Mostrando postagens com marcador Monitor Mercantil. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Monitor Mercantil. Mostrar todas as postagens

17 novembro 2025

Monitor Mercantil: A República foi só um golpe?

O jornal carioca Monitor Mercantil publicou no dia 17.11.2025 um artigo de nossa autoria, em que celebramos a Proclamação da República, por meio da crítica à noção difundida atualmente de que esse importante evento histórico foi apenas mais um golpe.

Reproduzimos abaixo o texto.

A publicação original está disponível aqui: https://monitormercantil.com.br/a-republica-foi-mesmo-so-mais-um-golpe/.

*   *   *

A República foi mesmo só mais um golpe?

Em face do desprezo à república e da ideia de que foi apenas um golpe, não é de estranhar a crise política e social que vivemos Por Gustavo Biscaia

Constituição da República Federativa do Brasil (Foto: Rodrigo Viana/Senado Federal)

Em diversas colunas anteriores escrevemos a respeito do conceito de república, bem como da importância de recuperarmos a experiência histórica da república no Brasil. Esses esforços não são exercícios academicistas nem a satisfação de vaidade pessoal; bem ao contrário, eles correspondem à necessária e urgente reafirmação de conceitos e práticas que condensam os mais generosos e realistas traços, projetos e aspirações sociais e políticas das sociedades contemporâneas.

No Brasil – mas, bem vistas as coisas, também no mundo de um modo geral – a manutenção do mito monarquista, a que se vincula de maneira íntima a também mistificada proposta do parlamentarismo, prejudica a noção de república. A tudo isso se soma a desinformação ao mesmo tempo liberal e marxista, que, com objetivos opostos, coincidem na afirmação reducionista de que o republicanismo seria apenas formalismo jurídico (e burguês), sem caráter social, quando não com caráter antissocial.

Como estamos justamente no período da Proclamação da República no Brasil, todas essas concepções ressurgem de maneira avassaladora. A grande síntese dessa degradação geral da utopia republicana é a afirmação atualmente reiterada urbi et orbi de que a Proclamação, no amanhecer de 15 de novembro de 1889, teria sido meramente um golpe militar.

Argumentar os graves erros dessa afirmação não é algo fácil nem, nos dias atuais, muito agradável; mas a autonomia intelectual e moral exige, precisamente, dizer com clareza o que, em determinado momento, não se deseja ouvir, mesmo (ou principalmente) quando quem não quer ouvir são “intelectuais”, bem-pensantes e/ou progressistas. Em outras palavras, bem aqueles que deveriam ser os mais sensíveis e simpáticos ao republicanismo.

O ideal republicano, seja como antimonarquia, seja como espaço de liberdades cívicas e sociais, já era manifestado no Brasil desde o século 18, a partir dos poderosos exemplos da independência dos Estados Unidos (1776-1781) e da Revolução Francesa (1789-1799), mas entrando no século 19, também com a independência de toda a América Espanhola (1808-1829) e, por fim, com a brutal Guerra contra o Paraguai (1864-1870).

A República no Brasil foi proposta pelo grande Tiradentes – cuja celebração, aliás, foi feita desde o início tanto pela independência nacional quanto pela república –; depois pela gloriosa Confederação do Equador (1817) e pelos amplos experimentos envolvidos na Revolução Farroupilha (1835-1845), com a República do Piratini e a República Juliana.

Se tudo isso não fosse pouco – e não é, na medida em que envolveu amplas camadas sociais, das elites aos pobres e aos escravos, de Norte a Sul do país – em termos institucionais o Patriarca da Independência, José Bonifácio, preferia a república à monarquia, mas manteve o regime de castas para manter a unidade territorial e, de maneira reveladora, porque o país somente se manteria uno se fosse com base na escravidão – e a escravidão exigia a monarquia. Além disso, no período regencial (1831-1840) vivemos uma experiência republicana verdadeira e legítima, ainda que tumultuada.

O grande marco do republicanismo brasileiro, todavia, foi a guerra contra o Paraguai, que evidenciou o atraso nacional, representado em particular pela escravidão, pelo imperialismo e, claro, pela própria monarquia. Após décadas de imperialismo e intervencionismo brasileiro na região do Prata, a guerra evidenciou o quanto a monarquia desrespeitava as demais nações; além disso, o sacrifício heroico e voluntário dos soldados paraguaios – que lutavam por sua própria pátria – chocou cada vez mais os brasileiros, que morriam para manter uma sociedade escravista, de castas, mantenedora ativa do atraso.

Não foi por acaso que, quando a guerra terminou, reiniciou-se o republicanismo brasileiro, com a fundação, em 1870, do Partido Republicano, em Itu. Em 2017, em homenagem a esse acontecimento, durante alguns dias o município de Itu foi tornado capital temporária do Brasil, assim como atualmente ocorre com Belém do Pará.

Para além das propostas e tentativas republicanas, é importante pura e simplesmente afirmar o crescente passivo social e político da monarquia. Nesse sentido, não podemos minimizar nem a guerra contra o Paraguai, nem a escravidão, nem o atraso geral do país.

A guerra foi realmente traumática, impondo sacrifícios a toda a população; o regime que, a partir do imperialismo, patrocinou e causou a guerra, merecidamente foi criticado. A partir do exemplo cidadão dos paraguaios, da pressão internacional e do desenvolvimento moral e político interno, a escravidão tornou-se cada vez mais intolerável.

Esses fardos sociais e políticos eram mantidos em conjunto e ao custo de um centralismo político brutal; uma política violentamente excludente e corrupta; uma economia atrasada. Tudo isso coroado por uma eventual sucessora do trono que era agressivamente teológica e cujo consorte era um príncipe estrangeiro. E por um imperador que fingia que nada disso ocorria ou que apoiava ativamente esses problemas, mas que, ao mesmo tempo, passava seu tempo escrevendo cartas para os sábios europeus e em caríssimas, longas e inúteis viagens internacionais.

Os dois lados da questão – a centenária campanha republicana e o pesado e crescente passivo da monarquia – sempre foram negadas pelos monarquistas brasileiros, sejam os antigos, sejam os recentes; sejam os explícitos, como Eduardo Prado, Oliveira Vianna ou José Murilo de Carvalho, sejam os disfarçados, como Lília Schwarcz ou Carlos Fico.

Em diferentes graus e com variadas ênfases, os meios adotados por esses autores são simples e conhecidos:

  1. negação da realidade histórica e/ou das virtudes morais e políticas da república;
  2. mistificação da monarquia por meio da omissão de todos os problemas indicados acima.

Para que não reste dúvida: desde o século 18 até a Proclamação da República (e mesmo além), o republicanismo foi proposto de maneira sincera e generosa, como a necessária condição para o desenvolvimento brasileiro, com liberdades civis, políticas e sociais.

A campanha republicana, paralelamente à campanha abolicionista, ganhou as ruas e as massas, sendo celebrada na cultura popular (modinhas, literatura, músicas, poemas, contos etc.): em outras palavras, muito longe da mistificação monarquista, o povo não estava alheio nem assistiu como uma besta à Proclamação.

Opondo-se à opressão e ao autoritarismo monárquico (colonial ou nacional), o que se desejava com a utopia republicana, era – para usar termos atuais – ampliar a esfera pública e o espaço da cidadania no país.

Aliás, é importante notar que, como prova tanto da sincera proposta de cidadania dos republicanos quanto da negação crítica dos (cripto)monarquistas, houve políticos e intelectuais que propuseram que o próprio imperador acabasse com a monarquia, proclamasse a república e candidatasse-se a presidente.

Essa proposta era a dos positivistas (Miguel Lemos e R. Teixeira Mendes à frente), para que o imperador realizasse ele mesmo a necessária transição do regime; entretanto, como é ao mesmo tempo conveniente, fácil e hipócrita ridicularizar a única proposta que conjugaria a mudança de regime com a alteração pacífica de status quo, a sugestão feita com ampla publicidade e durante anos pelos positivistas é atualmente ignorada ou desprezada pelos historiadores (marxistas, liberais e/ou [cripto]monarquistas), que também criticam o suposto caráter golpista da república.

Como se vê, nesse jogo retórico não há qualquer opção em favor da república e a única opção “boa” seria a permanência da monarquia, com o autoritarismo centralizador, a política excludente e de castas com religião oficial de Estado, o atraso social e econômico, o imperialismo externo.

Todas as afirmações acima se baseiam em ampla literatura histórica, sociológica, artística etc. e deixam claro que, pura e simplesmente, é falsa a afirmação corrente de que a Proclamação da República teria sido meramente uma quartelada realizada por oficiais autoritários e sedentos do poder civil, contra uma população alienada.

A Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, teve amplo apoio social (civil e militar, das elites às massas, do Norte ao Sul do país), correspondendo tanto a necessidades coletivas urgentes como a anseios profundos: foi um movimento legítimo e em favor das mais generosas, livres e fraternas utopias políticas.

Em face do desprezo que intelectuais, meios de comunicação e políticos votam hoje à república, não é de estranhar a crise política e social que vivemos e que opõe a ordem ao progresso. Já argumentamos várias vezes: recuperar esses ideais republicanos é uma necessidade atual urgente.


Gustavo Biscaia de Lacerda é doutor em Sociologia Política e sociólogo da UFPR.

11 novembro 2025

Monitor Mercantil: Ainda a Operação Contenção

No dia 10 de novembro de 2025, o jornal carioca Monitor Mercantil publicou o nosso artigo intitulado "Ainda a Operação Contenção: reflexões sobre a cidadania".

O original pode ser lido aqui: https://monitormercantil.com.br/ainda-a-operacao-contencao-reflexoes-sobre-a-cidadania/.

Reproduzimos abaixo o texto.

Vale notar que o texto abaixo é uma versão muito resumida da prédica positiva de 28 de Descartes de 171 (4.11.2025), disponível aqui e aqui.

*   *   *

Retirada de corpos na Operação Contenção (foto de Tomaz Silva, ABr)

Ainda a Operação Contenção: reflexões sobre a cidadania

Fascistas são retrógrados e totalmente contrários aos hábitos modernos: uma análise sociológica da Operação Contenção. Por Gustavo Biscaia de Lacerda.


Embora já se tenham passado duas semanas após a escandalosa Operação Contenção, realizada em favelas da Zona Norte do Rio de Janeiro em 28/10/2025, cremos que podemos ainda a comentar. Na verdade, mais que podemos, cremos que devemos comentá-la, tal a barbárie ali cometida. Além disso, embora tenhamos boas notícias desde então (pensamos no início da 30ª Conferência sobre o Clima da Organização das Nações Unidas, em Belém do Pará), o fato é que se passaram apenas duas semanas e não podemos perder de vista os graves problemas envolvidos no episódio.

O que desejamos aqui é refletir um pouco sobre o tipo de polícia de que precisamos, a partir de considerações históricas, sociológicas e filosóficas. É claro que serão apenas indicações muito gerais.

Antes de mais nada, é importante reafirmarmos: a Operação Contenção foi escandalosa em si mesma, e a afirmação subsequente do governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, de que ela, “com exceção da morte dos quatro policiais, foi um sucesso”, é igualmente escandalosa.

A justificativa oficial da operação, que mobilizou um efetivo policial de 2.500 homens, foi a execução de mandados de prisão de vários líderes do Comando Vermelho; com isso, nominalmente se desejava estrangular a liderança da organização e impedir que ela avançasse sobre territórios de favelas nos complexos do Alemão e da Penha.

A “contenção” da operação consistia em evitar que o Comando Vermelho avançasse sobre territórios controlados por milícias (ou seja, por policiais corruptos). Os mandados não foram executados, os líderes buscados fugiram, e 117 civis foram executados, além de quatro policiais.

Argumentou-se depois que muitos dos civis mortos eram criminosos com ficha na polícia e/ou mandados de prisão; entretanto, não apenas o objetivo da Operação Contenção não era ir atrás desses peixes pequenos, como, de qualquer maneira, a polícia não pode agir tendo em vista a execução da população que supostamente deveria proteger.

Assim, falar que muitos dos assassinados eram criminosos é uma forma cruel de evitar a conclusão evidente: a Operação foi um fracasso retumbante e, mais uma vez, afirmou-se o princípio de que, no Brasil, os pobres e favelados são culpados mesmo que se prove o contrário, sujeitos à pena de morte com execução sumária.

(Para os pobres e favelados vale a máxima do deputado-delegado Sivuca, “bandido bom é bandido morto”; os criminosos ricos que atuam nas avenidas Faria Lima e Rio Branco não são “bandidos”, não são julgados, não são presos e muito menos são executados.)

Dito isso, vale a pena refletirmos sobre porque consideramos a Operação Contenção uma barbárie. O melhor nesse caso (como em muitos outros) é retomarmos as reflexões históricas de Augusto Comte, o fundador da Sociologia.

Comte contrapunha a sociabilidade moderna à sociabilidade antiga. A “sociabilidade” são as formas como as pessoas se relacionam entre si e aos objetivos gerais das sociedades. Os “antigos” são principalmente os antigos gregos e romanos, além de outros povos em situações sociológicas semelhantes; já os “modernos” somos inicialmente os ocidentais e, a partir disso, os povos influenciados pelos hábitos desenvolvidos depois da Idade Média.

A sociabilidade antiga baseava-se na guerra, ou seja, na violência sistemática; os critérios de distinção social em tais sociedades eram militares (honra, coragem, força física); a conquista política e territorial tinha primazia sobre a produção econômica sistemática, que, não por acaso, era considerada como atividade subalterna e/ou degradante. A simplicidade das atividades militares tornava muito fácil a avaliação dos méritos individuais; o caráter militar dessa sociabilidade implica sempre que uma pátria dominará as demais, seja por meio de dominação direta, seja por meio de hegemonia (e hegemonia militar, em particular).

Já a sociabilidade moderna é pacífica e industrial, baseada em relações fraternas, na liberdade e na dignidade humana. Como as operações sociais são complicadas e exigem a intermediação de inúmeros agentes e procedimentos, a avaliação dos méritos individuais é muito mais difícil; os méritos individuais e coletivos são mais variados mas também menos definidos. A riqueza é produzida de maneira compartilhada, seja entre indivíduos e classes, seja entre países; isso implica responsabilidade e confiança mútuas, da mesma forma que exige pátrias pequenas.

Até a modernidade, a ordem civil era mantida pelos exércitos, que tinham uma atuação dupla (interna e externa); mas como os exércitos servem para matar e destruir, sua atividade interna era (como é) sempre violenta. Em contraposição, a polícia é uma instituição moderna, dedicada à manutenção da ordem civil; em clara contraposição aos exércitos, a polícia não emprega prioritariamente a violência em suas atividades.

De maneira ideal e sintomática, a noção de polícia cidadã (e não violenta) foi proposta pelo primeiro-ministro inglês Robert Peel, em 1829, quando ele criou a Scotland Yard. Assim, a polícia foi criada como consequência da mudança das sociabilidades, claramente no sentido de que a atuação da polícia não pode ser militaresca, mas deve ser cidadã.

A polícia cidadã tem que atuar pautada pelo respeito à dignidade humana e às liberdades, pela preservação da vida e do patrimônio. Além disso, mantendo um caráter social, a polícia cidadã deve zelar, proteger e buscar a prosperidade, em particular do proletariado. Evidentemente, o caráter cidadão da polícia implica que as ações violentas devem ser substituídas pelas chamadas “ações de inteligência”, sendo que as penalidades devem concentrar-se em aspectos educativos.

Ações como a Operação Contenção são entendidas como bárbaras porque são retrógradas, que aplicam hoje parâmetros arcaicos e ultrapassados, que devem permanecer na lata do lixo ou no museu da história. Os antigos (na verdade, até depois da Idade Média) consideravam que chacinas eram terríveis, mas, apesar de tudo, eram fatos da vida: para chorar e lamentar, mas inescapáveis.

Ora, exatamente porque a sociabilidade moderna desenvolveu-se e aprofundou-se é que consideramos que as chacinas são bárbaras e totalmente inaceitáveis. A Operação Contenção foi exemplar: ela representou o exato oposto de todos os parâmetros da polícia cidadã.

A celebração da chacina da Operação Contenção, da parte do governador Cláudio Castro e de muitos outros políticos, evidencia o quanto eles e os fascistas são retrógrados e totalmente contrários aos verdadeiros hábitos modernos.

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

13 outubro 2025

Recuperar e revalorizar a 1ª República

No dia 13 de outubro de 2025, o jornal carioca Monitor Mercantil publicou o nosso artigo "Recuperar e revalorizar a I República".

Reproduzimos abaixo a publicação. O original pode ser lido aqui.

*   *   *

Recuperar e revalorizar a 1ª República

É erro dizer que foi um longo período oligárquico com viés antissocial Por Gustavo Biscaia de Lacerda


Proclamação da República (quadro de Benedito Calixto, domínio público)

Pode parecer estranho, à primeira vista, defender atualmente a 1ª República no Brasil. É bem verdade que, lamentavelmente, na última década, as mais estranhas propostas políticas foram defendidas — desde golpes fascistas até o parlamentarismo, passando pelo retorno da monarquia. Essas propostas devem ser entendidas como aberrantes e, se não vivêssemos uma época de profundas crises morais e políticas, já deveriam ter sido descartadas sumariamente, compreendidas como as tolices que de fato são.

O mesmo já não se dá com a defesa da 1ª República, isto é, com o regime brasileiro de 1889 a 1930. O estranhamento a essa proposta se deve ao sucesso obtido pelas críticas feitas contra a República desde cerca de 1915 — na verdade, considerando a atuação dos monarquistas, desde antes — e, em particular, a partir de 1930. A respeito da I República, temos então que considerar pelo menos: (1) a motivação das críticas dirigidas contra ela e (2) o alto custo político, moral e social dessas críticas.

Bem ou mal, sempre houve e há críticas aos regimes políticos: pensemos na extremamente agressiva campanha levada a cabo em 1954 (suicídio de Vargas) por Carlos Lacerda e seus acólitos, ou na campanha de terra arrasada realizada pela coalizão golpista de procuradores da República, juízes federais, militares e teólogos entre 2014 e 2022.

No que se refere à 1ª República, tão logo ela foi proclamada, em 1889, surgiram críticas — especialmente as dos monarquistas, alguns declarados (como o português Eduardo Prado) e outros vergonhosamente disfarçados, como Oliveira Vianna. A Igreja Católica, da mesma forma, ao perder seus vastos privilégios, fez coro aos reacionários.

A I República durou 40 anos (1889–1930); se ela foi criticada, também foi, e muito mais, apoiada. Na verdade, não faz o menor sentido repetir as críticas habituais de que teria sido um longo período oligárquico com forte viés antissocial, antipopular e antiliberdades. Como comentamos há pouco, esse tipo de crítica também foi feito ao regime de 1946 a 1964, assim como começou a ser esgrimido novamente logo após 1988 e com renovada intensidade depois de 2013 — tanto à direita quanto à esquerda. Precisamos de criticidade sobre essa criticidade.

Assumir que a I República foi um bloco homogêneo em um país oligárquico, com uma população imbecilizada, é degradar a vida nacional — entendida, assim, como eternamente realizada por idiotas incapazes de pensar e atuar com autonomia. Aliás, é assumir que, logo na I República, a população brasileira teria se tornado imbecil e deixado de agir com autonomia e coragem. Deveria ser claro que isso não faz o menor sentido — mas, a começar pela quase totalidade dos historiadores e cientistas sociais brasileiros contemporâneos, essa falta de sentido é ignorada.

Temos que distinguir as críticas que propunham a destruição do regime daquelas que cobravam melhorias e o cumprimento das promessas republicanas. A I República foi proclamada contra — e em substituição — à monarquia, à escravidão, ao misticismo clericalista, à religião oficial de Estado, ao militarismo imperialista, ao subdesenvolvimento, ao centralismo autoritário e à política ultraoligárquica.

Embora estranhamente não se fale nada disso hoje em dia, o passivo social e político do Império era gigantesco — e a mudança de regime, urgente. Assim, a República foi um importante avanço social, político e moral.

A República teve dificuldades, problemas e limitações? Claro que sim. Mudanças sociais são lentas e exigem que a sociedade persista. Basta considerarmos que o novo regime teria de ser conduzido por muitos grupos e políticos vinculados à antiga ordem (como, aliás, ocorreu após 1988 e, agora, mais uma vez depois de 2022), incluindo os adesistas de última hora, ansiosos por manter o poder — como o mistificado Rui Barbosa.

Proclamada para realizar o progresso social, a República foi criticada por vários grupos que desejavam que esse progresso ocorresse: basta ler (com honestidade) as publicações dos positivistas — Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes à frente — ou as de Alberto Torres, para comprovar essa preocupação. Os positivistas publicaram desde 1881 até 1927 e mesmo depois; Torres publicou na década de 1910.

Mas, na década de 1910, começou a publicar também outro autor: Oliveira Vianna. Não sendo da geração que fizera a República, e com uma admiração mística e mistificadora pela monarquia, Oliveira Vianna desprezava a República, suas instituições e suas ações. Admirava o parlamentarismo liberal inglês praticado durante o Império, com seus elementos oligárquicos, antipopulares e autoritários. Não por acaso, com todas as letras e de maneira inequívoca, defendia — mais uma vez, contra a República — o autoritarismo.

Ora, a partir da década de 1920, as crises sociais e políticas aumentaram. As críticas meramente negativas (contra o regime) ganharam cada vez mais espaço, ao passo que as críticas construtivas escassearam. Quando, em outubro de 1930, Getúlio Vargas deu seu primeiro golpe de Estado, os argumentos utilizados a posteriori para justificar suas ações foram de caráter destrutivo: apesar de ter iniciado sua carreira como um importante político da República, sua lealdade ao regime era mínima — para não dizer nula. Depois de novembro de 1937, após o segundo golpe de Estado de Vargas, a justificativa a posteriori para o regime agressivamente autoritário repetia, ipsis litteris, os insidiosos argumentos de Oliveira Vianna.

É espantoso e escandaloso que se repita até hoje a mentalidade celebrada pelos autoritários Oliveira Vianna, Francisco Campos e seus acólitos. Não por acaso, a noção de “República” é desprezada, e fala-se em “República Velha” para referir-se à 1ª República.

Como vimos, mais que uma vitória de longo prazo da mistificação monarquista e autoritária de Oliveira Vianna, o desprezo nutrido desde 1930 pela 1ª República tem graves consequências. A primeira é a dupla mistificação: a favor da monarquia (uma época idílica) e contra a 1ª República (um bloco oligárquico, antipopular e imbecilizante).

A segunda é a ignorância do conceito de República e de suas condições institucionais, sociais e morais, em prol de confusões sobre a “democracia” — que incluem a democracia autoritária de Oliveira Vianna!

A terceira consequência é o entendimento de que a população brasileira teria sido imbecilizada justamente na 1ª República, cessando seu intenso ativismo vigente desde a fase colonial e magicamente retomado após 1930.

A quarta consequência resume as anteriores: não se entende a vida política brasileira com um desenvolvimento ao longo do tempo (com clivagens eventuais), mas como contínuos e renovados erros a serem expurgados a cada 30 anos. O resultado é trágico: falta de memória histórica, de aprendizado coletivo, de ordem política e de progresso social.

Urge recuperarmos e revalorizarmos a 1ª República.

Gustavo Biscaia de Lacerda é doutor em Sociologia Política e sociólogo da UFPR.

12 agosto 2025

Monitor Mercantil: "Autonomia nacional, multilateralismo e prepotência fascista"

No dia 11 de agosto de 2025 o jornal carioca Monitor Mercantil publicou o nosso artigo "Autonomia nacional, multilateralismo e prepotência fascista".

Reproduzimos abaixo o texto publicado; o original encontra-se disponível aqui: https://monitormercantil.com.br/autonomia-nacional-multilateralismo-e-prepotencia-fascista/.

*   *   *

Protesto contra os EUA em Brasília (Foto: José Cruz/Agência Brasil)

Autonomia nacional, multilateralismo e prepotência fascista

Quinta-colunas devem ser julgados, condenados e aprisionados Por Gustavo Biscaia de Lacerda


Não há como não tratarmos, nesta coluna, da agressiva investida que Donald Trump realiza contra o Brasil desde há alguns meses, mas que recentemente assumiu um aspecto bem mais ofensivo. O mínimo que se deve fazer é rejeitar a imposição de medidas econômicas e políticas usadas como instrumentos para alterar e degradar o funcionamento normal das instituições políticas brasileiras; mas é claro que não é somente isso que se pode e deve fazer. Apresentaremos duas ou três ordens de reflexão aqui.

Tendo por instrumento o unilateralismo de Trump – cuja prepotência e ignorante arrogância são vendidas como sabedoria de negociação –, os objetivos da agressão são múltiplos: forçar a libertação de um golpista fascista; evitar o exemplo internacional de processo judicial autônomo contra golpes fascistas; atingir um país governado por um esquerdista; e enfraquecer o polo alternativo de poder que são os Brics.

Nada disso é aceitável e, conforme alguns analistas têm indicado, essa violação flagrante da chamada soberania nacional brasileira por uma grande potência é uma atitude inédita nos últimos 70 ou 80 anos. Não apenas isso, mas tal violência apresenta o sério agravante de ser apoiada e estimulada por agentes brasileiros, no interior e no exterior.

A Guerra Civil Espanhola (1936-1939) deixou como legado, além do esfacelamento do republicanismo espanhol e da ascensão da monarquia apoiada pelo fascismo, também a expressão “quinta coluna”. Os quinta-colunas são os apoiadores internos das forças invasoras externas; além do odioso sentido de traição, essa expressão ainda se vincula ao apoio ao fascismo (originalmente franquista).

Assim, os brasileiros que apoiam e incentivam as medidas de Donald Trump contra o Brasil merecem totalmente o rótulo de “quinta-colunas”: traem o próprio país em apoio ao fascismo. Esses traidores, a partir de um abjeto e anacrônico militarismo, há muitos anos conspurcam a bela palavra “patriotas”. No linguajar dos quinta-colunas, os patriotas não são aqueles que se dedicam ao país com espírito de civismo, civilidade e civilismo, mas aqueles que apoiam o golpismo, a erosão das instituições, o autoritarismo, o militarismo, a prepotência, a falta de decoro – e, agora, também o servilismo ao fascismo que vem do Hemisfério Norte. Seguindo o devido processo legal, todos eles devem ser julgados, condenados e aprisionados como traidores que são.

A atuação de Trump pauta-se por uma visão isolacionista e prepotente dos Estados Unidos. Para ele, não há espaço nem justificativa para parcerias ou alianças, nem mesmo para auxílios; há apenas submissão. Se um país precisa de apoio, ele é fraco demais para ser levado a sério; já as afirmações de parcerias ou alianças, para Trump, são apenas eufemismos para países que não conseguem se defender sozinhos e se recusam a pagar os tributos imperiais. Para Trump, os únicos países dignos de serem levados a sério são os inimigos (como a China) e outros países prepotentes (como a Rússia).

O isolacionismo de Trump corresponde tanto à sua visão de mundo quanto também é a resposta que ele dá para os problemas atuais dos Estados Unidos, especialmente para os operários e para os brancos (desemprego, desindustrialização, perda de prestígio). Mas, como os Estados Unidos foram peça central na arquitetura mundial desde a II Guerra Mundial, o isolacionismo não é uma estratégia factível; ele assume o feitio de um brutal unilateralismo (o que, aliás, satisfaz mais Trump).

Esse comportamento, entretanto, em vez de afirmar a força dos Estados Unidos no mundo, faz exatamente o contrário: dilapida, com rapidez, os fundamentos desse poder. Com a vitória na Guerra Fria, os Estados Unidos consolidaram o multilateralismo e a globalização, instituindo tanto fóruns diversificados de negociação quanto se afirmando como a peça central dos diversos mecanismos envolvidos.

Não era somente força bruta; tão importante quanto era a confiança compartilhada, as concessões feitas, os auxílios prestados. Não se tratava só de boa vontade, é claro; mas não se pode cair no extremo oposto e reduzir a ação dos Estados Unidos a mero interesse. Tratava-se de um misto de idealismo e realismo.

Com George W. Bush, os Estados Unidos adotaram o agressivo unilateralismo militar da “guerra ao terror”, unilateralismo que foi revertido com Obama e o enfrentamento da crise financeira de 2008. Precisando de ajustes maiores ou menores, até 2016 o multilateralismo foi levado a sério. Com Trump, isso se reverte; em seu primeiro mandato ele ensaiou o unilateralismo, e sua reeleição confirmou suas intenções.

Começamos este artigo defendendo a autonomia nacional brasileira e passamos, depois, a elogiar o multilateralismo. Tomados de modo absoluto, esses princípios se tornam incompatíveis um com o outro; entretanto, a realidade prática e, daí, a teoria política têm que reconhecer que ambos são necessários e, portanto, ambos devem ser levados em consideração.

A noção de soberania absoluta, mais ou menos surgida no século 17, foi posta em questão após a II Guerra Mundial em favor do multilateralismo e dos destinos compartilhados. O multilateralismo, imperfeito como era até há pouco tempo, baseou-se, entretanto, em negociações, que foram se ampliando em termos de assuntos, de participantes e de instâncias.

A importância do multilateralismo não está somente em que ele é um canal para a condução negociada e compartilhada dos assuntos humanos: é a realização da consciência de que a humanidade tem interesses comuns, cujo tratamento exige ações comuns e uma perspectiva que englobe o futuro e o passado, como no caso da crise climática.

Enquanto o multilateralismo comercialista-financista americano dos anos 1990 foi corretamente criticado, o unilateralismo de Trump tem o paradoxal efeito de ressaltar a importância do multilateralismo em geral.

O multilateralismo evidencia os destinos compartilhados, como também a concepção de que a soberania absoluta deve ceder espaço à soberania relativa ou, para os nossos propósitos, à autonomia nacional.

O que muda entre a concepção absoluta e a relativa é a percepção de que a Terra é única e de que somos todos seres humanos; não tem cabimento pretender que cada país julgue a si próprio como parâmetro e objetivo último de suas ações.

Ao mesmo tempo, cada país tem suas próprias tradições, leis, instituições e preocupações – e tudo isso se deve respeitar cuidadosamente. Com todas as suas limitações e dificuldades, a autodeterminação é um princípio que se afirma e aplica desde o século 19 e que está na base da legitimidade do multilateralismo atual.

A prepotência fascista de Trump não vai somente contra o interesse nacional dos Estados Unidos e contra a soberania brasileira; ela nega o passado e prejudica ativamente o presente e o futuro. Cabe a todos nós combater e reverter essas tendências, em favor dos mais altos interesses da Humanidade.

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

16 julho 2025

Monitor Mercantil: Afinal, o que é a República?

No dia 16.7.2025, o jornal carioca Monitor Mercantil publicou nosso artigo intitulado "Afinal, o que é a República?".

O texto do jornal encontra-se publicado aqui: https://monitormercantil.com.br/afinal-o-que-e-a-republica/.

Reproduzimos abaixo o texto.

*   *   *


Afinal, o que é a República?

Lembre a fórmula elaborada por Augusto Comte: “Viver para os outros” Por Gustavo Biscaia de Lacerda

Em diversas ocasiões, já falamos, nesta coluna, sobre a República e o republicanismo; nessas ocasiões, apresentamos alguns conceitos gerais a fim de comentarmos situações concretas da vida política brasileira. Entretanto, vale a pena abordarmos diretamente alguns dos princípios gerais e abstratos do republicanismo.

Os dois primeiros princípios da República são dados por seu nome. Por um lado, a República consiste no governo não monárquico; por outro lado, ela afirma o primado do bem público.

Embora muitos pensadores, especialmente de países monarquistas (como a Inglaterra ou a Espanha), finjam que apenas o bem público basta para caracterizar a República, o fato é que esses dois aspectos são estreitamente relacionados.

A monarquia consiste em que o governante é escolhido em uma família específica; essa família tem que ter seus privilégios afirmados pela divindade, ou seja, de maneira caprichosa e profundamente arbitrária. No final das contas, a monarquia é um resquício (implícito ou explícito) das sociedades de castas; assim, na modernidade, a monarquia é radicalmente contra a dignidade individual e os méritos individuais e coletivos.


Os liberais e os pensadores juridicistas gostam de reduzir a República a formalidades políticas e jurídicas. Embora sempre haja necessidade de um certo formalismo, o verdadeiro caráter da República consiste no primado do bem público, ou seja, em seu conteúdo social.

Esse aspecto social precisa ser afirmado; caso contrário, o formalismo juridicista sequestra a República e reduz-se a regras vazias, de modo geral adequadas à manipulação das elites, das oligarquias e da burguesia.

Além do caráter social, a República caracteriza-se pela preponderância da opinião pública. A respeito da opinião pública, nossa época vive uma situação profundamente confusa, incoerente e desnorteada. Não são os meios de comunicação de massa, nem as redes sociais, nem muito menos as “pesquisas de opinião” (ou melhor, as pesquisas de humor momentâneo) que constituem a “opinião pública”: todas essas expressões, ou ondas, são apenas agregados de paixões, mais ou menos incoerentes e, da pior maneira possível, mais ou menos irracionais.

A noção de opinião pública — como, aliás, tudo na chamada teoria política, incluindo a “democracia”, a “legitimidade” ou a “soberania” — tem que ser, necessariamente, idealizada e normativa; assim, não faz sentido, e não é digno, considerar que agregados empíricos incoerentes sejam entendidos como a opinião pública.

De uma perspectiva mais digna, mais ideal e melhor elaborada em termos normativos, a opinião pública deve ser entendida como a opinião expressa por órgãos autônomos da sociedade civil, que estimulam a fraternidade universal, afirmam a participação popular, defendem o bem-estar coletivo. Por outro lado, os órgãos da opinião pública devem rejeitar o ódio, o irracionalismo das paixões cegas, o particularismo, o militarismo, a violência.

A autonomia da opinião pública e seu universalismo moral requerem que ela seja separada do Estado, o que, por sua vez, exige a laicidade do Estado e, portanto, por definição, põe em suspeita todos os intelectuais vinculados ao Estado e também todos os intelectuais estreitamente ligados a partidos políticos, a concepções particularistas e/ou defensoras da violência e do militarismo.

Todas essas concepções condensam-se na fórmula elaborada pelo fundador da Sociologia, Augusto Comte: “Viver para os outros”. Essa máxima é bastante profunda do ponto de vista moral e filosófico, e não é possível explorá-la aqui; mas sua orientação política para o bem público, para o bem coletivo, parece bastante evidente.

Entretanto, o “viver para os outros” — que, afinal, é uma fórmula moral — exige um complemento mais propriamente político: o “viver às claras”. Ainda para Augusto Comte, o “viver às claras” consiste, basicamente, em que todos devemos adotar em nossas vidas parâmetros de conduta que sejam publicamente defensáveis, a partir de concepções racionais e altruístas.

Enquanto os simples cidadãos devem adotar tais parâmetros de modo que suas condutas possam ser avaliadas por seus familiares, amigos e colegas — ou seja, pelas pessoas mais próximas —, todas as pessoas que ocupam posições de poder e influência devem ter suas vidas sempre passíveis de escrutínio público.

A mais elementar dignidade humana rejeita as devassas tão comuns à nossa época, em que as figuras públicas não são objeto de escrutínio, mas de degradação e humilhação; ainda assim, na República, a separação entre o público e o privado não deve ser entendida nos termos absolutos próprios à concepção liberal-burguesa. Dessa forma, não apenas os atos públicos, como também a vida privada dos poderosos, deve ser alvo de exame público.

A vinculação entre o “viver para os outros” e o “viver às claras” no âmbito da República é tão grande que, com as suas habituais profundidade e perspicácia, Augusto Comte nota que todos os poderosos que se recusarem a viver às claras deverão ser suspeitos de não viverem, de fato, para os outros — isto é, para o bem comum.

Na verdade, ele afirmou literalmente isso:

Malgrado as precauções interessadas dos legisladores metafísicos, o instinto ocidental não tardará a ver a publicidade normal dos atos privados como a garantia necessária do verdadeiro civismo. […] Todos os que se recusarem a viver às claras tornar-se-ão justamente suspeitos de não quererem realmente viver para os outros.

(Augusto Comte, Sistema de política positiva, v. IV, 1854, p. 312)

Sem esgotar as suas possibilidades, o que indicamos acima resume bastante da República: não monarquia, primado do bem comum, caráter social, afirmação da opinião pública, “viver para os outros”, “viver às claras”; além disso, fraternidade universal, pacifismo. Isso é muito mais, e muito mais profundo, do que o que se costuma entender por republicanismo nos discursos liberal-burgueses — seja das nossas elites políticas, seja dos intelectuais academicistas.

Esses conceitos foram propostos e, na medida do possível, aplicados no Brasil durante a Primeira República. Devido à necessidade que Getúlio Vargas tinha de legitimar os golpes que deu em 1930 e em 1937, a Primeira República foi sistematicamente desprezada a partir de 3 de outubro de 1930, sendo que, de modo geral, todos os políticos e intelectuais posteriores repetiram o discurso getulista.

Todavia, com um pouco de imaginação e coragem política, é fácil ver como todos os princípios republicanos indicados acima são não apenas passíveis de aplicação direta na realidade brasileira atual, como são cada vez mais urgentemente necessários.

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

10 junho 2025

Monitor Mercantil: Parlamento e jornalismo, intrigas e fofocas

No dia 9 de junho o jornal carioca Monitor Mercantil publicou o meu artigo "Parlamento e jornalismo, intrigas e fofocas".

A versão do jornal está disponível aqui.

Reproduzimos abaixo o texto.

*   *   *

Parlamento e jornalismo, intrigas e fofocas

Jornalismo reduz política às fofocas em associação com financismo 

Por Gustavo Biscaia de Lacerda

TV digital aberta (foto de Valter Campanato, ABr)

Considera-se, de modo geral, que jornalismo e política devem andar juntos e que tanto cada um deles, em particular, quanto sua união são virtuosos. Entretanto, essas concepções são altamente discutíveis e, com frequência, equivocadas.

A princípio, não há o que discutir a respeito da importância da política. Ela é importante porque organiza a vida coletiva; gostemos ou não, queiramos ou não, todos estamos sob a influência necessária da atividade política. Mas a submissão necessária à política gera, amiúde, confusões práticas e teóricas, nas quais se considera que “tudo é política”, ou seja, que tudo se reduz à disputa de poder.

Por mais importante que seja a política, a sociedade não se reduz a ela: os aspectos filosóficos, culturais e morais regulam, moldam e orientam a política; já os aspectos materiais sempre exercem sua pressão. O resultado é que a política molda, mas também é moldada.

Mas há várias maneiras de entender a política; em inglês, distingue-se a politics (a política do dia a dia), a polity (a estrutura sociopolítica geral, que alguns traduzem como “constituição”) e a policy (cada uma das políticas públicas). A disputa de poder corresponde à politics, ao passo que as policies e, ainda mais, a polity exigem consensos, convergências, legitimidade e aceitação de regras. Claro que a politics influencia a polity e as policies, mas confundir uma coisa com as outras, reduzir a polity à politics, é um grave erro, resultando apenas em cinismo e violência.


Passemos ao jornalismo. Sua missão básica é informar os acontecimentos; assim, há vários tipos de jornalismo: investigativo, científico, econômico, de amenidades etc. Mas talvez o mais famoso e prestigiado seja o político. O jornalismo político dedica-se a narrar o dia a dia da política: ele se concentra na politics. Como as policies e a polity são de longo prazo e conceituais, elas são “chatas”, desinteressantes e não recebem atenção jornalística.

A preferência jornalística pela politics e a rejeição da polity-policy têm várias consequências. Uma primeira é a concentração das coberturas na atividade parlamentar; uma segunda é a defesa (implícita ou explícita) da atividade dos parlamentares contra o governo. A política do dia a dia é das disputas, das briguinhas, dos ciúmes, das intrigas… Com frequência, isso recebe o título edulcorado de “negociações”, mas essa é apenas uma forma empolada de referir-se ao que costuma ser apenas mesquinhez.

O jornalismo especializado em intrigas e mesquinhez não é outra coisa senão fofoca. Como as intrigas são incessantes, mas despertam interesse e paixões, os fofoqueiros têm prestígio e legitimam a concepção de que as fofocas que noticiam (“repercutem”) são a “verdadeira” política. Claro que os políticos — ou melhor, os parlamentares — saem ganhando com isso, obtendo exposição pública e sendo apresentados como “ativos”, “representativos” etc.

Esse é um sistema que se retroalimenta, em que os parlamentares (especialmente no parlamentarismo) e os jornalistas beneficiam-se mutuamente: as intrigas mesquinhas são vendidas como a verdadeira política, e as fofocas parlamentares são vendidas como verdadeiras notícias. Esses dois blocos falam em causa própria e apoiam-se mutuamente, de maneira altissonante ou até estridente; com isso, as fofocas são apresentadas como a opinião pública, e as intrigas, como a manifestação do bem comum.

Tudo isso é péssimo. Para piorar, no Brasil, o jornalismo econômico não se preocupa em informar, mas atua ativa e conscientemente como porta-voz do liberalismo econômico, isto é, de elites financistas internacionais que não querem a regulação do capital nem sua taxação e, para isso, impõem as concepções de Estado mínimo, de iniciativa privada “eficiente” e de servidores públicos incompetentes. É fácil ver que o jornalismo de fofocas é convergente com os porta-vozes do financismo internacional.

Augusto Comte, o fundador da Sociologia, já criticava e denunciava, no século 19, essa união entre o jornalismo de fofocas e a política parlamentarista — que, devemos repetir, finge ser a opinião pública e despreza a política como projeto social amplo. Desgraçadamente, o que o fundador do Positivismo criticava já em 1824 corresponde à realidade brasileira atual.

O que se vê nos grandes jornais do país é exatamente a fofoca parlamentar vendida como jornalismo político e as intrigas parlamentares vendidas como grande política. Esse vínculo é camuflado pelas críticas reiteradas que se fazem à “falta de habilidade” do presidente Lula para “negociar” com o Congresso Nacional: o parlamento é fortemente reacionário e assustadoramente corporativista, duas características que foram estimuladas pelo governo anterior em sua busca dupla de dar um golpe de Estado e de evitar o impedimento.

Claro que o viés conservador do atual parlamento torna-o mais reticente às propostas do governo; mas os recursos que a Constituição Federal de 1988 legou ao presidente da República sempre bastaram para acomodar ou contornar dificuldades ideológicas. Entretanto, desde 2019 — na verdade, desde antes, desde 2016 —, o Congresso Nacional aprofundou cada vez mais o seu caráter clientelista, corporativista e — não há como evitar — parasitário, cobrando um preço cada vez maior para manter um simulacro de “governabilidade”. Esse parasitismo, associado ao golpismo/anti-impedimento, encontrou seu paroxismo no aberrante “orçamento secreto”.

Uma característica notável do atual governo Lula é sua moderação; seu lema de campanha — “União e reconstrução” — dá a exata medida das necessidades atuais do país e evidencia o aspecto profundamente republicano de sua proposta. Sendo bem direto, essa é uma proposta de um verdadeiro estadista. É claro que Lula não é perfeito e que as mais diversas críticas podem ser feitas contra ele, como a respeito da política identitária, com suas cotas divisionistas, e das ambiguidades em relação à Rússia e à China; mas, no conjunto, o governo está na direção certa e adota as medidas urgentes e necessárias para o desenvolvimento social e econômico do país.

Se está na direção certa, o que dificulta a ação de Lula? Basta bom senso e honestidade para perceber que é o parlamento parasitário, que é mesquinho, impede o desenvolvimento nacional, trai a confiança do governo e protege — senão estimula — o golpismo fascista. Por seu turno, o jornalismo político, reduzindo a política às fofocas e em associação com os porta-vozes do financismo internacionalista, finge que tudo isso não é uma agressiva chantagem nem o bloqueio de um programa social e político verdadeiramente republicano.

Não há país que vá para frente nessas condições. Mas também não há soluções simples: é necessário evitar — ou combater — a demagogia extremista (atualmente na versão fascista) e as fake news, que correspondem às versões extremas e irmanadas do parlamento parasitário e do jornalismo de fofocas. O caminho é longo.

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

12 maio 2025

Monitor Mercantil: "Carreiras típicas de Estado" e estabilidade

O jornal carioca Monitor Mercantil publicou no dia 12.5.2025 um artigo de minha autoria intitulado "'Carreiras típicas de Estado' e estabilidade". 

Reproduzimos abaixo o texto. A versão eletrônica está disponível aqui: https://monitormercantil.com.br/carreiras-tipicas-de-estado-e-estabilidade/.

*   *   *


“Carreiras típicas de Estado” e estabilidade 

Há algumas semanas fiz uma visita técnica à Biblioteca Pública do Paraná, em sua bela e imponente sede atual, inaugurada em 1954. Aprendi que tal sede foi construída para que a Biblioteca seja um centro cultural – o que de fato é, com grande competência –; mas, para o que nos interessa aqui, também descobri que o seu quadro técnico permanente, desde os anos 1980-1990, foi reduzido para cerca de 20% atualmente. Esse dado estarrecedor levou-me às reflexões abaixo.

Nos anos 1990, o então Ministro da Administração e Reforma do Estado, Luís Carlos Bresser Pereira, em seu projeto de reforma do Estado propôs a noção de “carreiras típicas de Estado”. Em dezenas de publicações, ele jamais indicou quais seriam de fato essas carreiras; entre percalços, sua proposta de reforma foi implementada pela metade, mas no final das contas a expressão “carreiras típicas de Estado” deitou raízes na administração pública, expandindo-se do nível federal para, principalmente, os níveis estadual e municipal.

Abstratamente, a concepção de “carreiras típicas de Estado” até faz sentido: são carreiras de serviços que só se podem realizar pelo Estado; assim, essas carreiras precisam ter servidores públicos com estabilidade (ou seja, enquadrarem-se no Regime Jurídico Único, o RJU, como “estatutários”). O conceito subjacente a isso é que as carreiras “não típicas” não precisam ter estabilidade, podendo ser celetistas (enquadrados na Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT); na verdade, as carreiras não típicas não precisam nem se constituir em “carreiras”. A diferença de enquadramento jurídico é profunda: a estabilidade dos estatutários é obtida após três anos de serviço efetivo, durante os quais são continuamente avaliados (e, diga-se de passagem, também são avaliados das mais diferentes maneiras após esse prazo); essa estabilidade também os torna impermeáveis às pressões políticas e, dessa forma, eles podem desenvolver de fato carreiras profissionais, elaboradas considerando o longo prazo, paralelamente a projetos públicos de longo prazo. Não há dúvida de que a estabilidade também beneficia o aumento dos salários.

Em contraposição, os servidores celetistas podem ser demitidos a qualquer momento (ad nutum). Isso impede todos os benefícios trazidos pela estabilidade: os servidores não têm perspectivas efetivas de longo prazo, não consideram a possibilidade de carreiras e, portanto, não incorporam em suas práticas profissionais a realização de projetos públicos de longo prazo. E, ao contrário do que o senso comum privatista argumenta, a demissão ad nutum é usada como arma contra os trabalhadores, a fim de manter os salários mais baixos.

Além disso, embora Bresser tenha sido ambíguo a respeito, falando em reforma “republicana”, os defensores da substituição dos estatutários pelos celetistas não por acaso falam em seguir os parâmetros da “iniciativa privada”. Ao fazerem-no, repetem o mito da eficiência privada – esquecendo-se das sucessivas mancadas da Enel em São Paulo, da Light no Rio de Janeiro, da Vale em Minas Gerais e da Oi no país inteiro, além de dezenas de outros exemplos cotidianos –, buscam sujeitar os servidores às conveniências políticas de plantão, desmobilizar os trabalhadores, baixar os salários e impedir projetos públicos de longo prazo.

Esses raciocínios são repetidos por políticos de direita (não por acaso, é o programa do novo partido do Centrão, o “União Progressista”) e mesmo por institutos de pesquisa que se dizem “republicanos”: ambos compartilham não saberem o que é o republicanismo nem o que é o bem comum.

Dito isso, voltemos a Bresser Pereira e à sua proposta. Como Bresser jamais definiu quais seriam as carreiras típicas de Estado, todo governo decide qual é a carreira típica. Há algumas funções, especialmente no nível federal, que por definição só podem ser executadas pelo Estado: militares, polícias federais, Casa da Moeda, Tesouro Nacional, Receita Federal, diplomatas. Não são muitas carreiras e, no fim das contas, não é muita gente. (Entretanto, eles, sim, fazem questão de terem salários e privilégios nababescos.)

O problema é que o grosso do serviço público prestado pelo Estado para a sociedade – isto é, pelo poder Executivo civil, que é de fato o governo e que se sujeita a controles públicos efetivos, ao contrário do poder Judiciário, do Ministério Público, do poder Legislativo e dos militares – não se enquadra nas “carreiras típicas de Estado”. São médicos, enfermeiros, assistentes sociais, sociólogos, museólogos, bibliotecários, economistas, pesquisadores, agrônomos, arquitetos, engenheiros, físicos, químicos, historiadores e até professores e dezenas de outras profissões de nível superior, além de uma gama gigantesca de servidores enquadrados em denominações mais genéricas e em cargos de nível médio e fundamental.

É essa quantidade enorme de servidores que presta de verdade os serviços para a população. Todos esses servidores, que respondem pela grande maioria dos serviços públicos, entram na categoria de “carreiras não típicas de Estado”; ou seja, cada vez mais eles podem ser passíveis de demissão com facilidade. Ou melhor, cada vez mais eles podem ser e são substituídos por celetistas e, ainda mais (e pior), por estagiários.

A substituição dos servidores permanentes, estatutários, por servidores não permanentes, celetistas, ocorre com mais facilidade nos níveis estadual e municipal que no federal: é o que se vê no dramático exemplo da Biblioteca Pública do Paraná. Mas a substituição dos estatutários por celetistas e estagiários não se dá pelos procedimentos ultraliberais, por decreto, como proposto durante os anos 1990 e novamente durante os anos do fascista; os meios adotados são mais insidiosos: simplesmente não há a reposição do pessoal que se aposenta. Em nome da mítica eficiência do setor privado – eficiência que busca o lucro e não o bem público – joga-se fora todo o conhecimento técnico acumulado pelos servidores com estabilidade.

O bem público é mantido e gerido pelo Estado com seus servidores, de carreiras “típicas” ou “não típicas”. Essa divisão, embora abstratamente pareça sensata, na prática serviu – e serve – apenas como instrumento para degradar o serviço público e piorar a qualidade dos serviços prestados. No dia a dia, quem serve a população na ponta, no nível da rua, são as carreiras “não típicas”; são esses servidores que justificam a existência e os custos do Estado.

Ora, se a noção de “carreiras típicas do Estado” não se sustenta e serve apenas para degradar os serviços públicos, parece claro que já passou da hora de abandonarmo-la e de pararmos de repetir essa lenga-lenga criminosa e antirrepublicana.

 

Gustavo Biscaia de Lacerda é Sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.