Os comentários abaixo correspondem a algumas reflexões que desenvolvi nas últimas semanas a respeito do que se chama, na Ciência Política, de "análise de conjuntura"; ao escrevê-los, minhas preocupações foram (1) definir minimamente o que é a análise conjuntural e (2) expor alguns dos aspectos da obra de Augusto Comte que podem ser tomados como elementos seguros para uma análise de conjuntura.
Evidentemente, somente o primeiro desses dois objetivos foi razoavelmente cumprido: o segundo objetivo, isto é, a exposição da análise conjuntural comtiana exigiria um exame detido dos textos comtianos, em particular da lição 46 do Sistema de filosofia positiva - exame que, em virtude de sua extensão, eu não poderia realizar neste momento.
Em todo caso, parece-me que expor publicamente essas minhas anotações pode ter alguma utilidade.
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Augusto Comte avalia sua época:
Análise de conjuntura comtiana
Gustavo Biscaia de Lacerda
A “análise de conjuntura” seria
u’a metodologia desenvolvida pela Ciência Política para avaliação do momento
presente. Todavia, como argumentou acertadamente Velasco e Cruz (2000), a
Ciência Política – pelo menos no Brasil – não desenvolveu um conjunto de
parâmetros, regras, normas e, principalmente, uma tradição de “análise de
conjuntura”: em outras palavras, no país não se sabe o que é, ou melhor, de
modo mais preciso, não se sabe como definir e propor de maneira didática a “análise
de conjuntura”, sem que se reproduza, de alguma forma, os relatos meramente
factuais, de caráter mais ou menos anedótico e que se assemelham fortemente à
atividade jornalística, conforme notou com clareza Fábio Wanderley Reis (apud Braga,
2006, p. 1).
Contrariamente ao que se
considera muitas vezes, parece-nos que a melhor maneira de definir a
"análise de conjuntura" é por meio do recorte que ela faz, ou seja, por meio do seu objeto específico, em vez da metodologia empregada; nesse sentido,
ela seria apenas e tão-somente uma análise sociológica, ou
político-sociológica, que aborda um lapso temporal relativamente reduzido e
que, principalmente, considera o momento presente (e, a partir disso, sugere
desenvolvimentos futuros para os fenômenos analisados). Assim, enquanto de modo
geral as pesquisas político-sociológicas consideram processos e fenômenos
passados, alguns já distantes muitas décadas e mesmo séculos, a análise de
conjuntura realiza o mesmo exercício mas considerando que a distância temporal
entre o momento em que se escreve e os processos em apreço não é muito longa –
no limite, podem ocorrer virtualmente ao mesmo tempo.
Por outro lado, se o que
individualiza a análise de conjuntura como exercício intelectual é a distância
temporal entre a escrita da investigação e os fenômenos estudados, não se pode
dizer que a metodologia empregada seja específica; assim, o cientista político
ou o sociólogo usarão na análise de conjuntura as mesmas ferramentas
intelectuais que estão à sua disposição para as investigações ordinárias sobre
eventos passados. Em outras palavras, é incorreto entender a análise de
conjuntura como uma técnica específica de análise político-sociológica – ainda
que, sem dúvida, ela corresponda a um exercício intelectual particular.
Talvez seja possível uma
precisão aqui: o traço distintivo da análise de conjuntura impõe uma precaução
teórica e metodológica, no sentido de que a ausência de afastamento temporal
dificulta a determinação do valor sociológico que os fenômenos analisados podem
ter. Ainda assim, a dificuldade de avaliar o peso efetivo dos fenômenos tem que
ser sopesada em relação à teoria sociológica empregada: afinal de contas,
deixando de lado eventos completamente imprevistos (que, por definição, são
impassíveis de avaliação científica a
priori), a
função da teoria – de qualquer teoria
– é determinar o que é importante e o que é secundário, quais são os atores
sociais e as tendências sociopolíticas relevantes, quais as ordens de
importância dos variados processos sociopolíticos etc. A análise de conjuntura,
nesse sentido, com base no passado, interpreta o presente com vistas ao aconselhamento
para o futuro; ou melhor, como argumentou Augusto Comte (1969, 48è
leçon), com base no passado ela propõe um quadro para o futuro, interpretando
assim o presente. Dito de outra maneira, a análise de conjuntura permite ao
analista realizar plenamente a lógica da inferência científica, aplicando ao futuro,
na forma de previsões científicas, os esquemas relacionais desenvolvidos em
relação ao passado na forma de explicações, conforme proposto por John Stuart
Mill
(cf. PERISSINOTTO, 2009).
A literatura brasileira, na
medida em que possui alguma tradição de análise conjuntural, concentra-se em
autores de origem marxista: tanto Velasco e Cruz (2000) quanto Braga (2006), ao
mesmo tempo em que, de diferentes maneiras, filiam-se a correntes marxistas, desenvolvem
suas análises conjunturais e indicam também a riqueza das análises inspiradas
em Marx (O 18 Brumário, Guerra civil em França), Lênin (Que fazer?, O imperialismo), Gramsci (Maquiavel)
etc. Além das vertentes marxistas, o que a literatura indica é que outros
autores que serviriam de inspiração para análises conjunturais seriam Tocqueville
(Lembranças de 1848) e Weber (Parlamento e governo). Entretanto, um
autor que apresenta longas análises de conjuntura mas que, devido a diversos
motivos,
não é usado como inspiração é Augusto Comte.
Aquilo que poderíamos chamar de
“análises de conjuntura” na obra de Comte estão presentes em vários livros, de
diferentes maneiras: seja nos vários prefácios e nos corpos das obras
“religiosas” (Système de politique
positive, Appel aux conservateurs,
Synthèse subjective), seja no seu
amplo epistolário. Mas, de qualquer maneira, para os presentes objetivos é na
lição 46 do Système de philosophie
positive, presente no volume IV dessa obra, que se encontra uma longa
análise conjuntural, desenvolvida a título de justificativa política da
necessidade e da oportunidade da criação de uma filosofia positiva e, portanto,
da criação da própria Sociologia. A lição, isto é, o capítulo em tela
intitula-se precisamente “Considérations politiques préliminaires sur la
nécessité et l’opportunité de la physique
sociale, d’après l’analyse fondamentale de l’état social actuel” e
foi publicado em 1838; esse título indica de maneira clara sua intenção – qual
seja, realizar a “análise fundamental do estado social atual”. Aliás, consoante
os traços característicos da análise conjuntural que indicamos acima – trata-se
de um exercício político-sociológico como qualquer outro, com a particularidade
de que se concentra no momento presente –, ao expor suas "considerações
preliminares", Comte já desenvolve a própria Sociologia.
Quais são os elementos da
análise de conjuntura realizada por A. Comte?
-
crise ocidental crescente desde o fim da Idade
Média, exposta claramente pela Revolução Francesa;
-
constituição de três grupos sociais e
intelectuais e, a partir disso, de três partidos políticos na França do século
XIX: os retrógrados, os revolucionários e os estacionários;
-
análise da constituição intelectual (i. e.,
dos princípios sociopolíticos) de cada um desses grupos;
-
relação desses grupos com a ordem e com o
progresso;
-
necessidade e possibilidade de um terceiro
princípio sociopolítico – a filosofia positiva –, resultando em um movimento
político que permita ao mesmo tempo a ordem e o progresso;
-
análise das possibilidades de adesão dos grupos
existentes ao novo movimento político;
-
análise da atuação política dos intelectuais.
Referências bibliográficas
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conjuntura eleitoral brasileira. O que fazer? Curitiba: Grupo de Análise de
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sur les sources et l'actualité d'une controverse épistémologique. Bruxelles:
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Nogueira,
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