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15 novembro 2021

Entendendo a série "Lost"

Saindo um pouco do âmbito habitual deste blogue, apresento aqui algumas reflexões sobre a série televisiva Lost, no sentido de entender o que (e quais) são os principais grupos e personagens dela. Como se verá, embora refira-se a um seriado comercial, os mistérios de fundo da séria exigem uma solução que não é trivial - ainda que seja profundamente teológico-metafísica.

Como o canal pago Sy-Fy repete sem cessar a série Lost (produzida e exibida entre 2004 e 2010), resolvi acompanhá-la desde o início. Vendo todos os episódios, muita coisa na história faz sentido, mas o conjunto da trama exige um distanciamento analítico.

A série apresenta elementos que realmente chamam e prendem a atenção; mas, por outro lado, quando ela terminou, na sexta temporada, uma quantidade enorme de problemas e mistérios apresentados ao longo da história ficaram simplesmente sem solução, isto é, sem resposta, o que, claro, é muito insatisfatório. Além disso, a dubiedade moral de várias personagens incomoda muito – pelo menos, incomoda a mim. Isso tudo fez-me pensar em como entender a intrincada trama exposta ao longo das seis temporadas: as anotações abaixo são o resultado das minhas reflexões. 

Antes de mais nada, durante muito, muito tempo fiz questão de manter distância da história confusa apresentada na série. Eu só passei a assistir a ela porque, mais ou menos na terceira temporada (ou seja, em 2006 ou 2007), o ator que interpretou a personagem de Benjamin Linus – o inglês Michael Emerson – recebeu um prêmio por sua atuação e agradeceu de maneira tão gentil, tão cortês, que fiquei impressionado com seu comportamento e, a partir disso, com vontade de ver a atuação que lhe rendeu o prêmio.

Parece-me que a série teve três atrativos principais. O primeiro e mais evidente eram os seus curiosos mistérios: por exemplo, logo no episódio inicial vimos ursos polares em florestas tropicais, monstros de fumaça negra durrando árvores e assim por diante. Entretanto, esses mistérios, à medida que se acumulavam sem serem explicados com facilidade, acabavam não sendo tão atrativos quanto se poderia pensar à primeira vista (no meu caso, assim como no de várias outras pessoas, foi a esquisitice desses mistérios que me afastou da série desde o início). E não podemos deixar de lado o trocadilho: o nome "Lost" ("Perdidos") refere-se tanto às personagens retratadas na série quanto aos expectadores; uns e outros tentam entender o que se passa na "ilha".

O segundo fator atrativo é a estrutura narrativa da série, em que cada episódio entremeava ações comuns a todas as personagens e no presente com cenas no passado, específicas de uma das personagens principais. Na verdade, a partir da quarta temporada as cenas no passado deram lugar a cenas no futuro, enquanto na sexta temporada elas deram lugar a cenas de uma realidade paralela (que, depois, descobrimos que também são cenas no futuro). Enfim, essa alternância entre os tempos da narrativa deu um bom ritmo à série.

Em terceiro lugar, em parte como decorrência do elemento anterior, as personagens principais eram realmente interessantes, densas e carismáticas (cada uma à sua maneira). Assim, víamos os mocinhos enfrentando problemas pessoais e profissionais desafiadores, vilões realizando atos generosos, anti-heróis alternando entre a generosidade, a canalhice e a diversão etc. A estrutura narrativa com alternância entre ações no presente e no passado também permitia desenvolver mais e melhor essas personagens, indicando como e porquê elas chegaram a ser quem eram na história e, da mesma forma, como e porquê chegaram, afinal, à ilha em que estavam perdidos.

Passando agora para o entendimento da série: sem maiores rodeios, o quadro mais geral é dado pela “ilha”, que consiste em u’a metáfora para a mitologia monoteísta judaico-cristã (o deus caprichoso, ora violento, ora distante, do Velho Testamento; a divina trindade do Novo Testamento). Tudo isso tem a pista do “pastor cristão” (Christian Shepard) que aparece esporadicamente ao longo de toda a série. E, claro, há a referência evidente a Jacó (“Jacob”), que, na mitologia judaico-cristã, é o fundador dos israelitas e que também é irmão-rival de Esaú (a quem trapaceia e com quem entra em conflito). Jacó (“Jacob”) e seu preposto Ricardo (“Richard”) Alpert no fundo são criminosos; o grupo chamado “Os Outros” é um culto de fanáticos (também criminosos); Benjamin Linus e Charles Widmore meramente disputam a liderança do culto de fanáticos, estabelecendo uma guerra civil. Todas (todas!) as outras personagens são vítimas dessas quatro pessoas e de seus seguidores fanáticos. Por fim, esse conjunto é disfarçado com uma cobertura de confeitos de nomes de pensadores liberais (Edmund Burke, John Locke, David Hume, Jeremy Bentham - embora tenham faltado John Stuart Mill e seu pai James Mill; Thomas Hobbes e Francis Bacon) - que no fundo são pequenas piadas, com a função de distrair e confundir.

Esse quadro, todavia, só se torna claro quando se assiste a todos os episódios, em particular da quarta temporada em diante, e quando se deixam de lado os dramas pessoais e coletivos que constituem o grosso do drama.

Sumariando tudo, o que temos é isto:

-        um líder imortal que assassina o irmão e gera um conflito multimilenar insolúvel; que, extremamente à distância, estimula a criação de um culto de fanáticos por meio de um preposto; que se apresenta como um dos “mocinhos” e manipula a vida de dezenas de pessoas para que tenham vidas miseráveis e sejam obrigados a chegar à “ilha”; como líder imortal, é o “defensor” da “ilha” e assim é uma emanação dessa “ilha”;

-        um preposto tornado imortal que organiza o culto de fanáticos mas atua como eminência parda desse culto ao aceitar-indicar o líder da vez do culto de fanáticos;

-        um irmão imortal assassinado pelo líder imortal em última análise porque desejava sair da “ilha” e que, assim, vê-se transformado em um “monstro” de fumaça capaz de assumir a forma de pessoas mortas; na medida em que é um “monstro”, é também uma emanação da “ilha”;

-        um culto de fanáticos que manipula, chantageia, seqüestra, faz lavagem cerebral, estimula a síndrome de Estocolmo e/ou mata todos os que têm a desgraça de chegar à “ilha”, em particular durante sua guerra civil;

-        uma equipe de pesquisadores bem intencionados mas com inclinação para o misticismo e com alguns integrantes perturbados;

-        vários grupos de náufragos e de sobreviventes de acidentes aéreos que são manipulados e/ou que têm o azar de chegarem à “ilha”;

-        uma “ilha” que “age certo por meio de linhas tortas”, com “poderes” imensos mas de emprego arbitrário e caprichoso; que pode fazer muito mas também, por algum motivo, precisa ser “defendida”; que age às vezes diretamente, às vezes por meio de prepostos; que tem um “defensor” imortal adventício que é também a própria “ilha”; que tem prepostos, profetas, intérpretes e seguidores fanáticos.