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23 abril 2024

Ideal vs. real: como lidar?

No dia 2 de César de 170 (23.4.2024) realizamos a prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua undécima conferência (dedicada ao regime público).

No sermão abordamos a oposição entre o ideal e o real e como agir considerando a distância entre ambos.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/iKkQa) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/snJFS). O sermão começou aos 48 min 30 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

*   *   *

O ideal vs. o real: como lidar? 

-        A questão desta semana é ao mesmo tempo bastante simples e extremamente importante: como lidar com a oposição entre o ideal e o real?

o   Esse tema foi sugerido pelo nosso amigo Hernani G. Costa, nos seguintes termos: “O equilíbrio entre o preenchimento do ideal e a frustração de quando não o realizamos. Como agir diante disso? Como conjugar a vida vivida em nome de um ideal, diante de uma realidade que por tantas vezes parece desmenti-lo?”

-        Essa questão apresenta muitos aspectos, vários deles à primeira vista insuspeitos:

o   Em um primeiro lugar, há o aspecto moral (“psicológico”), em relação a como lidar com a distância entre o que se deseja e o que se obtém

o   Mas o aspecto moral implica o conhecimento da realidade (científico)

o   Também há as questões relativas à idealização da realidade, ou seja, são aspectos artísticos

o   Há também a idealização no sentido do que é bom, ou seja, é um outro aspecto moral

o   Tudo isso se reúne nas leis da filosofia primeira, em particular na primeira lei, a chamada “lei-mãe”

-        Comecemos pela oposição entre o real e o ideal, isto é, a oposição entre a realidade vivida e o que gostaríamos que ocorresse

o   Duas ou três observações iniciais:

§  Trata-se verdadeiramente de uma oposição entre o real e o ideal

§  Os comentários abaixo concentrar-se-ão no comportamento individual de cada um de nós

§  Além disso, concentrar-nos-emos nas dificuldades enfrentadas e, ainda mais, nos fracassos que por vezes temos que enfrentar

o   Todos vivemos enfrentando os desafios da vida; esses desafios são “desafios” porque nos impõem dificuldades, que devem ser enfrentadas, ou seja, que têm que ser enfrentadas: todos temos contas para pagar, por isso todos temos que trabalhar; temos contas para pagar porque temos necessidades que têm que ser satisfeitas: alimentação, moradia, saúde, transporte, relacionamentos, previdência, divertimentos

o   Os desafios que indiquei acima são todos eles materiais; mas é claro que viver é muito mais que só se preocupar com questões materiais; como sabemos, sem negar a importância desses aspectos, viver significa acima de tudo ter ideais, planos, projetos; significa viver orientado por valores e concepções do que é bom e belo

§  É importante dizê-lo com todas as letras para termos clareza a respeito: a vida orientada por valores e idéias existe por si só, independentemente das preocupações materiais e, na verdade, com freqüência até em oposição a elas

§  Citamos inicialmente as preocupações materiais apenas porque elas são fáceis de entender e porque elas realmente se impõem a todos

§  Mas é claro que há toda uma série de outras dificuldades na vida: entendimento falho da realidade; necessidade de cooperação com outras pessoas; disposições pessoais; acidentes tecnológicos; desastres naturais etc.

o   O que se apresenta, então, é uma oposição entre o que nós, como seres humanos, desejamos e aquilo que, enfrentando os desafios e as dificuldades, conseguimos realizar: às vezes conseguimos, às vezes fracassamos

o   Como se diz, o sucesso tem muitos pais e mães, mas o fracasso é sempre órfão: ninguém gosta de fracassar, seja porque evidentemente o fracasso conduz a um sentimento muito desagradável, seja porque ninguém gosta de assumir a responsabilidade pelo fracasso

§  O fracasso é desagradável; com freqüência sentimos a sensação de derrota, de incompetência, de incapacidade, até mesmo de merecimento no fracasso

o   Para lidarmos com isso e, de qualquer maneira, para obtermos o sucesso, temos que nos preparar das mais diferentes maneiras:

§  Temos que lembrar que cada pessoa é uma pessoa, cada empreendimento é um empreendimento diferente, cada situação é uma situação específica

§  É necessário conhecer a realidade, (1) para sabermos se nosso projeto é realizável; em seguida, (2.1) para sabermos quais as condições e as possibilidades de sucesso; (2.2) inversamente, quais as condições e as possibilidades de fracasso)

§  Assim, a partir do conhecimento da realidade e, de qualquer maneira, é necessário estarmos preparados, antecipadamente, para maiores dificuldades ou mesmo para um eventual fracasso

·         Essa preparação é tanto material quanto emocional

§  Caso fracassemos, é sempre bom e sempre importante lembrarmos a ótima observação de Winston Churchill: “O sucesso nunca é definitivo e o fracasso nunca é fatal”; em outras palavras, devemos estar sempre preparados para reerguer-nos, ou seja, devemos ter a resiliência

§  Todos podemos, e até devemos, lamentar a derrota durante um certo período de tempo; quanto mais importante essa derrota, maior o tempo despendido; mas o luto não pode durar para sempre e, no final das contas, trata-se de uma questão de amadurecimento: quem é mais maduro passa mais rapidamente pelo luto

·         Na verdade, inversamente, em certo sentido o amadurecimento consiste na capacidade de cada um de lidar com as dificuldades e com os fracassos, não se deixando abalar em demasia com eles, sabendo olhar para os fracassos com serenidade (o que não equivale a olhá-los com satisfação), superando-os com maior facilidade e seguindo em frente

§  Quando acontece o fracasso, ele pode ter ocorrido devido a muitos motivos: falta de preparo intelectual, falta de preparo moral, falta de preparo técnico, falta de cooperação, eventos inesperados

§  É sempre importante avaliar cuidadosamente cada uma dessas possibilidades, para (1) determinar os diversos fatores que conduziram ao fracasso: com isso, (2) é possível determinar as responsabilidades; (3) em uma eventual nova tentativa, esses fatores têm que receber mais atenção; finalmente, (4) conseguir determinar as diversas responsabilidades integra o processo de luto e, daí, o de resiliência e amadurecimento

-        Em suma, do ponto de vista estritamente individual, na oposição entre o ideal e o real, o problema que nos conduz a considerar o “como lidar?” é como lidar com as dificuldades e, em particular, com o fracasso

o   A resposta para isso é tão simples de enunciar quanto difícil de executar: preparar-se o máximo possível com antecedência em termos morais (“psicológicos”), intelectuais e práticos e, no caso do fracasso, saber avaliar os fatores que conduziram ao fracasso

o   O entendimento intelectual ajuda na preparação moral prévia e, depois, no caso de fracasso, auxilia na resiliência

-        Como sugerimos no início, os comentários acima apresentam parte da questão; modestamente fizemos observações que seriam um começo de apoio: mas foi apenas um começo

o   Vejamos agora outros aspectos do tema – aspectos que são fundamentais de serem afirmados em conjunto com as observações acima, a fim de lidar-se de maneira adequada (digna, madura, eficiente) com as dificuldades e os fracassos na vida

o   Esses outros aspectos são: (1) aspectos intelectuais e científicos; (2) questões de moralidade; (3) aspectos artísticos

-        Qualquer projeto exige que conheçamos a realidade:

o   O conhecimento da realidade, seja abstrato, seja concreto, é condição fundamental para qualquer atividade e, bem vistas as coisas, para a vida

o   A realidade, nesse caso, consiste principalmente nas condições objetivas do mundo, ou seja, aquelas que não dependem da vontade humana (e que, com freqüência, opõem-se à vontade humana)

§  Para evitar confusões e mal-entendidos: as condições sociológicas gerais e também as morais integram, no presente caso, as condições objetivas

o   Como vimos antes, é necessário conhecer a realidade para podermos determinar as possibilidades de êxito de qualquer projeto e, inversamente, as suas possibilidades de fracasso; com isso, podemos preparar-nos em termos práticos (reunindo os elementos necessários para o sucesso do empreendimento) e em termos morais (ficando de sobreaviso para as dificuldades e, ainda mais, para um eventual fracasso – e, assim, criando uma espécie de “almofada” moral)

o   O conhecimento abstrato da realidade consiste nas leis naturais, isto é, das relações necessárias de sucessão ou coexistência dos fenômenos

§  O conhecimento da realidade (abstrato e concreto) conduz a uma idealização da realidade, basicamente em termos apenas intelectuais: o “ideal”, aí, é uma elaboração intelectual e simplificada da realidade

o   Esse conhecimento tem que estar ligado sempre a uma regra prática de sabedoria, que consiste em determinar o que podemos e o que não podemos fazer; ou, dito de outra forma, o que podemos e o que não podemos mudar

§  Na verdade, a determinação do que podemos e do que não podemos mudar antecede sempre a proposição de qualquer projeto

§  Em relação ao que podemos mudar, seguindo as leis naturais, é necessário avaliar se é moralmente correto; no que se refere ao que não podemos mudar, a única possibilidade é a digna resignação

·         Em outras palavras, a digna submissão (a digna aceitação) é sempre o único caminho possível tendo em vista as leis naturais, seja reconhecendo as possibilidades de atuação, seja reconhecimento a impossibilidade de ação

§  Inversamente, não faz sentido desejar algo que vai contra as leis naturais: desejar algo francamente impossível implica uma vontade caprichosa e o fracasso certo

·         A “resiliência” nesse caso consiste não em retomar o projeto, mas em abandoná-lo e retomar a vida com outros objetivos

·         A maturidade, nesse caso, consiste em reconhecer a inutilidade dos esforços e a necessidade de mudar de objetivos: não há dúvida de que isso pode exigir maiores esforços, que, por sua vez, aumentarão o “grau” de maturidade

-        Também há os vários aspectos relativos à moralidade dos ideais

o   Tudo o que comentamos acima pressupõe que os nossos objetivos são moralmente corretos

o   Mas é claro que a avaliação moral deve sempre ser feita – e, além disso, deve sempre ser feita antes de qualquer outra avaliação

o   A moralidade das ações é sempre dada pelo altruísmo: melhorará o bem-estar? Não prejudicará? Estimulará o altruísmo? Não estimulará o egoísmo?

§  Vale notar que a “bondade”, aí, consiste no altruísmo e que a “maldade” consiste no estímulo direto e único do egoísmo (incluindo o sadismo); não há que falar em “bondade” e “maldade” como se elas existissem por si sós, como abstrações personificadas (ou seja, metafísicas)

o   Os valores e as idéias que são moralmente corretos – ou seja, que estimulam e/ou realizam o altruísmo – podem tornar-se “ideais”, ou seja, concepções (1) abstratas da realidade que (2) indicam os bons caminhos a seguir

§  É importante insistir: não é porque algo é factível que também é moralmente desejável e que, portanto, deve ser feito

o   É igualmente importante lembrar que, no caso de projetos moralmente corretos, com freqüência um fracasso momentâneo não pode impedir a continuidade dos esforços: em outros termos, um fracasso momentâneo não nega nem invalida o ideal

§  Isso se aplica às dificuldades, aos desastres e também às injustiças da vida

§  A palavra “momentâneo” é central aqui: por vezes, um ideal factível não se realiza devido a dificuldades materiais, a dificuldades sociais amplas, a dificuldades políticas; mas cumpre perceber que, se em um determinado momento algo não é possível, em outro momento, e/ou com outros esforços, esse projeto pode vir a realizar-se

o   Ainda no que se refere a moral e à oposição entre o ideal e o real:

§  Como “agimos por afeição”, todas as nossas ações são moralmente motivadas – daí a necessidade de que essa motivação seja altruísta

§  Mas é claro que os sentimentos não dão apenas a partida nas ações: são os sentimentos que nos mantêm atuantes, mesmo (e até principalmente) em face das adversidades

·         Os bons sentimentos de nossos familiares e nossos amigos confortam-nos e apóiam-nos, seja durante as dificuldades, seja no fracasso

·         Assim, é importante lembrar: não existimos no vazio, ou melhor, não existem indivíduos, mas apenas agentes da Humanidade; todas as nossas ações são propostas, elaboradas e levadas a cabo na, pela e para a Humanidade

§  Além dos sentimentos e das idéias, a natureza humana atua por meio dos instintos práticos: a coragem, a prudência e a perseverança

·         A coragem leva-nos a agir; é o impulso para a frente

·         A prudência são os cuidados que tomamos, para evitar problemas (ou problemas excessivos, ou problemas desnecessários, ou problemas inesperados)

·         A perseverança é o que nos mantêm em atividade, ao longo do tempo e a despeito das dificuldades

o   Assim, a resiliência é uma forma de perseverança, em que temos que retomar nossas atividades quaisquer e, se for o caso, retomarmos os esforços das ações que anteriormente fracassaram

-        Há ainda outros aspectos a considerar na oposição entre o ideal e o real; todavia, esses outros aspectos serão somente citados aqui

o   As observações acima se concentram nos indivíduos, nas dificuldades morais que cada um enfrenta ao realizar seus projetos e, em particular, ao fracassar: mas, como Augusto Comte afirmava desde o início de sua carreira e como consagrou na Religião da Humanidade, de real só existe a Humanidade

§  Isso significa que todos os projetos só podem realizar-se pela Humanidade, devido aos inúmeros fatores envolvidos:

·         O altruísmo realiza diretamente a Humanidade

·         Os projetos construtivos (não violentos, não destruidores) desenvolveram-se ao longo da história

·         Da mesma forma, nossas concepções sobre a realidade também se desenvolveram ao longo da história

·         Qualquer projeto implica, sempre, a coletividade, seja nas idéias, seja nas palavras, seja na necessária colaboração de qualquer atividade

·         Por fim – e de maneira central para esta prédica –, no caso de maiores dificuldades e/ou de fracasso, o amparo é sempre dado pela Humanidade, seja com o afeto que nossos amigos e familiares dão, seja com as idéias e os valores que nos confortam

o   Como vimos e como todos sabemos, a palavra “ideal” apresenta uma importante ambigüidade:

§  Ela pode ser uma concepção abstrata da realidade e/ou pode ser u’a meta considerada correta

·         Temos aí as partes que cabem ao cérebro e ao coração

·         Vale lembrarmos a bela frase de Vauvenargues: “os grandes pensamentos provêm do coração”

§  Além disso, há o espaço para a imaginação e, portanto, para as artes

·         Não podemos esquecer que as artes idealizam a realidade, ou seja, descrevem um cenário que simplifica o mundo e que, ao mesmo tempo, é desejável

·         As artes, então, ajudam a inspirar-nos e a ter coragem; enquanto enfrentamos dificuldades, elas confortam-nos, de modo que apóiam a perseverança; por fim, no caso do fracasso, é fora de dúvida a importância que elas apresentam para o conforto moral, para a resiliência e para o nosso amadurecimento

o   O papel da idealização – considerando todos os aspectos indicados acima, incluindo suas relações com a realidade – é resumido, sintetizado e/ou pressuposto na primeira lei da filosofia primeira, cuja importância é tão grande que é chamada de “lei-mãe”: “Formar a hipótese mais simples e mais simpática que comporta o conjunto dos dados a representar”        

05 março 2024

O que significa a palavra "positivo"?

No dia 9 de Aristóteles de 170 (5.3.2024) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua décima conferência, dedicada ao regime privado.

Na parte do sermão abordamos a palavra "positivo".

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/27kuc) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/0itua). O sermão começou aos 51 min 30 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral estão disponíveis abaixo.

*   *   *


O que significa a palavra “positivo”? 

-        Na prédica do dia 2 de Aristóteles de 170 (27.2.2024) procuramos responder de maneira elementar à questão: “o que é o espírito positivo?

o   Na ocasião apresentamos características gerais do espírito positivo em si; para isso, fizemos referência à palavra “positivo”, cujos sentidos definidos por Augusto Comte apenas citamos, sem nos estender a respeito

o   Então, aproveitaremos esta prédica para tratar especificamente da palavra “positivo”, comentando com algum vagar cada um dos seus sentidos

§  Também faremos algumas observações adicionais sobre a palavra “positivo” e sobre um certo emprego cotidiano de espírito positivo

o   Um aspecto que de modo geral é bastante claro no Positivismo e que se tornará muito evidente ao tratarmos da expressão “positivo” é a ambigüidade (ou polissemia) intencional de muitas palavras empregadas por Augusto Comte

§  Essa polissemia constitui a riqueza do Positivismo e permite também o que Angèle Kremer-Marietti chamou de “método caleidoscópico” para entender o Positivismo

-        Esta prédica terá duas partes um pouco distintas, que mantêm relação entre si, mas não são decorrentes uma outra:

o   Inicialmente trataremos mesmo da palavra “positivo”;

o   Em seguida abordaremos dois outros temas que valem a pena citar por si sós, mas que guardam uma relação um pouco indireta com o tema principal desta prédica:

§  Buscar a “positividade” em vez de apenas o Positivismo

§  Um processo administrativo que busca(va) a propriedade intelectual da palavra “positivo” no Brasil

-        Comecemos notando que a expressão “conhecimento positivo” foi inicialmente utilizada por Francis Bacon (1561-1626) – por exemplo, em seu Novum Organon (1620) –, referindo-se precisamente aos conhecimentos positivos, no sentido amplo de “real”, “certo”

-        Dito isso, Augusto Comte tratou dos sentidos da palavra “positivo” em pelo menos duas ocasiões: no Discurso sobre o espírito positivo (1844) e, depois, no Apelo aos conservadores (1855)

o   Embora seja uma definição posterior, começaremos pela do Apelo, por ser mais completa e mais “canônica”

-        Eis o trecho em que Augusto Comte apresenta no Apelo (p. 25) os sentidos da palavra “positivo”:

“A nova síntese pode ser previamente caracterizada mediante uma suficiente combinação entre as sete qualificações irrevogavelmente condensadas sob o título positivo, que de hoje em diante significa ao mesmo tempo real, útil, certo, preciso, orgânico, relativo e mesmo simpático. Comparando-se especialmente cada uma delas com a seguinte, o primeiro par indica as condições fundamentais, o segundo os atributos intelectuais e o terceiro as propriedades sociais da doutrina universal; a sucessão delas conduz a assinalar a fonte moral dessa doutrina pela acepção final”.

-        Antes de tratarmos dos sentidos específicos da palavra “positivo”, é importante lembrarmos que eles não são apenas intelectuais, ou melhor, não são intelectualistas

o   A palavra positivo refere-se às nossas concepções quaisquer, que servem para esclarecer os sentimentos e orientar as atividades práticas (conforme, por exemplo, a máxima “agir por afeição e pensar para agir”)

-        Comparando cada sentido com seu sentido oposto, podemos organizar o parágrafo acima neste quadro:

 

N.

Acepção

Opõe-se a

Estatuto teórico

1.                    

Real

Irreal (fictício)

Condições fundamentais

2.                    

Útil

Inútil

3.                    

Certo

Incerto

Atributos intelectuais

4.                    

Preciso

Vago

5.                    

Relativo

Absoluto

Propriedades sociais

6.                    

Orgânico

Crítico

7.                    

Simpático

Antipático (ou egoísta)

Fonte moral

FONTE: o autor, a partir de Comte (1899, p. 25-28).

 

-        Essa seqüência é a que se constituiu do ponto de vista histórico; mas, como toda classificação positiva, ela pode ser lida tanto de baixo para cima (da realidade para a simpatia) quanto de cima para baixo (da simpatia para a realidade):

“As sete acepções do termo fundamental da sã filosofia [positivo] são de tal maneira solidárias que a sucessão delas poderia igualmente ser instituída conjugando cada uma com a precedente para terminar na primeira, posto que a marcha que acabo de seguir seja historicamente preferível” (p. 27-28)

-        A organização dos sentidos em pares corresponde à prescrição de Augusto Comte de raciocinar, sempre que possível, a partir de oposições duais

o   O par fundamental é real e útil; são duas condições que fundam os sentidos mas que se completam: ou melhor, a segunda limita a primeira:

§  O real corresponde ao que existe efetivamente ou ao que se baseia na realidade; é um atributo ao mesmo tempo intelectual e prático

·         O real opõe-se ao irreal, ou ao quimérico

§  O útil delimita o âmbito do real àquilo que pode servir para o melhoramento das condições do ser humano; é um atributo acima de tudo prático, embora evidentemente tenha aspectos intelectuais e até afetivos

·         O útil opõe-se ao inútil, ou ao ocioso

·         Evidentemente, o critério fundamental da utilidade é a utilidade social, ou seja, as melhorias que podem surgir para a sociedade

·         Essas melhorias são, pela ordem de facilidade decrescente e de importância/dignidade crescente: materiais, físicas (biológicas), intelectuais e acima de tudo morais

§  Eis o que Augusto Comte comenta a respeito da utilidade (p. 26):

“Mas, no estado normal, a utilidade deve sempre completar a prescrição fundamental, pois que a maioria das pesquisas verdadeiramente acessíveis são essencialmente ociosas. A filosofia prática adiantou-se, sob esse aspecto, à filosofia teórica; porque a condição inicial achando-se aí espontaneamente preenchida, a atenção teve que concentrar-se sobre a outra, que não podia ser abstratamente apreciada antes de nossa plena madureza”

§  Em uma abordagem inicial podemos entender a utilidade como um critério restritivo da realidade, que se vê, assim, limitada; mas os desenvolvimentos posteriores do Positivismo – em particular, os da Síntese subjetiva (1856) – orientam esses parâmetros para direções um pouco diferentes:

·         Devemos insistir que a utilidade afirmada aqui é a utilidade social; dessa forma, mais que restringir a realidade, a utilidade estimula diretamente o altruísmo, ao orientar as concepções quaisquer para o servir aos outros

·         Da mesma forma, a realidade não deve ser entendida como um critério restritivo: as concepções humanas devem respeitar a realidade, embora não necessariamente se aferrar a ela: o que mais importa é que as concepções não desrespeitem a realidade

o   Nesses termos, a utilidade pode – e deve – inspirar concepções que auxiliam o ser humano, que não são em si mesmas “reais” (isto é, existentes), mas que, em seu caráter imaginativo, não desrespeitam a realidade

·         A definição de “lógica positiva” segue precisamente esses parâmetros ampliados:

“Para caracterizar a lógica relativa que convém à síntese subjetiva, é preciso comparar a sua definição normal com o esboço que formulei, seis anos atrás, na introdução da minha obra principal [Sistema de política positiva]. Guiado pelo coração, eu já ali proclamei e mesmo sistematizei a influência teórica do sentimento. Uma apreciação mais completa fez-me também consagrar, no mesmo lugar, o ofício fundamental das imagens nas especulações quaisquer. Sob este duplo aspecto, o referido esboço foi satisfatório pois abraçou o conjunto dos meios lógicos, retificando a redução que deles fazia a metafísica que só empregava os sinais. Toda a imperfeição desse esboço consiste em que o destino de tais meios achou-se excessivamente restrito, por não me haver eu desprendido bastante dos hábitos científicos. Parece, por essa definição, que a verdadeira lógica limita-se a desvendar-nos as verdades que nos convêm, como se o domínio fictício não existisse para nós, ou não comportasse nenhuma regra. Nós devemos sistematizar tanto a conjectura quanto a demonstração, votando todas as nossas forças intelectuais, bem com as nossas forças quaisquer, ao serviço continuo da sociabilidade, única fonte da verdadeira unidade.

Reconstruída convenientemente, a definição da lógica, incidentemente formulada na página 448 do tomo primeiro da minha Política positiva, exige duas retificações conexas, não no que se refere aos meios mas sim no que se refere ao objetivo. Deve-se substituir nela desvendar as verdades por inspirar as concepções, para caracterizar a natureza essencialmente subjetiva das construções intelectuais, e a extensão total do seu domínio, não menos interior do que exterior. Com esta dupla retificação, a minha fórmula inicial torna-se plenamente suficiente. Então somos finalmente conduzidos a definir a lógica: O concurso normal dos sentimentos, das imagens, e dos sinais, para inspirar-nos as concepções que convêm às nossas necessidades morais, intelectuais e físicas. Não obstante, esta definição exige duas explicações conexas, a primeira relativa aos meios que ela indica, a segunda relativa ao fim que assinala” (Síntese subjetiva, p. 26).

·         Uma aplicação prática dessas concepções ampliadas de realidade e utilidade no âmbito da lógica positiva corresponde à Trindade Positiva: são concepções úteis, imaginativas e que não desrespeitam a realidade

o   O segundo par corresponde aos “atributos intelectuais”: certeza e precisão

§  Como vimos no sentido geral que Francis Bacon atribuiu à palavra “positivo”, além da realidade, ele entendia-a como significando “certa”

§  A certeza e a precisão muitas vezes são confundidas, mas a primeira é mais importante que a segunda

·         Um exemplo simples esclarece a diferença: todos temos certeza de que morreremos algum dia, mas não temos precisão de quando isso ocorrerá

§  Assim, a certeza opõe-se à incerteza, ou à vagueza

§  A precisão opõe-se à imprecisão

o   Os sentidos quinto e sexto constituem as “propriedades sociais” da palavra “positivo”: são o relativo e o orgânico

§  Na verdade, bem vistas as coisas, esses dois sentidos são não apenas sociais, mas são também intelectuais e morais

§  O relativo opõe-se a absoluto; ele indica por um lado que o ser humano constitui-se por meio de relações e, por outro lado, que só conhecemos o que é relativo (ou seja, relacional)

·         O relativismo é um atributo exclusivo da positividade e do conhecimento positivo

§  O orgânico opõe-se ao que é crítico ou destruidor

·         O aspecto orgânico, ou construtivo, da positividade era implícito quando da constituição das ciências inferiores; mas a partir do momento em que a Sociologia e a Moral passaram a estar em questão, esse atributo (organicidade) teve que se manifestar de maneira explícita (e até militante)

·         Embora a teologia possa ter uma ação destruidora, a organicidade opõe-se mais claramente à metafísica

·         Vejamos o que Augusto Comte diz a respeito desses dois atributos (p. 26-27):

“Antes de sua extensão decisiva aos fenômenos sociais, o espírito positivo se havia sempre mostrado profundamente orgânico; aspirando por toda parte a construir, ele não afastou as causas senão substituindo-lhes as leis, sem desenvolver, em caso algum, um caráter diretamente crítico. Mas esta aptidão manifestou-se sobretudo desde que ele se apoderou de seu principal domínio, reparando as devastações que a impotência teológica e a discussão metafísica tinham gradualmente infligido ao conjunto das noções sociais. O caráter relativo, por toda parte inerente à sua tendência orgânica, teve que prevalecer especialmente em sua construção da filosofia da história, necessariamente incompatível com a natureza absoluta da antiga síntese”.

o   O último sentido é o simpático; ele opõe-se a antipático, a egoísta, a estritamente racionalista

§  A simpatia é o aspecto-síntese de todos os atributos e indica a fonte e a destinação morais do Positivismo

§  Como indicamos acima, a seqüência dos sete atributos pode ser lido de baixo para cima (da realidade para a simpatia), conforme o critério histórico, quando de cima para baixo (da simpatia para a realidade) conforme o critério moral

§  Vejamos o que Augusto Comte diz a respeito da simpatia (p. 27-28):

“A conexidade íntima destas duas propriedades [organicidade e relativismo] permite apreciar como é que elas se ligam à qualidade final, única contestada hoje pelos positivistas incompletos. Porquanto, é tão impossível ficarmos relativos sem tornarmo-nos simpáticos, como ficarmos orgânicos sem tornarmo-nos relativos, sobretudo a respeito do campo principal de nossas concepções, em que só o amor nos dispõe a construir e nos permite apreciar. As sete acepções do termo fundamental da sã filosofia [positivo] são de tal maneira solidárias que a sucessão delas poderia igualmente ser instituída conjugando cada uma com a precedente para terminar na primeira, posto que a marcha que acabo de seguir seja historicamente preferível”

-        Antes dessa explicação, ele já esboçara uma outra, um pouco menor (com seis atributos) e um pouco diferente, no Discurso sobre o espírito positivo (1844)

 

N.

Acepção

Opõe-se a

1.                    

Real

Irreal (fictício)

2.                    

Útil

Inútil

3.                    

Certo

Incerto

4.                    

Preciso

Vago

5.                    

Construtivo

Destrutivo (ou negativo)

6.                    

Relativo

Absoluto

 

o   As duas diferenças entre a relação acima (de 1844) e a apresentada antes (de 1855) são estas:

§  Em 1844 Augusto Comte empregava a palavra “construtivo” no lugar de “orgânico”

§  Em 1844 não havia menção à palavra “simpático”

·         É importante termos clareza de que a ausência da simpatia na relação acima não corresponde à ausência desse atributo nas concepções comtianas, como fica extremamente claro no “Prefácio” que Paul Arbousse-Bastide escreveu para esse livro[1]

·         Esse autor nota que desde o final da década de 1830, no curso oral de filosofia positiva e no curso de Astronomia popular, Augusto Comte afirmava a base moral-afetiva da racionalidade humana

-        Agora que vimos os sentidos da palavra “positivo”, ainda tratando um pouco dela, podemos mudar de âmbito de reflexão

o   O que nos interessa considerar agora não é exatamente uma aplicação prática e específica da positividade, mas um comportamento que vale a pena ser estimulado e que tem a ver com a positividade

o   Enfim: um hábito muito comum que costumamos adotar quando viramos positivistas: procurar em livros, textos, notícias etc. referências a Augusto Comte, ao Positivismo, à Religião da Humanidade

§  Não há dúvida de que essa procura é importante por si só

§  Entretanto, ela costuma esgotar-se em si mesma, isto é, na mera procura de referências a nós

§  Além de esgotar-se em si mesma, ela apresenta um aspecto negativo, no sentido de que, caso o autor do documento não cite Augusto Comte (e/ou o Positivismo e/ou a Religião da Humanidade) ou, no caso de citar, faça uma citação errada, uma referência negativa etc., tal citação conduz a que tendamos a desconsiderar a obra em questão

§  Essa desconsideração não é injustificada, na medida em que o Positivismo estabelece parâmetros morais, políticos e intelectuais de avaliação e, portanto, na medida em que uma obra qualquer desconsidera ou despreza o Positivismo, o que essa obra faz é desconsiderar ou desprezar esses parâmetros positivos de avaliação

§  Entretanto, por outro lado, a despeito dos possíveis (e, com freqüência, efetivos) deméritos das obras que nos criticam, o fato é que nós não podemos abrir mão dos nossos próprios parâmetros de conduta e de sua aplicação, em particular o relativismo

o   Dessa forma, mais que procurar apenas o “Positivismo”, convém também, ou mais, procurar a positividade

§  A procura da positividade e não só do “Positivismo” rende mais porque não se limita a perguntas de sim/não (há ou não referências? Elas são corretas ou não? Elas são favoráveis ou não?), mas, de maneira mais ampla, permite avaliar o grau de aproximação conosco e, assim, permite estabelecer um diálogo – em particular em obras que, mesmo que não nos citem, de diferentes maneiras aproximam-se de nós

-        Para concluir esta prédica, uma última observação sobre um emprego específico da palavra “positivo” no Brasil:

o   No Brasil as leis de propriedade intelectual permitem que palavras de uso comum sejam registradas por empresas particulares

o   Assim, há alguns anos o grupo Positivo quis registrar para si as palavras “positivo” e “positividade”

§  A intenção dessa pretensão é explorar comercialmente a palavra e controlar o seu uso público – em particular contra o Positivismo no Brasil

§  Evidentemente, em tal pretensão, nós, positivistas, estaríamos impedidos de usar a palavra que nos define em termos religiosos, filosóficos, políticos morais

§  A pretensão do grupo Positivo estendia-se não apenas à palavra “positivo”, mas às suas flexões e, por extensão, também a “positivismo”!

o   É necessário dizê-lo com todas as letras: evidentemente, embora isso seja permitido pela lei, isso é um verdadeiro crime moral

o   A legislação brasileira deveria seguir o exemplo da de países como a Coréia do Sul, que veda o registro comercial das palavras comuns, exigindo o emprego comercial apenas de palavras “novas”, como “blu-ray” no lugar de “blue-ray”

-        Em suma:

o   A palavra “positivo” tem sete sentidos, que devem ser necessariamente conjugados para que ela faça sentido efetivo: real, útil, certo, preciso, relativo, orgânico e simpático

§  Isso indica a riqueza do Positivismo, por meio de uma intensa polissemia

o   No âmbito da positividade, uma aplicação pequena mas importante é a substituição do hábito espontâneo de buscar referências ao Positivismo, a A. Comte, à Religião da Humanidade pelo hábito de procurar traços de positividade nas obras

§  É claro que tal substituição não se dá negando os erros, as críticas, os problemas de quem nos cita (e cita errada e/ou negativamente)

o   A legislação comercial brasileira permite que – contra o bem público e contra o Positivismo – palavras comuns tornem-se propriedade intelectual de empresas privadas, que passam a controlar e a explorar o seu uso

§  Entre essas palavras está “positivo”, que é objeto da ambição do um grupo comercial

§  Embora seja legal, isso é totalmente imoral

§  Evidentemente, no que se refere a esse aspecto, a legislação comercial brasileira é imoral e atenta contra os mais elementares interesses universais e públicos         



[1] ARBOUSSE-BASTIDE, Paul. 1990. A grande iniciação do proletariado. In: COMTE, Augusto. Discurso sobre o espírito positivo. São Paulo: M. Fontes.