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12 maio 2025

Monitor Mercantil: "Carreiras típicas de Estado" e estabilidade

O jornal carioca Monitor Mercantil publicou no dia 12.5.2025 um artigo de minha autoria intitulado "'Carreiras típicas de Estado' e estabilidade". 

Reproduzimos abaixo o texto. A versão eletrônica está disponível aqui: https://monitormercantil.com.br/carreiras-tipicas-de-estado-e-estabilidade/.

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“Carreiras típicas de Estado” e estabilidade 

Há algumas semanas fiz uma visita técnica à Biblioteca Pública do Paraná, em sua bela e imponente sede atual, inaugurada em 1954. Aprendi que tal sede foi construída para que a Biblioteca seja um centro cultural – o que de fato é, com grande competência –; mas, para o que nos interessa aqui, também descobri que o seu quadro técnico permanente, desde os anos 1980-1990, foi reduzido para cerca de 20% atualmente. Esse dado estarrecedor levou-me às reflexões abaixo.

Nos anos 1990, o então Ministro da Administração e Reforma do Estado, Luís Carlos Bresser Pereira, em seu projeto de reforma do Estado propôs a noção de “carreiras típicas de Estado”. Em dezenas de publicações, ele jamais indicou quais seriam de fato essas carreiras; entre percalços, sua proposta de reforma foi implementada pela metade, mas no final das contas a expressão “carreiras típicas de Estado” deitou raízes na administração pública, expandindo-se do nível federal para, principalmente, os níveis estadual e municipal.

Abstratamente, a concepção de “carreiras típicas de Estado” até faz sentido: são carreiras de serviços que só se podem realizar pelo Estado; assim, essas carreiras precisam ter servidores públicos com estabilidade (ou seja, enquadrarem-se no Regime Jurídico Único, o RJU, como “estatutários”). O conceito subjacente a isso é que as carreiras “não típicas” não precisam ter estabilidade, podendo ser celetistas (enquadrados na Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT); na verdade, as carreiras não típicas não precisam nem se constituir em “carreiras”. A diferença de enquadramento jurídico é profunda: a estabilidade dos estatutários é obtida após três anos de serviço efetivo, durante os quais são continuamente avaliados (e, diga-se de passagem, também são avaliados das mais diferentes maneiras após esse prazo); essa estabilidade também os torna impermeáveis às pressões políticas e, dessa forma, eles podem desenvolver de fato carreiras profissionais, elaboradas considerando o longo prazo, paralelamente a projetos públicos de longo prazo. Não há dúvida de que a estabilidade também beneficia o aumento dos salários.

Em contraposição, os servidores celetistas podem ser demitidos a qualquer momento (ad nutum). Isso impede todos os benefícios trazidos pela estabilidade: os servidores não têm perspectivas efetivas de longo prazo, não consideram a possibilidade de carreiras e, portanto, não incorporam em suas práticas profissionais a realização de projetos públicos de longo prazo. E, ao contrário do que o senso comum privatista argumenta, a demissão ad nutum é usada como arma contra os trabalhadores, a fim de manter os salários mais baixos.

Além disso, embora Bresser tenha sido ambíguo a respeito, falando em reforma “republicana”, os defensores da substituição dos estatutários pelos celetistas não por acaso falam em seguir os parâmetros da “iniciativa privada”. Ao fazerem-no, repetem o mito da eficiência privada – esquecendo-se das sucessivas mancadas da Enel em São Paulo, da Light no Rio de Janeiro, da Vale em Minas Gerais e da Oi no país inteiro, além de dezenas de outros exemplos cotidianos –, buscam sujeitar os servidores às conveniências políticas de plantão, desmobilizar os trabalhadores, baixar os salários e impedir projetos públicos de longo prazo.

Esses raciocínios são repetidos por políticos de direita (não por acaso, é o programa do novo partido do Centrão, o “União Progressista”) e mesmo por institutos de pesquisa que se dizem “republicanos”: ambos compartilham não saberem o que é o republicanismo nem o que é o bem comum.

Dito isso, voltemos a Bresser Pereira e à sua proposta. Como Bresser jamais definiu quais seriam as carreiras típicas de Estado, todo governo decide qual é a carreira típica. Há algumas funções, especialmente no nível federal, que por definição só podem ser executadas pelo Estado: militares, polícias federais, Casa da Moeda, Tesouro Nacional, Receita Federal, diplomatas. Não são muitas carreiras e, no fim das contas, não é muita gente. (Entretanto, eles, sim, fazem questão de terem salários e privilégios nababescos.)

O problema é que o grosso do serviço público prestado pelo Estado para a sociedade – isto é, pelo poder Executivo civil, que é de fato o governo e que se sujeita a controles públicos efetivos, ao contrário do poder Judiciário, do Ministério Público, do poder Legislativo e dos militares – não se enquadra nas “carreiras típicas de Estado”. São médicos, enfermeiros, assistentes sociais, sociólogos, museólogos, bibliotecários, economistas, pesquisadores, agrônomos, arquitetos, engenheiros, físicos, químicos, historiadores e até professores e dezenas de outras profissões de nível superior, além de uma gama gigantesca de servidores enquadrados em denominações mais genéricas e em cargos de nível médio e fundamental.

É essa quantidade enorme de servidores que presta de verdade os serviços para a população. Todos esses servidores, que respondem pela grande maioria dos serviços públicos, entram na categoria de “carreiras não típicas de Estado”; ou seja, cada vez mais eles podem ser passíveis de demissão com facilidade. Ou melhor, cada vez mais eles podem ser e são substituídos por celetistas e, ainda mais (e pior), por estagiários.

A substituição dos servidores permanentes, estatutários, por servidores não permanentes, celetistas, ocorre com mais facilidade nos níveis estadual e municipal que no federal: é o que se vê no dramático exemplo da Biblioteca Pública do Paraná. Mas a substituição dos estatutários por celetistas e estagiários não se dá pelos procedimentos ultraliberais, por decreto, como proposto durante os anos 1990 e novamente durante os anos do fascista; os meios adotados são mais insidiosos: simplesmente não há a reposição do pessoal que se aposenta. Em nome da mítica eficiência do setor privado – eficiência que busca o lucro e não o bem público – joga-se fora todo o conhecimento técnico acumulado pelos servidores com estabilidade.

O bem público é mantido e gerido pelo Estado com seus servidores, de carreiras “típicas” ou “não típicas”. Essa divisão, embora abstratamente pareça sensata, na prática serviu – e serve – apenas como instrumento para degradar o serviço público e piorar a qualidade dos serviços prestados. No dia a dia, quem serve a população na ponta, no nível da rua, são as carreiras “não típicas”; são esses servidores que justificam a existência e os custos do Estado.

Ora, se a noção de “carreiras típicas do Estado” não se sustenta e serve apenas para degradar os serviços públicos, parece claro que já passou da hora de abandonarmo-la e de pararmos de repetir essa lenga-lenga criminosa e antirrepublicana.

 

Gustavo Biscaia de Lacerda é Sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.


17 fevereiro 2025

Monitor Mercantil: Trump e a importância sistêmica dos EUA

No dia 17.2.2025 o jornal carioca Monitor Mercantil publicou um artigo de minha autoria, "Trump e a importância sistêmica dos EUA".

O texto está disponível no portal do periódico, aqui: https://monitormercantil.com.br/trump-e-a-importancia-sistemica-dos-eua/.

Reproduzimos abaixo o artigo.

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Trump e a importância sistêmica dos EUA

 Muito se tem falado sobre o retorno de Donald Trump à Presidência dos Estados Unidos; com certeza, muito ainda se falará, não somente porque seus valores, suas idéias e suas ações têm conseqüências enormes, como porque estamos longe de esgotar o que se deve falar a respeito. Nesse sentido, um aspecto que tem sido pouco destacado é a produção intencional de instabilidade internacional.

 A relevância das ações de Trump vincula-se diretamente à centralidade dos Estados Unidos no ambiente internacional e sua importância sistêmica. O que significa a “importância sistêmica”? Significa que eles ocupam um papel central na constituição do ambiente internacional. O sistema é uma totalidade com regras próprias, constituída por partes que são ao mesmo tempo autônomas e interdependentes: o ambiente internacional criado em 1945 e que, cada vez com mais dificuldade, subsiste até hoje, foi largamente patrocinado, apoiado e mantido pelos EUA.

Desde o final do século XIX os EUA foram tornando-se a principal economia do mundo, rivalizando àquela época com a Rússia e com o Japão e ultrapassando as nações da Europa ocidental; tal proeminência aumentou, confirmou-se e tornou-se indiscutível com as duas guerras mundiais. Mas uma coisa é ter importância econômica; outra coisa é ter importância política; outra coisa é ter importância sistêmica.

Até o final da II Guerra Mundial, os estadunidenses tinham importância econômica, mas resistiam a ter maior importância política e, em definitivo, apesar de alguns importantes e centrais esforços que se tornaram excepcionais (Woodrow Wilson e a Liga das Nações), não queriam ter importância sistêmica; isso tudo resumia-se em um isolacionismo militante. Essas disposições não aconteceram sem ambigüidades: o isolacionismo referia-se à Europa, mas não à América Central, em que os EUA eram fortemente intervencionistas; para os estadunidenses, o intervencionismo na América Central não tinha implicações políticas (!).

A partir de 1942, com F. D. Roosevelt, os Estados Unidos passaram a mudar a sua atitude frente ao mundo, passando do isolacionismo militante para um universalismo militante. Na base de ambas as posturas pode-se perceber a mesma concepção da excepcionalidade redentora estadunidense, em que os EUA seriam a bíblica “terra prometida”: o isolacionismo implica o nojo em relação ao resto do mundo, o universalismo implica o messianismo.

Após 1945 os EUA assumiram conscientemente o papel de constituidores e garantidores do sistema internacional, em múltiplos aspectos: político, econômico, militar, jurídico, cultural. Tudo isso se resumiu em algumas instituições: a Organização das Nações Unidas e o Conselho de Segurança; o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional; a Organização do Tratado do Atlântico Norte e muitas outras. Foi sem os EUA quererem e um pouco sem perceberem que se constituiu a Guerra Fria a partir do desafio soviético, até 1989-1991; mas, bem vistas as coisas, a Guerra Fria confirmou e reforçou o papel sistêmico dos EUA. Esse país voluntariamente financiou as instituições internacionais e cumpriu compromissos – muitos deles bastante custosos – para fazê-las valer: bancaram a reconstrução da Europa e do Japão, bem como a responsabilidade pela segurança militar dessas regiões; também se embrenharam em conflitos de outra maneira incompreensíveis, como as guerras da Coréia (1950-1953) e do Vietnã (1965-1975).

O papel de constituidor e garantidor do sistema internacional foi desempenhado com um misto de idealismo e de interesse nacional, combinação de qualquer maneira compartilhada pelos demais países. É necessário clareza aí: mesmo que tenha havido problemas e dificuldades (muitas delas bastante graves), o ambiente internacional criado em 1945 pelos EUA foi estável e promoveu em larga medida a paz e o desenvolvimento internacional. Isso gerou um capital político duradouro para os EUA.

Vistas assim as coisas, parece que a longo prazo o final da Guerra Fria paradoxalmente conduziu à ruína dos EUA. O colapso da União Soviética e do marxismo de modo geral representou a vitória do liberalismo, do individualismo e capitalismo estadunidense, assim como também acarretou um triunfalismo desmedido, a noção de que os Estados Unidos abrangeriam o planeta inteiro e o fim do idealismo político: o resultado dessa combinação foi o economicismo “sem fronteiras” neoliberal. A partir daí, as elites estadunidenses – as conservadoras republicanas, as “progressistas” democratas – avançam projetos políticos, sociais e econômicos incapazes de perceber os efeitos de longo prazo de suas ações, mesmo as sistêmicas. B. Clinton destruiu a regulação internacional da especulação financeira; H. Clinton promoveu o particularismo ressentido do identitarismo; G. W. Bush desprezou as fronteiras internacionais na guerra teológica ao terror teológico; D. Trump despreza tudo o que não é estadunidense.

Trump retoma um bairrismo paroquialista e isolacionista, demonstrando nojo ou ódio por tudo o que não é dos EUA. Não se sabe se ele realmente acredita nisso, mas com certeza ele pratica-os. Essa mentalidade é própria aos EUA do século XIX e meados do século XX; desde então, bem ou mal esse país moldou o mundo conforme os seus próprios valores. Assim, a destruição sistemática que Trump promove das instituições internacionais é cega, burra e retrógrada. Ela quer voltar ao isolacionismo do século XIX, agindo como se o mundo de hoje fosse a América Central desde sempre.

Essa mentalidade também é incapaz de reconhecer que, apesar dos efeitos negativos sobre os próprios EUA, as instituições internacionais atuais foram criadas e patrocinadas pelos EUA, para benefício também dos EUA, benefícios que incluem a estabilidade e boa vontade internacional. Ao destruir essas instituições, Trump destrói não só o legado de seu país, como também as bases do poder internacional dos EUA. E mais: também destrói o capital político acumulado na forma de boa vontade e confiança para com os Estados Unidos, além de gerar grande instabilidade. Por si só a destruição de Trump gera conflitos agressivos; se não fosse pouco, esse líder deseja conscientemente mais e mais os conflitos, que ele vê como provas de virilidade, firmeza e liderança (!). O resultado disso tudo é fácil de perceber e tem muitos exemplos históricos: os antigos amigos e aliados tornar-se-ão parceiros reticentes, depois aliados forçados, em seguida adversários velados e então adversários declarados. A Alemanha, em 1914 e em 1933-1939, exibiu a mesmíssima mentalidade.

Em tais condições, não há como “a América ser grande novamente”. Se fosse só para os EUA, isso não seria motivo de preocupação geral. Mas o papel central no sistema internacional desempenhado por esse país torna desastrosas as práticas de Trump. Ou, para usar uma expressão cara à teologia bíblica: essas práticas têm conseqüências apocalípticas. 

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.