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27 abril 2024

Moral pública: não mentir e não trair

O trecho abaixo, escrito por Augusto Comte (1798-1857) no início da undécima conferência do Catecismo positivista (1852), é notável.

Nele, o fundador da Sociologia indica de que maneira deve-se entender o preceito republicano de que a política deve submeter-se à moral: por meio da realização da fórmula “Viver às claras” (“vivre au grand jour”, no original em francês). Essa máxima significa basicamente que todos devemos adotar parâmetros em nossas condutas (sejam privadas, sejam públicas) que possam ser “publicamente confessáveis”, isto é, que possam ser justificadas para o grande público (e, bem entendido, aceitas pelo grande público).

Mas, enquanto no âmbito privado o “público” do “viver às claras” de modo geral corresponde à família, aos amigos e, talvez, aos colegas de trabalho, no âmbito cívico o “público” corresponde ao conjunto da sociedade e à opinião pública. Isso, por sua vez, tem duas conseqüências. No que se refere aos líderes – ou seja, tanto no que se refere aos ocupantes de cargos públicos quanto aos líderes que atuam no chamado “setor privado” –, a sua vida privada deve estar sob escrutínio público; o sentido disso não é para fofocas, intrigas etc., mas para que a sociedade saiba se, como e em que grau os líderes são honestos, são corretos etc. Por outro lado, o “viver às claras” no âmbito público implica duas regras específicas: falar a verdade e cumprir as promessas. Ou, por outra, não mentir e não trair (ou não enganar).

Viver às claras, escrutínio público moral (mas não moralista) da vida privada dos líderes, não mentir, não trair: esses princípios resumem a moral pública. Esses princípios são tão simples e tão importantes quanto são desrespeitados (ou são distorcidos). Além disso, a relevância desse trecho dá-se na medida em que Augusto Comte põe-se frontalmente contra uma certa tradição de pensamento político ocidental, iniciada com Nicolau Maquiavel [1] e que continua desde o século XVI até os dias atuais: é a tradição segundo a qual é errado aplicar parâmetros morais à política, ou, dito de outra maneira, a política não deve se submeter à moral. Sob um rótulo de “cientificidade” que, não por acaso, aproxima-se do cinismo, a proposta de que a política deve ser amoral logo se converte, ou logo se revela, em práticas francamente imorais, justificando mentiras, traições e a famosa “política do poder”, que é a aplicação cada vez mais clara da violência na política (nacional ou internacional). Para quem considera correto separar a política da moral, não deve existir nenhum problema em escândalos de corrupção, assassinatos políticos, brutalidade policial, privilégios político-sociais, parcialidade judicial etc. Para o fundador do Positivismo, tudo isso é altamente problemático e vai contra a verdadeira política republicana, na medida em que nega, ou rejeita, a submissão da política à moral.

Alguns esclarecimentos preliminares antes de citar diretamente Augusto Comte. O trecho abaixo é do Catecismo positivista, que é uma exposição do Positivismo dirigida ao povo, isto é, aos proletários e às mulheres. Essa exposição apresenta-se na forma de um diálogo, ou seja, de uma conversa com aspecto didático, em que o coração sugere as questões e a inteligência responde a elas. (Considerando o aspecto de diálogo do livro, cada capítulo é intitulado como “conferência”, a partir do francês “entretien”; mas poderíamos também traduzir por “diálogo” ou “conversa”.) A tradução que usamos é a de Miguel Lemos, fundador da Igreja e Apostolado Positivista do Brasil, em sua quarta edição, de 1934 (páginas 352 a 355) – edição divulgada na coleção “Os pensadores” –; as duas notas indicadas com asteriscos são da autoria de Miguel Lemos.

O “regime” a que se refere Comte é a parte da religião que trata das relações sociais e da vida concreta, assim como, antes, o “culto” é a parte da religião que sistematiza e estimula os sentimentos; o “dogma” é a parte que trata da inteligência.

Por fim, a “anarquia” a que se refere Augusto Comte no final do trecho corresponde à ausência de parâmetros sociais e morais amplamente compartilhados na sociedade. Para Comte, os grandes e graves conflitos sociais da atualidade têm origem, em última análise, nessa anarquia: as disputas entre revolucionários e retrógrados, as lutas de classe, as lutas de sexo, as lutas “raciais”, os conflitos internacionais. Daí a necessidade de parâmetros humanos, claros, compreensíveis, compartilhados; em outras palavras, daí a necessidade da Religião da Humanidade. 


*          *          * 


A MULHER – Agora, meu pai, eu quisera saber se, além da relação geral entre o regime público e o regime privado, este não suscita disposições que possam nos preparar para o outro.

O SACERDOTE – [...]

Quanto às disposições da existência doméstica, esta suscitará sobretudo a melhor aprendizagem desta regra fundamental que cada um se deverá impor livremente, como base pessoal do regime público: Viver às claras. Para esconderem suas torpezas morais, nossos metafísicos fizeram prevalecer a vergonhosa legislação que ainda nos proíbe escrutar a vida privada dos homens públicos. Mas o Positivismo, sistematizando dignamente o instinto universal, invocará sempre a escrupulosa apreciação da existência pessoal e doméstica como a melhor garantia da conduta social. Como ninguém deve aspirar senão à estima daqueles a quem também estima, não somos obrigados a dar a todos, sem distinção, conta habitual de nossas ações quaisquer. Porém, por mais restrito que possa vir a ser, em certos casos, o número de nossos juízes, basta que sempre existam alguns para que a lei de viver às claras nunca perca sua eficácia moral, impelindo-nos constantemente a nada fazer que não seja confessável. Semelhante disposição prescreve logo o respeito contínuo da verdade e o cumprimento escrupuloso de todas as promessas. Este duplo dever geral, dignamente introduzido na Idade Média, resume toda a moral pública e faz-vos sentir a profunda realidade daquela admirável sentença em que Dante, representando o verdadeiro impulso cavalheiresco, designa para os traidores o mais horrível inferno*. No meio mesmo da anarquia moderna, o melhor cantor da cavalaria proclamava dignamente a principal máxima de nossos heróicos antepassados:

La fede unqua non deve esser corratta,

O data a un solo, o data insieme a mille;

.......................

Senza giurare, o segno altro più espresso,

Basta una volta Che s’abbia promesso.**

Estes pressentimentos crescentes dos costumes sociocráticos são irrevogavelmente sistematizados pela religião positiva, que representa a mentira e a traição como diretamente incompatíveis com toda cooperação humana.


*   *   * 


* Dante, Paraíso, canto último:

Senhora, tão grande és, e tão potente

Que mercês implorar sem teu auxílio

Equivale a querer voar sem asas.

Tua benignidade não sufraga

Somente a orações; mas, com freqüência,

Com generosos dons as antecipa

Em ti misericórdia, em ti piedade,

Em ti munificência se coadunam

E quanto tem mais nobre a criatura

(Tradução de Bonifácio de Abreu.)

 

** Ariosto, Orlando furioso, canto 21, 2ª estância:

A fé nunca deve ser quebrada,

Ou dada a um só ou dada a mil ao mesmo tempo

.......................

Sem jurar, ou sem qualquer outro sinal expresso,

Basta ter prometido uma vez.

 



[1] Vale a pena notar que o próprio Maquiavel (1469-1527) foi bastante ambígüo a respeito. Em O príncipe (1513) ele propôs uma política amoral ou mesmo imoral; a partir dessa obra surgiu a tradição a que nos referimos acima. Mas em Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio (1517), ele adotou uma outra perspectiva, afastando-se do amoralismo/imoralismo de O príncipe, ao defender a busca do bem comum, o republicanismo como um regime político bom etc.