O bacharelismo jurídico contra a República
Há talvez uma década assistimos no Brasil a uma crise dura e sistemática da República, em que os poderes Executivo e Legislativo têm sido utilizados para degradar e assaltar o Estado e as instituições. De maneira frágil, em 2022-2023 resistimos a esses ataques, embora permaneça a chantagem contra as instituições republicanas, como se vê na cínica avidez com que se mantém as “emendas ao orçamento”.
Isso não é casual. Misturam-se aí a oportunidade de assaltar o Estado com a mais completa confusão a respeito de quais são os princípios que devem regular a conduta republicana, sem deixar de lado alguns dos piores costumes na vida em comum. Em outras palavras, oportunidades, confusão intelectual e péssimos costumes.
As próprias instituições que deveriam resguardar o conjunto da República atentam contra ela. As críticas geralmente vão contra o poder Executivo – que, bem vistas as coisas, é o governo e é o principal ramo do Estado – e contra o Legislativo – que consiste no fiscal do orçamento –, mas cada vez mais o Judiciário, que em outros períodos manteve uma atuação discreta, apresenta-se como disfuncional.
Na verdade, o problema não é só o poder Judiciário em si, embora ele por si só seja um crescente problema. No Brasil repetimos a teoria dos “três” poderes, mas desde 1988 temos quatro poderes, na medida em que o Ministério Público é autônomo em relação aos demais. Ora, o próprio Ministério Público é extremamente problemático, como as atuações estranhamente conjuntas e conflitantes da Lava Jato, Rodrigo Janot e Augusto Aras ilustram com clareza.
Deixando de lado os graves problemas institucionais, culturais e políticos do Judiciário e do Ministério Público – irresponsabilidade e ausência total de prestação de contas, sem contar a atuação conjunta para aumentarem cada vez mais seus salários –, um traço muito claro deles é o espírito bacharelesco do Direito, ou, simplesmente, o bacharelismo jurídico.
Certamente outras pessoas já definiram o bacharelismo. Para o que nos interessa, o bacharelismo jurídico é o conjunto de hábitos mentais e concretos, ou melhor, de preconceitos compartilhados por estudantes e profissionais formados no curso de Direito, segundo os quais quem tem “formação jurídica” é melhor que quem não tem essa formação. Essa mentalidade implica um respeito automático para quem possui essa formação e – mais importante – implica também um desrespeito, uma desvalorização, uma desconsideração igualmente automática para quem não tem a formação jurídica. É uma das formas mais grotescas e degradantes de academicismo, mas não apresenta o aspecto intelectualista de quem acha que o universo resume-se às universidades; ao contrário, o bacharelismo jurídico considera que só é bom, só presta, só pensa, só tem direito à dignidade humana, só é cidadão quem passou pelo curso de Direito. De modo mais importante, a relação inversa também é verdadeira: para o bacharelismo jurídico, quem não tem formação jurídica simplesmente não presta, não merece respeito, não é cidadão. A quem tem o título de bacharel, paciência, boa vontade, sorrisos abertos; a quem não tem o título, má vontade, irritação, ligeireza, caretas. Consciente e intencional ou, ainda mais, inconsciente e involuntário, trata-se do espírito de abjeta subserviência a quem é chamado de “dotô”.
É claro que, em face de uma acusação desse tipo, a resposta-padrão será negar os traços indicados acima. Mas é no dia-a-dia que percebemos que essa negativa é vazia e o bacharelismo é real e entranhado. De modo geral, o Judiciário é caro, complicado e, de propósito, muito distante da vida dos cidadãos e o Ministério Público segue a mesma trilha – claro, a despeito de todos os rios de tinta que juízes, desembargadores, ministros, procuradores e “membros do Ministério Público” gastam para justificarem-se em discursos autocongratulatórios. Há algumas instituições que deveriam ser mais próximas e acessíveis aos cidadãos, como os juizados especiais (um ramo do Judiciário) e até a Fundação Procon (que é privada): mesmo essas instituições são contaminadas pelo bacharelismo jurídico. (A Defensoria Pública é relativamente nova no Brasil e não temos como argumentar a respeito dela; mas, não duvidamos de que, se apostássemos contra ela no caso do bacharelismo, provavelmente ganharíamos.)
Procon, juizados especiais, ramos não penais do Ministério Público: em todos eles os funcionários têm uma especial deferência para com quem é bacharel em Direito ou está estudando para sê-lo; essa deferência é manifestada por profissionais de carreira e por estagiários, sejam ou não vinculados ao curso de Direito. Além disso, como indicamos, o respeito bacharelesco tem o seu reverso, em que todos os demais cidadãos são alvo de um tratamento impositivo, que faz questão de indicar que não ser bacharel implica uma condição social e moral inferior. O bacharel é tratado com um respeitoso “senhô dotô” (ou “senhora dotôra”); os demais são tratados por um reles “você”. Os estagiários são subservientes aos “dotores”, mas por sua vez exigem a subserviência calada dos demais cidadãos – e, claro, tal exigência é sempre feita sob a ameaça de penalidades, processos, atrasos, multas, decisões desfavoráveis etc. (Prática habitual do Ministério Público, aliás.) Os cidadãos podem estar certos em suas demandas e são ouvidos com displicência e rapidez; mas quando o “dotô” fala, os funcionários do Procon, dos juizados especiais, do Ministério Público, do Judiciário dão-lhe toda a atenção e o tempo do mundo. O “dotô” pode falar o que quiser, os maiores sofismas, as maiores mentiras, as maiores degradações: como é “dotô”, pode falar o que quiser; ao espetáculo de sofismas e erros, o cidadão comum tem que ouvir calado, satisfeito, fingindo que as mentiras são a verdade, que a degradação não rebaixa o ser humano; caso o cidadão reclame, ache ruim, no limite exalte-se, será ameaçado ou exemplarmente punido. É isso o bacharelismo.
A Justiça brasileira, sabe-se, é cara e feita com viés de classe. Ou melhor, ela tem viés de casta, com um aspecto medieval. Ela é cara não apenas porque juízes, desembargadores, promotores e “membros do Ministério Público” exigem salários e penduricalhos cada vez maiores e injustificáveis, sem que se responsabilizem de verdade por suas atuações. De modo mais importante, a Justiça é cara porque o acesso a ela é caro, porque é estruturada de maneira que apenas quem tem dinheiro, ou melhor, muito dinheiro paga as altíssimas taxas cobradas por advogados e pelo sistema judiciário (incluindo aí os cartórios). Esses custos não são feitos apenas para saciar a avidez pecuniária dos envolvidos; esses custos representam o aspecto material de preconceitos de casta, contrários ao povo e à noção republicana de cidadania. Eles são a face material do espírito bacharelesco.
Em suma: para recuperar a República e valorizar a cidadania, o caminho passa necessariamente pelo combate ao bacharelismo jurídico.
Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.