Mostrando postagens com marcador Teorias sociais. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Teorias sociais. Mostrar todas as postagens

08 setembro 2010

Tese de doutorado sobre Augusto Comte: "O momento comtiano"

Está disponível na rede minha tese de doutorado em Sociologia Política sobre o projeto sociopolítico de A. Comte, intitulada "O momento comtiano: república e política no pensamento de Augusto Comte". Ela foi defendida em 29 de março de 2010, no Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UFSC, e tive a satisfação de ter como orientador o Prof. Ricardo V. Silva.

Em 2019 essa tese deverá ser publicada como livro pela Editora da UFPR.

http://www.tede.ufsc.br/teses/PSOP0369-T.pdf


O resumo da tese é este.


A pesquisa visa a expor e a explicar os principais traços da teoria política de Augusto Comte, considerando em particular seu projeto de república. Para isso, é necessário compreender o caráter sistêmico de tal pensamento, que implica que o todo precede as partes e que cada aspecto é ligado a todos os demais; assim, aplicando essa regra ao que Augusto Comte chama de “natureza humana” e à própria história humana, o que podemos chamar de “teoria política comtiana” é somente um aspecto de um pensamento englobante que abarca a inteireza da realidade humana.

Isso nos conduz a um novo princípio para compreendermos as idéias de Comte: o “englobamento de contrários”, conforme definido por Louis Dumont. Tal princípio consiste em que os valores sociais estabelecem ordens englobantes, que indicam a importância relativa de cada elemento face ao conjunto da sociedade; se o valor principal modificar-se ou alterar-se, a ordem dele derivada também se modifica. Assim, o Positivismo estabelece um princípio geral: o mais nobre modifica o mais grosseiro ao submeter-se a este; esse princípio é de caráter epistemológico, social e político e é completado por um par conceitual: “objetivo” e “subjetivo”. A combinação desses elementos resulta que o mais geral precede lógica, teórica e politicamente o mais específico, seja em termos humanos (subjetivos), seja em termos cosmológicos (objetivos); a essas oposições, especialmente na ordem humana, acrescenta-se outra: masculino-feminino, que pode ser convertida para intelectual/prático-moral/afetivo. Esses pares de oposições geram duas ordens gerais e englobantes de classificação: uma “oficial”, baseada em aspectos materiais, presentes e objetivos (políticos e econômicos), e outra “subjetiva”, baseada em aspectos espirituais e passados e futuros (intelectuais e morais).

Em termos metodológicos, como nos propomos a levar em consideração a lógica interna do pensamento comtiano, baseamo-nos nos conceitos elaborados por Mark Bevir: “tradições”, “dilemas” e “agência humana”. Grosso modo, eles referem-se respectivamente às correntes de pensamento que informam as idéias de alguém; as diferentes idéias que resultam em dificuldades que cada qual tem para confrontar ou para acomodar às suas próprias idéias na vida adulta; as capacidades e a liberdade individuais para criar novas formas de pensar e de organizar as idéias. Aplicando essas categorias analíticas a Comte, o resultado é o seguinte: as tradições que o informaram foram, de acordo com suas próprias observações, a dos “reacionários” (com Joseph de Maistre), a dos “revolucionários” (com o Marquês de Condorcet) e uma terceira, chamada genericamente de “positiva”, relacionada aos “enciclopedistas” (com Denis Diderot); seus dilemas eram os diálogos que realizou entre essas tradições a partir da terceira delas e, de maneira mais específica, a respeito dos problemas políticos, sociais e filosóficos com que se defrontou a França após a Revolução Francesa e, depois, com que o próprio Comte defrontou-se durante a década de 1840, particularmente durante a II República francesa (1848-1851).

Antes e durante a apresentação das idéias políticas comtianas, tratamos do ponto de vista teórico de alguns conceitos-chave tanto para a Teoria Política contemporânea quanto para a de Comte: “política”, “liberdade”, “igualdade”, “direitos e deveres”, “república”, “autoritarismo”, “ditadura” e, last but not the least, “democracia”. Após isso, apresentamos o projeto político positivista – nomeado em referência à realidade social, isto é, como “sociocracia” –; em termos gerais, esse projeto afirma que não há sociedade sem governo (nem vice-versa: não há governo sem sociedade); o governo, por seu turno, pode ser de dois tipos: espiritual ou temporal. A partir do “princípio de Aristóteles” – que estabelece que a sociedade consiste na separação dos ofícios e na convergência dos esforços –, o objetivo do governo é buscar a convergência dos esforços parciais: o poder Temporal no âmbito material, prático, e o poder Espiritual no que se refere às questões de idéias, valores e crenças. Além disso, enquanto o poder Temporal é responsável pelas pátrias (“cidades”, “cités”), o poder Espiritual atua no âmbito da educação, unindo entre si os cidadãos de cada cidade e as repúblicas do mundo inteiro.

As principais características das sociedades modernas, republicanas, são estas: pacifismo, altruísmo, generalidade de vistas; acima e antes de tudo, a estrita separação dos dois poderes (Temporal e Espiritual), conjugando a liberdade espiritual (isto é, as liberdades de pensamento e de expressão) com a ordem material (isto é, civil); ao mesmo tempo, deve ocorrer a consolidação dos poderes sociais (ou seja, políticos e econômicos) com afirmação das suas responsabilidades sociais, sob vigilância constante da opinião pública. A partir de tais valores e medidas práticas, segue-se uma detalhada e arrazoada relação de medidas específicas: transformação das grandes Forças Armadas em gendarmarias; fragmentação livre e pacífica dos grandes estados em pequenas unidades políticas; fim dos orçamentos teóricos (teológicos, metafísicos e científicos); estabelecimento da “hereditariedade sociocrática”; concentração do governo em um governante, seguida de um triumvirato, com a redução do parlamento a funções apenas e estritamente orçamentárias.


Palavras-chave: Teoria Política; englobamento de contrários; república; Augusto Comte; sociocracia; poder Espiritual; poder Temporal; liberdade.

04 janeiro 2007

Teorias sociais, violência e integração

Teorias sociais, violência e integração
Gustavo Biscaia de Lacerda[1]

Há alguns dias o meu amigo Elias Marcos Gonçalves fez-me uma pergunta bastante interessante. Infelizmente, como sói acontecer com as perguntas interessantes, essa não tinha uma resposta simples ou direta, exigindo considerações um pouco mais amplas. O curioso é que essa pergunta, em virtude dos acontecimentos recentes em São Paulo e em outras unidades da federação, tem uma atualidade dramática: quais teorias sociais insistem na violência, quais insistem na integração dos indivíduos?
Como se verá, este artigo não comporta nenhuma conclusão; ele consiste mais em uma longa exposição feita para um amigo, que julguei útil pôr à disposição de um público mais amplo. É claro que é limitado – mas é apenas uma introdução sumaríssima em duas páginas e meia.
Uma primeira resposta sobre o tema da violência é: todas abordam-no. A violência, percebida como algo positivo, negativo ou simplesmente um fato da vida, é algo presente em todas as sociedades e, portanto, todas as teorias têm que se haver com esse fato. O que muda, portanto, é o juízo de valor, ou, por outra, a maneira de lidar com ela – e aí as perspectivas são as mais diversas possíveis. Em todo caso, é interessante notar que a posição a respeito da violência tem uma certa simetria em relação à integração social, no sentido de que quanto maior a ênfase na integração, menor a na violência.
Além disso, é necessário um comentário talvez epistemológico: as teorias podem ou não pretender ser aplicadas mais ou menos imediatamente na prática. Assim, elas podem ser apenas o conhecimento do que os seres humanos fazem, importando apenas e tão-somente esse conhecimento, ou elas podem ser também um instrumento prévio para uma ação prática posterior. O grau de politização daí decorrente, ou seja, o grau de comprometimento com propostas político-partidárias variam.
O francês Augusto Comte, fundador da Sociologia, tinha uma perspectiva histórica da violência, especialmente no que se refere à evolução do Ocidente. Assim, na Antigüidade e na Idade Média a prática política e econômica fundava-se na violência mais ou menos sistematizada, mas na modernidade as relações tendem a ser pacíficas, com a violência sendo cada vez mais abominada (e abolida). Todavia, é importante notar que, para Comte, enquanto o Estado mantém a ordem civil (em última análise por meio da violência), a sociedade deve organizar-se autonomamente, de acordo com sua dinâmica própria, havendo um amplo espaço para o poder da opinião pública; a opinião pública, na verdade, é um outro poder, que se contrapõe ao Estado, complementando-o, por meio da legitimidade. Sendo os seres humanos ao mesmo tempo egoístas e altruístas, a integração social dos indivíduos dá-se em vários níveis: na economia, na vida cívica, na família, nas igrejas e escolas.
O alemão Carlos Marx talvez seja mais famoso (embora não necessariamente o mais conhecido). Suas opiniões teóricas a respeito da violência e da integração eram bastante ambíguas, se bem que suas opiniões práticas não o fossem. Para ele, a sociedade, capitalista, é uma violência institucionalizada: a burguesia explora economicamente o proletariado, alienando-o dos resultados de seu trabalho e do que o faz um ser humano. A violência a que é submetido o proletariado é ruim, mas para acabar com ela apenas mais violência, por meio da revolta coletiva, da classe proletária contra a classe burguesa, por meio da revolução social. O sentido da “revolução”, nesse caso, não tem nada de metafórico: Marx tinha em mente a Revolução Francesa, de 1798, e, depois, a Comuna de Paris (1871), quando usava essa palavra, pensando em uma violência apocalíptica e, messianicamente, redentora. A integração no capitalismo é um embuste; para criar uma verdadeira integração, apenas com o fim do capitalismo, que será também o fim das classes e da violência. Em suma: a violência é ruim, mas já que existe...
O francês Emílio Durkheim elaborou sua teoria sociológica observando os tipos de integração que cada sociedade apresenta, chegando a dois tipos extremos: a solidariedade mecânica e a orgânica. Enquanto a primeira caracteriza-se pela pouca diferenciação entre os indivíduos, a outra consiste na grande diferenciação entre cada qual, sendo que cada um tem uma grande consciência de si. Na solidariedade orgânica, os indivíduos são integrados à sociedade pela íntima dependência funcional que todos apresentam em relação a todos; além da divisão do trabalho, a consciência de que participam de um empreendimento comum é importante para essa integração. Ora, quando há integração, não há violência e vice-versa: são necessárias, portanto, instituições que permitam a cada um integrar-se econômica e “psicologicamente”.
Por fim, o alemão Max Weber tinha uma perspectiva mais limitada em relação a esses temas. Para ele, a violência era um fato da vida; nos limites do território nacional, o Estado é que controla exclusivamente seu uso legítimo mas, entre as nações, não há essa exclusividade e, se for necessário, que seja utilizada (Weber era um defensor do imperialismo alemão prévio à I Guerra Mundial, embora fosse admirador de Bismarck e, portanto, prudente). Weber não pretendia que sua teoria sociológica fosse “utilizada” – pelo menos, não além da compreensão das motivações humanas em seus atos.
É interessante notar que, mais recentemente, dois autores franceses, sem serem marxistas – aliás, bem longe disso! – adotaram perspectivas semelhantes à marxista no que se refere à violência na sociedade. Pedro Bourdieu e Miguel Foucault afirmaram, a respeito de diferentes objetos, que a violência é constitutiva da sociedade: para Bourdieu, além da violência física de que o Estado é o detentor em regime monopolístico, existe a violência simbólica, que, grosso modo, a classe dominante exerce sobre a classe dominada. Para Foucault, além da “grande violência” controlada pelo Estado, há uma série de “microviolências” que perpassam toda a sociedade, com vistas ao controle e à manipulação dos corpos individuais: a escola, o hospital, a prisão.
Já o norte-americano Talcott Parsons retomou, de maneira bastante idiossincrática, a perspectiva durkheimiana, enfatizando a integração dos indivíduos na sociedade e a irrupção da violência como sinal de falha nessa integração.
Os autores acima foram teóricos sociais, mas é importante não deixar de lado a teoria política. Mais que na teoria social, na teoria política a violência é um tema central e as relações violência-política delimitam duas grandes linhas teóricas: as que as percebem como antinômicas e as que as percebem como estreitamente vinculadas.
Aristóteles é o grande autor que apresenta a primeira corrente. Segundo ele, a violência pertence aos âmbitos doméstico e “internacional”: ela é possível “apenas” com a família, com os escravos e com as outras cidades, mas na deliberação pública dos rumos a seguir, entre indivíduos livres e iguais que buscam o bem comum, ela não é possível. Em outras palavras, a violência é pré-política, infrapolítica e extrapolítica – jamais verdadeiramente política. Essa concepção foi esposada pelos teóricos da Idade Média – Tomás de Aquino, por exemplo – e, após um longo interregno, foi retomada pela alemã Hannah Arendt, no século XX, que afirmava a centralidade do diálogo racional e tolerante para a vida política. O também alemão Jürgen Habermas tem uma concepção semelhante, com sua “teoria do agir comunicativo”. É claro que a violência, para esses autores, representa o fracasso da integração e a impossibilidade de uma coletividade.
A segunda corrente surgiu, historicamente, da negação da primeira, e é mais “moderna”, isto é, mais próxima de nossa realidade. Entre seus grandes autores podemos indicar o inglês Tomás Hobbes e o italiano Nicolau Maquiavel. Ambos consideravam que o ser humano é naturalmente violento, sendo necessário determinar os meios de controlar e/ou usar essa violência com fins legítimos. Para Hobbes, o potencial de violência é tão grande que apenas um poder absoluto, obtido pela cessação da liberdade de todos os indivíduos menos um, pode impor a paz. Maquiavel considerava que a violência é um meio entre outros de que dispõem os homens para a consecução de seus objetivos: a questão é saber se ela é adequada, não se ela é “legítima”. Exceção feita a H. Arendt e a Habermas, as teorias políticas contemporâneas adotam variações ou derivações das de Hobbes e Maquiavel.
Por fim, uma última teoria política que vale a pena citar, neste contexto, é a do alemão Carlos Schmidt. Mais ou menos variação da anterior, sua concepção é interessante porque afirma que a “essência” da política é a oposição amigo-inimigo: a partir do momento em que distinguimos entre “nós” e “eles”, por um motivo qualquer, estamos na política. Os motivos e os meios que opõem os “amigos” dos “inimigos” podem ser os mais variados possíveis – e a violência é um instrumento evidente.
Nessa segunda tradição de teoria política não se pode falar propriamente de “integração” (embora na primeira também não se possa); com Max Weber, é melhor falar em “legitimação”. A dissensão está sempre presente, às vezes à espreita; o que cumpre fazer é civilizar esses impulsos, mudando os hábitos e os costumes e criando instituições capazes de receber demandas de divergência, processá-las e dar respostas adequadas.