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06 agosto 2025

Instituições positivistas próprias aos estadistas

No primeiro capítulo do Apelo aos conservadores (de 1855), intitulado “Primeira parte – doutrina apropriada aos verdadeiros conservadores”, Augusto Comte apresenta sete instituições próprias ao Positivismo e adequadas aos estadistas e àqueles a quem ele chama de “conservadores”. Essas instituições são apresentadas logo após a breve exposição de duas noções também próprias ao Positivismo: indicaremos abaixo todas elas, indicando a respectiva paginação na tradução brasileira do livro, de 1898, realizada por Miguel Lemos.

A tradução brasileira está disponível na internet aqui: https://archive.org/details/augustocomteapeloaosconservadores. Explicações sobre o Apelo podem ser lidas no blogue Filosofia Social e Positivismo nas postagens feitas a partir de 27 de novembro de 2024, começando por esta: https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2024/11/leitura-comentada-do-apelo-aos.html.

 


N.

Categorias gerais

Noção/instituição

1.                   

 

Sentidos da palavra “positivo”

2.                   

Resumos gerais 

(p. 25-30)

Noção moral de que a submissão é a base do aperfeiçoamento

 

3.                   

 

Supremacia dos sentimentos

4.                   

Condições fundamentais

(p. 30-35)

Relatividade completa

5.                   

 

Indivisibilidade da verdadeira síntese

6.                   

Princípio universal 

(p. 35-46)

Dogma da Humanidade

7.                   

 

Preponderância da moral

8.                   

Instituições características

(p. 46-55)

Separação dos dois poderes

9.                   

 

Dignidade da mulher

 


24 março 2025

Augusto Comte: belo, verdadeiro, bom

“[...] A religião positiva abraça ao mesmo tempo as nossas três grandes construções contínuas, a poesia, a filosofia e a política. A moral, porém, aí domina sempre, quer o surto de nossos sentimentos, quer o desenvolvimento de nossos conhecimentos, quer o curso de nossas ações, de modo a dirigir sem cessar nossa tríplice pesquisa do belo, do verdadeiro e do bom”

(Augusto Comte, Catecismo positivista, 2ª ed. Rio de Janeiro, Igreja Positivista, do Brasil, 1895, p. 67).




22 agosto 2024

Monitor Mercantil: "Degradação como progresso (!)"

O jornal carioca Monitor Mercantil publicou no dia 21.8.2024 um texto de nossa autoria, intitulado "Degradação como progresso (!)".

Como de hábito, redigimos uma versão inicial grande, que depois foi cortada para adequar-se aos parâmetros de publicação jornalística.

A versão publicada está disponível aqui: https://monitormercantil.com.br/degradacao-como-progresso/.

Apresentamos abaixo a versão inicial do texto.

*   *   *

Degradação como progresso (!) 

Gustavo Biscaia de Lacerda

 

Advertência inicial

Antes de mais nada, um aviso: este artigo certamente desagradará muitos, talvez a maioria, de quem se considera “progressista”; mas é justamente em nome do progresso, em defesa do progresso, que escrevi estas linhas. Começarei expondo duas situações concretas, geralmente celebradas (de maneira equivocada) como progressistas e em seguida comentarei o que se deve entender por progresso.

A polêmica olímpica

A primeira situação concreta refere-se aos jogos olímpicos. O belo espetáculo das Olimpíadas, em sua recente edição de Paris 2024, foi marcado em sua abertura, no dia 28 de julho, por polêmicas intensas. Não foi todo o evento de abertura, que se caracterizou por múltiplas atividades realizadas ao mesmo tempo, muitas delas realmente bonitas e inovadoras, respeitando e exaltando o universalismo próprio aos jogos olímpicos, bem como celebrando aspectos da cultura francesa e da preocupação com o futuro da Humanidade. Contudo, alguns aspectos foram particularmente polêmicos – e, convém dizê-lo com clareza, propositalmente agressivos. Essas polêmicas referiram-se em particular a uma suposta representação teatral, ou “performática”, do famoso afresco de Leonardo da Vinci, A última ceia (1495-1498), em que – supostamente, conforme as críticas – as figuras de Jesus Cristo e dos apóstolos teriam sido trocadas por figuras de diabos, bacantes etc., em poses e situações extremamente eróticas e sexualizadas. Em contraposição, alguns dos defensores da “performance” afirmaram que se tratava na realidade de uma representação da tela A festa dos deuses, de Utrecht Jan Harmensz (1635-1640), ou, ainda (mas com menos verossimilhança), de A festa dos deuses, de Giovanni Bellini (1514). O diretor artístico do evento, Thomas Jolly, foi extremamente ambígüo a respeito: embora inicialmente ele não tenha confirmado nem negado nada, após as imediatas críticas feitas pela igreja católica da França, por católicos e por políticos de direita e extrema direita, ele afirmou que não se tratava de nenhuma tentativa de degradar ou desprezar o afresco de Leonardo da Vinci nem, por extensão, o catolicismo, mas, ao contrário, de ser “inclusivo ao máximo”; aliás, ele também afirmou que “um pouco de polêmica é sempre bom”, pois um mundo sem polêmicas seria “muito chato”. Em face de tal polêmica, tanto o presidente da comissão francesa para os jogos olímpicos, o canoísta Tony Stanguet, quanto o Presidente da República, Emmanuel Macron, viram-se obrigados a confirmar e a apoiar o espetáculo, inclusive fazendo coro ao empenharem o republicanismo, a laicidade e até a tradição anticlerical francesa como base para esse apoio.

Os ideais olímpicos: paz, universalismo, inclusão

Se a “performance” foi mesmo baseada na Última ceia, isso está aberto à discussão; de fato, é necessário forçar um pouco para concluir que ela referiu-se mesmo à obra de Da Vinci. Entretanto, o que não está sujeito a debate é a intenção consciente de ser polêmico – e de ser polêmico por meio da vulgaridade. Bem distante de buscar o máximo de inclusão, o que o “diretor artístico” da abertura das Olímpiadas desejava era chocar ao máximo a platéia, causar mal-estar, a partir de cenas degradantes e inadequadas. A importância dos jogos olímpicos está na afirmação do seu universalismo, bem como na belíssima idéia de que as disputas violentas entre as nações – em particular as guerras – são suspensas e, mais do que tudo, substituídas por disputas pacíficas, em que se busca não a destruição e a morte, mas o respeito e o desenvolvimento do ser humano. Esses ideais foram comprovados repetidamente durante o evento, com as selfies conjuntas de coreanos do Sul e do Norte, os auxílios de corredores que acudiram seus adversários/colegas, a “adoração” das ginastas estadunidenses pela nossa Rebeca Andrade.

A recorrente vulgaridade de Madonna

Mas o fato é que a vulgaridade que degradou a abertura dos jogos olímpicos de Paris, em 2024, não é algo novo; aqui no Brasil já vimos cenas parecidas antes, como na apresentação da cantora Madonna, em Copacabana, em maio de 2024. À diferença dos jogos olímpicos, Madonna não tem a menor preocupação em ser universalista; mas, à semelhança do ocorrido em Paris, desde o início de sua carreira, no começo dos anos 1980, ela busca chocar e causar comoção, em particular por meio de cenas agressivamente sexualizadas. É claro que em parte isso é jogo de cena com fins de propaganda, para ela aumentar a vendagem de seus produtos (ou seja, para ela enriquecer mais); mas essa estratégia baseia-se em valores profundos professados pela cantora.

A hipersexualização vendida como progresso

Pois bem: tanto no caso dos jogos olímpicos quanto no de Madonna a vulgaridade da extrema sexualização é apresentada como sinal de progresso – e isso é amplamente entendido como correto e aceitável por grupos autointitulados “progressistas”. Ora, basta um pouco de bom senso para perceber-se com clareza que nem a degradação nem a vulgaridade correspondem a qualquer sentido aceitável de “progresso”. Devemos, então, saber o que é o progresso.

Definindo o progresso

Um sentido elementar do progresso é o desenvolvimento das capacidades humanas, seja em termos coletivos, seja em termos individuais: progredir, nesse sentido, é o ser humano “crescer”. Não se trata simplesmente de mudar: afinal de contas, podemos mudar para pior. Assim, a noção de progresso implica tanto o desenvolvimento quanto o aperfeiçoamento. Clara e necessariamente há um juízo de valor implicado aí, em que devemos melhorar as coisas. Daí decorre também um outro aspecto, o espírito construtivo do progresso: progredir significa necessariamente construir. Por certo que às vezes, para progredirmos, temos que antes destruir algumas coisas (isto é, algumas práticas, algumas instituições, até mesmo alguns objetos); mas, como deve (ou deveria) ser evidente, essas destruições prévias têm que ser excepcionais e, acima de tudo, as coisas destruídas têm que ser substituídas por outras. Isso equivale a dizer – aliás, repetindo o que o líder da Revolução Francesa Georges Danton já dizia (mas que, quase com certeza, nem Thomas Jolly nem Madonna conhecem e muito menos respeitam) – que “só se destrói o que se substitui”: o puro espírito destruidor, a pura destruição, o mero destruir por destruir, nada disso é de verdade o “progresso” – mesmo que se diga que é.

O progresso geralmente é contraposto à ordem, seja em termos filosóficos e morais, seja em termos sociopolíticos. De fato, essa é uma possibilidade; entretanto, a contraposição entre ordem e progresso resulta em oscilações intensas e em disputas sociais amargas, como vivemos ao longo do século XX e como temos tido a infelicidade de atualizar neste século XXI. Assim, para ultrapassar as oscilações entre a ordem e o progresso, é necessário uni-los e constituir uma nova síntese, de “ordem e progresso”. Tal síntese foi elaborada pelo fundador da Sociologia, o francês Augusto Comte, herdeiro da Revolução Francesa, indicando que a ordem tem que ser a consolidação do progresso e que, assim, o progresso é o desenvolvimento da ordem. (A ordem, dessa forma, não é entendida como imóvel, como estática.)

Não deixa de ser irônico, ou melhor, triste que a degradante “performance” realizada em Paris tenha sido feita ao mesmo tempo em nome do progresso, do espírito olímpico e da Revolução Francesa. Ora, como indicamos acima, foi justamente durante a Revolução e não por acaso que se concebeu a máxima “só se destrói o que se substitui”; mas, mais do que isso, a degradação exibida em julho de 2024 em Paris também foi feita em nome do “amor”, mas tanto para os revolucionários de 1789 quanto para a maioria dos cidadãos de hoje espetáculos hipersexualizados como os de Thomas Jolly e de Madonna têm pouco ou nada a ver com o amor, mas apenas com uma nauseante caricatura do que deve ser o amor.

Christopher Lasch e Oscar Wilde: progresso como “subida mecânica” e como “decadência com elegância”

Dito isso, voltemos à degradação fantasiada de progresso. Em 1994 o ensaísta estadunidense Christopher Lasch (A revolta das elites), ao abordar o conceito de progresso, propôs e defendeu que desde o final do século XIX havia duas possibilidades para esse conceito; a primeira ele caracterizou como sendo a noção de desenvolvimento contínuo e irreversível para cima, uma “subida mecânica” – na verdade, uma caricatura elaborada pelos críticos conservadores e retrógrados do progresso e que, na falta de elaboração filosófica verdadeira, foi referendada pela esquerda e pelo próprio Lasch. O outro conceito apresentado pelo estadunidense seria o do desenvolvimento da arte e das faculdades artísticas, em que a arte seria cada vez mais autônoma, isto é, cada vez mais independente dos outros âmbitos da vida, em particular o da moralidade; esse segundo conceito teria sido proposto pelo dramaturgo irlandês Oscar Wilde, que propunha, de maneira concomitante, as noções de que o primeiro sentido do progresso seria “chato” e próprio a pessoas “estúpidas”, enquanto a arte seria a expressão e o desenvolvimento cada vez maior do egoísmo e da mais pura autoexpressão individual e antissocial. (Como se vê, Lasch desconsidera, talvez ignore, o sentido mais cuidadoso, matizado e complexo que expusemos acima.) Ao mesmo tempo, na linha dessa superficialidade inidividualista, Oscar Wilde celebrava a noção de que o conteúdo específico da arte contemporânea é o da “decadência com elegância” (a tal décadence avec élégance, que foi popularizada por um ambígüo e polêmico cantor brasileiro nos anos 1980). O conceito de “progresso” proposto por Oscar Wilde (que Christopher Lasch acaba pessoalmente subscrevendo) evidentemente é paradoxal; com um pouco de atenção logo se vê que ele não é de fato progresso em nenhum sentido razoável, embora corresponda perfeitamente à inteligência ágil, à mentalidade e à sensibilidade aristocrática, superficial e desorientada de Wilde, esse Voltaire atrasado e de segunda linha posterior à Era Vitoriana.

O fato é que a sensibilidade de Oscar Wilde, com sua marcada superficialidade e sua agressiva destruição, é o que alimenta a noção de progresso “decadente e elegante” dos recentes espetáculos hipersexualizados que citamos antes. Não há nesses espetáculos nenhuma busca efetiva de “progresso”, isto é, de aperfeiçoamento humano, de melhoria das condições sociais e individuais; há apenas a degradação moral travestida de, ou melhor, corruptora da bela e importante noção de “progresso”.

Silêncio constrangido e/ou omisso dos progressistas

Em face das inevitáveis críticas que tais apresentações receberiam dos grupos conservadores e retrógrados – aliás, sendo franco: críticas que em grande parte estão corretas –, muitos intelectuais que se dizem progressistas vão em bloco em defesa dessas apresentações, no famoso movimento de briga de torcida, incapazes de qualquer verdadeira apreciação. Com essa defesa em bloco, mecânica e acrítica, não é à toa que esses “progressistas”, ou a chamada esquerda, sejam tantas vezes mal vistos ou percebidas como “imorais”.

Dissemos “muitos intelectuais defendem”, com isso querendo sugerir que não são todos e, talvez, nem a maioria: temos a impressão de que aqueles intelectuais progressistas que não se manifestam têm clareza de o quão degradantes são esses espetáculos e que, por isso, não querem expor-se ao ridículo de defender o indefensável, embora, ao mesmo tempo, não queiram indispor-se com seus colegas “progressistas” ao custo de serem vistos como “conservadores” ou retrógrados. Tal silêncio também é conveniente com a dupla percepção (e duplamente incorreta), da parte desses intelectuais, (1) de que as mudanças sociais que importam seriam as mudanças materiais (políticas e econômicas) e (2) de que a agenda de “costumes”, dita moral, é secundária e, portanto, poderia ficar à mercê de espetáculos como os comentados acima.

Defesa da “cultura LGBTQIAP+”?

Podemos abordar agora o elefante branco desta reflexão. Muitos dos intelectuais que defendem esses espetáculos e que subscrevem a noção de progresso como “destruição com degradação” preocupam-se com o fato de que esses espetáculos muitas vezes são feitos por artistas “LGBTQIAP+” e nominalmente em sua defesa. Entretanto, como indicamos acima, esses espetáculos são extremamente agressivos e destruidores: talvez, quem sabe, fosse possível defendê-los argumentando que se trata de manifestações específicas de uma “cultura LGBTQIAP+”, mas isso é muito discutível e pouco defensável, na medida em que “essencializa” essa cultura e degrada a própria comunidade “LGBTQIAP+”, reduzindo-a à hipersexualização. Aliás, a redução do amor a manifestações públicas hipersexualizadas feitas com o objetivo de chocar é, sob qualquer parâmetro, uma péssima estratégia, que serve apenas para irritar e afastar quem se deveria agradar e atrair, bem como para degradar o ambiente público, a arte, os grupos envolvidos e as noções de progresso e amor. O tolo comentário de Thomas Jolly, de que “a vida seria muito chata sem polêmicas”, dá a medida da infeliz superficialidade que move tais espetáculos.

Em suma, no fundo, o que se evidencia é a ausência de qualquer concepção verdadeira de progresso – isto é, de qualquer concepção que ultrapasse o sentido caricato de “subida mecânica” ou o sentido de “decadência com elegância” de Oscar Wilde.

 

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo e doutor em Sociologia Política.

20 agosto 2024

Sobre as utopias

No dia 9 de Gutenberg de 170 (20.8.2024) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua duodécima conferência, dedicada à evolução histórica do desenvolvimento humano, ou seja, da religião (em particular, do fetichismo e do politeísmo).

No sermão abordamos as utopias.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/CtK0V) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/pGUqa).

Os tempos da prédica foram os seguintes:

00 min 00 s - abertura da prédica

07 min 21 s - exortações iniciais

16 min 16 s - efeméride

20 min 02 s - leitura comentada do Catecismo positivista

1 h 10 min 58 s - início do sermão

2 h 26 min 28 s - encerramento da prédica

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

*   *   *

Sobre as utopias

(9 de Arquimedes de 170/20.8.2024) 

1.       Abertura

2.       Exortações iniciais

2.1.    Sejamos altruístas!

2.2.    Façamos orações!

2.3.    Façam o Pix da Positividade! (Chave pix: ApostoladoPositivista@gmail.com)

3.       Efeméride:

3.1.    14 de Gutenberg: nascimento de Luís Hildebrando Horta Barbosa (1900)

4.       Leitura comentada do Catecismo positivista

4.1.    Continuação da duodécima conferência, sobre a evolução histórica do desenvolvimento humano, isto é, da religião, abordando em particular o fetichismo e o politeísmo

5.       Sermão: sobre as utopias

5.1.    O tema de hoje é algo recorrente nas reflexões políticas: as utopias

5.1.1. À primeira vista, ou melhor, a partir de vários preconceitos (entre os quais, em particular, os marxistas), o Positivismo não teria utopias e/ou seria contrário a elas

5.1.2. Todavia, para quem assiste às prédicas positivas e/ou para quem conhece o mínimo da obra de Augusto Comte, é bastante claro que as utopias integram plenamente o Positivismo

5.2.    Comecemos esclarecendo alguns conceitos gerais e limpando o terreno

5.2.1. A palavra utopia foi criada em 1516 pelo pensador e político inglês Tomás Morus, em uma obra chamada precisamente Utopia (na verdade, o título completo é este: “Um pequeno livro verdadeiramente dourado, não menos benéfico que entretedor, do melhor estado de uma república e da nova ilha Utopia”)

5.2.1.1.             O sentido da palavra “utopia” é o de “lugar nenhum”, ou melhor, de “lugar não existente”: seria, então, uma pura idealização

5.2.1.2.             O sentido da obra foi apresentar um ideal político, uma sociedade perfeita, e, a partir disso, avaliar e criticar a sociedade de seu tempo, em particular a Inglaterra absolutista de Henrique VIII

5.2.2. As utopias, portanto, aproximam-se da noção de “idealismo político”, desde que esta última expressão seja entendida como a concepção geral de uma sociedade ideal (e não no sentido da metafísica idealista)

5.2.3. Como vimos, a noção de utopia foi proposta no início do século XVI; essa concepção afirma-se no âmbito do humanismo e das concepções secularizantes posteriores à Idade Média

5.2.3.1.             A referência à Idade Média é importante porque, bem vistas as coisas, as concepções utópicas medievais baseavam-se na teologia: a Utopia de Tomás Morus já não é mais teológica; ela foi seguida por vários outros livros semelhantes, como A cidade do Sol, do frade dominicano Tomás de Campanella (1602), que, embora escrita por um frade, também era secularizada

5.2.4. A Utopia de Tomás Morus inaugura uma linha de reflexão social, política e moral que terá ampla descendência ao longo dos séculos, passando de comentários mais literários no início para propostas mais sociológicas e positivas no século XIX

5.2.4.1.             No século XIX vários pensadores (Roberto Owen, Pedro-José Proudhon, Carlos Fourier e mesmo Pedro Saint-Simon) propuseram seus esquemas sociais utópicos; em 1848 esses esquemas foram criticados em bloco por Carlos Marx, no Manifesto do Partido Comunista, e a expressão “socialismo utópico” foi contraposta a “socialismo científico”, criando-se uma clivagem dura entre as “utopias”, entendidas como puramente fantasiosas, e a cientificidade, entendida como não artística (e não literária) e verdadeiramente realista e exeqüível

5.2.5. Já no século XX, em parte devido aos desastres da II Guerra dos 30 Anos (1914-1945) e da Guerra Fria (1947-1989), mas em parte importante devido à mudança, ou melhor, à degradação da sensibilidade política e artística, a noção de utopia foi substituída pela noção de “distopia”

5.2.5.1.             Enquanto a utopia é um ideal desejável de uma sociedade (mais) perfeita, a distopia é um ideal indesejável, de uma sociedade decadente e/ou fracassada e/ou em colapso

5.2.5.2.             Como notamos quando tratamos das “ficções científicas”, pelo menos desde o final dos anos 1960 a imaginação social do Ocidente está cada vez mais marcada pelas distopias, com filmes mais ou menos decadentistas ou degradantes como Laranja mecânica (1972), Blade Runner (1982), O exterminador do futuro (1984), além das mais recentes tolices de “zumbis”

5.2.5.3.             Em face da importância social (no caso, política e artística) que as distopias apresentam no Ocidente, vale a pena insistir: não precisamos de distopias, mas, sim, de utopias

5.3.    Passemos então ao conceito de utopia no Positivismo

5.4.    Há várias maneiras de começarmos a abordar essa questão; começarei indicando dois aspectos complementares do Positivismo: por um lado, a importância da realidade com a utilidade; por outro lado, a importância da subjetividade

5.4.1. Como sabemos, o Positivismo afirma desde o início a importância do conhecimento da realidade em geral para disciplinar e orientar nossas vidas; de maneira correlata, nossas concepções têm que ser reais

5.4.2. Mas a mera realidade não basta: ela tem que complementada e orientada pela utilidade: assim, por um lado a utilidade restringe o âmbito das investigações reais (o que em particular evita o absolutismo) e, por outro lado, a utilidade estimula concepções que, sem negarem a realidade, estimulem a simpatia, a síntese e a sinergia

5.4.3. A utilidade, então, conduz-nos com facilidade para a importância da subjetividade – que, por si só, como sabemos, é algo de enorme importância no Positivismo, como âmbito da afetividade e também, em termos de concepções intelectuais, da imaginação

5.4.4. Esses aspectos que citamos até agora podem ser entendidos, do ponto de vista teórico, a partir da união dos sentidos da palavra “positivo” com a lei-mãe da Filosofia Primeira (que, no caso, é a primeira lei):

5.4.4.1.             Sentidos da palavra positivo (Apelo aos conservadores, p. 25): real, útil, certo, preciso, relativo, orgânico e simpático

5.4.4.2.             Lei-mãe da Filosofia Primeira: “Formar a hipótese mais simples e mais simpática que comporta o conjunto dos dados a representar”

5.4.5. Três observações específicas, antes de passarmos adiante:

5.4.5.1.             Certamente que a realidade deve ser limitada e reorientada pela utilidade; mas é necessário ter clareza de que a realidade é de fato um critério fundamental; nesse sentido, Augusto Comte distingue o “utópico” do “quimérico”, isto é, o ideal longínquo mas realizável da proposta puramente irrealizável (e, portanto, não positiva, que é apenas perda de tempo, energia e recursos em geral)

5.4.5.2.             Todas as nossas concepções devem corresponder à realidade; mas seja porque nossos recursos mentais são limitados, seja porque nossas concepções abstratas não abarcam toda a realidade, seja enfim porque a utilidade autoriza-nos a elaborar as ficções científicas, há sempre um espaço (maior ou menor) para elaborarmos diferentes enunciados ou formas de apresentar nossas concepções; nesse sentido muito específico, podemos sempre “manipular” nossas concepções, em particular no importante sentido de dotá-las de formas artísticas e altruísticas

5.4.5.3.             As utopias baseiam-se nas leis naturais; elas correspondem, então, em por um lado, às previsões científicas (especialmente as morais, sociológicas e biológicas) e, por outro lado, à extrapolação artística dessas previsões com objetivos práticos e morais[1]

5.5.    Além dos íntimos aspectos intelectuais e afetivos, que citamos até agora, devemos notar que a conduta cotidiana, isto é, a atividade prática precisa sempre de orientação geral, a fim de não nos perdermos nas preocupações cotidianas, no sem-número de questiúnculas, de mesquinharias, de egoísmos e de vistas particulares que nos desviam do altruísmo, do bem-estar coletivo e das vistas gerais

5.5.1. Clotilde resumiu exemplarmente bem essa necessidade ao afirmar: “Compreendi, melhor do que ninguém, a fraqueza de nossa natureza quando não é dirigida para um alvo elevado que seja inacessível às paixões” (3ª da suas máximas)

5.5.2. Aí entra o papel das utopias no Positivismo e na Religião da Humanidade

5.5.2.1.             Como deve estar ficando bastante claro, as utopias no Positivismo têm uma função prática, mas são profundamente orientadas por questões morais e intelectuais

5.5.2.2.             Em outras palavras, as utopias positivas são necessariamente religiosas, em vez de meramente políticas

5.5.2.2.1.                   Para evitar confusões, temos que lembrar: religião e teologia são coisas diferentes; a religião é a sistematização do conjunto da vida humana, em busca da unidade e da harmonia; a teologia é apenas uma das formas de entender o mundo que informou as religiões ao longo do tempo

5.6.    Assim, no v. IV da Política Positiva Augusto Comte afirmou a necessidade prática das utopias e, no caso do Positivismo, ele instituiu a utopia da virgem-mãe como supremo aperfeiçoamento humano, em que as mulheres poderiam conceber, sem a necessidade de intervenção masculina, ou seja, como um processo exclusivamente altruísta e puro

5.6.1. Faremos várias transcrições sobre esse tema, tomando por base as extensas citações de Teixeira Mendes em As últimas concepções de Augusto Comte (1898)

5.6.2. Sobre o papel das utopias:

“A fim de proceder melhor, convém primeiro explicar uma instituição religiosa, destinada especialmente a resumir o conjunto do nosso aperfeiçoamento, físico, intelectual e moral, concentrando-o em um progresso decisivo. Consiste ele em sistematizar a procriação humana, tornando-a exclusivamente feminina. Mas, antes de examinar esta utopia, indicada nos capítulos precedentes, devo caracterizar o seu destino, em virtude da necessidade de condensação peculiar a qualquer síntese, mesmo parcial, e sobretudo geral.

Tal concentração torna-se a conseqüência natural e o complemento necessário da divisão dos dois poderes, que é só o que a permite suscitando a sistematização, e a exige separando a teoria da prática. Não se pode desde então evitar ou reparar a dispersão dos sentimentos e dos pensamentos senão resumindo a síntese por uma instituição especial, para a qual convirjam as principais emoções e concepções. Mas essa necessidade comporta dois modos distintos de satisfação, os mistérios ou as utopias, conforme a religião é teológica ou positiva.

[...] Com efeito, a sistematização católica ficava essencialmente limitada ao sentimento, sem poder abraçar assaz a inteligência nem a atividade, cujas exigências soube iludir enquanto durou a transição afetiva. Pelo contrário, a plenitude necessária da síntese positiva obriga a instituição que deve resumi-la a representar simultaneamente os três elementos da natureza humana, segundo a verdadeira subordinação deles. É preciso, em uma palavra, que a sua conclusão sintética concilie a ordem e o progresso, instituindo um progresso que desenvolva o conjunto da ordem. Ora, tal é a aptidão das utopias convenientemente construídas, cujo surto crescente indicou, sem a satisfazer, a necessidade da unidade surgida da anarquia moderna” (Augusto Comte, Política positiva, p. 273-274, apud R. Teixeira Mendes, As últimas concepções de Augusto Comte, p. 452-454)

“Necessariamente conforme com a marcha da positividade, essas construções sintéticas foram até aqui limitadas à ordem exterior, sobretudo material, mas também vital. A mais bem elaborada e a mais eficaz surgiu, na Idade Média, com a química[2]. Durante a maior parte da revolução ocidental, a transmutação dos metais forneceu um admirável congraçamento a todos os esforços, teóricos e práticos, destinados a aperfeiçoar o nosso meio. O seu império prolongou-se até a aproximação da crise final[3], que veio enobrecer o surto utópico proporcionando-lhes sobretudo uma destinação social, anunciada, havia três séculos, por tentativas malogradas. Mas esse domínio final da positividade, tanto ideal como real, exigia uma doutrina universal, sem a qual a utopia, que deve constituir um resumo, pode somente tornar-se um apanhado, mais perturbador do que fecundo. Ora, essa condição fundamental acha-se suficientemente preenchida desde o advento decisivo da sociologia, donde resulta a irrevogável convergência da revolução ocidental para o estabelecimento da religião positiva. Este desenlace normal vem ao mesmo tempo eliminar as utopias perturbatrizes e substituí-las pelo congraçamento sintético de todas as dignas aspirações em torno de um progresso característico que representa a universal preponderância da moral.

Desde 1838, o terceiro volume da minha obra fundamental[4] anunciou espontaneamente semelhante tendência, propondo a introdução sistemática dos organismos fictícios para aperfeiçoar o conjunto da biologia. Mas essa primeira inspiração não tendo senão uma destinação intelectual, não se podia achar nela um tipo das utopias positivas, que devem ser tanto práticas como teóricas. Todavia, comparada com a transmutação dos metais, ela melhorava o surto utópico, estendendo-o da ordem material à ordem vital. Esse progresso foi melhor realizado na indicação inicial do presente tratado sobre a transformação dos herbívoros em carniceiros, encarada como o limite do aperfeiçoamento animal. Abrindo um vasto campo à ciência, tal utopia interessa igualmente à arte, não quanto aos laboratórios da nossa nutrição, nos quais o excesso de animalização seria nocivo, mas para os nossos companheiros de trabalho, que assim se tornariam mais ativos e mais inteligentes. Todavia, esse passo permanece insuficiente, pois que ele se limita ao domínio profano[5], sem levar a idealização positiva até a ordem humana, que constitui a sua principal destinação, como sendo ao mesmo tempo mais importante e mais modificável. Para instituir o surto utópico, que deve resumir a síntese final, é preciso pois estendê-lo ao domínio sagrado, que é o único capaz de condensar o progresso por meio da ordem, combinando os três modos ou graus do aperfeiçoamento, físico, intelectual e moral.

Tal é a teoria, ao mesmo tempo histórica e dogmática, das utopias positivas, nas quais a poesia e a filosofia devem concorrer melhor do que nas utopias teológicas e metafísicas, pois que o relativo aí sucede ao absoluto. Esta teoria torna-se aqui o complemento da da religião, resumindo a unidade real por um limite ideal, para o qual vêm especialmente convergir os votos, os projetos e as tentativas peculiares ao aperfeiçoamento contínuo da nossa tríplice natureza. Para melhor instituir esse congraçamento, é preciso especificar-lhe um só fito, salvo o renová-lo quando achar-se atingido; o que será sempre possível, atento o imenso domínio da providência humana, apenas esboçado até hoje, mesmo quanto ao meio.

Eis como sou conduzido a representar a utopia da Virgem-Mãe como o resumo sintético da religião positiva, cujos aspectos são todos combinados nela. A sua apreciação especial pertence ao tratado que prometi, para 1859, sobre a moral teórica e prática. Só posso aqui coordenar as principais indicações a esse respeito” (Augusto Comte, Política positiva, p. 274-276, apud R. Teixeira Mendes, As últimas concepções de Augusto Comte, p. 457-459)

5.6.3. Sobre a utopia da Virgem-Mãe:

“[...] A utopia da Virgem-Mãe tornar-se-á, para as mais puras e as mais eminentes, um limite ideal, diretamente apropriado a resumir o aperfeiçoamento humano, assim impelido a sistematizar a procriação nobilitando-a. Essa aptidão permanecerá sempre independente da solução real de tal problema, contanto que ele seja considerado como acessível, em vista do império, apenas esboçado até hoje, que a espécie mais modificável deve exercer sobre a sua própria constituição, mesmo física” (Augusto Comte, Política positiva, p. 240, apud R. Teixeira Mendes, As últimas concepções de Augusto Comte, p. 451)

5.7.    Alguns comentários adicionais:

5.7.1. O ideal da utopia da Virgem-Mãe foi proposto como sinal de desenvolvimento humano geral e não com o sentido exclusivista, discriminador e brutal do ultrapoliticismo feminista

5.7.2. De maneira mais concreta, no que se refere aos aspectos técnicos, devido aos avanços da medicina e da engenharia genética, a utopia da virgem-mãe realizou-se

5.7.2.1.             É necessário afirmar e reafirmar: essa realização dá-se apenas em termos técnicos; os necessários avanços morais, sociais e intelectuais estão muito atrás e, portanto, longe de terem sido realizados

5.7.2.2.             A respeito das novas utopias, Augusto Comte (Política positiva, p. 279, apud R. Teixeira Mendes, As últimas concepções de Augusto Comte, p. 464) recomenda que elas devem referir-se ao corpo humano, devido à íntima vinculação entre o progresso material e o aperfeiçoamento moral

5.7.3. Nas citações acima Augusto Comte observa que as utopias, além de serem um resumo sintético (ou melhor, religioso), são também um limite: a noção matemática de “assíntota” é sempre muito útil nesse caso

5.7.3.1.             A assíntota é uma função que tende no limite para um determinado valor (ainda que nunca chegue efetivamente a esse limite)

5.8.    A respeito das utopias meramente políticas:

5.8.1. Com base nas observações acima, torna-se bastante claro que e porquê de modo geral elas são falhas: ao não terem um aspecto sintético, ou religioso, elas não abarcam o conjunto da vida humana e, daí, sempre omitem ou sacrificam um ou outro aspecto

5.8.2. A partir de caminhos oblíquos, de modo geral se pensa no marxismo ou no socialismo ao falar-se atualmente em “utopias”; mas é claro que também devem entrar nesse título as utopias liberais (do livre mercado) e até mesmo as desgraças nazifascistas

5.8.2.1.             Na verdade, sendo mais correto, deve-se chamar os ideais marxistas, liberais e nazifascistas de “quimeras”, não de utopias

5.8.3. No que se refere ao Positivismo, com freqüência se afirma que a sociocracia é o nosso ideal político: evidentemente, isso é verdade; mas, a partir das observações acima, logo se vê que a sociocracia não é verdadeiramente a nossa “utopia”

6.       Encerramento



[1] Esse aspecto foi-me indicado, com o brilho e a generosidade habituais, por meu amigo Hernani Gomes da Costa.

[2] No caso, a referência é à alquimia e à busca da pedra filosofal ou, de maneira um pouco menos fantástica, à transformação de metais grosseiros (ferro e chumbo em particular) em ouro.

[3] Ou seja, da Revolução Francesa.

[4] Referência ao Sistema de filosofia positiva (1830-1842).

[5] Ou seja, às ciências inferiores (da Matemática à Biologia).