Em 25 de Gutenberg de 170 (5.9.2024) celebramos a transformação de Augusto Comte (isto é, sua morte, em 1857).
Seguindo o calendário de festas e celebrações da Igreja Positivista do Brasil, nessa data também se comemora a vida da filha adotiva de Augusto Comte, Sofia Bliaux.
Após a celebração de Sofia, lemos o belo discurso de Miguel Lemos, escrito em 1884 e republicado em 1936, 1951 e 1957, intitulado "Comemoração anual da morte de Augusto Comte".
Na seqüência, lemos o belo poema de R. Teixeira Mendes, escrito em 1917 (?) e republicado em 1936, intitulado "A hora terrível".
Essa celebração foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://l1nq.com/YMTCP) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/2FhZY).
As anotações escritas que serviram de base para a exposição oral estão reproduzidas abaixo.
* * *
Celebração da transformação de Augusto Comte
25 de Gutenberg de 170/236 (5.9.2024)
1.
Celebramos hoje a transformação de Augusto
Comte, nosso pai espiritual, e, conforme o calendário de festas da IPB,
comemoramos também Sofia (1804-1867)
1.1. Esta
nossa pequena celebração não será original – na verdade, nunca é possível
sermos nem sempre originais nem totalmente originais
1.2. Reproduziremos
aqui três documentos: (1) a celebraçãode Sofia que elaboramos no ano passado, nesta mesma ocasião; (2) o belo
documento de Miguel Lemos, Comemoração
anual da morte de Augusto Comte, de 1884; (3) o belo poema de Teixeira
Mendes, A hora terrível, de 1917 (?)
1.2.1. O documento de Miguel Lemos e o poema de Teixeira Mendes foram enviados por nosso amigo Hernani Gomes da Costa
1.3. Ao
lermos as celebrações de Miguel Lemos e Teixeira Mendes, nós reconhecemos a
superioridade sintética desses outros nossos pais espirituais e, assim, também
os homenageamos
2. Mas,
antes de passarmos às comemorações, é necessário lembrarmos o que é a
“transformação”
2.1. A
transformação é um dos nove sacramentos positivistas – o oitavo –, o que marca
a morte do servidor da Humanidade
2.1.1. A
morte não é o fim da pessoa; certamente é o encerramento da vida objetiva, ou seja,
do processo de trocas contínuas e permanentes entre o corpo e o ambiente; mas isso
não equivale a dizer que aquele servidor da Humanidade não atua mais: a sua atuação
continua, embora em termos puramente subjetivos
2.1.2. Convém
lembrar as belíssimas frases da poetisa francesa Elisa Mercoeur:
2.1.2.1.
“O olvido é
o nada; a glória é a outra vida”
2.1.2.2.
“Quem deixa
um nome pode morrer?”
2.1.2.3.
“A pedra do
sepulcro é seu primeiro altar”
2.2. Por
que em termos positivos nós dizemos “transformação” e não “morte”?
2.2.1. Não
se trata de um eufemismo, mas de uma afirmação da realidade subjetiva humana:
embora triste por si só, a transformação encerra a vida objetiva e inicia plenamente a vida subjetiva de cada um de nós nos outros – ou seja, vivemos para os demais para revivermos nos
demais
2.2.1.1.
O nascimento deve ser sempre valorizado, mas é com
a transformação que podemos avaliar a atividade realmente desenvolvida pelos
indivíduos e, daí, podemos avaliar se foram altruístas ou egoístas,
construtivos ou destruidores etc.
2.2.1.2.
Dessa forma, o nascimento é apenas uma promessa
– certamente, sempre uma bela e fundamental promessa, mas, ainda assim, apenas
uma promessa –, é na transformação que avaliamos e, ainda mais, que celebramos efetivamente a vida de cada
um
2.2.1.3.
Assim, a data da transformação é realmente uma data
para ser celebrada
3. Passemos,
então, à celebração de Sofia
3.1. No
calendário da Igreja Positivista do Brasil, no dia 19.1 celebramos o nascimento
de Augusto Comte e a memória de sua mãe, Rosália Boyer; no dia 8.10, celebramos
a festa de Comte e Clotilde
3.2. Assim,
considerando a importância de Sofia para a vida de Augusto Comte e também a
instituição dos seus “três anjos”, no dia 5.9 celebramos Sofia
4. Sofia
Bliaux nasceu em 18.9.1804, na pequena comuna de Oissy, no Somme (Norte da
França)
4.1.1. Assim,
ela era seis anos mais nova que Augusto Comte e 11 anos mais velha que Clotilde
4.2. Quando
criança mudou-se com os pais para Paris, onde levava uma vida pobre, tendo que
trabalhar desde cedo, sempre com humildade e devotamento
4.3. A
obediência e o devotamento aos patrões era tanta que solicitou aos patrões a
permissão para casar-se (no que foi atendida); seu marido, Martinho Thomas, era
entregador de uma farmácia próxima à rua Monsieur-le-Prince; foi usando esse
serviço (para receber poções e cremes de beleza) que Carolina Massin travou
contato com Martinho Thomas e, a partir disso, soube das dificuldades
crescentes de Sofia, que cuidava sozinha de uma casa grande com crianças que
cresciam
4.4. Após
muitas insistências de Carolina Massin, Sofia afinal passou ao serviço de
Augusto Comte em 1841 (um ano antes de Carolina abandonar definitivamente o lar
conjugal); na verdade, na época Sofia entrou ao serviço de Carolina e não
propriamente ao de nosso mestre
4.5. Logo
Sofia percebeu, por um lado, que Carolina era uma péssima esposa e que não dava
paz de espírito a nosso mestre; por outro lado, ela percebeu que Augusto Comte
era uma pessoa simples, de existência modesta, mas cuja atividade era intensa e
que era inteiramente dedicada à renovação moral, intelectual e social e que,
por isso, precisava de apoio material
4.5.1. A
partir de uma humildade simples, confrontando a grandeza moral de Augusto Comte
com sua própria existência modesta, ela entendeu que poderia e deveria
dedicar-se a auxiliá-lo o máximo que pudesse
4.6. Em
1842, quando Carolina Massin abandonou o lar pela última vez, Sofia permaneceu
na rua Monsieur-le-Prince; mas, devido à vinculação inicial de Sofia com
Carolina Massin, e devido à péssima experiência que tivera com sua ex-esposa,
Augusto Comte desconfiava profundamente dela
4.6.1. Apenas
com o passar do tempo, e considerando as simpatias de Comte para com os
proletários, Augusto Comte foi reconhecendo a sinceridade da devoção de Sofia e
tornando-a, bem como ao seu marido, uma companheira habitual em seu lar
4.7. Quando
o amor de Comte por Clotilde irrompeu, logo Sofia percebeu a importância disso
para o filósofo e com freqüência atuava como mensageira entre ambos; depois
também se tornou confidente de Clotilde
4.8. Devido
à sua triste história, a saúde de Clotilde era frágil; em suas últimas semanas
(março de 1846), Sofia foi enfermeira, cuidadora e verdadeira irmã de Clotilde,
tendo pernoitado 18 dias na casa de Clotilde, até seu falecimento
4.8.1. Após
a morte de Clotilde, Sofia reconfortou Augusto Comte e mesmo o afastou de
pensamentos de suicídio
4.9. Em
virtude da perseguição acadêmica que Augusto Comte sofria, em 1847 e, ainda
mais, em 1848 ele perdeu seus modestos empregos acadêmicos; nesses dois anos,
em 1847 e, depois, em 1848, Sofia e seu marido ofereceram suas economias para
auxiliar Augusto Comte em suas despesas (despesas que em sua maior parte eram
destinadas à pensão de sua ex-esposa); o primeiro oferecimento foi recusado,
mas o segundo nosso mestre viu-se obrigado a aceitar
4.10.
Observa José Longchampt (Epítomeda vida e dos escritos de Augusto Comte, p. 85) que Sofia converteu-se
à Religião da Humanidade: “Foi por estas conversações diárias que Augusto Comte
realizou, na única mulher que dele se aproximava, a primeira conversão à
Religião da Humanidade”
4.11.
Reconhecendo os sacrifícios feitos por Sofia ao
longo dos anos, não apenas em termos de salário e de alimentação, mas também em
termos de convívio com sua família, em 1848 Augusto Comte convidou Martinho
Thomas que fosse morar em seu apartamento com Sofia e seu filho, o que o casal
aceitou
4.11.1. Esse
reconhecimento foi devido não apenas ao devotamento do casal, mas também devido
à valorização da domesticidade e mesmo do casamento
4.11.2. Dando
continuidade à afirmação da domesticidade em sua própria vida, Augusto Comte
proclamou Sofia como sua filha em 18.7.1850, na cerimônia de casamento do dr.
Segond
4.11.3. Mais
tarde, a valorização de Sofia atingiu seu máximo com a consagração de ser
indicada como um dos seus “três anjos”
4.12.
Após a morte de nosso mestre, Sofia recebeu de
Augusto Comte um retrato de Clotilde, bem como lhe foi destinado uma pensão até
sua morte, sob responsabilidade dos executores testamenteiros, e o direito de
residir no apartamento da rua Monsieur-le-Prince
4.13.
Ela morreu em 5.12.1861; conforme solicitação
explícita de nosso mestre em seu Testamento,
ela foi enterrada juntamente com Augusto Comte, no “cemitério do Leste” (o Père
Lachaise)
4.13.1. Em
28.3.1867 Martinho Thomas faleceu; seu filho, Paulo Thomas, ficou sob a
responsabilidade de José Longchampt e tornou-se também positivista
5.
Leitura da Comemoração
anual da morte de Augusto Comte, de Miguel Lemos (1884)
6.
Leitura de A
hora terrível, de Teixeira Mendes (1917?)
6.1.
Esse poema integra um conjunto poético-relogioso
de Teixeira Mendes: Hino ao amor, O ano sem par, A dor sem nome, A hora
terrível – dedicados ao altruísmo e à Humanidade, ao amor de Comte e
Clotilde, à morte de Clotilde e à morte de Augusto Comte
* * *
Miguel Lemos: “Comemoração anual da morte de Augusto Comte”
(1884)
COMEMORAÇÃO
ANUAL
DA
MORTE DE
AUGUSTO COMTE
24 DE
GUTENBERG DE 69
(5 DE
SETEMBRO DE 1857)
Tu duca, tu signore, e
tu maestro.
(Dante, Inferno, Canto II.)
A Igreja Positivista celebra
hoje a entrada do seu glorioso Fundador na imortalidade subjetiva.
Aos 24 de Gutenberg de 69
Augusto Comte era surpreendido pela morte em meio de sua tarefa ingente. Morria
na pobreza, quase na obscuridade, rodeado apenas por um pequeno número de
discípulos fiéis e só conhecido, fora deste grêmio, por aqueles que ele
opulentara com as migalhas de seu gênio, e que ocultavam cuidadosamente a
origem de tão súbita riqueza. Muitos deles pagaram-lhe as lições com o insulto,
com a calúnia e com a traição...
Essa vida que terminava
inopinadamente aos 59 anos fora toda consagrada com uma competência excepcional
de coração, de inteligência e de caráter à solução do problema religioso.
Dar à sociedade futura uma
religião científica, sem mistérios, sem absurdos, baseada na totalidade dos conhecimentos
positivos e tendo por alvo supremo o maior aperfeiçoamento do homem, tal foi o
fim que se propôs o grande Pensador.
O problema impunha-se com o
peso de todo o passado. Resolvê-lo era reatar de novo o fio das idades e
congraçar outra vez o homem com o homem. E por este modo a religião depois de
ter sido espontânea no período fetichista, inspirada na fase politeica,
revelada durante a concentração monoteísta, tornava-se, enfim, demonstrada. Diis extinctis, Deoque, successit Humanitas.
A profecia de José de Maistre
estava realizada. Aparecera o homem prodigioso que devia terminar a obra
demolidora do século XVIII, reunindo em si as afinidades da ciência e da
religião.
Este empreendimento Augusto
Comte o levou a cabo com um saber e uma grandeza moral inexcedíveis.
Foi um sábio e um santo.
A sua instrução aristotélica
abraçava todas as ciências existentes no seu tempo, desde a Matemática até a
Biologia. Criou mais uma, a Sociologia e lançou os fundamentos da Moral.
A sua abnegação não teve
superior. Perseguido pelos corifeus da ciência oficial, viu-se despojado com a
máxima iniqüidade das modestas ocupações que exercia, e aceitou a miséria com a
serenidade do justo.
O pão chegou a faltar-lhe. Um
dia a sua criada, testemunha comovida de tão dolorosa situação, lançou-se-lhe
aos pés e rogou-lhe com lágrimas que aceitasse o pequeno auxílio de suas
economias para não ver o seu amo morrer à fome!
O coração da humilde
proletária compreendera o heroísmo desse homem, tão firme com os poderosos e
tão bom para com os fracos e os pequenos.
Finalmente, um amor puro e
imenso, assombro e escândalo da grosseria contemporânea, o elevou, sob o santo
impulso de Clotilde de Vaux, às alturas ideais do mais sublime entusiasmo.
Aristóteles pela
inteligência, São Paulo pelo coração, Júnio Bruto pelo caráter, tal foi o
fundador da Religião da Humanidade.
Os Pósteros saberão comemorar
melhor do que nós essa incomparável existência, para cuja apoteose concorreram
todos os esplendores da arte regenerada por um novo culto e alimentada por uma
comunhão espiritual até hoje desconhecida.
Do seio da paz universal
irromperão os hinos sagrados em louvor do Divino Mestre. Todas as raças, todas
as pátrias, todas as famílias, congraçadas por uma crença comum, instruídas do
Passado, seguras do Porvir, recordarão unânimes os grandes serviços do egrégio
Fundador.
Por enquanto cumpre ainda
vencer. Os frêmitos da luta perturbam a expansão religiosa do dia de hoje. Um
dia de festa é para nós um dia de trégua apenas. Amanhã será necessário
continuar o apostolado, convencer, persuadir, repelir a calúnia e sofrer a injúria.
Não importa. As profecias
científicas não mentem e os sinais certos da vitória já estão por toda parte.
Com os olhos fitos nessa
unidade religiosa do futuro, Jerusalém espiritual e cidade celeste, sonhadas
pelas grandes almas de Israel e do Catolicismo, satisfação real as aspirações
prematuras dos generosos utopistas, termo da miséria e da guerra, advento da
fraternidade universal, recordemos hoje os exemplos legados pelo indefeso
Lidador e façamos votos de imitar a sua constância inabalável e a sua sublime
dedicação pelos destinos da Humanidade.
Miguel Lemos,
Diretor da Igreja
Positivista do Brasil.
* * *
Raimundo Teixeira Mendes: A
hora terrível (1917?)
A
HORA TERRÍVEL
ENSAIO RELIGIOSO SOBRE A MORTE DO NOSSO SANTÍSSIMO MESTRE
(Sugerido
pelo Stabat Mater)
A dor que o
Pai martiriza
Prende
exausta a humilde Filha
Ao leito
onde Ele agoniza...
No seu rosto
já não brilha
A viva luz
da esperança
Do Porvir
mostrando a trilha...
Vago o olhar
saudoso lança
Lampejos
nas murchas Flores
De
Clotilde augusta herança...
E os sumidos
estertores
Vão o
silêncio quebrando
Daquela
tarde de horrores...
Té que aos
lábios assomando
O sopro
final s’exala,
Num terno
beijo os cerrando...
Enquanto a
alma que estala
Da
miseranda Sofia
A
catástrofe assinala...
Finda assim
tua agonia
De amor
num sublime extremo;
Mas a
nossa principia
Nesse momento
supremo
Em que
geme a Humanidade
O seu
infortúnio extremo...
Sua doce
potestade
Em teu
gênio condensara
De
Clotilde a santidade.
E destarte em
Ti salvara
Seu Porvir
que o cego Fado
Em hora
infausta arriscara...
Pobre Mãe!
acabrunhado
Seu amor
treme de ver-te
Precoce à
vida arrancado...
Para os dias
proteger-te
De um Anjo
deu-te o desvelo...
Foi
discípulos escolher-te...
Mão não pode
o santo zelo,
Movendo o
surdo Destino,
Sequer no
curso detê-lo!...
No teu
serviço divino,
Do terço
final em meio,
Pende
exame repentino
Da Humanidade
no seio,
A fronte
qu’Ela tornara
O seu
sublimado esteio!...
Oh! como tem
sido amarga
A feitura
desse manto
Que contra
o mal nos ampara!
Que de
sangue! que de pranto!
Não tem a
Deusa vertido
Nesse
labor sacrossanto!
Porém o peito
transido
De dor
jamais tão pungente,
Sofreu
qual quando, caído,
Nos braços
sentiu-se algente,
Resumo do
seu Passado,
Do seu
Porvir, seu Presente!...
Doce Mãe! Nos
fosse dado,
Na dor que
teu peito estua,
Sentir o
nosso abrasado...
Fundir nossa
alma na sua
Entre seus
Anjos queridos...
Estancar a
fonte crua
Dos teus
acerbos gemidos!...
R. Teixeira Mendes