24 setembro 2012

Busto de Augusto Comte na Sorbonne


Foto tirada por Nelson Rosário de Souza, entre 20 e 23 de setembro de 2012.
Abaixo do nome de Augusto Comte está a pichação "merci pour tout", ou seja, "obrigado por tudo".

17 setembro 2012

Kuhn derruba as barreiras entre ciências e humanidades - mas Augusto Comte não?

Kuhn derruba as barreiras entre ciências e humanidades. Augusto Comte não?


Na edição 296 da revista Ciência Hoje foi publicada a matéria “A queda do muro entre ciências e humanidades”, referindo-se ao cinqüentenário da publicação original do livro A estrutura das revoluções científicas, de Thomas Kuhn, em que se apresenta uma interpretação sociológica e histórica das ciências[1]. Segundo os autores, uma das maiores contribuições desse livro teria sido mostrar que as ciências naturais são tão sociais e históricas quanto as ciências humanas e, portanto, seriam possíveis análises (teórica, metodológica e epistemológica) das ciências naturais de maneira integrada às ciências humanas.

Comemorar os 50 anos de publicação do livro de Thomas Kuhn é interessante; mas afirmar que ele é importante porque teria “rompido as barreiras entre as Ciências Humanas e Naturais” é um exagero despropositado – e, pior, ignorante e preconceituoso. (Deixando de lado, é claro, os inúmeros problemas e inconsistências teóricos da obra de Kuhn. Mas isso não vem ao caso.)

A integração entre Ciências Humanas e Naturais ocorreu precisamente ao mesmo tempo em que a Sociologia e a História das Ciências surgiram – ou seja, quando Augusto Comte, pai do Positivismo, criava a Sociologia de uma perspectiva histórica e concentrava grande atenção no desenvolvimento histórico das ciências, vistas como produto social.

A obra mais conhecida de Comte – e, no Brasil, mais ou menos a única que se conhece, embora reduzida aos dois primeiros capítulos[2] –, o Sistema de filosofia positiva (1830-1842) tratou de realizar uma avaliação geral dos principais resultados teóricos e metodológicos das várias ciências, a fim de elaborar as bases teóricas e metodológicas da Sociologia.

Já no Sistema de política positiva (1851-1854), especialmente em seus volumes I e III (respectivamente, de 1851 e 1853), Comte dedicou-se a insistir no caráter social e histórico das ciências (naturais e humanas), investigando como os ambientes sociais facilitaram (ou dificultaram) suas constituições. Aliás, muito mais do que isso, Comte nessa obra adotou uma perspectiva radicalmente relativa, humana e  histórica – em termos atuais: transdisciplinar – a fim de examinar como cada ciência contribui para o ser humano e para a sociedade. Essa perspectiva é o que ele chamava de “método subjetivo”.

Na verdade, o método subjetivo ia ainda mais fundo, afirmando que é necessário à ciência (e à política) reconhecer o valor lógico e teórico das artes (geralmente chamadas também de “humanidades”). Nesse sentido, por exemplo, Comte afirmava que se deve ampliar o conceito de “lógica”, deixando de restringi-lo à lógica matemática (a lógica dedutiva, chamada por ele de “lógica dos sinais”), para incorporar também a lógica das emoções e a lógica das imagens. “Lógica”, nesse sentido, significa formas gerais de o ser humano entender (i. e., observar, compreender e falar a respeito de) a realidade.

Entretanto, a filosofia criada por A. Comte chama-se “Positivismo”, cuja fortuna crítica posterior modificou radicalmente o sentido originalmente concedido pelo pensador francês. Além disso, o valor dessa palavra alterou-se bastante ao longo do tempo, passando de favorável a negativo. Os preconceitos contrários ao “Positivismo”, que abrangem a obra de Comte por pura metonímia, são amplamente compartilhados pelas Ciências Humanas desde há várias décadas, incluindo aí os profissionais da História das Ciências e da Filosofia das Ciências.

Historiadores da ciência que desconhecem a obra de Comte – que precedeu em muito mais de um século a obra de Kuhn – demonstram, portanto, não apenas ignorância da história da ciência, como preconceito: afinal, como é senso comum, “todos” “sabem” que o “Positivismo” é “cientificista”, anistórico e objetivista. Pena que ninguém lê A. Comte e todos repetem: “não li e não gostei”.





[1] “A queda do muro entre ciências e humanidades”, publicada em Ciência Hoje (São Paulo, v. 50, n. 296, p. 74-75, set.). Disponível em: http://cienciahoje.uol.com.br/revista-ch/2012/296/a-queda-do-muro-entre-ciencias-e-humanidades. Acesso em: 7.jan.2013.
[2] Convém notar que apenas 5% da obra de Comte estão traduzidos para o português, o que é altamente sintomático dos problemas indicados acima.

13 setembro 2012

Sobre a "higiene cerebral"

Em meados do século XIX Augusto Comte falava que era então necessária uma “higiene cerebral”. Ele percebia a grande multiplicação de livros, artigos, jornais, textos que ocorria naquela época; entretanto, essa multiplicação era freqüentemente apenas quantitativa, ou seja, somente era mais coisa publicada, sem haver um aumento concomitante de qualidade. Pior, muitas vezes o aumento na quantidade era acompanhado pela diminuição do nível desses textos. Face a tal realidade – e tendo plena consciência de que “falar mais” não equivale a “pensar melhor” (e, antes, a “amar mais” e/ou “agir melhor”) –, Comte recomendava que se limitasse severamente as leituras, escolhendo com muito cuidado o que ler e o que não ler. Com essa recomendação ele visava a um controle do tempo e, acima de tudo, um cuidado com a cultura intelectual e moral. É óbvio, todavia, que os comentadores de plantão criticaram com rapidez e superficialidade essa proposta, afirmando que se tratava de uma forma de alienação face ao mundo.

Entrementes, hoje em dia a realidade de enorme aumento de textos, artigos, livros não mudou; ou melhor, bem ao contrário, mudou, mas para pior: o desenvolvimento dos meios de comunicação, em particular com a TV e a internete, estimulam a produção e a disseminação de algo que não pode ser chamado senão de
 lixo intelectual[1]. O mercado editorial de maneira mais ampla também não colabora: livros de auto-ajuda, de misticismo e/ou de pura irracionalidade estão sempre nas listas dos “mais vendidos”[2].

A “academia”, ou seja, as universidades, os institutos de pesquisa e os governos, também dá sua poderosa contribuição à multiplicação de textos pela mera multiplicação. Trata-se do “produtivismo”, estimulado por uma competição internacional pela pura quantidade de textos e livros publicados, de acordo com o qual aquele que publica mais é “melhor” (em quê, afinal?).
 Como diria Comte, acumulam-se “verdades” da mesma forma que se acumulam riquezas no industrialismo selvagem (“capitalismo selvagem”, como gostam de dizer os marxistas): mas são verdades meramente acumuladas, no sentido de serem entulhadas, empilhadas, sem verdadeiro uso.

Esse produtivismo acadêmico, altamente dispersivo, ultra-especializante,
 incentiva também textos irracionais e/ou superficiais. Se pensarmos, por exemplo, no pós-modernismo, não é difícil perceber que sua tese da ausência de objetividade da realidade foi também estimulada pela necessidade de escrever por escrever, sem maiores compromissos com uma compreensão ao mesmo tempo real, útil e relativa para o ser humano. Um outro exemplo: as perspectivas irracionalistas e autoritárias de Nietzsche, Heidegger, Gadamer, Carl Schmitt, são celebradas como “desafiadoras”, em vez de serem percebidas como irracionalistas, autoritárias e absolutas (metafísicas ou teológicas); tais perspectivas são valorizadas porque “desafiam os valores fundamentais da sociedade ocidental”, ou seja, porque são contrárias à racionalidade, ao pacifismo, ao altruísmo. É claro que esse tipo de afirmação “desafiadora”, cultora da “violência viril”, encontra um amplo e obsequioso público, ou seja, vende bem entre o público acadêmico. Em outras palavras: o produtivismo acadêmico estimula o que há de pior no ser humano; estimula tudo aquilo que não é “positivo” (de acordo com a definição comtiana da palavra “positivo”).

Dessa forma, ficamos incapazes de apreender tudo o que se produz, ao mesmo tempo em que,
 ativamente, somos obrigados a continuar produzindo e, passivamente, somos cada vez mais expostos a todo tipo de “mensagem” (sob o duvidoso argumento de que temos que “ficar em dia”, “sabermos dos fatos”, “mantermo-nos informados”, “conhecer o ‘estado da arte’”). Cada vez mais gente fala (sobre qualquer coisa), mas cada vez menos gente ouve e, acima de tudo, cada vez menos gente pensa e reflete sobre o que ouve.

Assim, se em meados do século XIX a “higiene cerebral” era necessária (mas ironizada ou desprezada), ela é ainda mais necessária no início do século XXI. Felizmente há (algumas) pessoas que a
 reconhecem como sendo importante, hoje.


[1] O livro de Andrew Keen, O culto do amador (J. Zahar, 2009), é muito didático a respeito. Por outro lado, uma visão parecida, mas altamente aristocrática, irracionalista e preconceituosa, é a da Escola de Frankfurt, que tratou longamente da “indústria cultural”.

[2] Aliás, como se um livro ser o “mais vendido” indicasse alguma coisa além do fato evidente de que vende bastante. Isso transforma o livro em uma  commodity e deixa de lado o mais importa: algo ser lido por muita gente não significa que essa muita gente está lendo algo que preste, ou seja, que esclareça sobre a realidade, que a torne mais altruísta, mais convergente, mais propensa a lidar com realismo os problemas concretos.

12 setembro 2012

Notável diminuição do crescimento dos evangélicos no Brasil



Reproduzo abaixo entrevista concedida pelo pastor metodista Paulo Ayres Mattos à revista eletrônica da Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos, no Rio Grande do Sul, mantida pelos jesuítas).


É uma entrevista interessantíssima e bastante lúcida. O autor indica que muito do crescimento dos partidos religiosos deve-se à falta de atuação do Estado nas periferias, que buscam então auxílio sobrenatural para resolver problemas de segurança, emprego etc. - mas principalmente de atendimento à saúde.

A entrevista é especialmente interessante porque o seu autor é pastor batista e, tendo larga carreira acadêmica, toda ela é voltada para a teologia.

Um aspecto de que o autor não tratou - embora seja necessário lembrar que não era precisamente esse o foco da entrevista - é o aumento do papel político das religiões, sua organização em partidos e o combate sistemático à laicidade e à república, com a confusão forçada e cínica entre a Igreja e o Estado. E, claro, faltou indicar que o aumento da intolerância religiosa não é uma simples possibilidade, mas algo real e dramático - intolerância que não é apenas inter-religiosa, mas das religiões contra os mais variados grupos sociais.

O original pode ser consultado aqui.

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A relevante queda do crescimento evangélico revelado pelo Censo 2010. Entrevista especial com Paulo Ayres Mattos

“As pessoas, hoje, têm mais liberdade para escolher e combinar diversas opções em seu próprio cardápio religioso como num balcão de comida a quilo”, diz bispo emérito metodista e pesquisador do pentecostalismo.
Confira a entrevista. 

Diante dos dados religiosos do último censo, “o fato mais importante” é a diminuição do crescimento dos evangélicos na última década, comparando com os dados da década anterior, diz o bispo metodista Paulo Ayres Mattos à IHU On-Line. “De 1991-2000 os evangélicos em geral cresceram cerca de 120%; na década de 2001 a 2010, os evangélicos cresceram aproximadamente 62%. Isso não pode ser ignorado de forma alguma para quem trabalha com rigor e seriedade as mutações no campo religioso brasileiro”, menciona. Na avaliação de Ayres Mattos, a queda no crescimento dos evangélicos tem “razões de ordem exógena, já que a sociedade brasileira passou por transformações sociais que possibilitam às pessoas resolverem seus problemas mediante meios mais racionais sem buscar o recurso de soluções milagrosas”. E acrescenta: “Por outro lado, a reação católica ao pentecostalismo com o fortalecimento darenovação carismática católica, com forte uso da música e de cantores/cantoras gospel do próprio meio católico têm oferecido uma alternativa viável ao pentecostalismo, particularmente a setores de classe média, estancando a sangria nas fileiras católicas”. 

Pesquisador do pentecostalismoAyres Mattos enfatiza que esse movimento está crescendo em toda a América Latina, “sendo muito forte em países como o Chile. Em outros como a Guatemala, ele já chega a disputar a hegemonia com a Igreja Católica”. Na sua interpretação, esse crescimento é possível porque o “pentecostalismo contemporâneo tem modificado de forma radical sua escatologia”, e assumido “quase sempre de forma inconsciente (...) a maneira de ser religiosa brasileira, característica das matrizes religiosas que contribuíram para a formação religiosa do nosso povo, com forte dose de sincretismo, com soluções miraculosas para as necessidades do cotidiano aqui e agora”. 

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Ayres Mattos analisa as transformações do cenário religioso nacional e assina que, embora o pentecostalismo continue crescendo nos setores mais vulneráveis da sociedade brasileira, é preciso “prestar atenção para o fato de que setores consideráveis de distintos segmentos da classe média – e até mesmo de alguns setores da classe média alta – têm sido atraídos pelo pentecostalismo”. 

Paulo Ayres Mattos é graduado em Teologia pela Faculdade de Teologia da Igreja Metodista, e em Filosofia pela Universidade de Mogi das Cruzes. É mestre em Teologia pelo Christian Theological Seminary, EUA, em Filosofia pela Drew University, EUA, e doutorando em Teologia Sistemática nessa mesma instituição. É docente da Universidade Metodista de São Paulo.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em sua avaliação, qual foi a novidade do censo 2010 em relação às religiões no país? Pode-se dizer que o cadastramento trouxe algum dado novo, ou apenas reiterou o que já era esperado? 

Paulo Ayres Mattos (foto)– Dados novos apareceram, mas sem surpreender aos estudiosos do campo religioso brasileiro, pois pesquisas parciais anteriores na segunda metade da década já indicavam o surgimento de uma realidade que foi confirmada de forma mais rigorosa pelo censo. A queda da membresia católica era esperada; o aumento dos evangélicos em menor proporção; a diminuição da Igreja Universal do Reino de Deus – IURD em virtude do crescimento da dissenção da Igreja Mundial do Poder de Deus; o aparecimento mais visível dos evangélicos sem igreja; o aumento das pessoas sem religião; etc.

Em meu entender, o fato mais importante do último censo é a confirmação de um dado já identificado anteriormente, trabalhado com bastante competência por sociólogos da religião como Paul Freston, da Universidade de São Carlos, que diz respeito à diminuição do ímpeto do crescimento dos evangélicos na última década quando comparado com o crescimento da década anterior. De 1991-2000 os evangélicos em geral cresceram cerca de 120%; na década de 2001 a 2010 os evangélicos cresceram aproximadamente 62%. Isso não pode ser ignorado de forma alguma para quem trabalha com rigor e seriedade as mutações no campo religioso brasileiro.

IHU On-Line – A que atribui essa diminuição do crescimento entre os evangélicos na última década?

Paulo Ayres Mattos –
 Em parte, por razões de ordem exógena já que a sociedade brasileira passou por transformações sociais que possibilitam às pessoas resolverem seus problemas mediante meios mais racionais sem buscar o recurso de soluções milagrosas. As pessoas apelam para o sobrenatural quando não encontram soluções para seus problemas no aqui e agora. A ênfase na maioria das igrejas pentecostais desde um tempo para cá passou a ser no oferecimento de cura divina, já que a assistência à saúde continua sendo um pesadelo para a maioria dos brasileiros, inclusive para a classe-média (comparem a ênfase em cura divina particularmente dos programas da TV aberta da IURD, da Internacional, da Mundial, da Renascer).

Por outro lado, a reação católica ao pentecostalismo com o fortalecimento da renovação carismática católica, com forte uso da música e de cantores/cantoras gospel do próprio meio católico, como explico abaixo, têm oferecido uma alternativa viável ao pentecostalismo, particularmente a setores de classe média, estancando a sangria nas fileiras católicas. Creio que o aparecimento do fenômeno dos “evangélicos sem igreja” começa a afetar a adesão de muitas pessoas ao pentecostalismo institucionalizado. Está para ser provado se os escândalos envolvendo grandes e pequenos líderes pentecostais acabaram por influenciar na diminuição do crescimento dos evangélicos na última década. Finalmente, a história dos movimentos religiosos no mundo ocidental mostra que os novos movimentos surgem, crescem, se estabilizam e, finalmente, experimentam sua estagnação. Compartilho da intuição de Paul Freston segundo a qual, no médio prazo, o crescimento evangélico vai atingir seu “plateau”, estabilizando-se por volta de 35% da população brasileira.

IHU On-Line – Muitos sociólogos da religião comentaram o aumento do número de pessoas que se dizem sem religião. Para o senhor, o que este dado sinaliza em relação ao futuro das religiões no Brasil?

Paulo Ayres Mattos –
 Creio que, com os processos de maior transparência na sociedade brasileira, as pessoas se sentem menos desconfortáveis ao assumirem publicamente sua não adesão a qualquer forma de filiação a instituições religiosas, o que não significa que elas são arreligiosas ou que tenham aderido a alguma forma de ateísmo. O que me parece estar ficando mais claro na sociedade brasileira é o desencantamento de muitas pessoas com as religiões institucionalizadas.

IHU On-Line – Entre as igrejas pentecostais, os dados do censo demonstram que a Assembleia de Deus cresceu, enquanto que a Igreja Universal perdeu 10% do número de fiéis. Como interpretar esses dados?

Paulo Ayres Mattos –
 Em primeiro lugar, as Assembleias de Deus - AADD não são uma denominação, mas uma marca de fantasia, pois não há uma Assembleia de Deus, no Brasil, e sim muitas denominações que usam esse nome como se fosse de domínio público. Como é público e notório, há uma guerra civil entre as diversas convenções das distintas Assembleias e entre os seus distintos ministérios. Considerar as Assembleias de Deus como um bloco monolítico é um grande equívoco a meu ver. Creio que seria oportuno começar-se a distinguir de forma mais rigorosa as diversas denominações que existem no Brasil para verificar-se quais que estão crescendo e quais as que não estão crescendo. Entretanto, creio que as Assembleias de Deus têm crescido porque têm sabido se ajustar às transformações modernizantes no campo religioso brasileiro que levaram certos grupos religiosos a assumirem o perfil de igreja-empresa, relativizando e até mesmo abandonando certos dogmas que no passado acabavam por inibir a adesão de setores mais ligados à ideologia de classe média.

Quanto à IURD, podemos dizer que ela igreja perdeu membros não porque foi menos efetiva na década passada do que nas anteriores, mas porque – em meu entender – resolveu identificar-se mais de perto com o emergente segmento social mais identificado com a mentalidade do empreendedorismo, opção que acabou criando espaço para o fortalecimento e consolidação da Igreja Mundial do Poder de Deus, a qual está atingindo de forma mais direta o lumpen da sociedade brasileira que não tem sido atingido, pela ascensão de setores populares, a baixa classe média brasileira durante a década passada.

IHU On-Line – Como analisa os dados do censo diante da queda das religiões tradicionais como o catolicismo?

Paulo Ayres Mattos –
 No último censo não me chama tanto atenção a queda das religiões tradicionais conforme tem sido realçado na mídia e em certos círculos religiosos e acadêmicos. O que mais tem chamado a atenção é a diminuição pela metade do ímpeto do crescimento institucional dos evangélicos e o aumento dos evangélicos sem igreja e dos brasileiros sem religião. O fato de que o campo religioso brasileiro foi profundamente afetado pela comoditização dos bens religiosos fez com que houvesse maior oferta de alternativas religiosas às religiões tradicionais. As novas religiões agregaram ao mercado dos bens oportunidades para novas escolhas que respondam de modo mais eficaz às necessidades e aos desejos das pessoas dentro uma sociedade crescentemente baseada no consumismo.

As religiões tradicionais como o catolicismo tradicional e as igrejas evangélicas tradicionais não têm sabido responder a esta nova configuração da sociedade brasileira, abrindo espaço para o pentecostalismo e a renovação carismática católica. Como disse acima, o crescimento dos evangélicos ligados ao pentecostalismo diminui sensivelmente na última década. Creio que umas das razões, ainda por se comprovar, é o crescimento da renovação carismática católica – a tática de combater-se fogo com fogo. Ao que tudo indica, a pentecostalização da Igreja Católica cria condições para o catolicismo, no médio prazo, estancar a sangria de sua membresia. Ser pentecostal, falando línguas estranhas e fazendo milagres, além de poder continuar com a Virgem Maria e os santos venerados mais o papa, sem quebrar a liturgia e a ordem do catolicismo, é muito atraente para o sincretismo histórico do campo religioso brasileiro. O problema está em que este tipo de pentecostalização generalizada do cristianismo dominante (católicos mais evangélicos), conforme já sinalizado pelo falecido Pierucci, traz consigo a ameaça da exacerbação da intolerância contra as religiões brasileiras de matriz africana.

IHU On-Line – Qual é o perfil dos pentecostais? Segundo os dados do censo, 64% deles avançam nos segmentos mais vulneráveis da população, especialmente nas periferias. O que atrai essa população para o pentecostalismo?

Paulo Ayres Mattos –
 É verdade que o pentecostalismo continua atraindo os setores mais vulneráveis da sociedade brasileira, particularmente nos grandes centros urbanos do país. Entretanto, é preciso prestar atenção para o fato de que setores consideráveis de distintos segmentos da classe média – e até mesmo de alguns setores da classe média alta – têm sido atraídos pelo pentecostalismo. Em meu entender, estes diferentes setores estão sendo atraídos e continuarão a ser atraídos enquanto houver necessidades que não estão sendo atendidas pelos meios que possibilitem consideravelmente escolhas mais racionais (“rational choice theories”). Educação, saúde, segurança e emprego continuam sendo problemas afetando a população em geral que não têm sido suficientemente equacionados pelo poder público. Tais problemas impedem que uma sociedade menos injusta possibilite a todos o acesso a tais oportunidades, restando apelar-se para soluções mágicas que são oferecidas pelo pentecostalismo mais ligado à sociedade de consumo que vem sendo construída no Brasil desde 1994.

IHU On-Line Que transformações o pentecostalismo está promovendo no cenário religioso brasileiro?

Paulo Ayres Mattos –
 Creio que a formação de uma ideologia que diz que a sociedade de consumo é boa e que tem lugar para todos – o mundo como ele é não é um lugar maldito, mas está cheio de bênçãos que devem ser possuídas aqui e agora, no aquém e não além depois da morte. Se os processos sociais racionais não facilitam o acesso às benesses da sociedade de consumo, há sempre a possibilidade da intervenção do sobrenatural nos problemas de nosso cotidiano. O “show da fé” é a porta para a prosperidade aqui e agora. 

Essa ideologia vai na contramão do pentecostalismo clássico, que afirmava que este mundo está posto no Maligno e que, portanto, ele é mau e a esperança está na volta de Cristo, ocasião em que os crentes seriam arrebatados para o céu longe deste mundo perverso e pecaminoso – a religião, mais do que o ópio do povo, o coração de um mundo sem coração; o espírito de um mundo sem espírito.

O pentecostalismo contemporâneo tem modificado de forma radical sua escatologia. Isso tem sido – no meu entender – possível porque, em muitos aspectos, o pentecostalismo tem, quase sempre de forma inconsciente, assumido a maneira de ser religiosa brasileira característica das matrizes religiosas que contribuíram para a formação religiosa do nosso povo, com forte dose de sincretismo, com soluções miraculosas para as necessidades do cotidiano aqui e agora, tese já apontada pelos trabalhos de estudiosos como SanchisDroogers Bittencourt. O sincretismo com as religiões populares brasileiras, hoje, está presente nas práticas de várias igrejas pentecostais sem qualquer reserva, diferentemente dos evangélicos tradicionais. Isso tem possibilitado também que muitas das bandeiras do conservadorismo tradicional dos católicos brasileiros sejam assumidas sem qualquer reserva pelos pentecostais, como bem manifesta a atuação dos políticos evangélicos ligados às igrejas pentecostais ao lado dos políticos católicos mais conservadores nas duas casas do Congresso Nacional. 

Interessante é observar os posicionamentos progressistas da ex-ministra Marina da Silva, membro de uma denominação pentecostal e ex-católica ligada às comunidades eclesiais de base. Seus posicionamentos estão em favor de bandeiras do movimento ambientalista brasileiro e internacional. Também há posicionamentos conservadores em temas como direitos reprodutivos e direitos civis iguais para as pessoas homoafetivas, assim como o apoio contraditório que recebeu de lideranças ambientalistas e pentecostais – como foi o caso da pastoraValnice Milhomens.

IHU On-Line – Diante dessa análise do caso da Marina Silva, diria que a tendência é as pessoas aderirem a características de várias religiões e, a partir delas, terem uma conduta religiosa pessoal?

Paulo Ayres Mattos –
 Creio que sim; este fenômeno é possível porque a religião também sofreu um processo de privatização. As pessoas, hoje, têm mais liberdade para escolher e combinar diversas opções em seu próprio cardápio religioso como num balcão de comida a quilo. 

IHU On-Line – Cem anos depois do ingresso do pentecostalismo no Brasil, que avaliação faz da religião no país? Que fatores explicam o sucesso do pentecostalismo entre os brasileiros e o fato de o Brasil ser o maior país pentecostal do mundo?

Paulo Ayres Mattos –
 Seguindo as pistas colocadas por Pierucci, o Brasil é um país de baixa diversidade religiosa, sendo sua maioria de pessoas cristãs. Entretanto, desde a independência do país, mas de forma mais contundente nas últimas décadas, foi gradualmente quebrando o monopólio do catolicismo. Hoje, quase 90% dos brasileiros continuam cristãos, mas o catolicismo não é mais hegemônico e, gradualmente, passou a compartilhar parte considerável de nossa população com evangélicos, principalmente com os pentecostais de todos os tipos. No passado, os pentecostais cresceram porque souberam ocupar os espaços religiosos vazios nas periferias brasileiras, já que tanto a Igreja Católica como as igrejas evangélicas se localizavam ou na praça central de nossas cidades, a praça da matriz, ou nas áreas ocupadas por setores de classe média.
Os pentecostais ocuparam as periferias onde a Umbanda era a única contrapartida religiosa presente. O enfrentamento entre duas manifestações religiosas que creem piamente que o natural é controlado pelo sobrenatural. Na medida em que o projeto modernizante das comunidades eclesiais de base do catolicismo popular ligado à teologia da libertação perdeu sua viabilidade dentro do próprio catolicismo por pressão do Vaticano, a única alternativa religiosa plausível para as periferias tem sido o pentecostalismo. Em médio prazo, o pentecostalismo mostrou-se mais apropriado do que a Umbanda para atender às demandas de uma sociedade de consumo e daí seu vertiginoso crescimento nas últimas três décadas. Entretanto, na última década o pentecostalismo, como disse, tem avançado também entre a população de classe média e até mesmo em setores mais ricos do país.

Creio que, no médio prazo, teremos uma população de cerca de 70 a 75% de cristãos (católicos e evangélicos) e de cerca de 25% a 30% de outras religiões e de gente sem religião.

IHU On-Line – Em entrevista à IHU On-Line, o historiador Alderi de Matos disse que uma crítica que se faz ao pentecostalismo diz respeito ao fato de ele ter tido um crescimento tão grande na sociedade brasileira, mas, por outro lado, um impacto social muito pequeno, restringindo-se à ação individual. Como o senhor vê essa questão?

Paulo Ayres Mattos – 
A meu entender, isso foi verdade até o período da ditadura militar, quando a ideologia “não sou do mundo, do mundo eu não sou” predominou entre os evangélicos, inclusive os pentecostais – política era considerada coisa suja e dominada pelo diabo. Na medida em que a ditadura e a Igreja Católica entraram em rota de colisão, os militares se aproximaram dos pentecostais, que tomaram gosto pela política. Hoje, parece-me que os pentecostais, mais os evangélicos tradicionais conservadores, estão causando impacto social cada vez maior na sociedade brasileira. Atualmente é notório o reconhecimento da presença pública dos evangélicos que acaba por influenciar nas definições de muitos aspectos da vida nacional, inibindo que avanços mais republicanos ocorram no país.

IHU On-Line – Em que aspectos da vida social percebe maior influência dos evangélicos?

Paulo Ayres Mattos – 
Especialmente nos temas que têm a ver com sexualidade, tais como educação sexual nas escolas públicas, aborto, direitos reprodutivos e direitos das pessoas homoafetivas; também têm assumido maior importância na agenda evangélica temas como criacionismo como alternativa à teoria da evolução (Darwin) e o direito à morte assistida. São esses temas que pautam, por exemplo, a ação da bancada evangélica no Congresso Nacional e que determinam o apoio ou não aos projetos que interessam à base do governo Dilma. Por outro lado, não se vê o mesmo empenho na luta contra a corrupção e em favor da defesa do meio ambiente. 

IHU On-Line – Como o pentecostalismo repercute nos demais países da América Latina? Depois do Brasil, em que países o pentecostalismo é aceito?

Paulo Ayres Mattos –
 O pentecostalismo está varrendo toda América Latina, sendo muito forte em países como oChile. Em outros como a Guatemala ele já chega a disputar a hegemonia com a Igreja Católica. E até em Cuba desfruta de força. O sociólogo inglês David Martin tem desenvolvido pesquisas que mostram que em muitos lugares da América Latina o pentecostalismo está reproduzindo o papel modernizante que o metodismo desempenhou nas mudanças sociais na Inglaterra durante a Revolução Industrial do século XIX.

IHU On-Line – Quais as diferenças e semelhanças do pentecostalismo praticado no Brasil e nos demais países da América Latina?

Paulo Ayres Mattos –
 Na maioria dos países, e não conheço mais de perto a situação do pentecostalismo em diversos deles, o pentecostalismo praticado não difere muito do brasileiro. Se aqui entre os pentecostais domina o que tem sido chamado de ethos sueco-nordestino, muito próximo do coronelismo nordestino, nos demais países latino-americanos o ethos é bem próximo do caudilhismo hispano.

A grande diferença é o Chile, onde o pentecostalismo é em sua maioria de origem metodista, enquanto o pentecostalismo brasileiro em sua quase total maioria é de origem batista com a grande exceção da Congregação Cristã no Brasil, que é de origem calvinista. Entretanto, a diferença é somente na teologia que professa, pois a experiência pentecostal como tal é a mesma.