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16 julho 2025

Monitor Mercantil: Afinal, o que é a República?

No dia 16.7.2025, o jornal carioca Monitor Mercantil publicou nosso artigo intitulado "Afinal, o que é a República?".

O texto do jornal encontra-se publicado aqui: https://monitormercantil.com.br/afinal-o-que-e-a-republica/.

Reproduzimos abaixo o texto.

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Afinal, o que é a República?

Lembre a fórmula elaborada por Augusto Comte: “Viver para os outros” Por Gustavo Biscaia de Lacerda

Em diversas ocasiões, já falamos, nesta coluna, sobre a República e o republicanismo; nessas ocasiões, apresentamos alguns conceitos gerais a fim de comentarmos situações concretas da vida política brasileira. Entretanto, vale a pena abordarmos diretamente alguns dos princípios gerais e abstratos do republicanismo.

Os dois primeiros princípios da República são dados por seu nome. Por um lado, a República consiste no governo não monárquico; por outro lado, ela afirma o primado do bem público.

Embora muitos pensadores, especialmente de países monarquistas (como a Inglaterra ou a Espanha), finjam que apenas o bem público basta para caracterizar a República, o fato é que esses dois aspectos são estreitamente relacionados.

A monarquia consiste em que o governante é escolhido em uma família específica; essa família tem que ter seus privilégios afirmados pela divindade, ou seja, de maneira caprichosa e profundamente arbitrária. No final das contas, a monarquia é um resquício (implícito ou explícito) das sociedades de castas; assim, na modernidade, a monarquia é radicalmente contra a dignidade individual e os méritos individuais e coletivos.


Os liberais e os pensadores juridicistas gostam de reduzir a República a formalidades políticas e jurídicas. Embora sempre haja necessidade de um certo formalismo, o verdadeiro caráter da República consiste no primado do bem público, ou seja, em seu conteúdo social.

Esse aspecto social precisa ser afirmado; caso contrário, o formalismo juridicista sequestra a República e reduz-se a regras vazias, de modo geral adequadas à manipulação das elites, das oligarquias e da burguesia.

Além do caráter social, a República caracteriza-se pela preponderância da opinião pública. A respeito da opinião pública, nossa época vive uma situação profundamente confusa, incoerente e desnorteada. Não são os meios de comunicação de massa, nem as redes sociais, nem muito menos as “pesquisas de opinião” (ou melhor, as pesquisas de humor momentâneo) que constituem a “opinião pública”: todas essas expressões, ou ondas, são apenas agregados de paixões, mais ou menos incoerentes e, da pior maneira possível, mais ou menos irracionais.

A noção de opinião pública — como, aliás, tudo na chamada teoria política, incluindo a “democracia”, a “legitimidade” ou a “soberania” — tem que ser, necessariamente, idealizada e normativa; assim, não faz sentido, e não é digno, considerar que agregados empíricos incoerentes sejam entendidos como a opinião pública.

De uma perspectiva mais digna, mais ideal e melhor elaborada em termos normativos, a opinião pública deve ser entendida como a opinião expressa por órgãos autônomos da sociedade civil, que estimulam a fraternidade universal, afirmam a participação popular, defendem o bem-estar coletivo. Por outro lado, os órgãos da opinião pública devem rejeitar o ódio, o irracionalismo das paixões cegas, o particularismo, o militarismo, a violência.

A autonomia da opinião pública e seu universalismo moral requerem que ela seja separada do Estado, o que, por sua vez, exige a laicidade do Estado e, portanto, por definição, põe em suspeita todos os intelectuais vinculados ao Estado e também todos os intelectuais estreitamente ligados a partidos políticos, a concepções particularistas e/ou defensoras da violência e do militarismo.

Todas essas concepções condensam-se na fórmula elaborada pelo fundador da Sociologia, Augusto Comte: “Viver para os outros”. Essa máxima é bastante profunda do ponto de vista moral e filosófico, e não é possível explorá-la aqui; mas sua orientação política para o bem público, para o bem coletivo, parece bastante evidente.

Entretanto, o “viver para os outros” — que, afinal, é uma fórmula moral — exige um complemento mais propriamente político: o “viver às claras”. Ainda para Augusto Comte, o “viver às claras” consiste, basicamente, em que todos devemos adotar em nossas vidas parâmetros de conduta que sejam publicamente defensáveis, a partir de concepções racionais e altruístas.

Enquanto os simples cidadãos devem adotar tais parâmetros de modo que suas condutas possam ser avaliadas por seus familiares, amigos e colegas — ou seja, pelas pessoas mais próximas —, todas as pessoas que ocupam posições de poder e influência devem ter suas vidas sempre passíveis de escrutínio público.

A mais elementar dignidade humana rejeita as devassas tão comuns à nossa época, em que as figuras públicas não são objeto de escrutínio, mas de degradação e humilhação; ainda assim, na República, a separação entre o público e o privado não deve ser entendida nos termos absolutos próprios à concepção liberal-burguesa. Dessa forma, não apenas os atos públicos, como também a vida privada dos poderosos, deve ser alvo de exame público.

A vinculação entre o “viver para os outros” e o “viver às claras” no âmbito da República é tão grande que, com as suas habituais profundidade e perspicácia, Augusto Comte nota que todos os poderosos que se recusarem a viver às claras deverão ser suspeitos de não viverem, de fato, para os outros — isto é, para o bem comum.

Na verdade, ele afirmou literalmente isso:

Malgrado as precauções interessadas dos legisladores metafísicos, o instinto ocidental não tardará a ver a publicidade normal dos atos privados como a garantia necessária do verdadeiro civismo. […] Todos os que se recusarem a viver às claras tornar-se-ão justamente suspeitos de não quererem realmente viver para os outros.

(Augusto Comte, Sistema de política positiva, v. IV, 1854, p. 312)

Sem esgotar as suas possibilidades, o que indicamos acima resume bastante da República: não monarquia, primado do bem comum, caráter social, afirmação da opinião pública, “viver para os outros”, “viver às claras”; além disso, fraternidade universal, pacifismo. Isso é muito mais, e muito mais profundo, do que o que se costuma entender por republicanismo nos discursos liberal-burgueses — seja das nossas elites políticas, seja dos intelectuais academicistas.

Esses conceitos foram propostos e, na medida do possível, aplicados no Brasil durante a Primeira República. Devido à necessidade que Getúlio Vargas tinha de legitimar os golpes que deu em 1930 e em 1937, a Primeira República foi sistematicamente desprezada a partir de 3 de outubro de 1930, sendo que, de modo geral, todos os políticos e intelectuais posteriores repetiram o discurso getulista.

Todavia, com um pouco de imaginação e coragem política, é fácil ver como todos os princípios republicanos indicados acima são não apenas passíveis de aplicação direta na realidade brasileira atual, como são cada vez mais urgentemente necessários.

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

18 junho 2025

Conciliar "Viver às claras" e "É indigno dos grandes corações derramar as perturbações"

No dia 28 de São Paulo de 171 (17.6.2025) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Apelo aos conservadores (em sua Primeira Parte - "doutrina destinada aos verdadeiros conservadores"). 

Na parte do sermão tratamos da questão: como conciliar duas máximas do Positivismo, "Viver às claras" e "É indigno dos grandes corações derramar as perturbações que sentem"?

Antes do sermão, justificamos de maneira sistemática a adoção da palavra "sermão" nas prédicas.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://www.youtube.com/watch?v=kclW-8EUW2A&t=11s) e Igreja Positivista Virtual (aqui e aqui).

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

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Como conciliar o “Viver às claras” com “É indigno dos grandes corações derramar as perturbações que sentem”?

(28.São Paulo.171/17.6.2025) 

1.      Invocação inicial

2.      Justificativa de ausência de prédica na semana passada

2.1.   Tive uma infecção (ainda a determinar qual), que me deixou acamado ou com profundo mal-estar durante cinco dias, desde o domingo anterior à prédica

3.      Exortações iniciais

3.1.   Sejamos altruístas!

3.2.   Façamos orações!

3.3.   Como Igreja Positivista Virtual, ministramos os sacramentos positivos a quem tem interesse

3.4.   Para apoiar as atividades dos nossos canais e da Igreja Positivista Virtual: façam o Pix da Positividade! (Chave Pix: ApostoladoPositivista@gmail.com)

4.      Datas e celebrações:

4.1.   Dia 27 de São Paulo (16.6.2025): nascimento de Paul Edger (1875 – 150 anos)

4.2.   Dia 27 de São Paulo (16.6.2025): transformação de Ivan Lins (1975 – 50 anos)

4.3.   Dia 28 de São Paulo (17.6.2025): nascimento de Edgar Proença Rosa (1903 – 122 anos)

4.4.   Dia 2 de Carlos Magno (19.6.2025): transformação de Carlos Torres Gonçalves (1974 – 51 anos)

4.5.   Dia 4 de Carlos Magno (21.6.2025): transformação de Décio Villares (1931 – 94 anos)

4.6.   Dia 3 de Carlos Magno (20.6.2025): solstício de inverno

5.      Leitura comentada do Apelo aos conservadores

5.1.   Antes de mais nada, devemos recordar algumas considerações sobre o Apelo:

5.1.1.     O Apelo é um manifesto político e dirige-se não a quaisquer pessoas ou grupos, mas a um grupo específico: são os líderes políticos e industriais que tendem para a defesa da ordem (e que tendem para a defesa da ordem até mesmo devido à sua atuação como líderes políticos e industriais), mas que, ao mesmo tempo, reconhecem a necessidade do progresso (a começar pela república): são esses os “conservadores” a que Augusto Comte apela

5.1.1.1.           O Apelo, portanto, adota uma linguagem e um formato adequados ao público a que se dirige

5.1.1.2.           Empregamos a expressão “líderes industriais” no lugar de “líderes econômicos”, por ser mais específica e mais adequada ao Positivismo: a “sociedade industrial” não se refere às manufaturas, mas à atividade pacífica, construtiva, colaborativa, oposta à guerra

5.2.   Outras observações:

5.2.1.     Uma versão digitalizada da tradução brasileira desse livro, feita por Miguel Lemos e publicada em 1899, está disponível no Internet Archive: https://archive.org/details/augustocomteapeloaosconservadores

5.2.2.     O capítulo em que estamos é a “Primeira Parte”, cujo subtítulo é “Doutrina apropriada aos verdadeiros conservadores”

5.3.   Passemos, então, à leitura comentada do Apelo aos conservadores!

6.      Pequeno comentário sobre os “sermões”:

6.1.   Desde o início das prédicas procuramos expor tanto leituras comentadas de obras de Augusto Comte – começamos, é claro, com o Catecismo positivista e estamos agora com o Apelo aos conservadores – com reflexões de diferentes tipos: religiosas, afetivas, artísticas, filosóficas, políticas etc.

6.1.1.     Para essas reflexões, de maneira totalmente empírica e inspirando-nos na prática católica, adotamos o título de “sermões”

6.2.   A palavra “sermão” na verdade tem origem romana: “sermo, -onis”, que significa “conversa” ou “discurso”; “sermo”, por sua vez, vem do verbo “serere”, que significa “unir, encadear”

6.3.   Assim, “sermão” é uma palavra que pode ser plenamente empregada de maneira positiva, exatamente como a palavra “religião” – e até mais facilmente que “religião”, na medida em que não é (tão) necessário distinguir nela o aspecto positivo do teológico

6.3.1.     De uma única vez a palavra “sermão”: (1) indica sua origem social, romana; (2) indica o seu caráter de conversa, de diálogo; (3) lembra sua história católica; (4) lembra o necessário acento religioso (moral e sintético) de todas as nossas reflexões; (5) reafirma a continuidade histórica e, da melhor maneira possível (isto é, da maneira correta, positivando), o princípio “conservar melhorando”

7.      O tema do sermão desta semana é o seguinte: como conciliar o “Viver às claras” com o “É indigno dos grandes corações derramar as perturbações que sentem”?

7.1.   Essa é uma questão que muitas vezes surge para quem estuda o Positivismo e deseja aplicá-lo em suas vidas: como conciliar as duas máximas, “Viver às claras” e “É indigno dos grandes corações derramar as perturbações que sentem”?

7.1.1.     Como tudo a respeito do Positivismo, essa dúvida surge na verdade para todas as pessoas; nós, positivistas, apenas sistematizamos a reflexão

7.1.2.     Se falamos em “conciliar” as frases, é porque à primeira vista elas parecem incompatíveis

7.1.3.     A compatibilidade ou não dessas frases não é uma questão puramente intelectual; como são máximas morais e práticas, essa compatibilidade (ou sua ausência) tem implicações práticas imediatas

7.1.4.     Essa questão foi formulada por nosso amigo Hernani, que pediu nosso auxílio a respeito

7.2.   Para começar a tratar desse tema, o primeiro passo é considerar a compatibilidade ou ausência de compatibilidade entre as duas fórmulas

7.2.1.     Sugerimos que aparentemente há ausência de compatibilidade porque, à primeira vista, essas máximas parecem incompatíveis; mas, bem vistas as coisas, temos que afirmar a sua compatibilidade

7.2.1.1.           Embora essa compatibilidade tenha um evidente aspecto intelectual, esse em definitivo não é o âmbito mais importante na questão

7.2.2.     A noção e a exigência de compatibilidade estão implicadas no caráter sistêmico e sistemático do Positivismo e na preocupação com a coerência das idéias (e dos sentimentos e das ações)

7.2.2.1.           Sobre a coerência, vale notar que, desde há algumas décadas, é mais ou menos moda afirmar-se que a coerência é impossível, ou que é errada, ou que é tola; algumas pessoas utilizam as reflexões lógicas de Kurt Gödel para negar a validade da busca da coerência; outros afirmam que a busca da coerência é uma espécie de doença intelectual e moral de pessoas fanáticas

7.2.2.2.           Todos esses argumentos contra a coerência são tolices; não são argumentos, mas sofismas mais ou menos infantis, que se baseiam, estimulam e difundem a irracionalidade, a inconseqüência prática, a incompreensão do mundo e a ausência de parâmetros na vida – em outras palavras, são sofismas plenamente metafísicos

7.2.2.3.           Assim, convém afirmar com clareza: a coerência é um valor moral, intelectual e prático efetivo; ela deve, sim, ser buscada e, na prática, de maneira explícita ou implícita, ela é exigida o tempo todo de todos e por todos

7.3.   As duas frases integram o cânone positivista, embora tenham origens diferentes

7.3.1.     O “Viver às claras” é uma fórmula moral e política; ela foi elaborada por Augusto Comte e estabelece a publicidade dos nossos atos

7.3.2.     O “É indigno dos grandes corações” é uma fórmula moral e “de sociabilidade”; ela foi elaborada por Clotilde, em sua novela Lúcia, e estabelece um parâmetro de comportamento individual e mútuo

7.3.3.     A aparente incompatibilidade entre as duas fórmulas deve-se ao fato de que elas apontam para direções contrárias: enquanto o “Viver às claras” sugere a abertura do comportamento, o “É indigno dos grandes corações” conduz à reserva e/ou ao fechamento

7.3.4.     Para solucionarmos essa questão, vejamos o contexto de elaboração e o significado de cada uma dessas fórmulas; começaremos pela máxima de Clotilde e então passaremos à de Augusto Comte

7.4.   O “É indigno dos grandes corações” corresponde a uma das inúmeras frases espontaneamente memoráveis de Clotilde – neste caso presente em sua novela Lúcia (publicada originalmente em 20 e 21 de junho de 1845[1], no jornal Le National)

7.4.1.     O original em francês é este: “Il est indigne des grands coeurs de répandre les troubles qu’ils ressentent

7.4.2.     O trecho integra a sétima carta da correspondência ficcional, do amante Maurício a seu confidente e amigo Rogério; o trecho que importa reproduz uma fala de Lúcia a Maurício[2]:

“Maurício, é em vão que nossa infelicidade conduzir-nos-ia a rebelar-nos contra a sociedade; suas instituições são grandes e respeitáveis como o labor dos tempos; é indigno dos grandes corações derramar a perturbação que sentem” (Política positiva, v. I, p. XXVIII; Teixeira Mendes, O ano sem par, 1900, p. 223).

7.4.3.     Augusto Comte citou essa frase em diversas ocasiões:

7.4.3.1.           No Discurso sobre o conjunto do Positivismo (originalmente de 1848, depois republicado em 1851 como preâmbulo geral ao Sistema de política positiva): ele está na página 267 do v. I da Política, correspondendo à quarta parte do Discurso (“Influência feminina do Positivismo”)

7.4.3.2.           Ao reproduzir a novela Lúcia, no “Complemento” da “Dedicatória” do v. I da Política positiva (de 1851) (p. XXVIII; é de onde tiramos a citação acima)

7.4.3.3.           No conjunto das “sete máximas de Clotilde”, apresentadas no seu Testamento (originalmente de 1855; encontramos a citação na página 99 da segunda edição, de 1896)

7.4.4.     É importante notarmos que Clotilde escrevia a partir de suas experiências pessoais; seus escritos têm um forte aspecto autobiográfico; assim, seus vários escritos (Lúcia, Guilhermina, Os pensamentos de uma flor, A infância) tanto apresentam sua vida quanto exprimem seus sentimentos e pensamentos

7.4.5.     Clotilde preocupava-se muito em não gerar incômodos para seus familiares e amigos

7.4.5.1.           Insistamos: a preocupação de Clotilde era não causar distúrbios, não sobressaltar seus próximos, não lhes gerar aflições

7.4.5.2.           Ao mesmo tempo, como o texto de Lúcia evidencia e como percebemos na correspondência trocada entre Clotilde e Augusto Comte, essa preocupação não a impedia de manifestar seus sentimentos, especialmente os de desagrado, tristeza, abatimento: mas tal manifestação ocorria em seu círculo mais íntimo, notadamente com Augusto Comte

7.4.6.     Em nossa prédica de 3 de César de 169 (25.4.2023), dedicada às máximas de Clotilde[3], comentamos o seguinte a respeito desta fórmula específica:

7.4.6.1.           A preocupação de Clotilde é que os “grandes corações”, ou seja, as pessoas que buscam aperfeiçoar-se moralmente, devem evitar descontroles e explosões afetivas, especialmente em público: saber manter a reserva e até o autocontrole é uma virtude moral e prática

7.4.6.2.           Essa máxima evidentemente não quer dizer que as pessoas não devam manifestar seus sentimentos, ou que não devam chorar em momentos de grande tristeza (ou de grande alegria): o que está em questão é o descontrole do comportamento a partir dos sentimentos, especialmente quando somos tomados por sentimentos muito intensos

7.4.6.3.           Há um aspecto de exemplo e de liderança subjacente à expressão “grande coração”

7.5.   O “Viver às claras” é apresentado e explicado por Augusto Comte em vários trechos de sua obra ao abordar o regime, especialmente quando aborda as características do regime público

7.5.1.     O original em francês dessa fórmula é “Vivre au grand jour”, que, em uma tradução muito literal e meio canhestra para o português seria “Viver em grande clareza” (jour significa “dia” e também significa “claridade” ou “clareza”)

7.5.1.1.           Em inglês a tradução é “To live openly” (“viver abertamente”)

7.5.1.2.           Fazemos essa observação sobre a expressão original e a tradução para o português porque algumas pessoas no Brasil traduzem o “au grand jour” como sendo “para o grande dia”: além de errar a fórmula de nosso mestre, essa tradução também a orienta para um sentido místico ou, pelo menos, milenarista – o que, deveria ser evidente, é radicalmente contrário ao Positivismo

7.5.2.     Antes de abordarmos o trecho que nos permite tratar da compatibilidade entre as duas fórmulas, vejamos os trechos em que nosso mestre apresenta e aborda o “viver às claras”; elas estão principalmente na Política positiva (1851-1854)

7.5.2.1.           “Viver às claras” como princípio republicano: presente na carta de nosso mestre ao dr. J. M. McClintock, editor da Revista Metodista de Nova Iorque (7 de Homero de 64/4.2.1852), segundo apêndice do “Prefácio” ao v. II da Política (p. XXV):

“Segundo essa longa e escrupulosa carreira, mais homogênea talvez que qualquer outra conhecida, eu assumi um profundo hábito de viver inteiramente às claras, seguindo o verdadeiro princípio republicano”

7.5.2.2.           Relações entre o viver às claras, o regime público e o regime privado (quarto capítulo do v. IV da Política: “Quadro geral da existência ativa, ou sistematização final do regime positivo”) (p. 312):

Qualquer que seja a reação contínua da moral individual sobre a moral pública, a moral doméstica comporta uma eficácia mais direta e mais decisiva, em virtude de u’a melhor similitude, sobretudo quando ela encontra-se socialmente instituída. É aí que a máxima fundamental: Viver para outrem começa a receber seu complemento prático: Viver às claras, sem o qual ela tornar-se-ia em breve insuficiente e mesmo com freqüência ilusória. Malgrado as precauções interessadas dos legisladores metafísicos, o instinto ocidental não tardará a ver a publicidade normal dos atos privados como a garantia necessária do verdadeiro civismo. Escola espontânea do comando e da obediência, a existência doméstica não pode assaz desenvolver sua principal destinação quando ela permanece subtraída da sã apreciação do sacerdócio e mesmo do público. Todos os que se recusarem a viver às claras tornar-se-ão justamente suspeitos não quererem realmente viver para outrem. Os sentimentos não podendo ser julgados sem os atos, as duas qualidades essenciais à vida cívica, devotamento e veneração, não se tornam habitualmente apreciáveis senão conforme seu desenvolvimento privado, mais fácil e mais universal que seu exercício público. Entretanto, a obrigação de viver às claras não resume a moral social senão ao subordiná-la à prescrição de viver para outrem, ainda que unicamente os tempos anárquicos permitam a exibição habitual de uma conduta viciosa

7.5.2.3.           Viver às claras como característica da moralidade e da atividade política (quinto capítulo do v. IV da Política: “Apreciação sistemática do presente, conforme a combinação do porvir com o passado; donde quadro geral da transição extrema”) (p. 459-461):

“A última fase da transição orgânica anunciará o término direto da revolução ocidental, enquanto exibe, desde o início, a bandeira normal, com todos os emblemas que a acompanham, seguindo as explicações especiais de meu discurso preliminar[4]. Ainda que as duas divisas características [Viver para outrem e Ordem e Progresso] possam já ter prevalecido, sua adoção sucessiva proclamava mais um voto que um princípio, tanto que a atitude ditatorial [i. e., do governo[5]] não poderia ser-lhe assaz conforme. Mas, quando o Positivismo, após ter modificado a conduta, consegue transformar a constituição, a dupla fórmula torna-se um programa decisivo, cuja preponderância manifesta-se pela mudança de cor, que repudia, sem nenhuma descontinuidade, toda solidariedade viciosa. Então a terceira divisa do regime normal: Viver às claras vem completar o conjunto das outras duas, fornecendo o resumo prático do sistema, ao mesmo tempo moral e político, irrevogavelmente adotado. Destinado sobretudo à vida pública, este último símbolo é especialmente próprio a figurar nas moedas francesas, em que esse enunciado do meio dispensará de mencionar o princípio e o resultado de que ele constitui o vínculo necessário.

Para apreciar todo o escopo de uma tal fórmula, é necessário reconhecer que sua adoção oficial caracteriza o advento de u’a marcha sistemática, sem a qual essa divisa anunciaria uma intenção moral e não uma resolução política. Ainda que a Idade Média tenha-a feito nobremente prevalecer na vida privada, ela não pode estendê-la assaz à vida pública, que, malgrado as aspirações cavalheirescas, continuou a basear-se principalmente no mistério e na intriga. Sem desconhecer os viciosos sentimentos que se reportavam a esse regime, devia-se sobretudo atribuí-lo à impossibilidade de viver às claras quando o porvir permanece obscuro e a opinião, incerta. Uma tal divisa indica então o advento decisivo de uma doutrina capaz de sistematizar ao mesmo tempo as previsões políticas e os julgamentos públicos. A regeneração final estando caracterizada por essa dupla sistematização, sua proclamação deve sobretudo residir na fórmula própria à atividade, ainda que o principal valor desse símbolo resulte de sua aptidão a representar os concernentes à inteligência e ao sentimento.

Índice e condição de u’a marcha sintética, como de uma conduta leal, essa regra convém tanto à espiritualidade positiva quanto à temporalidade pacífica. Antes de tê-la sistematizado, eu sempre a pratiquei espontaneamente, desde os meus primeiros passos, a fim de preparar os espíritos às minhas concepções e de melhorar estes pelas reações, objetivas e subjetivas, resultantes desses anúncios. Não cessei nunca de felicitar-me de um tal emprego, ainda que me tenha com freqüência exposto, seja a objeções viciosas, seja a empréstimos fraudulentos. Mas sua principal destinação concerne à política ativa, em que, os resultados tornando-se mais determinados e mais próximos, a consulta universal pode assistir e retificar mais os projetos, ou mesmo melhorar as intenções. É assim que o triunvirato positivista manifestará o caráter plenamente orgânico da terceira fase da transição final pelo hábito invariável de anunciar suficientemente seus atos quaisquer para que eles possam ser por toda parte examinados a tempo”

7.5.3.     O trecho que mais nos interessa sobre o “Viver às claras” está no Catecismo positivista (na 11ª conferência, dedicada ao regime público – p. 354-355):

“Quanto às disposições provenientes da existência doméstica, esta suscitará sobretudo a melhor aprendizagem desta regra fundamental que cada um se deverá impor livremente, como base pessoal do regime público: Viver às claras. Para esconderem suas torpezas morais, nossos metafísicos fizeram prevalecer a vergonhosa legislação que ainda nos proíbe escrutar a vida privada dos homens públicos. Mas o positivismo, sistematizando dignamente o instinto universal, invocará sempre a escrupulosa apreciação da existência pessoal e doméstica como a melhor garantia da conduta social. Como ninguém deve aspirar senão à estima daqueles a quem também estima, não somos obrigados a dar a todos, sem distinção, conta habitual de nossas ações quaisquer. Porém, por mais restrito que possa vir a ser, em certos casos, o número de nossos juízes, basta que sempre existam alguns para que a lei de viver às claras nunca perca sua eficácia moral, impelindo-nos constantemente a nada fazer que não seja confessável. Semelhante disposição prescreve logo o respeito contínuo da verdade e o cumprimento escrupuloso de todas as promessas. Este duplo dever geral, dignamente introduzido na Idade Média, resume toda a moral pública e faz-vos sentir a profunda realidade daquela admirável sentença em que Dante, representando o impulso cavalheiresco, designa para os traidores o mais horrível inferno”[6]

7.5.4.     O trecho acima do Catecismo estabelece, então, uma diferença de âmbito na aplicação do “viver às claras”; ou melhor, não é exatamente de âmbito, mas das atividades e das responsabilidades atribuídas a cada um: figuras públicas de um lado, simples cidadãos, de outro lado

7.5.4.1.           No caso das figuras públicas, o “viver às claras” deve ser aplicado de maneira direta: a vida íntima de quem exerce o poder (seja o poder político, seja o poder econômico, seja também o poder espiritual) deve ser sujeita a escrutínio público

7.5.4.2.           No caso dos simples cidadãos, o “viver às claras” significa adotar condutas passíveis de avaliação pelos familiares e pelos amigos mais próximos, além de pelo sacerdócio; essa avaliação, por seu turno, tem que se realizar a partir de critérios publicamente aceitáveis e razoáveis

7.5.4.3.           A vinculação entre sentimentos e idéias, de um lado, e atos concretos, de outro, está sempre em questão: embora nem sempre consigamos agir conforme desejemos e nem sempre obtenhamos os resultados desejados, certamente os atos praticados têm que corresponder aos sentimentos e às idéias professados (ou, pelo menos, às intenções afirmadas) – é uma questão de coerência e honestidade

7.5.4.4.           Convém lembrar que os dois princípios elementares da moral pública consistem em falar a verdade e honrar a palavra dada (ou, de maneira negativa: não mentir e não trair)

7.5.4.5.           Uma recordação pessoal também ajuda um pouco, seja para entendermos o “Viver às claras” para os simples cidadãos, seja para estabelecermos a compatibilidade entre as duas máximas: o saudoso David Carneiro Jr., o Vivi (1926-1997), que tinha um temperamento prático muito acentuado, afirmava, repetindo o industrial positivista Augusto Trajano Antunes, que devemos “viver às claras” mas não “viver às escâncaras”

7.5.4.6.           O objetivo do “viver às claras” não é devassar a vida íntima das pessoas, mas garantir – especialmente no caso das figuras públicas – que elas de fato vivem para outrem, que falam a verdade, que honram a palavra dada, que seus sentimentos são altruístas, que suas idéias são sintéticas e que suas ações são convergentes, pacíficas e construtivas

7.6.   Em suma: a partir das indicações acima, consideramos que as duas máximas são, evidentemente, compatíveis, em particular da seguinte maneira:

7.6.1.     Um sentido básico do “viver às claras” consiste em adotar parâmetros públicos e publicamente confessáveis na vida

7.6.2.     As figuras públicas e/ou aquelas que exercem o poder têm que ter suas vidas, incluindo aí suas vidas privadas, passíveis de exame público

7.6.3.     Já os simples cidadãos não se submetem a essa exigência de escrutínio geral; mas, por outro lado, seus comportamentos continuam passíveis de apreciação por seus familiares, seus amigos e pelo sacerdócio

7.6.4.     O objetivo do viver às claras não é devassar a vida íntima das pessoas, mas garantir a moralidade da conduta – e essa moralidade é dada pelo viver para outrem

7.6.5.     Ora, no viver às claras nada obriga as pessoas a “derramarem as preocupações que sentem”: a exigência de exame da vida privada das figuras públicas implica o exame das relações pessoais, familiares e de amizade dessas figuras; já as preocupações mais íntimas, mais pessoais – desde que não tenham conseqüências públicas – podem e devem ser preservadas para apreciação na intimidade

7.6.6.     Aos simples cidadãos as exigências de viver às claras são menores; a eles aplica-se com ainda mais facilidade a máxima dos “grandes corações”

7.6.7.     É importante notar que a expressão de Clotilde sobre os grandes corações não busca o fechamento, nem o isolamento, nem o segredo; sua intenção é indicar que as pessoas realmente generosas buscam não incomodar ou atrapalhar os demais; em outras palavras, seu sentido é que cada um evite de criar, estimular e/ou disseminar dissabores, suspeitas, intrigas etc.

8.      Exortações finais

8.1.   Sejamos altruístas!

8.2.   Façamos orações!

8.3.   Como Igreja Positivista Virtual, ministramos os sacramentos positivos a quem tem interesse

8.4.   Para apoiar as atividades dos nossos canais e da Igreja Positivista Virtual: façam o Pix da Positividade! (Chave Pix: ApostoladoPositivista@gmail.com)

9.      Invocação final

 

Referências

- Augusto Comte (franc.), Sistema de política positiva (Paris, s/n, 1851-1854)

- Augusto Comte (franc.), Testamento (Paris, Exécution Testamentaire d’Auguste Comte, 2ª ed., 1896): https://bibdig.biblioteca.unesp.br/items/510b1daa-24d3-48e3-a1ed-ddce5191ee5a.

- Augusto Comte (port.), Apelo aos conservadores (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1898): https://archive.org/details/augustocomteapeloaosconservadores.

- Augusto Comte (port.), Catecismo positivista (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 4ª ed., 1934).

- Gustavo Biscaia de Lacerda (port.): O momento comtiano (Curitiba, UFPR, 2019).

- Gustavo Biscaia de Lacerda (port.): Sobre as máximas de Clotilde de Vaux (26 de abril de 2023): https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2023/04/sobre-as-maximas-de-clotilde-de-vaux.html

- Raimundo Teixeira Mendes (franc.), Comte e Clotilde (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1903): https://bibdig.biblioteca.unesp.br/items/f3d104ea-4350-4a3d-a58a-63ec4a10fc54.

- Raimundo Teixeira Mendes (port.), O ano sem par (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900): https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-o-ano-sem-par-portug._202312/page/n7/mode/2up.




[1] Não deixa de ser uma bela e feliz coincidência o fato de que estamos próximos de celebrar os 180 anos de publicação dessa novela!

[2] Convém explicarmos a estrutura da novela Lúcia para que a citação faça plenamente sentido. A novela é composta por diversas cartas trocadas entre várias pessoas, após uma introdução narrada em primeira pessoa. As pessoas que trocam cartas são a sofrida Lúcia, seu amor Maurício, um amigo (e confidente) de Maurício chamado Rogério, o médico de Lúcia. As cartas apresentam confidências pessoais e também narram situações diversas; ao narrarem as situações vividas, as cartas – que, logicamente, são escritas em primeira pessoa – com freqüência adotam o discurso direto, procurando transcrever literalmente os diálogos conforme eles teriam ocorrido. É dessa forma que, na passagem abaixo, Maurício narra a Rogério um diálogo travado entre Lúcia e Maurício (e, em particular para o que nos interessa, uma fala de Lúcia para Maurício).

[4] Referência ao Discurso sobre o conjunto do Positivismo, de 1848, inserido em 1851 como preâmbulo geral ao Sistema de política positiva, no v. I desta obra, sob o título de “Discurso preliminar sobre o conjunto do Positivismo”.

[5] A palavra “ditador” (e suas variações) não tem, para Augusto Comte, o sentido contemporâneo negativo, que é sinônimo de autoritarismo; para o fundador da Sociologia, o “ditador” é o governante que atua de maneira monocrática, em oposição à dispersão do poder característica das assembléias e do parlamentarismo. Dessa forma, há ditadores progressistas, ditadores retrógrados, ditadores liberais, ditadores repressivos etc. Uma exposição detalhada dessa questão e de aspectos próximos pode ser consultada em nosso livro O momento comtiano (Curitiba, UFPR, 2019).

[6] Dante inclui os traidores no nono e último círculo do inferno, padecendo dos mais terríveis castigos; a exposição e a apreciação desses sofrimentos ocupa os últimos cantos do Inferno.