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08 dezembro 2025

Monitor Mercantil: Intelectuais e vida coletiva – 1

No dia 6 de Bichat de 171 (8.12.2025) o jornal carioca Monitor Mercantil publicou um artigo de nossa autoria intitulado "Intelectuais e vida coletiva - 1". Esse artigo é o primeiro de uma série que abordará, nos próximos meses, a atuação pública e política dos chamados "intelectuais".

O original pode ser lido aqui: https://monitormercantil.com.br/intelectuais-e-vida-coletiva-1/.

Reproduzimos abaixo o texto.

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Pessoa com caderno e notebook (foto Unsplash).

Intelectuais e vida coletiva – 1

Quem são, qual o fundamento da sua ação, qual a sua situação institucional e para que servem os intelectuais? Por Gustavo Biscaia de Lacerda.


Um dos aspectos mais importantes em qualquer sociedade é a atuação dos intelectuais. Mas, ao mesmo tempo em que é importante, essa atuação é cada vez mais confusa e incompreendida, tanto da parte da sociedade quanto dos governos quanto, para piorar muito mais, da parte dos próprios intelectuais.

Qualquer pessoa que lê livros de história, sociologia, filosofia – ou melhor, qualquer pessoa que acompanhe os jornais diários percebe que as disputas políticas, as brigas intelectuais, as modas acadêmicas alteram profundamente a atuação dos intelectuais.

No dia a dia, o que vemos é esta verdadeira mixórdia:

  1. Quem são os intelectuais? Jornalistas, filósofos, professores, pesquisadores universitários, pesquisadores independentes, padres, pastores, pais/mães de santo, gurus, autores de autoajuda, influenciadores, agentes do governo? São pessoas que atuam isoladamente, que representam organizações, que falam em nome de corporações?
  2. Qual o fundamento da ação dos intelectuais? São pessoas que falam por inspiração divina, que falam ao incorporarem espíritos, que falam ao consumirem drogas alucinógenas, que falam como pesquisadores das ciências naturais, que falam como pesquisadores das ciências humanas, que falam como filósofos, que falam como líderes comunitários, que falam porque são pagos por jornais, que falam porque o governo manda, que falam porque estão em partidos políticos?
  3. Para que servem os intelectuais? Para explicar aspectos da realidade, para explicar a vida após a morte, para explicar a ira divina, para justificar a ordem social, para criticar a ordem social, para propor a revolução, para propor o retorno à ordem antiga, para justificar as ações de políticos e de governos, para aumentar a erudição pessoal, para disseminar o conhecimento, para estimular o amor, para estimular o ódio?
  4. A situação institucional dos intelectuais importa ou não? Um filósofo escondido nos confins do país tem a mesma “relevância” de quem é pago pelos principais jornais (impressos e da TV) para dar suas opiniões ou que os professores universitários das grandes universidades do Sudeste do Brasil?

Em meio a essa confusão – queremos evitar a palavra “caos” –, os chamados intelectuais atuam e influenciam. É importante, assim, entendermos um pouco o que eles são e como atuam – especialmente porque, como o parágrafo acima sugere, essas questões não são nada evidentes. Vale a pena dedicarmos alguns artigos desta coluna a essa questão.

O aspecto fundamental é: para que servem os intelectuais? A bem da verdade, não dá para responder a essa questão sem que se considere as várias sociedades envolvidas. Diferentes sociedades têm diferentes grupos de intelectuais, que atuam de diferentes maneiras. Apesar disso, ainda assim, todos precisamos de um conceito geral e básico, que permita começar a organizar a barafunda de possibilidades que vivemos hoje.

De nada nos serve pura e simplesmente afirmar a diversidade concreta de possibilidades de atuação dos intelectuais e achar que isso basta: se não tivermos uma clareza mínima nas ideias, o entendimento da realidade será pobre e, daí, nossas ações serão confusas e prejudiciais. (Aliás, isso já sugere algumas das funções dos intelectuais: explicar a realidade, organizar as ideias e permitir a orientação das condutas práticas.)

Para esse conceito mínimo dos intelectuais, a referência obrigatória nesse caso – como em inúmeros outros, aliás – é Augusto Comte, não por acaso o fundador da Sociologia. Para Comte, todas as sociedades se caracterizam por alguns elementos, que ele resume em número de cinco, ou melhor, seis: família, linguagem, propriedade, religião e governo; o governo desdobra-se em governo temporal e poder espiritual.

Para evitar confusões: a religião aqui tem que ser entendida como a regulação geral da existência humana; assim, ela não pode ser confundida com a teologia (que é só uma forma específica e transitória de religião). Já a propriedade, por seu turno, é a base material das sociedades, de modo que engloba a produção e a reprodução econômica e a organização social que se divide na força concentrada (com os chefes industriais) e a força dispersa (com os proletários).

Mas o que nos interessa é o governo: ele serve para impor à sociedade os rumos julgados mais importantes pelo conjunto da sociedade, o que equivale dizer que é a reação da sociedade sobre os indivíduos. Dessa forma, para Comte não existe sociedade sem governo (assim como, inversamente, não existe governo sem sociedade).

Há duas possibilidades gerais de atuação do governo: via força física, de maneira objetiva, e via aconselhamento, de maneira subjetiva. No primeiro caso nós temos o governo propriamente dito, também conhecido como Estado; é o que A. Comte chamava de “poder temporal”, que se impõe em última análise pela força física, isto é, pela violência legítima. Já o governo que se baseia no aconselhamento é o “poder espiritual”; ele convence as pessoas, a partir da educação, das ideias e dos valores compartilhados. É nele que atuam principalmente os “intelectuais”.

Como os fundamentos da atuação de cada um desses poderes são diferentes, convém que os responsáveis por eles estejam separados. É claro que há uma convergência geral nessas atuações, no sentido de que esses poderes visam a orientar a sociedade e os indivíduos; mas os resultados sobre os indivíduos e a sociedade são diferentes.

O Estado age de maneira objetiva e constrange os corpos; dessa forma, não lhe interessa se os indivíduos gostam ou não das decisões, se concordam ou não com elas: o que importa é que obedeçam e respeitem as decisões. (É claro que o Estado não pode desprezar a aceitação individual das decisões; mas, em última análise, caso necessário, ele imporá as decisões a despeito das vontades individuais.)

Como o poder espiritual aconselha a partir de ideias e valores compartilhados pela educação, a dignidade individual está subentendida aí: para que alguém seja convencido de algo, ele deve ter autonomia para isso, o que implica tempo e decisão individual.

Diversidade de meios, mas ação sobre as mesmas pessoas: o Estado e o poder espiritual podem ficar juntos ou separados. Ao longo da história, a sua união foi a regra, seja nas teocracias, seja no cesaropapismo; mas nos últimos dois séculos a sua separação é cada vez mais valorizada, no que se chama vulgarmente de “laicidade do Estado”. Isso será comentado na próxima coluna.

Gustavo Biscaia de Lacerda é doutor em Sociologia Política e sociólogo da UFPR.

26 novembro 2025

Monitor Mercantil: Cancelamento do Positivismo, da academia à bandeira

No dia 21 de Frederico de 171 (25.11.2025) o jornal carioca Monitor Mercantil publicou o nosso artigo "Cancelamento do Positivismo: da academia à bandeira nacional".

Aliás, considerando o tema desse artigo, devemos manifestar aqui o nosso profundo agradecimento pelo jornal Monitor Mercantil, que há cerca de um ano e meio abriu-nos as portas para que, contra o cancelamento do Positivismo, pudéssemos manifestar nossas opiniões.

Reproduzimos abaixo o texto. O original está disponível aqui: https://monitormercantil.com.br/cancelamento-do-positivismo-da-academia-a-bandeira-nacional/.

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Bandeira do Brasil - Ordem e Progresso (foto de André Maceira, CC).


Cancelamento do positivismo: da academia à bandeira nacional

A regra sobre o positivismo é o cancelamento, que começa na academia e descamba para a política prática. Por Gustavo Biscaia de Lacerda.


Em diversas ocasiões apresentamos nesta página reflexões a partir do positivismo, às vezes fazendo comentários sobre ele. Desta vez temos que comentar diretamente o tratamento dispensado ao positivismo – que, para usar uma gíria atual, consiste em um cancelamento sistemático, que começa nas universidades e rapidamente descamba para a política prática.

Antes de mais nada, lembremos que o positivismo é uma das mais importantes filosofias, políticas e religiões; tratar dele – e com honestidade! – não é questão de gosto ou preferência pessoal ou filosófica. Ele é referência básica quando se trata de ciências humanas, e é impossível tratar da história do Brasil sem que se refira também a ele.

Além disso, a filosofia, a política e a religião criada por Augusto Comte afirma com todas as letras o pacifismo, a fraternidade universal e o universalismo de vistas, bem como o caráter social da República e o respeito digno e escrupuloso com os grupos sociais frágeis. Assim, deveria ser evidente que o positivismo seja lido e ouvido, pelo menos para que a discordância com ele seja baseada no efetivo conhecimento; mas com ele ocorre o clássico “não conheço, não li e não gosto”.

No ambiente acadêmico há um senso comum crítico que afirma que nada é puramente intelectual, havendo também sempre interesses políticos e sociais envolvidos. Essa ideia tem graves problemas intelectuais e políticos, mas ela torna-se bastante evidente quando é posta em prática por pesquisadores que fazem questão dela.

Os livros de coletâneas revelam em particular esses aspectos. As coletâneas têm várias utilidades; fiquemos com indicar os temas que devem ser abordados (que “prestam”) e quais os autores autorizados a falar do que quer que seja (que merecem ter prestígio).

Consideremos três cientistas sociais brasileiros consagrados: Lília Schwarcz, Celso Castro e Christian Lynch. Nos últimos 15 anos, cada um deles organizou numerosas coletâneas: Schwarcz organizou Um enigma chamado Brasil, Dicionário da República, Agenda brasileira, Cidadania: um projeto em construção; Castro organizou Além do cânone, Textos básicos de sociologia, Introdução às ciências sociais; Lynch organizou Interpretações do Brasil, Pensamento político brasileiro, Visões da independência.

Poderíamos citar outros pesquisadores; mas esses três conjugam a intensa atividade acadêmica com o profundo conhecimento teórico e empírico – incluindo sobre o positivismo.

Em face da importância intelectual e prática do positivismo, esses dez livros com uma profusão de autores e temas deveriam apresentar muitas referências a Comte, Benjamin Constant, Teixeira Mendes, Ivan Lins, Pereira Barreto, Laffitte, Rondon etc., bem como sobre republicanismo, bandeira nacional, filosofia das ciências, teoria do Brasil, abolição, trabalhismo, indigenismo etc. Aliás, não apenas “referências”, mas artigos e capítulos dedicados a isso. Ora, não há nada nesses livros que se refira ao positivismo. Nada.

Apesar da importância do positivismo para as ciências humanas e para a história do Brasil, os organizadores das coletâneas acima decidiram, de maneira muito consciente, que o positivismo não merece ser tratado ou abordado, assim como pesquisadores positivistas não merecem a dignidade de integrar coletâneas. Não se pode dizer que essas ausências se devam à ignorância dos organizadores; com certeza eles rejeitariam ser tratados como ignorantes.

Se a ciência não é apenas intelectual, mas tem profundos aspectos políticos, as decisões dos três pesquisadores acima são motivadas não somente por preferências filosóficas, mas também por interesses políticos. Ausência de referências, impossibilidade de manifestação, silenciamento de perspectivas: isso tem efeitos intelectuais e práticos. Por meio das coletâneas acima, decidiu-se que o positivismo não deve ser conhecido nem ouvido: ele não pode existir. Segundo a gíria identitário-digital, trata-se do mais puro cancelamento.

Essas práticas acadêmicas têm consequências políticas muito diretas e palpáveis. A mais recente consiste no Projeto de Lei 5.883/2025, de autoria do deputado federal Chico Alencar, protocolizado no dia 18 de novembro, em que o carioca propõe que se mude a bandeira nacional, incluindo a palavra “Amor” antes do “Ordem e Progresso”.

A proposta do deputado Alencar é generosa e, considerando a nossa agressiva época, faz sentido e até merece apoio. Na verdade, há vários anos, Alencar se manifesta nesse sentido, integrando um “Movimento Amor na Bandeira”.

Esse grupo refere-se ao positivismo, a Augusto Comte, a Teixeira Mendes; mas muitas das observações que eles fazem sobre o positivismo e os positivistas estão erradas, ao mesmo tempo em que se recusam a ouvir os positivistas. Repetem erros sobre uma doutrina e de seus praticantes, justamente em aspectos centrais para a vida e a prática política do país, mas recusam-se a ouvir alguns dos diretamente envolvidos. A inclusão do “Amor” talvez dê prestígio e votos, mas não impede o cancelamento.

Sem entrar no mérito da questão, Alencar e seu movimento difundem conscientemente dois erros:

  • 1) o “Ordem e Progresso” seria uma corrupção da máxima fundamental do positivismo, “O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim”;
  • 2) o autor da bandeira, Raimundo Teixeira Mendes, ao resumir a fórmula completa, teria suprimido o “amor” por medo dos militares que proclamaram a República.

Esses dois erros fazem uma barafunda de muitas coisas ruins e algumas boas: ignorância sobre o positivismo e os positivistas; ignorância sobre a Proclamação da República, seus membros, seus ideais; mistificação sobre a monarquia; rejeição ao militarismo (em particular ao de 1964).

É claro que a frase “O amor por princípio…”, sendo filosófico-moral, é mais densa e profunda que o simples “Ordem e progresso”. Entretanto, o “Ordem e progresso” não é um resumo da outra frase, tendo existência por si só, ao representar ideais sociopolíticos. Estreitamente vinculadas, elas têm âmbitos diferentes e, daí, redações diferentes, relativas a situações diferentes. O “Ordem e progresso”, portanto, não é uma corrupção teórica.

Por outro lado, quando ocorreu a Proclamação da República, Teixeira Mendes projetou por si só uma bandeira que foi depois encaminhada ao governo provisório republicano por Benjamin Constant; como este era uma pessoa gentil, pacífica, convergente e extremamente respeitada, a proposta de Teixeira Mendes foi aceita. Portanto, nada de um covarde submetido a brucutus em meio a uma quartelada.

Como positivista, a difusão consciente desses erros causa-me irritação e tristeza. Mas como cidadão brasileiro tenho a sensação de que uma proposta simpática, que poderia suscitar uma boa reflexão e estimular bons sentimentos, apresenta vícios morais e intelectuais bem em sua origem e que traem a intenção da proposta.

Silenciamento, recusa em reconhecer os outros, recusa em ouvir aqueles de quem se fala… no que se refere ao positivismo, como se vê, a regra é o cancelamento, que começa na academia e que, da pior maneira possível, descamba para a política prática.

Gustavo Biscaia de Lacerda é doutor em Sociologia Política e sociólogo da UFPR.

17 novembro 2025

Monitor Mercantil: A República foi só um golpe?

O jornal carioca Monitor Mercantil publicou no dia 17.11.2025 um artigo de nossa autoria, em que celebramos a Proclamação da República, por meio da crítica à noção difundida atualmente de que esse importante evento histórico foi apenas mais um golpe.

Reproduzimos abaixo o texto.

A publicação original está disponível aqui: https://monitormercantil.com.br/a-republica-foi-mesmo-so-mais-um-golpe/.

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A República foi mesmo só mais um golpe?

Em face do desprezo à república e da ideia de que foi apenas um golpe, não é de estranhar a crise política e social que vivemos Por Gustavo Biscaia

Constituição da República Federativa do Brasil (Foto: Rodrigo Viana/Senado Federal)

Em diversas colunas anteriores escrevemos a respeito do conceito de república, bem como da importância de recuperarmos a experiência histórica da república no Brasil. Esses esforços não são exercícios academicistas nem a satisfação de vaidade pessoal; bem ao contrário, eles correspondem à necessária e urgente reafirmação de conceitos e práticas que condensam os mais generosos e realistas traços, projetos e aspirações sociais e políticas das sociedades contemporâneas.

No Brasil – mas, bem vistas as coisas, também no mundo de um modo geral – a manutenção do mito monarquista, a que se vincula de maneira íntima a também mistificada proposta do parlamentarismo, prejudica a noção de república. A tudo isso se soma a desinformação ao mesmo tempo liberal e marxista, que, com objetivos opostos, coincidem na afirmação reducionista de que o republicanismo seria apenas formalismo jurídico (e burguês), sem caráter social, quando não com caráter antissocial.

Como estamos justamente no período da Proclamação da República no Brasil, todas essas concepções ressurgem de maneira avassaladora. A grande síntese dessa degradação geral da utopia republicana é a afirmação atualmente reiterada urbi et orbi de que a Proclamação, no amanhecer de 15 de novembro de 1889, teria sido meramente um golpe militar.

Argumentar os graves erros dessa afirmação não é algo fácil nem, nos dias atuais, muito agradável; mas a autonomia intelectual e moral exige, precisamente, dizer com clareza o que, em determinado momento, não se deseja ouvir, mesmo (ou principalmente) quando quem não quer ouvir são “intelectuais”, bem-pensantes e/ou progressistas. Em outras palavras, bem aqueles que deveriam ser os mais sensíveis e simpáticos ao republicanismo.

O ideal republicano, seja como antimonarquia, seja como espaço de liberdades cívicas e sociais, já era manifestado no Brasil desde o século 18, a partir dos poderosos exemplos da independência dos Estados Unidos (1776-1781) e da Revolução Francesa (1789-1799), mas entrando no século 19, também com a independência de toda a América Espanhola (1808-1829) e, por fim, com a brutal Guerra contra o Paraguai (1864-1870).

A República no Brasil foi proposta pelo grande Tiradentes – cuja celebração, aliás, foi feita desde o início tanto pela independência nacional quanto pela república –; depois pela gloriosa Confederação do Equador (1817) e pelos amplos experimentos envolvidos na Revolução Farroupilha (1835-1845), com a República do Piratini e a República Juliana.

Se tudo isso não fosse pouco – e não é, na medida em que envolveu amplas camadas sociais, das elites aos pobres e aos escravos, de Norte a Sul do país – em termos institucionais o Patriarca da Independência, José Bonifácio, preferia a república à monarquia, mas manteve o regime de castas para manter a unidade territorial e, de maneira reveladora, porque o país somente se manteria uno se fosse com base na escravidão – e a escravidão exigia a monarquia. Além disso, no período regencial (1831-1840) vivemos uma experiência republicana verdadeira e legítima, ainda que tumultuada.

O grande marco do republicanismo brasileiro, todavia, foi a guerra contra o Paraguai, que evidenciou o atraso nacional, representado em particular pela escravidão, pelo imperialismo e, claro, pela própria monarquia. Após décadas de imperialismo e intervencionismo brasileiro na região do Prata, a guerra evidenciou o quanto a monarquia desrespeitava as demais nações; além disso, o sacrifício heroico e voluntário dos soldados paraguaios – que lutavam por sua própria pátria – chocou cada vez mais os brasileiros, que morriam para manter uma sociedade escravista, de castas, mantenedora ativa do atraso.

Não foi por acaso que, quando a guerra terminou, reiniciou-se o republicanismo brasileiro, com a fundação, em 1870, do Partido Republicano, em Itu. Em 2017, em homenagem a esse acontecimento, durante alguns dias o município de Itu foi tornado capital temporária do Brasil, assim como atualmente ocorre com Belém do Pará.

Para além das propostas e tentativas republicanas, é importante pura e simplesmente afirmar o crescente passivo social e político da monarquia. Nesse sentido, não podemos minimizar nem a guerra contra o Paraguai, nem a escravidão, nem o atraso geral do país.

A guerra foi realmente traumática, impondo sacrifícios a toda a população; o regime que, a partir do imperialismo, patrocinou e causou a guerra, merecidamente foi criticado. A partir do exemplo cidadão dos paraguaios, da pressão internacional e do desenvolvimento moral e político interno, a escravidão tornou-se cada vez mais intolerável.

Esses fardos sociais e políticos eram mantidos em conjunto e ao custo de um centralismo político brutal; uma política violentamente excludente e corrupta; uma economia atrasada. Tudo isso coroado por uma eventual sucessora do trono que era agressivamente teológica e cujo consorte era um príncipe estrangeiro. E por um imperador que fingia que nada disso ocorria ou que apoiava ativamente esses problemas, mas que, ao mesmo tempo, passava seu tempo escrevendo cartas para os sábios europeus e em caríssimas, longas e inúteis viagens internacionais.

Os dois lados da questão – a centenária campanha republicana e o pesado e crescente passivo da monarquia – sempre foram negadas pelos monarquistas brasileiros, sejam os antigos, sejam os recentes; sejam os explícitos, como Eduardo Prado, Oliveira Vianna ou José Murilo de Carvalho, sejam os disfarçados, como Lília Schwarcz ou Carlos Fico.

Em diferentes graus e com variadas ênfases, os meios adotados por esses autores são simples e conhecidos:

  1. negação da realidade histórica e/ou das virtudes morais e políticas da república;
  2. mistificação da monarquia por meio da omissão de todos os problemas indicados acima.

Para que não reste dúvida: desde o século 18 até a Proclamação da República (e mesmo além), o republicanismo foi proposto de maneira sincera e generosa, como a necessária condição para o desenvolvimento brasileiro, com liberdades civis, políticas e sociais.

A campanha republicana, paralelamente à campanha abolicionista, ganhou as ruas e as massas, sendo celebrada na cultura popular (modinhas, literatura, músicas, poemas, contos etc.): em outras palavras, muito longe da mistificação monarquista, o povo não estava alheio nem assistiu como uma besta à Proclamação.

Opondo-se à opressão e ao autoritarismo monárquico (colonial ou nacional), o que se desejava com a utopia republicana, era – para usar termos atuais – ampliar a esfera pública e o espaço da cidadania no país.

Aliás, é importante notar que, como prova tanto da sincera proposta de cidadania dos republicanos quanto da negação crítica dos (cripto)monarquistas, houve políticos e intelectuais que propuseram que o próprio imperador acabasse com a monarquia, proclamasse a república e candidatasse-se a presidente.

Essa proposta era a dos positivistas (Miguel Lemos e R. Teixeira Mendes à frente), para que o imperador realizasse ele mesmo a necessária transição do regime; entretanto, como é ao mesmo tempo conveniente, fácil e hipócrita ridicularizar a única proposta que conjugaria a mudança de regime com a alteração pacífica de status quo, a sugestão feita com ampla publicidade e durante anos pelos positivistas é atualmente ignorada ou desprezada pelos historiadores (marxistas, liberais e/ou [cripto]monarquistas), que também criticam o suposto caráter golpista da república.

Como se vê, nesse jogo retórico não há qualquer opção em favor da república e a única opção “boa” seria a permanência da monarquia, com o autoritarismo centralizador, a política excludente e de castas com religião oficial de Estado, o atraso social e econômico, o imperialismo externo.

Todas as afirmações acima se baseiam em ampla literatura histórica, sociológica, artística etc. e deixam claro que, pura e simplesmente, é falsa a afirmação corrente de que a Proclamação da República teria sido meramente uma quartelada realizada por oficiais autoritários e sedentos do poder civil, contra uma população alienada.

A Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, teve amplo apoio social (civil e militar, das elites às massas, do Norte ao Sul do país), correspondendo tanto a necessidades coletivas urgentes como a anseios profundos: foi um movimento legítimo e em favor das mais generosas, livres e fraternas utopias políticas.

Em face do desprezo que intelectuais, meios de comunicação e políticos votam hoje à república, não é de estranhar a crise política e social que vivemos e que opõe a ordem ao progresso. Já argumentamos várias vezes: recuperar esses ideais republicanos é uma necessidade atual urgente.


Gustavo Biscaia de Lacerda é doutor em Sociologia Política e sociólogo da UFPR.

11 novembro 2025

Monitor Mercantil: Ainda a Operação Contenção

No dia 10 de novembro de 2025, o jornal carioca Monitor Mercantil publicou o nosso artigo intitulado "Ainda a Operação Contenção: reflexões sobre a cidadania".

O original pode ser lido aqui: https://monitormercantil.com.br/ainda-a-operacao-contencao-reflexoes-sobre-a-cidadania/.

Reproduzimos abaixo o texto.

Vale notar que o texto abaixo é uma versão muito resumida da prédica positiva de 28 de Descartes de 171 (4.11.2025), disponível aqui e aqui.

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Retirada de corpos na Operação Contenção (foto de Tomaz Silva, ABr)

Ainda a Operação Contenção: reflexões sobre a cidadania

Fascistas são retrógrados e totalmente contrários aos hábitos modernos: uma análise sociológica da Operação Contenção. Por Gustavo Biscaia de Lacerda.


Embora já se tenham passado duas semanas após a escandalosa Operação Contenção, realizada em favelas da Zona Norte do Rio de Janeiro em 28/10/2025, cremos que podemos ainda a comentar. Na verdade, mais que podemos, cremos que devemos comentá-la, tal a barbárie ali cometida. Além disso, embora tenhamos boas notícias desde então (pensamos no início da 30ª Conferência sobre o Clima da Organização das Nações Unidas, em Belém do Pará), o fato é que se passaram apenas duas semanas e não podemos perder de vista os graves problemas envolvidos no episódio.

O que desejamos aqui é refletir um pouco sobre o tipo de polícia de que precisamos, a partir de considerações históricas, sociológicas e filosóficas. É claro que serão apenas indicações muito gerais.

Antes de mais nada, é importante reafirmarmos: a Operação Contenção foi escandalosa em si mesma, e a afirmação subsequente do governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, de que ela, “com exceção da morte dos quatro policiais, foi um sucesso”, é igualmente escandalosa.

A justificativa oficial da operação, que mobilizou um efetivo policial de 2.500 homens, foi a execução de mandados de prisão de vários líderes do Comando Vermelho; com isso, nominalmente se desejava estrangular a liderança da organização e impedir que ela avançasse sobre territórios de favelas nos complexos do Alemão e da Penha.

A “contenção” da operação consistia em evitar que o Comando Vermelho avançasse sobre territórios controlados por milícias (ou seja, por policiais corruptos). Os mandados não foram executados, os líderes buscados fugiram, e 117 civis foram executados, além de quatro policiais.

Argumentou-se depois que muitos dos civis mortos eram criminosos com ficha na polícia e/ou mandados de prisão; entretanto, não apenas o objetivo da Operação Contenção não era ir atrás desses peixes pequenos, como, de qualquer maneira, a polícia não pode agir tendo em vista a execução da população que supostamente deveria proteger.

Assim, falar que muitos dos assassinados eram criminosos é uma forma cruel de evitar a conclusão evidente: a Operação foi um fracasso retumbante e, mais uma vez, afirmou-se o princípio de que, no Brasil, os pobres e favelados são culpados mesmo que se prove o contrário, sujeitos à pena de morte com execução sumária.

(Para os pobres e favelados vale a máxima do deputado-delegado Sivuca, “bandido bom é bandido morto”; os criminosos ricos que atuam nas avenidas Faria Lima e Rio Branco não são “bandidos”, não são julgados, não são presos e muito menos são executados.)

Dito isso, vale a pena refletirmos sobre porque consideramos a Operação Contenção uma barbárie. O melhor nesse caso (como em muitos outros) é retomarmos as reflexões históricas de Augusto Comte, o fundador da Sociologia.

Comte contrapunha a sociabilidade moderna à sociabilidade antiga. A “sociabilidade” são as formas como as pessoas se relacionam entre si e aos objetivos gerais das sociedades. Os “antigos” são principalmente os antigos gregos e romanos, além de outros povos em situações sociológicas semelhantes; já os “modernos” somos inicialmente os ocidentais e, a partir disso, os povos influenciados pelos hábitos desenvolvidos depois da Idade Média.

A sociabilidade antiga baseava-se na guerra, ou seja, na violência sistemática; os critérios de distinção social em tais sociedades eram militares (honra, coragem, força física); a conquista política e territorial tinha primazia sobre a produção econômica sistemática, que, não por acaso, era considerada como atividade subalterna e/ou degradante. A simplicidade das atividades militares tornava muito fácil a avaliação dos méritos individuais; o caráter militar dessa sociabilidade implica sempre que uma pátria dominará as demais, seja por meio de dominação direta, seja por meio de hegemonia (e hegemonia militar, em particular).

Já a sociabilidade moderna é pacífica e industrial, baseada em relações fraternas, na liberdade e na dignidade humana. Como as operações sociais são complicadas e exigem a intermediação de inúmeros agentes e procedimentos, a avaliação dos méritos individuais é muito mais difícil; os méritos individuais e coletivos são mais variados mas também menos definidos. A riqueza é produzida de maneira compartilhada, seja entre indivíduos e classes, seja entre países; isso implica responsabilidade e confiança mútuas, da mesma forma que exige pátrias pequenas.

Até a modernidade, a ordem civil era mantida pelos exércitos, que tinham uma atuação dupla (interna e externa); mas como os exércitos servem para matar e destruir, sua atividade interna era (como é) sempre violenta. Em contraposição, a polícia é uma instituição moderna, dedicada à manutenção da ordem civil; em clara contraposição aos exércitos, a polícia não emprega prioritariamente a violência em suas atividades.

De maneira ideal e sintomática, a noção de polícia cidadã (e não violenta) foi proposta pelo primeiro-ministro inglês Robert Peel, em 1829, quando ele criou a Scotland Yard. Assim, a polícia foi criada como consequência da mudança das sociabilidades, claramente no sentido de que a atuação da polícia não pode ser militaresca, mas deve ser cidadã.

A polícia cidadã tem que atuar pautada pelo respeito à dignidade humana e às liberdades, pela preservação da vida e do patrimônio. Além disso, mantendo um caráter social, a polícia cidadã deve zelar, proteger e buscar a prosperidade, em particular do proletariado. Evidentemente, o caráter cidadão da polícia implica que as ações violentas devem ser substituídas pelas chamadas “ações de inteligência”, sendo que as penalidades devem concentrar-se em aspectos educativos.

Ações como a Operação Contenção são entendidas como bárbaras porque são retrógradas, que aplicam hoje parâmetros arcaicos e ultrapassados, que devem permanecer na lata do lixo ou no museu da história. Os antigos (na verdade, até depois da Idade Média) consideravam que chacinas eram terríveis, mas, apesar de tudo, eram fatos da vida: para chorar e lamentar, mas inescapáveis.

Ora, exatamente porque a sociabilidade moderna desenvolveu-se e aprofundou-se é que consideramos que as chacinas são bárbaras e totalmente inaceitáveis. A Operação Contenção foi exemplar: ela representou o exato oposto de todos os parâmetros da polícia cidadã.

A celebração da chacina da Operação Contenção, da parte do governador Cláudio Castro e de muitos outros políticos, evidencia o quanto eles e os fascistas são retrógrados e totalmente contrários aos verdadeiros hábitos modernos.

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

13 outubro 2025

Recuperar e revalorizar a 1ª República

No dia 13 de outubro de 2025, o jornal carioca Monitor Mercantil publicou o nosso artigo "Recuperar e revalorizar a I República".

Reproduzimos abaixo a publicação. O original pode ser lido aqui.

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Recuperar e revalorizar a 1ª República

É erro dizer que foi um longo período oligárquico com viés antissocial Por Gustavo Biscaia de Lacerda


Proclamação da República (quadro de Benedito Calixto, domínio público)

Pode parecer estranho, à primeira vista, defender atualmente a 1ª República no Brasil. É bem verdade que, lamentavelmente, na última década, as mais estranhas propostas políticas foram defendidas — desde golpes fascistas até o parlamentarismo, passando pelo retorno da monarquia. Essas propostas devem ser entendidas como aberrantes e, se não vivêssemos uma época de profundas crises morais e políticas, já deveriam ter sido descartadas sumariamente, compreendidas como as tolices que de fato são.

O mesmo já não se dá com a defesa da 1ª República, isto é, com o regime brasileiro de 1889 a 1930. O estranhamento a essa proposta se deve ao sucesso obtido pelas críticas feitas contra a República desde cerca de 1915 — na verdade, considerando a atuação dos monarquistas, desde antes — e, em particular, a partir de 1930. A respeito da I República, temos então que considerar pelo menos: (1) a motivação das críticas dirigidas contra ela e (2) o alto custo político, moral e social dessas críticas.

Bem ou mal, sempre houve e há críticas aos regimes políticos: pensemos na extremamente agressiva campanha levada a cabo em 1954 (suicídio de Vargas) por Carlos Lacerda e seus acólitos, ou na campanha de terra arrasada realizada pela coalizão golpista de procuradores da República, juízes federais, militares e teólogos entre 2014 e 2022.

No que se refere à 1ª República, tão logo ela foi proclamada, em 1889, surgiram críticas — especialmente as dos monarquistas, alguns declarados (como o português Eduardo Prado) e outros vergonhosamente disfarçados, como Oliveira Vianna. A Igreja Católica, da mesma forma, ao perder seus vastos privilégios, fez coro aos reacionários.

A I República durou 40 anos (1889–1930); se ela foi criticada, também foi, e muito mais, apoiada. Na verdade, não faz o menor sentido repetir as críticas habituais de que teria sido um longo período oligárquico com forte viés antissocial, antipopular e antiliberdades. Como comentamos há pouco, esse tipo de crítica também foi feito ao regime de 1946 a 1964, assim como começou a ser esgrimido novamente logo após 1988 e com renovada intensidade depois de 2013 — tanto à direita quanto à esquerda. Precisamos de criticidade sobre essa criticidade.

Assumir que a I República foi um bloco homogêneo em um país oligárquico, com uma população imbecilizada, é degradar a vida nacional — entendida, assim, como eternamente realizada por idiotas incapazes de pensar e atuar com autonomia. Aliás, é assumir que, logo na I República, a população brasileira teria se tornado imbecil e deixado de agir com autonomia e coragem. Deveria ser claro que isso não faz o menor sentido — mas, a começar pela quase totalidade dos historiadores e cientistas sociais brasileiros contemporâneos, essa falta de sentido é ignorada.

Temos que distinguir as críticas que propunham a destruição do regime daquelas que cobravam melhorias e o cumprimento das promessas republicanas. A I República foi proclamada contra — e em substituição — à monarquia, à escravidão, ao misticismo clericalista, à religião oficial de Estado, ao militarismo imperialista, ao subdesenvolvimento, ao centralismo autoritário e à política ultraoligárquica.

Embora estranhamente não se fale nada disso hoje em dia, o passivo social e político do Império era gigantesco — e a mudança de regime, urgente. Assim, a República foi um importante avanço social, político e moral.

A República teve dificuldades, problemas e limitações? Claro que sim. Mudanças sociais são lentas e exigem que a sociedade persista. Basta considerarmos que o novo regime teria de ser conduzido por muitos grupos e políticos vinculados à antiga ordem (como, aliás, ocorreu após 1988 e, agora, mais uma vez depois de 2022), incluindo os adesistas de última hora, ansiosos por manter o poder — como o mistificado Rui Barbosa.

Proclamada para realizar o progresso social, a República foi criticada por vários grupos que desejavam que esse progresso ocorresse: basta ler (com honestidade) as publicações dos positivistas — Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes à frente — ou as de Alberto Torres, para comprovar essa preocupação. Os positivistas publicaram desde 1881 até 1927 e mesmo depois; Torres publicou na década de 1910.

Mas, na década de 1910, começou a publicar também outro autor: Oliveira Vianna. Não sendo da geração que fizera a República, e com uma admiração mística e mistificadora pela monarquia, Oliveira Vianna desprezava a República, suas instituições e suas ações. Admirava o parlamentarismo liberal inglês praticado durante o Império, com seus elementos oligárquicos, antipopulares e autoritários. Não por acaso, com todas as letras e de maneira inequívoca, defendia — mais uma vez, contra a República — o autoritarismo.

Ora, a partir da década de 1920, as crises sociais e políticas aumentaram. As críticas meramente negativas (contra o regime) ganharam cada vez mais espaço, ao passo que as críticas construtivas escassearam. Quando, em outubro de 1930, Getúlio Vargas deu seu primeiro golpe de Estado, os argumentos utilizados a posteriori para justificar suas ações foram de caráter destrutivo: apesar de ter iniciado sua carreira como um importante político da República, sua lealdade ao regime era mínima — para não dizer nula. Depois de novembro de 1937, após o segundo golpe de Estado de Vargas, a justificativa a posteriori para o regime agressivamente autoritário repetia, ipsis litteris, os insidiosos argumentos de Oliveira Vianna.

É espantoso e escandaloso que se repita até hoje a mentalidade celebrada pelos autoritários Oliveira Vianna, Francisco Campos e seus acólitos. Não por acaso, a noção de “República” é desprezada, e fala-se em “República Velha” para referir-se à 1ª República.

Como vimos, mais que uma vitória de longo prazo da mistificação monarquista e autoritária de Oliveira Vianna, o desprezo nutrido desde 1930 pela 1ª República tem graves consequências. A primeira é a dupla mistificação: a favor da monarquia (uma época idílica) e contra a 1ª República (um bloco oligárquico, antipopular e imbecilizante).

A segunda é a ignorância do conceito de República e de suas condições institucionais, sociais e morais, em prol de confusões sobre a “democracia” — que incluem a democracia autoritária de Oliveira Vianna!

A terceira consequência é o entendimento de que a população brasileira teria sido imbecilizada justamente na 1ª República, cessando seu intenso ativismo vigente desde a fase colonial e magicamente retomado após 1930.

A quarta consequência resume as anteriores: não se entende a vida política brasileira com um desenvolvimento ao longo do tempo (com clivagens eventuais), mas como contínuos e renovados erros a serem expurgados a cada 30 anos. O resultado é trágico: falta de memória histórica, de aprendizado coletivo, de ordem política e de progresso social.

Urge recuperarmos e revalorizarmos a 1ª República.

Gustavo Biscaia de Lacerda é doutor em Sociologia Política e sociólogo da UFPR.

12 agosto 2025

Monitor Mercantil: "Autonomia nacional, multilateralismo e prepotência fascista"

No dia 11 de agosto de 2025 o jornal carioca Monitor Mercantil publicou o nosso artigo "Autonomia nacional, multilateralismo e prepotência fascista".

Reproduzimos abaixo o texto publicado; o original encontra-se disponível aqui: https://monitormercantil.com.br/autonomia-nacional-multilateralismo-e-prepotencia-fascista/.

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Protesto contra os EUA em Brasília (Foto: José Cruz/Agência Brasil)

Autonomia nacional, multilateralismo e prepotência fascista

Quinta-colunas devem ser julgados, condenados e aprisionados Por Gustavo Biscaia de Lacerda


Não há como não tratarmos, nesta coluna, da agressiva investida que Donald Trump realiza contra o Brasil desde há alguns meses, mas que recentemente assumiu um aspecto bem mais ofensivo. O mínimo que se deve fazer é rejeitar a imposição de medidas econômicas e políticas usadas como instrumentos para alterar e degradar o funcionamento normal das instituições políticas brasileiras; mas é claro que não é somente isso que se pode e deve fazer. Apresentaremos duas ou três ordens de reflexão aqui.

Tendo por instrumento o unilateralismo de Trump – cuja prepotência e ignorante arrogância são vendidas como sabedoria de negociação –, os objetivos da agressão são múltiplos: forçar a libertação de um golpista fascista; evitar o exemplo internacional de processo judicial autônomo contra golpes fascistas; atingir um país governado por um esquerdista; e enfraquecer o polo alternativo de poder que são os Brics.

Nada disso é aceitável e, conforme alguns analistas têm indicado, essa violação flagrante da chamada soberania nacional brasileira por uma grande potência é uma atitude inédita nos últimos 70 ou 80 anos. Não apenas isso, mas tal violência apresenta o sério agravante de ser apoiada e estimulada por agentes brasileiros, no interior e no exterior.

A Guerra Civil Espanhola (1936-1939) deixou como legado, além do esfacelamento do republicanismo espanhol e da ascensão da monarquia apoiada pelo fascismo, também a expressão “quinta coluna”. Os quinta-colunas são os apoiadores internos das forças invasoras externas; além do odioso sentido de traição, essa expressão ainda se vincula ao apoio ao fascismo (originalmente franquista).

Assim, os brasileiros que apoiam e incentivam as medidas de Donald Trump contra o Brasil merecem totalmente o rótulo de “quinta-colunas”: traem o próprio país em apoio ao fascismo. Esses traidores, a partir de um abjeto e anacrônico militarismo, há muitos anos conspurcam a bela palavra “patriotas”. No linguajar dos quinta-colunas, os patriotas não são aqueles que se dedicam ao país com espírito de civismo, civilidade e civilismo, mas aqueles que apoiam o golpismo, a erosão das instituições, o autoritarismo, o militarismo, a prepotência, a falta de decoro – e, agora, também o servilismo ao fascismo que vem do Hemisfério Norte. Seguindo o devido processo legal, todos eles devem ser julgados, condenados e aprisionados como traidores que são.

A atuação de Trump pauta-se por uma visão isolacionista e prepotente dos Estados Unidos. Para ele, não há espaço nem justificativa para parcerias ou alianças, nem mesmo para auxílios; há apenas submissão. Se um país precisa de apoio, ele é fraco demais para ser levado a sério; já as afirmações de parcerias ou alianças, para Trump, são apenas eufemismos para países que não conseguem se defender sozinhos e se recusam a pagar os tributos imperiais. Para Trump, os únicos países dignos de serem levados a sério são os inimigos (como a China) e outros países prepotentes (como a Rússia).

O isolacionismo de Trump corresponde tanto à sua visão de mundo quanto também é a resposta que ele dá para os problemas atuais dos Estados Unidos, especialmente para os operários e para os brancos (desemprego, desindustrialização, perda de prestígio). Mas, como os Estados Unidos foram peça central na arquitetura mundial desde a II Guerra Mundial, o isolacionismo não é uma estratégia factível; ele assume o feitio de um brutal unilateralismo (o que, aliás, satisfaz mais Trump).

Esse comportamento, entretanto, em vez de afirmar a força dos Estados Unidos no mundo, faz exatamente o contrário: dilapida, com rapidez, os fundamentos desse poder. Com a vitória na Guerra Fria, os Estados Unidos consolidaram o multilateralismo e a globalização, instituindo tanto fóruns diversificados de negociação quanto se afirmando como a peça central dos diversos mecanismos envolvidos.

Não era somente força bruta; tão importante quanto era a confiança compartilhada, as concessões feitas, os auxílios prestados. Não se tratava só de boa vontade, é claro; mas não se pode cair no extremo oposto e reduzir a ação dos Estados Unidos a mero interesse. Tratava-se de um misto de idealismo e realismo.

Com George W. Bush, os Estados Unidos adotaram o agressivo unilateralismo militar da “guerra ao terror”, unilateralismo que foi revertido com Obama e o enfrentamento da crise financeira de 2008. Precisando de ajustes maiores ou menores, até 2016 o multilateralismo foi levado a sério. Com Trump, isso se reverte; em seu primeiro mandato ele ensaiou o unilateralismo, e sua reeleição confirmou suas intenções.

Começamos este artigo defendendo a autonomia nacional brasileira e passamos, depois, a elogiar o multilateralismo. Tomados de modo absoluto, esses princípios se tornam incompatíveis um com o outro; entretanto, a realidade prática e, daí, a teoria política têm que reconhecer que ambos são necessários e, portanto, ambos devem ser levados em consideração.

A noção de soberania absoluta, mais ou menos surgida no século 17, foi posta em questão após a II Guerra Mundial em favor do multilateralismo e dos destinos compartilhados. O multilateralismo, imperfeito como era até há pouco tempo, baseou-se, entretanto, em negociações, que foram se ampliando em termos de assuntos, de participantes e de instâncias.

A importância do multilateralismo não está somente em que ele é um canal para a condução negociada e compartilhada dos assuntos humanos: é a realização da consciência de que a humanidade tem interesses comuns, cujo tratamento exige ações comuns e uma perspectiva que englobe o futuro e o passado, como no caso da crise climática.

Enquanto o multilateralismo comercialista-financista americano dos anos 1990 foi corretamente criticado, o unilateralismo de Trump tem o paradoxal efeito de ressaltar a importância do multilateralismo em geral.

O multilateralismo evidencia os destinos compartilhados, como também a concepção de que a soberania absoluta deve ceder espaço à soberania relativa ou, para os nossos propósitos, à autonomia nacional.

O que muda entre a concepção absoluta e a relativa é a percepção de que a Terra é única e de que somos todos seres humanos; não tem cabimento pretender que cada país julgue a si próprio como parâmetro e objetivo último de suas ações.

Ao mesmo tempo, cada país tem suas próprias tradições, leis, instituições e preocupações – e tudo isso se deve respeitar cuidadosamente. Com todas as suas limitações e dificuldades, a autodeterminação é um princípio que se afirma e aplica desde o século 19 e que está na base da legitimidade do multilateralismo atual.

A prepotência fascista de Trump não vai somente contra o interesse nacional dos Estados Unidos e contra a soberania brasileira; ela nega o passado e prejudica ativamente o presente e o futuro. Cabe a todos nós combater e reverter essas tendências, em favor dos mais altos interesses da Humanidade.

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

16 julho 2025

Monitor Mercantil: Afinal, o que é a República?

No dia 16.7.2025, o jornal carioca Monitor Mercantil publicou nosso artigo intitulado "Afinal, o que é a República?".

O texto do jornal encontra-se publicado aqui: https://monitormercantil.com.br/afinal-o-que-e-a-republica/.

Reproduzimos abaixo o texto.

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Afinal, o que é a República?

Lembre a fórmula elaborada por Augusto Comte: “Viver para os outros” Por Gustavo Biscaia de Lacerda

Em diversas ocasiões, já falamos, nesta coluna, sobre a República e o republicanismo; nessas ocasiões, apresentamos alguns conceitos gerais a fim de comentarmos situações concretas da vida política brasileira. Entretanto, vale a pena abordarmos diretamente alguns dos princípios gerais e abstratos do republicanismo.

Os dois primeiros princípios da República são dados por seu nome. Por um lado, a República consiste no governo não monárquico; por outro lado, ela afirma o primado do bem público.

Embora muitos pensadores, especialmente de países monarquistas (como a Inglaterra ou a Espanha), finjam que apenas o bem público basta para caracterizar a República, o fato é que esses dois aspectos são estreitamente relacionados.

A monarquia consiste em que o governante é escolhido em uma família específica; essa família tem que ter seus privilégios afirmados pela divindade, ou seja, de maneira caprichosa e profundamente arbitrária. No final das contas, a monarquia é um resquício (implícito ou explícito) das sociedades de castas; assim, na modernidade, a monarquia é radicalmente contra a dignidade individual e os méritos individuais e coletivos.


Os liberais e os pensadores juridicistas gostam de reduzir a República a formalidades políticas e jurídicas. Embora sempre haja necessidade de um certo formalismo, o verdadeiro caráter da República consiste no primado do bem público, ou seja, em seu conteúdo social.

Esse aspecto social precisa ser afirmado; caso contrário, o formalismo juridicista sequestra a República e reduz-se a regras vazias, de modo geral adequadas à manipulação das elites, das oligarquias e da burguesia.

Além do caráter social, a República caracteriza-se pela preponderância da opinião pública. A respeito da opinião pública, nossa época vive uma situação profundamente confusa, incoerente e desnorteada. Não são os meios de comunicação de massa, nem as redes sociais, nem muito menos as “pesquisas de opinião” (ou melhor, as pesquisas de humor momentâneo) que constituem a “opinião pública”: todas essas expressões, ou ondas, são apenas agregados de paixões, mais ou menos incoerentes e, da pior maneira possível, mais ou menos irracionais.

A noção de opinião pública — como, aliás, tudo na chamada teoria política, incluindo a “democracia”, a “legitimidade” ou a “soberania” — tem que ser, necessariamente, idealizada e normativa; assim, não faz sentido, e não é digno, considerar que agregados empíricos incoerentes sejam entendidos como a opinião pública.

De uma perspectiva mais digna, mais ideal e melhor elaborada em termos normativos, a opinião pública deve ser entendida como a opinião expressa por órgãos autônomos da sociedade civil, que estimulam a fraternidade universal, afirmam a participação popular, defendem o bem-estar coletivo. Por outro lado, os órgãos da opinião pública devem rejeitar o ódio, o irracionalismo das paixões cegas, o particularismo, o militarismo, a violência.

A autonomia da opinião pública e seu universalismo moral requerem que ela seja separada do Estado, o que, por sua vez, exige a laicidade do Estado e, portanto, por definição, põe em suspeita todos os intelectuais vinculados ao Estado e também todos os intelectuais estreitamente ligados a partidos políticos, a concepções particularistas e/ou defensoras da violência e do militarismo.

Todas essas concepções condensam-se na fórmula elaborada pelo fundador da Sociologia, Augusto Comte: “Viver para os outros”. Essa máxima é bastante profunda do ponto de vista moral e filosófico, e não é possível explorá-la aqui; mas sua orientação política para o bem público, para o bem coletivo, parece bastante evidente.

Entretanto, o “viver para os outros” — que, afinal, é uma fórmula moral — exige um complemento mais propriamente político: o “viver às claras”. Ainda para Augusto Comte, o “viver às claras” consiste, basicamente, em que todos devemos adotar em nossas vidas parâmetros de conduta que sejam publicamente defensáveis, a partir de concepções racionais e altruístas.

Enquanto os simples cidadãos devem adotar tais parâmetros de modo que suas condutas possam ser avaliadas por seus familiares, amigos e colegas — ou seja, pelas pessoas mais próximas —, todas as pessoas que ocupam posições de poder e influência devem ter suas vidas sempre passíveis de escrutínio público.

A mais elementar dignidade humana rejeita as devassas tão comuns à nossa época, em que as figuras públicas não são objeto de escrutínio, mas de degradação e humilhação; ainda assim, na República, a separação entre o público e o privado não deve ser entendida nos termos absolutos próprios à concepção liberal-burguesa. Dessa forma, não apenas os atos públicos, como também a vida privada dos poderosos, deve ser alvo de exame público.

A vinculação entre o “viver para os outros” e o “viver às claras” no âmbito da República é tão grande que, com as suas habituais profundidade e perspicácia, Augusto Comte nota que todos os poderosos que se recusarem a viver às claras deverão ser suspeitos de não viverem, de fato, para os outros — isto é, para o bem comum.

Na verdade, ele afirmou literalmente isso:

Malgrado as precauções interessadas dos legisladores metafísicos, o instinto ocidental não tardará a ver a publicidade normal dos atos privados como a garantia necessária do verdadeiro civismo. […] Todos os que se recusarem a viver às claras tornar-se-ão justamente suspeitos de não quererem realmente viver para os outros.

(Augusto Comte, Sistema de política positiva, v. IV, 1854, p. 312)

Sem esgotar as suas possibilidades, o que indicamos acima resume bastante da República: não monarquia, primado do bem comum, caráter social, afirmação da opinião pública, “viver para os outros”, “viver às claras”; além disso, fraternidade universal, pacifismo. Isso é muito mais, e muito mais profundo, do que o que se costuma entender por republicanismo nos discursos liberal-burgueses — seja das nossas elites políticas, seja dos intelectuais academicistas.

Esses conceitos foram propostos e, na medida do possível, aplicados no Brasil durante a Primeira República. Devido à necessidade que Getúlio Vargas tinha de legitimar os golpes que deu em 1930 e em 1937, a Primeira República foi sistematicamente desprezada a partir de 3 de outubro de 1930, sendo que, de modo geral, todos os políticos e intelectuais posteriores repetiram o discurso getulista.

Todavia, com um pouco de imaginação e coragem política, é fácil ver como todos os princípios republicanos indicados acima são não apenas passíveis de aplicação direta na realidade brasileira atual, como são cada vez mais urgentemente necessários.

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.