Além disso, como também observo abaixo, o Positivismo é habitualmente empregado como o bode expiatório preferencial por todos os grupos político-intelectuais que querem encontrar algum responsável pelos problemas nacionais. Esse comportamento é intelectualmente desonesto e politicamente irresponsável, sem contar que, na quase totalidade das vezes, é historicamente mentiroso. Já passou da hora de os autodenominados "intelectuais" brasileiros abandonarem esse hábito infantil, de amadurecerem e de passarem a valorizar as inúmeras, enormes e profundas contribuições do Positivismo para o país, para o Ocidente e para o mundo.
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Positivismo e falsa analogia das crises de
1904 e 2020
Desde o início do governo Bolsonaro, devido à renovada
importância que os militares assumiram no poder Executivo federal, o
Positivismo voltou à baila. Entretanto, esse retorno do Positivismo dá-se mais
por referências oblíquas e insinuações que por alguma influência direta e, mais
importante, por alguma influência efetiva. Em outras palavras, o Positivismo
serve como bode expiatório, como uma justificativa ad hoc para todos os incontáveis e injustificáveis erros, problemas
e desvios que o governo apresenta. O mais notável é que esse papel atribuído ao
Positivismo é mobilizado tanto pelo próprio governo e por seus apoiadores –
basta ver as virulentas e assustadoras referências feitas por filhos do Presidente
da República, pelo seu guru-astrólogo e pela grande imprensa conservadora –
quanto por setores “liberais” e mesmo oposicionistas: no que se refere ao
governo e aos conservadores, já tive ocasião de publicar uma refutação mínima
(na Gazeta
do Povo e no Monitor
Mercantil); agora o sociólogo Simon Schwartzman retoma a tradição do
liberalismo conservador brasileiro para, com argumentos que parecem inspirados
no realismo mágico, atribuir ao Positivismo vícios da política nacional.
No artigo “A revolta da vacina”,
publicado em O Estado de S. Paulo de
12.6.2020, Schwartzman afirma que a atual politização da crise sanitária
encontra um precedente na Revolta da Vacina de 1904; supostamente em ambos os
episódios notam-se políticos radicalizados afirmando a falta de eficácia de
medidas sanitárias recomendadas pelas autoridades públicas, estimulando a
resistência do comum do povo a essas medidas, com o apoio de militares. Embora
décadas atrás Schwartzman tenha feito algumas pesquisas de história da ciência
no Brasil, ele limita-se a citar literatura de segunda e terceira mão para reiteradamente afirmar que o
Positivismo como doutrina e os positivistas como agentes teriam apoiado os
radicais do início da I República – os “jacobinos” – na Revolta; essa
insistência em referir-se ao Positivismo tem o claro e evidente efeito de
sugerir que essa mesma doutrina inspiraria ainda hoje o radicalismo conservador
da extrema direita. Vamos aos fatos, então.
Em primeiro lugar, o procedimento de Schwartzman é
sofístico. O atual governo é ao mesmo tempo ultraconservador
(com sua apologia da “tradição” e da monarquia (sociedade de castas,
escravismo, nacionalismo estreito), mas contra todas as tradições republicanas efetivamente
afirmadas pelo Positivismo (pacifismo, tolerância, fraternidade universal,
racionalidade científica, civilismo, respeito ao meio ambiente, aos índios, às
minorias, às liberdades de pensamento e de expressão)) e revolucionário (com o combate ativo e militante contra os
“progressistas”, o “globalismo”, o “marxismo cultural”); assim, Schwartzman é
incapaz, por ser impossível, de provar qualquer influência do Positivismo no
governo Bolsonaro. Dessa forma, o sociólogo mineiro sugere um paralelo entre duas situações históricas; essa mera
sugestão atua como “prova” de seu argumento. Ele não demonstra; ela faz uma
afirmação e deixa para o leitor o trabalho de tirar as consequências, que,
todavia, permanecem sem qualquer base empírica. Vale notar que esse mesmo
procedimento está na base de todas as teorias da conspiração – que, como
tristemente se sabe, têm enorme relevância política nos dias atuais.
Mas, em segundo lugar, é claro que a atuação dos
positivistas na I República e, de modo particular, na Revolta da Vacina está
muito mal contada por Schwartzman. Em 1904 o médico Oswaldo Cruz decidiu
combater a febre amarela, empregando o que era então uma técnica inovadora: a
inoculação de patógenos enfraquecidos por meio de injeções, a fim de gerarem-se
anticorpos contra a doença. Ora, esse procedimento da vacina foi estabelecido
ao longo do século XX como correto e necessário; todavia, no início do século
XX isso não estava firmemente estabelecido como adequado e seguro e – isto é o
principal – os procedimentos adotados por Oswaldo Cruz eram anti-higiênicos e profundamente autoritários. As exitosas campanhas de
vacinação levadas a cabo no Brasil pelo menos desde a década de 1980 buscam
conscientizar a população da necessidade da vacinação; em outras palavras, tais
campanhas postulam o caráter voluntário da vacinação: respeita-se a livre
decisão individual e familiar. Ao mesmo tempo, a aplicação das vacinas é
cercada por inúmeros protocolos higiênicos, incluindo aí a assepsia da pele (no
caso da inoculação da vacina via injeções) e o descarte de seringas e agulhas
descartáveis.
Nada disso estava
presente na campanha de 1904: as agulhas e as seringas eram reutilizadas (e
sem assepsia entre uma aplicação e outra) e, mais importante, os agentes
sanitários forçavam os cidadãos a serem vacinados, injetando à força as agulhas
em seus corpos, invadindo casas e violentando as pessoas para submeterem-se aos
seus desígnios; evidentemente, essa violência era particularmente empregada
contra a população pobre – que, ao fim e ao cabo, acabou revoltando-se contra
invasões, espancamentos, a disseminação de doenças e a aplicação de um
procedimento cuja eficácia estava então longe de estar estabelecida (e que, nas
condições específicas daquela “campanha”, era efetivamente muito discutível).
Não é por acaso que o vice-Diretor da Igreja Positivista do Brasil e autor da
bandeira nacional republicana, Raimundo Teixeira Mendes, chamava toda essa
lamentável situação de “despotismo sanitário”. Dessa forma, os positivistas
foram, sim, favoráveis à revolta popular contra a vacina; entretanto, ao
contrário do que Schwartzman consegue apenas “sugerir”, não se tratava de uma
postura anticientífica e de radicalismo anti-intelectualista, mas de um
profundo respeito à dignidade humana, à inviolabilidade dos corpos e dos
domicílios e às liberdades de pensamento e expressão. Em outras palavras, os
positivistas defendiam todos os valores mais caros ao liberalismo – aliás,
justamente ao liberalismo que supostamente Schwartzman defende –; da mesma
forma, os positivistas opunham-se ao que se chama hoje em dia de “tecnocracia”
e de “cientificismo”, ao contrário do que Schwartzman parece defender em seu
artigo.
O sociólogo mineiro dá a entender que todos os que se
opunham à campanha de vacinação de Oswaldo Cruz eram (1) positivistas e (2)
políticos demagógicos que politizavam e radicalizavam sentimentos populares
irracionais contra a vacina. Essas duas presunções são exageradas e
estapafúrdias. É aceitável considerar que houvesse demagogos explorando a
insatisfação popular; a política da I República era infelizmente e por vezes dada
a disputas agressivas; entretanto, como vimos, quem se opunha à campanha da
vacinação estava longe de ser necessariamente irracional, anticientífico,
favorável a guerras civis. Entre os republicanos radicais, os “jacobinos”,
havia efetivamente alguns que se identificavam com e como positivistas;
todavia, o próprio Teixeira Mendes afirmava que a política republicana deve ser
pacífica e, assim, condenava tanto a violência governamental do despotismo
sanitário quanto a explosão popular e a exploração demagógica dela. Vale notar
que todos esses argumentos são públicos e, embora um tanto restritos, são
facilmente acessíveis para qualquer pesquisador minimamente preparado, como
supomos ser Schwartzman, cuja carreira tem muitas décadas de duração.
Para concluir: a conjuntura político-sanitária de 2020 é
muito, muito diferente da de 1904. As campanhas de vacinação respeitam a
dignidade humana e são higienicamente adequadas; a racionalidade científica
subjacente a elas está bem estabelecida. Assim, ao contrário do que ocorreu em
1904, a politização sistemática de uma crise sanitária é, sim, demagógica,
mesmo quando realizada pelo governo; mas, assim como em 1904, o governo e os
liberais opõem-se aos positivistas, ao “Ordem e Progresso”, em seus desígnios.
É difícil não considerar que as coisas estão bastante erradas.