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16 novembro 2022

Augusto Comte: Cartas sobre a doença

No final de 2021 a Revista de Teoria da História, vinculada à Universidade Federal de Goiás, publicou uma tradução de cartas enviadas em 1857 por Augusto Comte a seu discípulo, o médico marselhês Georges Audiffrent. 

O artigo intitula-se "Cartas sobre a doença" (Revista de Teoria da História, Goiânia, v. 24, n. 2, p. 128-142) e pode ser lido aqui.

A tradução das cartas é precedida por uma introdução do tradutor, sr. Tiago Santos Almeida. É uma introdução ruim, em que o tradutor baseia-se em literatura de segunda mão (ou até de terceira mão!) para reiterar alguns dos mais tolos erros factuais e teóricos sobre Augusto Comte e o Positivismo. Na verdade, ao redigir essa "introdução", que deveria ter um caráter explicativo, o tradutor limitou-se a repetir e tornar seus vários preconceitos contra o Positivismo - sendo totalmente incapaz de tratar das várias questões filosóficas, políticas, morais e científicas tratadas nas cartas traduzidas.

No final das contas, embora o tradutor tenha-se empenhado em deixar claro que tem profundo apreço por preconceitos políticos e filosóficos e que considera a repetição de tolices uma prática intelectual aceitável (prática academicista, diga-se de passagem), é perfeitamente possível desconsiderar essa "introdução" e concentrar-nos no que realmente importa e interessa: as cartas que Augusto Comte enviou ao dr. Audiffrent, entre 1854 e 1857.

21 fevereiro 2021

Roteiro da exposição sobre o segundo mês dos calendários positivistas (Homero e Casamento)

O vídeo relativo às anotações abaixo encontra-se disponível aqui


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Roteiro da exposição sobre o segundo mês dos calendários positivistas

 

Parte I – Mês concreto: Homero

 


-        2º mês do calendário positivista concreto

o   Considerando o ano júlio-gregoriano de 2021, o mês de Homero começa em 29 de janeiro e termina em 25 de fevereiro

o   O segundo mês concreto representa a poesia antiga

§  É o segundo mês da Antigüidade

§  Ele é antecedido por Moisés (a teocracia inicial) e seguido pelos outros três meses da Antigüidade (Aristóteles, Arquimedes e César)

-        A poesia foi o primeiro ramo intelectual a separar-se da árvore teocrática; não por acaso, a evolução da poesia na Grécia apresenta o espetáculo de progressiva humanização de seus temas e, mais ainda, de progressiva especialização das suas formas

o   As poesias mais antigas correspondem aos mitos de criação e de explicação, de tal sorte que são, ao mesmo tempo, históricas, cosmológicas e literárias: Hesíodo claramente apresenta esse caráter

o   De qualquer maneira, a poesia antiga apresenta um forte caráter moral, servindo para refletir sobre a condição humana, as possibilidades de ação individuais e os destinos coletivos:

§  Ésquilo era um dramaturgo fortemente moralista (Prometeu acorrentado, Os persas), ao passo que em Homero vemos os destinos individuais (Odisséia, Ilíada) e coletivos (Ilíada) postos em questão

o   Paulatinamente surgiu também espaço para as críticas de costumes, com Aristófanes (em Atenas) e Plauto e Horácio (em Roma)

-        A poesia antiga surgiu de poetas que iam de cidade a cidade cantando os feitos míticos e heroicos da cultura comum; do culto a Dionísio surgiu o teatro; o politeísmo também incentivou as artes plásticas, especialmente com a escultura, a arquitetura e a pintura

o   Os romanos compartilhavam esse fundo comum de cultura, ao mesmo tempo em que herdaram a cultura grega; ainda assim, eles produziram seus próprios grandes poetas e artistas, de que Virgílio é o grande representante

-        Uma última observação: conforme nota Frederic Harrison, a poesia antiga é mais homogênea que a moderna, em termos de valores compartilhados e de estabilidade da ordem social

o   Como “o progresso é o desenvolvimento da ordem”, a poesia antiga pôde desenvolver-se bastante e, em certo sentido, até mais que a poesia moderna; ela atinge altos píncaros com facilidade

-        Homero e Ésquilo integram o “triângulo dos poetas” (Catecismo, p. 455): 

 

-        O mês e as semanas do mês de Homero correspondem ao seguinte:

o   Homero – representa a poesia antiga, em seus variados aspectos, especialmente em termos de idealizar a moralidade individual e coletiva

o   Ésquilo – congrega os grandes dramaturgos e os poetas moralistas

o   Fídias – reúne os artistas plásticos, ou seja, pintores, escultores e arquitetos

o   Aristófanes – reúne os poetas fabulistas e os moralistas satíricos e de costumes

o   Virgílio – reúne os poetas romanos, nos seus variados aspectos (dramaturgia, poesia épica, fábulas, poesia de costumes, poesia lírica) – em particular com a previsão da Humanidade em paz

 

Parte II – Mês abstrato: o casamento

-        O segundo mês do calendário positivista abstrato celebra o casamento

o   É o primeiro mês que celebra os laços fundamentais, em número de cinco: casamento, paternidade, filiação, fraternidade e domesticidade

-        Ao mesmo tempo em que é um dos laços fundamentais, o casamento também é um dos sacramentos positivistas (que são em número de nove)

1)      Apresentação

2)      Iniciação

3)      Admissão

4)      Destinação

5)      Casamento

6)      Madureza (ou maturidade)

7)      Retiro

8)      Transformação

9)      Incorporação

o   O casamento é o sacramento mais importante de todos

o   Como todos os demais sacramentos, ele é de caráter facultativo (em particular, ele não pode ter caráter de imposição legal) – embora, é claro, a sua aceitação indica o grau de comprometimento com a moralidade humana e altruísta

-        O casamento é importante porque (1) funda uma nova família, o que implica todos os encargos morais e materiais daí decorrentes; assim, (2) institui-se a relação inicial e original entre homem e mulher: o Positivismo vem “[...] regenerar o casamento humano, concebendo-o doravante como destinado sobretudo ao aperfeiçoamento mútuo dos dois sexos, abstraindo de toda sensualidade” (Catecismo, p. 338)

o   Assim, o casamento positivista afirma a importância da moral e do altruísmo, substituindo as concepções profundamente egoístas próprias à teologia, para quem o casamento tem por objetivo meramente a reprodução humana

o   A relação entre o casal é tanto objetiva quanto subjetiva e deve manter-se por toda a vida e até além da morte de um dos cônjuges

§  Em virtude disso, isto é, da importância subjetiva do casamento, o casamento positivista tem a particularidade do voto obrigatório da viuvez eterna

§  “Uma vida inteira é insuficiente para que um casal conheça-se suficientemente”

§  Segundas núpcias são uma forma subjetiva de poligamia – em outras palavras, o casamento deve ser rigorosamente monogâmico

§  Os positivistas que não quiserem realizar o casamento positivista (com a viuvez eterna) não podem, entretanto, prescindir do casamento civil, necessário de qualquer maneira

§  Evidentemente, a importância subjetiva do casamento estende-se para além da morte dos dois cônjuges, sobre os filhos e demais descendentes do casal

o   É no casamento que se verifica de maneira direta e imediata a influência moral da mulher sobre o homem

§  Essa influência moral da mulher sobre o homem é da mesma natureza, embora de caráter privado, que a realizada pelo sacerdócio sobre a opinião pública e o governo no âmbito público

§  A influência moral da mulher, além disso, evidentemente, também se verifica também sobre os filhos

§  A influência moral da mulher sobre o homem baseia-se na superioridade moral da mulher sobre o homem – que, em contrapartida, apresenta outros tipos de superioridade em relação à mulher, gerando-se complementaridades

o   A reprodução humana é importante, não há dúvida, mas casais que não tenham filhos nem por isso deixam de ter seus casamentos validados; em tais casos, é claro que a adoção pode suprir a ausência de filhos próprios (com a vantagem de desonerar casais que não tenham condições de criar seus filhos): “[...] a teoria positiva da união conjugal, em que as relações sexuais não são diretamente necessárias” (Catecismo, p. 340)

o   Os sacerdotes positivistas devem obrigatoriamente se casar, a fim de sofrerem a influência moral das mulheres

-        São quatro as modalidades determinadas por nosso mestre no casamento, com as respectivas festas semanais:

1)      Completo – celebra o vínculo em sua inteireza, tanto objetiva quanto (sobretudo) subjetiva: “glorifica a união conjugal em toda a sua plenitude, ao mesmo tempo exclusiva e indissolúvel, mesmo pela morte” (Catecismo, p. 158)

2)      Casto – celebra as uniões em que, por qualquer motivo (moral ou físico), um casal não consiga ter filhos; nesse caso, a castidade até certo ponto impõe-se, o que evidencia o caráter subjetivo do casamento; as adoções podem suprir essa lacuna

3)      Desigual – celebra os casamentos, de caráter excepcional, em que houver desigualdades muito acentuadas entre os cônjuges, especialmente em termos de idades

4)      Subjetivo – celebra o caráter moral, mais puro e mais afetivo do casamento; é a parte que se evidencia e que se fortalece na viuvez eterna

 

Parte III – Comemorações de aniversários e feriados cívicos

-        Em termos de aniversários, comemoramos neste mês as seguintes figuras:

o   Louis Mignien (1823-1871) – morte (8.Homero – 5.fev.)

o   Paulo de Tarso Monte Serrat (1923-2014) – nascimento (10.Homero – 7.fev.)

o   Georges Audiffrent (1823-1909) – morte (17.Homero – 14.fev.)

o   Agliberto Xavier (1869-1952) – nascimento (20.Homero – 17.fev.)

o   Paulo Carneiro (1901-1982) – morte (20.Homero – 17.fev.)

o   Pierre Laffitte (1823-1903) – nascimento (24.Homero – 21.fev.)

o   Teófilo Braga (1843-1924) – nascimento (27.Homero – 24.fev.)

 







 

Referências bibliográficas

Augusto Comte: Sistema de filosofia positiva, Sistema de política positiva, Catecismo positivista, Síntese subjetiva

Frederic Harrison: O novo calendário dos grandes homens

Raimundo Teixeira Mendes: As últimas concepções de Augusto Comte

David Carneiro: História da Humanidade através dos seus grandes tipos, v. 1

Ângelo Torres: Calendário Filosófico

Comité des travaux historiques et scientifiques: Sociétés savantes de France

12 setembro 2019

Negação do aperfeiçoamento humano como crítica ao Positivismo

A citação abaixo oferece uma explicação prévia para a quantidade enorme de erros e distorções de que o Positivismo é vítima. Esse comentário de Augusto Comte é verdadeiramente lapidar e resume tanto o programa do Positivismo quanto o procedimento adotado pelos "críticos"; ele foi feito por A. Comte em uma carta a seu discípulo, o médico Georges Audiffrent (1823-1909), em meados de 1855.

"On hésitera toujours à se déclarer ouvertement contre une doctrine qui perfectionne autant le sentiment que la raison et l'activité".

("Sempre se hesitará a declarar-se abertamente contra uma doutrina que aperfeiçoa tanto o sentimento quanto a razão e a atividade".)

(Carta de Augusto Comte a Georges Audiffrent, 10 de março de 1855; in: Augusto Comte, Correspondance générale et confessions, t. VIII: 1855-1857; Paris, J. Vrin, 1990, p. 34.)

De alguns anos para cá há publicistas extremamente famosos atualmente, em particular no Brasil e que se definem como "conservadores" e "direitistas" - gente como Olavo de Carvalho e Luiz Felipe Pondé -, que se comprazem em ser contra o politicamente correto e contra o altruísmo, a generosidade, o pacifismo, a racionalidade etc. A despeito da "incorreção política" de tais publicistas, o fato é que, no fundo, eles acreditam, sim, no altruísmo, no aperfeiçoamento moral e assim por diante: ocorre apenas que eles negam essa possibilidade a seus adversários, mas (mesmo que secretamente) concedem-na às suas próprias preferências filosóficas.

Ora, o Positivismo baseia-se na afirmação da perfectibilidade humana: para os positivistas, é possível ao ser humano melhorar (ser mais altruísta e menos egoísta, ser mais racional e mais sintético, ser mais convergente). Mais do que isso: para os positivistas, é necessário que nos aperfeiçoemos (e, para isso, o Positivismo indica os inúmeros meios e procedimentos adequados).

Assim, deixando de lado os retrógrados que gostam de estar na moda e de aparecer nos telejornais do horário nobre, ninguém em sã consciência é contra a possibilidade e a necessidade de aperfeiçoamento humano. Como o Positivismo é radicalmente favorável a isso, o único meio de opor-se a ele é falseando sua proposta de aperfeiçoamento - daí as mais variadas e disparatadas críticas, formuladas pelos liberais, pelos marxistas, pelos católicos, pelos conservadores, pelos autoritários.
Augusto Comte.

Georges Audiffrent.
Fonte: http://cths.fr/an/savant.php?id=120841.