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21 outubro 2025

Sobre o livro "A utopia autoritária brasileira", de Carlos Fico

Apresentamos abaixo algumas observações sobre o livro A utopia autoritária brasileira, de Carlos Fico.


 

1.      Esse livro foi publicado em 2025 pela editora Crítica e é da autoria do historiador carioca Carlos Fico, que é professor da UFRJ

1.1.   O livro apresenta a atuação política dos militares na República brasileira, desde o final do Império até o golpe de 1964

1.2.   O autor é especialista na atuação política dos militares, especialmente a partir dos anos 1930

1.3.   É um livro bem escrito e agradável de ser lido; o autor apresenta em detalhes inúmeras conjunturas, o que é sempre interessante e instrutivo

 

2.      Apesar dos méritos do livro e do autor, o volume apresenta vários defeitos, alguns deles bastante evidentes, outros exigindo um pouco de conhecimento histórico e teórico

2.1.   O autor é bastante cuidadoso no relato de acontecimentos

2.2.   Do ponto de vista filosófico e teórico, ele deixa bastante a desejar

2.3.   Em outras palavras, ele narra bem os fatos (ele conta bem a história), mas é bem mais fraco na organização e na abstração sociológica do que ele narra

 

3.      Para o que nos interessa e antes de mais nada, o autor compartilha preconceitos contra o Positivismo com outros autores que não têm vergonha em repetir tolices e/ou em mentir (como Sérgio Buarque de Holanda e Celso Castro)

3.1.   Como conseqüência de seus preconceitos, ele atribui ao Positivismo e aos positivistas comportamentos negativos – evidentemente, sem nenhuma comprovação!

 

4.      Nesse sentido, ele (1) assume que possibilidades e hipóteses não comprovadas são fatos comprovados e (2) apresenta juízos de valor agressivos sem comprovação

4.1.   No que se refere ao primeiro aspecto, o autor atribui reiteradamente ao longo de todo o livro a Benjamin Constant e ao Marechal Deodoro uma orientação golpista dos militares; a comprovação disso, no que se refere a Benjamin Constant, foi uma carta de Deodoro a Pedro II que “possivelmente [!] foi escrita por Benjamin” (p. 43)

4.1.1.     Atribuindo sem comprovação uma carta a Benjamin Constant, o autor despreza totalmente as inúmeras manifestações pacifistas e civilistas de Benjamin, escritas em cartas e manifestadas de maneira efetivamente pública em inúmeras ocasiões – e isso apesar de incluir nas referências bibliográficas do livro a biografia de Benjamin escrita por Teixeira Mendes

4.1.2.     Em outras palavras, o autor força um argumento no sentido que lhe convém e despreza as muitas e fortes evidências em contrário

4.2.   Por outro lado, referindo-se a Teixeira Mendes sem ter necessidade disso, o autor não deixa de dizer que ele (representando a Igreja Positivista do Brasil) falava “barbaridades sobre a vacinação” (p. 97)

4.2.1.     A observação sobre “barbaridades” é (1) feita de maneira genérica e sem comprovação nenhuma (ou seja, sem citar nenhuma frase, parágrafo ou argumento), (2) sem necessidade para o argumento do livro (ou seja, foi feita apenas para xingar), (3) desprezando a gigantesca produção da Igreja Positivista sobre os mais variados temas ao longo de toda a I República e (4), em particular e de maneira vinculada com o tema do livro, desprezando a sua firme e convicta atuação contra a violência, contra o militarismo e a favor do civilismo

 

5.      Os defeitos acima são, por si sós, bastante graves e servem para pôr-se em dúvida a honestidade do autor e a seriedade do livro; mas podemos notar ainda inúmeros outros defeitos:

5.1.   Seguindo um mau hábito do historiador José Murilo de Carvalho, o autor Carlos Fico gosta de citar anedotas e fofocas como comprovações de fatos e, em todo caso, para criar impressões, como no caso da referência a supostas barbaridades dos positivistas

5.1.1.     A esse respeito, vale notar que o autor faz questão de desrespeitar os positivistas, mas nada fala das barbaridades por exemplo de Luís Carlos Prestes (que mandou executar uma adolescente que era namorada de um dos membros do comitê central do PCB, apenas porque suspeita – sem provas – de colaborar com a polícia)

 

6.      A exposição do autor cria a forte impressão – na verdade, isso integra o seu argumento (p. 8) – de que a República foi criada unicamente por meio de um golpe militar, deixando de lado o fato de que ela foi precedida por 20 anos de militância republicana, de campanha de legitimação amplamente aceita e de progressivo e irreversível comprometimento da monarquia

 

7.      Apesar de formalmente reconhecer diferentes conjunturas, a exposição que o autor faz do golpismo militar revela uma incapacidade de distinguir diferentes movimentos políticos e diferentes contextos sociais, políticos e filosóficos: (1) a proclamação da República caracterizou-se por um grande contexto (militarismo monarquista, campanhas abolicionista e republicana, crise da monarquia), (2) a I República por outro (estabelecimento da República, prestígio militar, mas sem ativismo golpista), (3) o período 1930-1964 por outro (ativismo militarista com claro viés golpista)

 

8.      Da mesma forma, o autor é incapaz de distinguir as diferentes grandes influências políticas e filosóficas dos vários contextos:

8.1.   O imperialismo militarista do Império e o contraditório desprezo pelos militares, representado desde antes da Guerra contra o Paraguai pela criação da Guarda Nacional

8.2.   O pacifismo civilista positivista (o que, como vimos, o autor despreza e ridiculariza)

8.3.   O golpismo antissistêmico comunista

8.4.   O golpismo antissistêmico integralista e fascista

8.5.   A influência tensionadora da Guerra Fria

8.6.   A virada política representada pela Revolução Cubana e seus efeitos radicalizadores na política externa dos Estados Unidos a propósito da América Latina

8.7.   A única exceção às influências políticas e filosóficas que o autor reconhece é ao oportunismo de Rui Barbosa, que o autor expõe em detalhes