Li a matéria (de capa) da revista Galileu de janeiro de 2007, intitulada “O evangelho dos novos ateus” e fiquei espantado com a baixa qualidade do texto. Ao longo de toda a matéria há uma sensível pré-disposição contrária aos cientistas e filósofos agnósticos e ateus militantes, no sentido de considerá-los anormais, errados ou tolos – ou, pior, fanáticos. Subjacente à matéria está a premissa de que a crença em deus – em qualquer deus, diga-se de passagem – é correta, isto é, moralmente boa e empiricamente aceitável; mais ainda, subjaz a premissa de que a mera crença é importante e que quem põe em questão a fé das pessoas nas divindades não presta ou é insano.
Assim, por exemplo, o subtítulo da matéria é “Em contrapartida ao fundamentalismo cristão que assola o Ocidente, um grupo de cientistas ergue a bandeira da fé cega na ciência”. À parte o fato de que o fundamentalismo religioso (isto é, teológico) assola não apenas o Ocidente mas também o Oriente (em sua porção islâmica), o fato é que não faz sentido a expressão “fé cega na ciência”. Essa expressão é um oximoro tanto lógico quanto “empírico”, porquanto a ciência baseia-se não na “fé cega”, mas na crítica sistemática.
Se há fé cega em algum lugar, é na teologia, que, sendo filosoficamente absoluta, rejeita discussões e dúvidas a respeito de suas afirmações; os discordantes, como sabe, eram e são mortos como ímpios e pecadores. Essa, aliás, é a linha divisória entre a ciência e a teologia, como já indicava Augusto Comte: a ciência é relativa, é tentativa; seus esforços são parciais e assumidamente provisórios. Ao contrário do que ocorre com a teologia, pôr em dúvida uma afirmação científica não condena ninguém à morte[1]. Afirmar que esses novos agnósticos e ateus militantes professam uma “fé cega na ciência” é misturar coisas completamente diferentes ou não entender o que cada uma – ciência e teologia – tem de específico e de particular.
Na página 34 citam-se três cientistas que acreditavam em deus: Kepler, Newton e Einstein. Ora, à parte os fatos de que a crença de Einstein em deus é discutível e de que nem Kepler nem Newton podiam, em termos sociológicos, não acreditar em deus, a questão é que esse texto é mal-intencionado e visa explicitamente a confundir os leitores. Kepler, Newton e Einstein acreditavam em deus? Pois bem: não somente eles auxiliaram poderosamente a erodir essa crença como houve inúmeros outros, em particular a partir de meados do século XVIII, que não acreditavam e propuseram uma ética completamente humana. Não apenas físicos, mas também filosófos, matemáticos, químicos, biólogos, sociólogos, moralistas, políticos e cidadãos comuns: Hume, Voltaire, Lavoisier, Condorcet, Augusto Comte, Diderot, Gall, Darwin, Bertrand Russell, Freud, Marx etc. etc. Por que não se apresentaram esses pensadores humanistas? O que a revista fez, de maneira bastante mal-intencionada, foi contrapor três grandes pensadores supostamente “serenos” e “crentes” contra dois pensadores contemporâneos considerados pela revista como “raivosamente ateus” (“Dawkins [como] ‘cão de guarda’ de Darwin”).
Indo ao argumento da matéria: à parte a bobagem sociológica que é a idéia de Dawkins a respeito do “meme”, o fato é que não vi, na exposição das idéias de Dawkins ou de Sennet, nenhuma posição “raivosamente atéia”, nem uma “fé cega na ciência”. Aliás, bem ao contrário: Sennet chega a desmerecer o Iluminismo!
Sem dúvida que Dawkins é militantemente ateu: mas por que não poderia ser? A própria revista reconhece que há uma onda de fundamentalismo cristão assolando o Ocidente (mas, também sem dúvida, não se estende a respeito). Por que apenas os cristãos podem fazer proselitismo? Os danos intelectuais, sociais e políticos desse proselitismo teológico são cada vez maiores, ameaçando não apenas as liberdades públicas fundamentais (liberdades de pensamento, de expressão e de discussão), mas a separação entre a Igreja e o Estado e chegando ao ponto de ameaçar as medidas contrárias ao aquecimento global e promovendo novas cruzadas anti-islâmicas (como se pode perceber nas atuações de George W. Bush e do papa Bento XVI).
Novamente, a pergunta: por que apenas os teológicos podem fazer proselitismo? Se um cientista julga necessário fazer profissão de fé (e não uso essa expressão por acaso) no agnosticismo ou no ateísmo, na verdade ele responde a uma necessidade social sentida faz muito tempo pelas sociedades ocidentais – que, afinal, estão sendo acossadas pelas ondas de fundamentalismo cristão e islâmico.
Uma última questão: a revista Galileu é da editora Globo, que também publica a revista Época. Não é coincidência que no mês de novembro de 2006 a revista Época dedicou a matéria de capa à mesma questão, chegando aos mesmos resultados. Aliás, essa revista “adulta” e “formadora de opinião” é a mesma que afirma que o espiritismo é uma ciência e que suas afirmações têm sido comprovadas cientificamente. Se a editora Globo deseja promover o espiritismo e não tolera a militância antimística, isso é um direito que assiste à editora (sem dúvida que em uma sociedade laica, não-teológica, com liberdade de crença e de expressão). Todavia, apresentar, por um lado, o espiritismo como sendo científico e, por outro lado, apresentar os militantes agnósticos ou ateus como “cães raivosos” é uma postura questionável e não-neutra: cumpre à editora, por meio de suas diversas revistas, assumir uma posição claramente mística e deixar de apresentar-se como a portadora da “opinião pública”.
[1] Não deixa de ser irônico o fato de que a revista chame-se Galileu e que ignore, ou despreze, os ensinamentos políticos que a prática científica desse cientista legaram-nos.