 16 de Descartes de 170 (22.10.2024), dedicadas ambas à tola acusação de que o Positivismo seria eurocêntrico, as civilizações não ocidentais e as críticas (ocidentais e não ocidentais) ao Ocidente apresentam inúmeros aspectos corretos, verdadeiros, úteis e morais – o que, por outro lado, deveria ser evidente que não corresponde a que tudo o que provém daí seja de fato correto (como a renovada afirmação da espiritualidade teológico-metafísica)

6.6.2.     No que se refere à renovação de concepções pseudocientíficas anteriores, devemos notar que, desde que a ciência moderna passou a afirmar-se contra a teologia, já no século XIV, mas com clareza a partir do século XVII, surgiram concepções espiritualistas que forçavam as teorias científicas no sentido espiritualista

6.6.2.1.           Essas concepções aproveitavam-se, como se aproveitam, do prestígio de que goza a ciência e, ao mesmo tempo, do desconhecimento que o grande público tem do que seja a filosofia positiva e também das teorias científicas específicas

6.6.2.2.           Podemos considerar nos séculos XVIII e XIX o mesmerismo (a teoria do magnetismo animal, com caráter místico), bem como, de maneira mais ampla, as concepções místicas sobre a eletricidade[1]

6.6.2.3.           No século XX, podemos considerar, por um lado, a metafísica de Bergson e, por outro lado e ainda mais, todas as abordagens autointituladas “quânticas”

6.7.   Feitas as críticas acima, que serviram para indicar como repetidamente as concepções teológico-metafísicas tentam reafirmar-se a partir de sofismas e modos pseudocientíficos, devemos necessariamente abordar a concepção positiva da espiritualidade

6.8.   Como afirmamos há pouco e sempre indicamos em nossas prédicas, o Positivismo é totalmente a favor da espiritualidade, como por exemplo as concepções de Humanidade e de método subjetivo indicam

6.8.1.     Mas há uma longa distância filosófica e até moral entre a concepção positiva de espiritualidade e a concepção teológico-metafísica

6.8.2.     Ao mesmo tempo, vemos com relativa simpatia as proclamações a favor do “pós-materialismo” e do “espiritualismo” – evidentemente não devido aos seus sofismas, às suas concepções pseudocientíficas e antipositivas e à subjacente afirmação da alma teológica –, considerando os aspectos positivos das críticas às limitações da ciência moderna e da medicina contemporânea

6.8.2.1.           De fato, a ciência moderna é realmente fragmentária, materialista e objetivista

6.8.2.2.           Em contraposição, é necessário afirmarmos concepções de conjunto (totalizantes), que não sejam propriamente materialistas e que respeitem a subjetividade humana

6.8.2.3.           Em face das concepções cientificistas, materialistas, fragmentárias e objetivistas, nosso mestre em diversos momentos afirmou que as concepções totalizantes, mesmo as teológico-metafísicas, são superiores às cientificistas

6.8.3.     Dito isso, Augusto Comte tratou precisamente das concepções espiritualista e materialista no Discurso sobre o conjunto do Positivismo, de 1848 (e reeditado em 1851 no v. I do Sistema de política positiva como “Discurso preliminar sobre o conjunto do Positivismo”)

6.8.3.1.           Como nosso mestre observa, o ser humano precisa ao mesmo tempo e sempre do método objetivo e do método subjetivo; enquanto um fornece os materiais sobre a realidade e as ciências inferiores, o outro fornece a interpretação moral e intelectual, a visão de conjunto e a perspectiva especificamente humana

6.8.3.1.1.                Mas sem hipóteses quaisquer não conseguimos dados objetivos, que, por sua vez, em sua ausência não podem atuar como parâmetros e corretores das hipóteses

6.8.3.1.2.                Temos então um círculo vicioso que só se rompe com a imposição da concepção teológica, a única que surge espontaneamente e que no início possui força suficiente para orientar o ser humano

6.8.3.2.           Indo diretamente para a ciência moderna, as suas características objetivistas serviram ao mesmo tempo para constituir as ciências inferiores (aspecto construtivo) e para destruir a teologia (aspecto destrutivo); esse procedimento foi necessário até a constituição das ciências superiores, a começar pela Biologia; quando nosso mestre criou a Sociologia e, depois, a Moral, os problemas da ciência moderna já não se justificavam mais e deveriam ser completados e corrigidos pelo método subjetivo, estabelecido pelas ciências superiores

6.8.3.3.           Devemos notar que a correção via método subjetivo não implicava, como não implica, a reintrodução do espiritualismo teológico-metafísico – que, afinal, foi necessária e adequadamente destruído pelas ciências inferiores nos séculos anteriores

6.8.3.4.           A afirmação da espiritualidade positiva, em particular no âmbito da medicina, foi afirmada e desenvolvida por Jorge Audiffrent, discípulo direto de Augusto Comte, no livro Apelo aos médicos, de 1862

6.8.4.     Um outro aspecto que devemos indicar é que a espiritualidade positiva é completada pelo fetichismo, que é a única forma teológica natural e espontânea

6.8.4.1.           O fetichismo tem que ser adotado pelo Positivismo mas, claro, tem que ser devidamente positivado para isso

6.8.4.2.           O espiritualismo teológico-metafísico só pode ser reintroduzido por meio da negação sistemática da ciência, ou melhor, da positividade; trata-se, então, de uma usurpação e de um emprego errado do método subjetivo em relação ao método objetivo

6.8.4.3.           O neofetichismo reconhece a visão de conjunto, o primado da afetividade e a atividade espontânea do mundo

6.8.4.4.           Dessa forma, o neofetichismo ultrapassa o materialismo e todos os problemas vinculados à ciência moderna – sem, entretanto, recair nos graves problemas do espiritualismo teológico-metafísico, em particular sem lançar mão de sofismas pseudocientíficos para tentar restabelecer a concepção teológica de alma

6.9.   Em suma:

6.9.1.     O Positivismo é totalmente a favor da espiritualidade, como por exemplo as concepções de Humanidade e de método subjetivo indicam

6.9.1.1.           Mas há uma longa distância filosófica e até moral entre a concepção positiva de espiritualidade e a concepção teológico-metafísica

6.9.2.     Apesar da correção e até da efetiva necessidade de ultrapassar-se o “materialismo” na ciência moderna e em particular na Medicina, o fato é que todos os autores envolvidos nessa proposta de “ciência pós-materialista” adotam uma argumentação sofística e pseudocientífica em favor do restabelecimento da concepção teológica de alma

6.9.3.     A incorporação do fetichismo inicial à positividade final – ou seja, o neofetichismo – ultrapassa o materialismo e todos os problemas vinculados à ciência moderna – sem, entretanto, recair nos graves problemas do espiritualismo teológico-metafísico, em particular sem lançar mão de sofismas pseudocientíficos para tentar restabelecer a concepção teológica de alma

7.      Invocação final

 

Referências

- Augusto Comte (franc.), “Discurso preliminar sobre o conjunto do Positivismo”, in: Sistema de política positiva, v. 1 (Paris, L. Mathias, 1851): https://archive.org/details/systmedepoliti01comt/mode/2up.

- Augusto Comte (franc.), Sistema de filosofia positiva (Paris, Société Positiviste, 5e ed., 1893)

- Augusto Comte (port.), Apelo aos conservadores (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1898): https://archive.org/details/augustocomteapeloaosconservadores.

- Augusto Comte (port.), Catecismo positivista (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 4ª ed., 1934).

- Georges Audiffrent (franc.), Apelo aos médicos (Paris, Dunod, 1862): https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k772657.r=audiffrent%20appel%20aux%20m%C3%A9decins?rk=21459;2.

- Gustavo Biscaia de Lacerda (port.) Prédica positiva “O Positivismo é eurocêntrico?” (Curitiba, Igreja Positivista Virtual, 23.Shakespeare.170/1.10.2024): https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2024/10/o-positivismo-e-eurocentrico.html.

- Gustavo Biscaia de Lacerda (port.) Prédica positiva “O Positivismo é eurocêntrico? Parte 2” (Curitiba, Igreja Positivista Virtual, 16.Descartes.170/22.10.2024): https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2024/10/o-positivismo-e-eurocentrico-parte-2.html.

- Juliano Spyer (port.), “E se a ciência provar que a vida continua após a morte?” (Folha de S. Paulo, 6.10.2025): https://www1.folha.uol.com.br/colunas/juliano-spyer/2025/10/e-se-a-ciencia-provar-que-a-vida-continua-apos-a-morte.shtml.

- Luís Lagarrigue (esp.), A poesia positivista (Santiago do Chile, 1890): https://archive.org/details/luis-lagarrigue-a-poesia-positivista-1890_202509.

- Mario Beauregard (port. e ingl.): Manifesto por uma ciência pós-materialista (Tucson, 2018): https://revistafenix.pt/manifesto-para-uma-ciencia-pos-materialista/ e https://opensciences.org/files/pdfs/Manifesto-for-a-Post-Materialist-Science.pdf.

- Raimundo Teixeira Mendes (port.), As últimas concepções de Augusto Comte (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1898): https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-ultimas-concepcoes-de-augusto-comte-i e https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-ultimas-concepcoes-de-augusto-comte-ii.

- Raimundo Teixeira Mendes (port.), O ano sem par (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900): https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-o-ano-sem-par-portug._202312/page/n7/mode/2up.

- UERJ (port.), “Faculdade de Ciências Médicas discute impactos da espiritualidade na saúde” (Rio de Janeiro, 1.1.2020): https://www.uerj.br/noticia/saude-e-espiritualidade-e-disciplina-na-faculdade-de-ciencias-medicas/.



[1] Cf. Gaston Bachelard, A formação do espírito científico (Rio de Janeiro, Contraponto, 1996).

25 maio 2025

Raimundo Teixeira Mendes: metafísica como intermediária equívoca

O trecho abaixo, de autoria de Raimundo Teixeira Mendes, apresenta com sua excepcional capacidade de síntese o papel intermediário e extremamente equívoco da metafísica. Por um lado, ela dissolve a teologia; ao mesmo tempo, prepara a ciência (e, daí, a positividade). Quando a metafísica limita-se às ciências inferiores (isto é, às chamadas “ciências naturais”), a transição da teologia para a ciência passando pela metafísica ocorre sem maiores problemas; mas no caso das ciências superiores (as chamadas “ciências humanas”, englobadas na classificação das ciências de Augusto Comte pela Sociologia e ciência da Moral) a metafísica na verdade atravanca o desenvolvimento, sendo um empecilho muito maior à positividade que originalmente o fora a teologia.

Essa descrição do aspecto equívoco (e equivocado) da metafísica foi redigida em 1900, a partir das reflexões que desde 1822 Augusto Comte fazia: ora, neste início do século XXI, as observações de Teixeira Mendes são desgraçada e lamentavelmente atuais. De fato, a metafísica reina altaneira na Sociologia (chamada – aliás, conforme os hábitos da metafísica academicista, de “ciências sociais”) e na Moral (chamada – conforme a dupla metafísica academicista e espiritualista – de “Psicologia”). Essa metafísica pode ser verificada das mais variadas maneiras, das quais citamos apenas algumas, mas sem a pretensão de esgotar as possibilidades:

- na concepção de que as ciências superiores têm que ser sempre, necessária e unicamente “críticas”, isto é, corrosivas e destrutivas

- na concepção de que toda ordem rejeita o progresso e, inversamente, que todo progresso rejeita a ordem

- nas concepções teóricas indemonstráveis

- nas pesquisas do absoluto

- na antropomorfização das abstrações

- na reiteração de abstrações criptoteológicas, como a “alma” e o “povo”

- na manutenção de oposições teológicas como “livre arbítrio versus determinismo” ou “cultura versus natureza”

- no desprezo do altruísmo natural e na valorização única do egoísmo

- nos hábitos cientificistas, que desprezam a visão de conjunto, valorizam a visão de detalhe e rejeitam a moralização da ciência.

O trecho abaixo foi extraído da seguinte obra: Raimundo Teixeira Mendes, O ano sem par, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900, p. 662.

 

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"[...] Essa filosofia bastarda [a metafísica] constitui um simples dissolvente da primeira [a teologia], preparando o ascendente da ciência, mediante uma combinação empírica e inconsciente dos dois métodos antagônicos [a teologia e a ciência]. Dessa quimérica tentativa resultaram a dissolução da teologia e uma anarquia mental e social favorável ao surto [i. e., desenvolvimento] inicial do gênio positivo. Semelhante utilidade limita-se, porém, ao estudo dos fenômenos mais grosseiros. Desde que a suficiente exploração destes permite e exige que o espírito positivo penetre nos domínios supremos da Política e da Moral, o espírito metafísico torna-se-lhe mais antipático do que o espírito teológico. Com efeito, ele tende então a manter indefinidamente a união híbrida entre a teologia e a ciência, impedindo, ao mesmo tempo, a ordem e o progresso, pela fomentação simultânea da anarquia e da retrogradação".

(Raimundo Teixeira Mendes, O ano sem par, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900, p. 662.)