05 setembro 2016

Painel Internacional para o Progresso Social

Reproduzo aqui uma postagem inicialmente publicada no blogue de Simon Schwartzman em 3 de setembro de 2016 (o original pode ser lido aqui).

O tema - o progresso social - evidentemente apresenta relações íntimas com o Positivismo, com as idéias de Augusto e com as práticas de todos os positivistas, ainda que o Painel em si não tenha sido iniciativa dos positivistas, mas do economista indiano Amartya Sen. Daí a reprodução da sua chamada neste blogue.

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O IPSP é uma ambiciosa iniciativa um grande número de cientistas sociais de todas as disciplinas, coordenados por um Conselho Consultivo internacional presidido por Amartya Sen, de pensar os grandes problemas sociais do século XXI e propor soluções e caminhos, baseados das contribuições das ciências sociais.  As informações sobre o painel, organizadores e participantes dos 22 grupos de trabalho constituídos para discutir os diversos temas estão disponíveis no site do painel neste link. Reproduzo abaixa versão em português do manifesto de lançamento do IPSP, publicado no Le Monde em junho de 2016.   A versão preliminar do documento que está sendo produzido pelo IPSP está sendo aberta na internet para discussão e pode ser vista neste link, e todos estarão convidados a participar e opinar.
Manifesto Pelo Progresso Social
O mundo contemporâneo está sob tensão. Enfrentamos uma rápida aceleração de crises na economia, sociedade, política, cultura, ambiente, assim como nos padrões morais das pessoas. Estamos diante de um mundo que é instável, imprevisível e, assim cheio de ansiedade – uma ansiedade que ameaça a paz e a coesão social. Isto é alimentado pela falta de perspectivas e oportunidades para grandes segmentos da população, tais como os trabalhadores pouco qualificados, os jovens sem emprego, os migrantes e refugiados.
A precariedade e a insegurança real ou percebida, o aumento das desigualdades estruturais que por sua vez geram uma forte redução da mobilidade social intergeracional, afetam hoje uma grande maioria da população mundial.
Frente a esses desafios, o que vemos? Os partidos políticos tradicionais não oferecem nenhuma perspectiva atraente e se concentram na gestão das restrições financeiras existentes, escondendo sua impotência em um discurso focado em questões morais ou questões sociais de menor importância (ou seja, o aborto, o véu muçulmano, etc).
As incertezas e disfunções na condução das políticas públicas nacionais são agravadas pela cooperação cada vez menor nos organismos internacionais (por exemplo, a Organização Mundial do Comércio ou da União Europeia). No pior dos cenários, isso pode resultar na volta ou surgimento de formas alternativas, autoritárias ou populistas, de governo. A ausência de uma visão positiva de longo prazo leva a políticas inadequadas. Os movimentos de protesto que abalam as elites nos países desenvolvidos ( “occupy”, Indignados, Nuit Debout) ou que derrubaram ditaduras nos países emergentes (Primavera Árabe) têm dificuldade em encontrar idéias que motivem e unam as pessoas e formem estruturas organizadas em torno de programas consistentes.
Há uma escassez de alternativas, e políticos que se aproveitam da ira popular para explorar a instabilidade sem oferecer perspectivas sérias. Para enfrentar coletivamente estes muitos desafios, ativistas e formuladores de políticas precisam ter ferramentas para compreender a evolução das economias e sociedades, os obstáculos que impedem a identificação e / ou a implementação de soluções duradouras e que ameaçam o bem comum, e as possibilidades de transformação, com a riscos associados.
Somos mais de 300 pesquisadores em ciências humanas e sociais em todo o mundo, que tomaram a iniciativa de responder a esta necessidade oferecendo uma contribuição colegiada singular no coração dos debates públicos. Nos reunimos no Painel Internacional sobre o Progresso Social (www.ipsp.org) para produzir coletivamente um relatório sobre as iniciativas que podem conduzir as instituições e e tomadores de decisão na direção de sociedades mais justas nas próximas décadas.
Todas as disciplinas estão incluídas: história, economia, sociologia, ciência política, direito, antropologia, o estudo da ciência e tecnologia, filosofia. Nos últimos vinte anos, vários painéis internacionais de especialistas foram criados para avaliar o conhecimento científico disponível sobre vários temas de interesse para o futuro de nosso planeta: alterações climáticas, biodiversidade, poluição química, segurança alimentar, ou a proliferação nuclear. Nós somos o primeiro painel a assumir o desafio de progresso social.
Por que um painel tão grande? Desenvolvimentos consideráveis em ciências sociais e humanas ocorreram nos últimos trinta anos, e resultaram em uma melhor compreensão do que o progresso social pode servir e, mais criticamente, como alcançá-lo. Estes desenvolvimentos importantes coincidiram com uma especialização crescente do conhecimento dentro e entre as disciplinas, e uma diversificação das perspectivas culturais regionais em um mundo onde as instituições, os níveis de desenvolvimento e as dinâmicas de crescimento estão mudando rapidamente. Tornou-se impossível para um pesquisador individual, ou um pequeno grupo de especialistas, sintetizar o conhecimento acumulado por diferentes disciplinas. Produzir uma síntese desse conhecimento que seja acessível aos agentes políticos e sociais locais, nacionais e transnacionais, requer um grande esforço como o que estamos desenvolvendo, reunindo as análises de um grupo transnacional de especialistas representativos de disciplinas, gêneros e culturas.
Na primeira parte do relatório, vamos considerar as transformações socioeconômicas, explorando as perspectivas de crescimento e restrições ambientais, as desigualdades, o futuro do trabalho, a urbanização, mercados, empresas e do estado de bem-estar. A segunda parte vai considerar os principais desenvolvimentos das políticas públicas, questionando o futuro das instituições democráticas, o Estado de direito, organizações transnacionais, governança global, os conflitos e a gestão de crises e da violência, e o papel dos meios de comunicação e formas de comunicação. Finalmente, a terceira parte será dedicada às transformações de culturas e valores, religiões, famílias, saúde e a manipulação da vida e da morte, bem como as transformações em identidades e relações sociais. A grande escopo do relatório nos permitirá propor uma perspectiva sistêmica da evolução das sociedades nas diferentes partes do mundo.
A principal mensagem a sair deste trabalho será positiva e pró-ativa. Existem oportunidades consideráveis que podem melhorar a condição humana, em quase todo o mundo. É possível erradicar a pobreza preservando o meio ambiente, viabilizar o estado de bem-estar social atacando as desigualdades de renda originárias dos mercados, liberar as políticas públicas das pressões financeiras e democratizar as decisões econômicas que determinam o destino das populações. No entanto, para alcançar essas oportunidades, temos de encontrar caminhos e superar obstáculos e resistências consideráveis. Acreditamos que uma visão dessas oportunidades, abraçada pelos cidadãos e agentes de mudança, pode contribuir para o surgimento de uma dinâmica de progresso social.
Pode um grupo diversificado produzir uma mensagem forte? Muitas vezes ouvimos que as ciências humanas e sociais discordam entre si todo tempo. Para evitar essa armadilha, nosso painel apresentará com honestidade pontos de concordância e controvérsia. Nsso painel é, em si mesmo, um experimento sobre a capacidade das ciências humanas e sociais de desempenhar um papel central na promoção concreta do progresso social. Além disso, durante o processo, ofereceremos uma plataforma com a finalidade de gerar comentários e debates públicos. Os especialistas dos governos, ONGs, think tanks, os representantes da sociedade civil e todos os cidadãos interessados são convidados a reagir à primeira versão do relatório que será colocada on-line e acessível a todos, de julho a dezembro de 2016, em www.ipsp.org. Essa interação nos permitirá permanecer tão conectados quanto possível aos grandes debates de nosso tempo.
Pode nosso painel pretender, com legitimidade, aconselhar a sociedade? A ciência moderna foi construída com a promessa de contribuir para a melhoria da espécie humana e o progresso das sociedades. Muitas esperanças foram cumpridas, mas outras permanecem cruelmente à espera de sua realização. No início do século XXI, as sociedades ainda estão sujeitas a guerras, violência, o terrorismo; desigualdades consideráveis, antigas e novas, corroem os vínculos sociais; desafios à manutenção do nosso ambiente sustentável atingem uma escala sem precedentes. A ambição do nosso painel, composto por cientistas reconhecidos, não é impor uma contribuição especializada e unilateral, mas para ajudar a estimular e nutrir um grande debate sobre o futuro das sociedades humanas e reavivar a dinâmica do progresso social.

03 setembro 2016

Gazeta do Povo: "Burquíni, liberdade de costumes e liberdades políticas"

Artigo de minha autoria, publicado na Gazeta do Povo em 3 de setembro de 2016. O original pode ser lido aqui.

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Burquíni, liberdade de costumes e liberdades políticas



À primeira vista, pode ser estranho discutir no Brasil o uso, a proibição e a liberação do “burquíni” na França, pois seria esse um problema francês e não brasileiro. Mas esse problema envolve questões que também dizem respeito, direta e indiretamente, ao Brasil: convém refletir a respeito do tema para, na medida do possível, evitarmos as dificuldades d’além-mar.

Criou-se o burquíni para permitir que as muçulmanas de mais estrita obediência frequentem a praia, com liberdade de movimento. O nome é uma combinação de “burca” com “biquíni”; rigorosamente não se trata da burca, que cobre o corpo inteiro, mas do xador, que cobre o corpo com exceção da face. Burca, xador e outras peças da indumentária feminina islâmica seguem o hijab, o código de vestimentas; ele visa a garantir a modéstia das mulheres no trajar, que varia segundo a interpretação específica do Islã e o país. Note-se que o burquíni deixa mãos e pés à mostra e muitas mulheres arregaçam as mangas, evidenciando o antebraço.

Na França, muitas cidades costeiras proibiram o uso do burquíni; logo após as proibições, essas municipalidades voltaram atrás e permitiram esse traje. As proibições foram adotadas devido ao temor de que o burquíni conduzisse à – ou se constituísse na – afirmação do extremismo religioso muçulmano. Para isso, valeram-se de leis nacionais, como a de 2010 que proíbe o uso da burca e a de 2004 que proíbe o uso ostensivo de símbolos religiosos em espaços especificamente públicos. Em todo caso, é necessário lembrar que a França tem sido alvo de atentados de radicais islâmicos: desde o massacre do Charlie Hebdo até o caminhão de Nice, passando pelos ataques de novembro de 2013 em Paris.

Primeira questão: a proibição do burquíni foi correta? Como as praias são espaços de lazer e quem as frequenta o faz em caráter particular e ainda, no caso do burquíni, mostrando o rosto, não é sustentável afirmar nem a segurança pública nem a laicidade para proibir. Assim, parece-nos que proibir o burquíni foi errado e suspender a proibição foi acertado.

Segunda questão: como entender o uso do burquíni? Ele foi criado para as muçulmanas aproveitarem um espaço de lazer; deixando à mostra mãos, pés e até antebraços, e sendo uma roupa colada ao corpo, pode ser visto como uma feliz concessão de certas seitas islâmicas para o Ocidente. Inversamente, o burquíni é um item estranho aos hábitos ocidentais, motivado por instituições e valores contrários aos ocidentais: seria uma islamização da Europa? Aí está o problema com o burquíni. As opções acima não são excludentes e, no momento, não há como decidir qual é a correta historicamente: o que fazer?

Não tenho a menor simpatia pelo burquíni e desagradam-me as instituições e correntes muçulmanas que reafirmam o caráter teocrático do Islã. Se o diálogo intercivilizacional é importante e necessário, que seja para aumentar a liberdade, não para diminuí-la. A filósofa Catherine Kintzler observa que o burquíni pertence ao âmbito privado (logo, não se trata de laicidade), mas refere-se à liberdade das mulheres e aos valores políticos compartilhados: o burquíni indicaria a submissão das mulheres e o seu afastamento da esfera pública; em última análise, ele é sinal de um tipo específico de Islã, o totalitário. É uma questão cultural, não jurídica: tem de ser combatido, não proibido. Isso dá o que pensar.


Gustavo Biscaia de Lacerda é pós-doutor em Teoria Política e sociólogo da UFPR.