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17 fevereiro 2025

Monitor Mercantil: Trump e a importância sistêmica dos EUA

No dia 17.2.2025 o jornal carioca Monitor Mercantil publicou um artigo de minha autoria, "Trump e a importância sistêmica dos EUA".

O texto está disponível no portal do periódico, aqui: https://monitormercantil.com.br/trump-e-a-importancia-sistemica-dos-eua/.

Reproduzimos abaixo o artigo.

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Trump e a importância sistêmica dos EUA

 Muito se tem falado sobre o retorno de Donald Trump à Presidência dos Estados Unidos; com certeza, muito ainda se falará, não somente porque seus valores, suas idéias e suas ações têm conseqüências enormes, como porque estamos longe de esgotar o que se deve falar a respeito. Nesse sentido, um aspecto que tem sido pouco destacado é a produção intencional de instabilidade internacional.

 A relevância das ações de Trump vincula-se diretamente à centralidade dos Estados Unidos no ambiente internacional e sua importância sistêmica. O que significa a “importância sistêmica”? Significa que eles ocupam um papel central na constituição do ambiente internacional. O sistema é uma totalidade com regras próprias, constituída por partes que são ao mesmo tempo autônomas e interdependentes: o ambiente internacional criado em 1945 e que, cada vez com mais dificuldade, subsiste até hoje, foi largamente patrocinado, apoiado e mantido pelos EUA.

Desde o final do século XIX os EUA foram tornando-se a principal economia do mundo, rivalizando àquela época com a Rússia e com o Japão e ultrapassando as nações da Europa ocidental; tal proeminência aumentou, confirmou-se e tornou-se indiscutível com as duas guerras mundiais. Mas uma coisa é ter importância econômica; outra coisa é ter importância política; outra coisa é ter importância sistêmica.

Até o final da II Guerra Mundial, os estadunidenses tinham importância econômica, mas resistiam a ter maior importância política e, em definitivo, apesar de alguns importantes e centrais esforços que se tornaram excepcionais (Woodrow Wilson e a Liga das Nações), não queriam ter importância sistêmica; isso tudo resumia-se em um isolacionismo militante. Essas disposições não aconteceram sem ambigüidades: o isolacionismo referia-se à Europa, mas não à América Central, em que os EUA eram fortemente intervencionistas; para os estadunidenses, o intervencionismo na América Central não tinha implicações políticas (!).

A partir de 1942, com F. D. Roosevelt, os Estados Unidos passaram a mudar a sua atitude frente ao mundo, passando do isolacionismo militante para um universalismo militante. Na base de ambas as posturas pode-se perceber a mesma concepção da excepcionalidade redentora estadunidense, em que os EUA seriam a bíblica “terra prometida”: o isolacionismo implica o nojo em relação ao resto do mundo, o universalismo implica o messianismo.

Após 1945 os EUA assumiram conscientemente o papel de constituidores e garantidores do sistema internacional, em múltiplos aspectos: político, econômico, militar, jurídico, cultural. Tudo isso se resumiu em algumas instituições: a Organização das Nações Unidas e o Conselho de Segurança; o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional; a Organização do Tratado do Atlântico Norte e muitas outras. Foi sem os EUA quererem e um pouco sem perceberem que se constituiu a Guerra Fria a partir do desafio soviético, até 1989-1991; mas, bem vistas as coisas, a Guerra Fria confirmou e reforçou o papel sistêmico dos EUA. Esse país voluntariamente financiou as instituições internacionais e cumpriu compromissos – muitos deles bastante custosos – para fazê-las valer: bancaram a reconstrução da Europa e do Japão, bem como a responsabilidade pela segurança militar dessas regiões; também se embrenharam em conflitos de outra maneira incompreensíveis, como as guerras da Coréia (1950-1953) e do Vietnã (1965-1975).

O papel de constituidor e garantidor do sistema internacional foi desempenhado com um misto de idealismo e de interesse nacional, combinação de qualquer maneira compartilhada pelos demais países. É necessário clareza aí: mesmo que tenha havido problemas e dificuldades (muitas delas bastante graves), o ambiente internacional criado em 1945 pelos EUA foi estável e promoveu em larga medida a paz e o desenvolvimento internacional. Isso gerou um capital político duradouro para os EUA.

Vistas assim as coisas, parece que a longo prazo o final da Guerra Fria paradoxalmente conduziu à ruína dos EUA. O colapso da União Soviética e do marxismo de modo geral representou a vitória do liberalismo, do individualismo e capitalismo estadunidense, assim como também acarretou um triunfalismo desmedido, a noção de que os Estados Unidos abrangeriam o planeta inteiro e o fim do idealismo político: o resultado dessa combinação foi o economicismo “sem fronteiras” neoliberal. A partir daí, as elites estadunidenses – as conservadoras republicanas, as “progressistas” democratas – avançam projetos políticos, sociais e econômicos incapazes de perceber os efeitos de longo prazo de suas ações, mesmo as sistêmicas. B. Clinton destruiu a regulação internacional da especulação financeira; H. Clinton promoveu o particularismo ressentido do identitarismo; G. W. Bush desprezou as fronteiras internacionais na guerra teológica ao terror teológico; D. Trump despreza tudo o que não é estadunidense.

Trump retoma um bairrismo paroquialista e isolacionista, demonstrando nojo ou ódio por tudo o que não é dos EUA. Não se sabe se ele realmente acredita nisso, mas com certeza ele pratica-os. Essa mentalidade é própria aos EUA do século XIX e meados do século XX; desde então, bem ou mal esse país moldou o mundo conforme os seus próprios valores. Assim, a destruição sistemática que Trump promove das instituições internacionais é cega, burra e retrógrada. Ela quer voltar ao isolacionismo do século XIX, agindo como se o mundo de hoje fosse a América Central desde sempre.

Essa mentalidade também é incapaz de reconhecer que, apesar dos efeitos negativos sobre os próprios EUA, as instituições internacionais atuais foram criadas e patrocinadas pelos EUA, para benefício também dos EUA, benefícios que incluem a estabilidade e boa vontade internacional. Ao destruir essas instituições, Trump destrói não só o legado de seu país, como também as bases do poder internacional dos EUA. E mais: também destrói o capital político acumulado na forma de boa vontade e confiança para com os Estados Unidos, além de gerar grande instabilidade. Por si só a destruição de Trump gera conflitos agressivos; se não fosse pouco, esse líder deseja conscientemente mais e mais os conflitos, que ele vê como provas de virilidade, firmeza e liderança (!). O resultado disso tudo é fácil de perceber e tem muitos exemplos históricos: os antigos amigos e aliados tornar-se-ão parceiros reticentes, depois aliados forçados, em seguida adversários velados e então adversários declarados. A Alemanha, em 1914 e em 1933-1939, exibiu a mesmíssima mentalidade.

Em tais condições, não há como “a América ser grande novamente”. Se fosse só para os EUA, isso não seria motivo de preocupação geral. Mas o papel central no sistema internacional desempenhado por esse país torna desastrosas as práticas de Trump. Ou, para usar uma expressão cara à teologia bíblica: essas práticas têm conseqüências apocalípticas. 

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

10 fevereiro 2025

Monitor Mercantil: Bacharelismo jurídico contra a República

O jornal carioca Monitor Mercantil publicou, em sua edição de 10 de fevereiro de 2025, o nosso artigo "O bacharelismo jurídico contra a República".


Reproduzimos abaixo o texto. Boa leitura!

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O bacharelismo jurídico contra a República 

Há talvez uma década assistimos no Brasil a uma crise dura e sistemática da República, em que os poderes Executivo e Legislativo têm sido utilizados para degradar e assaltar o Estado e as instituições. De maneira frágil, em 2022-2023 resistimos a esses ataques, embora permaneça a chantagem contra as instituições republicanas, como se vê na cínica avidez com que se mantém as “emendas ao orçamento”.

Isso não é casual. Misturam-se aí a oportunidade de assaltar o Estado com a mais completa confusão a respeito de quais são os princípios que devem regular a conduta republicana, sem deixar de lado alguns dos piores costumes na vida em comum. Em outras palavras, oportunidades, confusão intelectual e péssimos costumes.

As próprias instituições que deveriam resguardar o conjunto da República atentam contra ela. As críticas geralmente vão contra o poder Executivo – que, bem vistas as coisas, é o governo e é o principal ramo do Estado – e contra o Legislativo – que consiste no fiscal do orçamento –, mas cada vez mais o Judiciário, que em outros períodos manteve uma atuação discreta, apresenta-se como disfuncional.

Na verdade, o problema não é só o poder Judiciário em si, embora ele por si só seja um crescente problema. No Brasil repetimos a teoria dos “três” poderes, mas desde 1988 temos quatro poderes, na medida em que o Ministério Público é autônomo em relação aos demais. Ora, o próprio Ministério Público é extremamente problemático, como as atuações estranhamente conjuntas e conflitantes da Lava Jato, Rodrigo Janot e Augusto Aras ilustram com clareza.

Deixando de lado os graves problemas institucionais, culturais e políticos do Judiciário e do Ministério Público – irresponsabilidade e ausência total de prestação de contas, sem contar a atuação conjunta para aumentarem cada vez mais seus salários –, um traço muito claro deles é o espírito bacharelesco do Direito, ou, simplesmente, o bacharelismo jurídico.

Certamente outras pessoas já definiram o bacharelismo. Para o que nos interessa, o bacharelismo jurídico é o conjunto de hábitos mentais e concretos, ou melhor, de preconceitos compartilhados por estudantes e profissionais formados no curso de Direito, segundo os quais quem tem “formação jurídica” é melhor que quem não tem essa formação. Essa mentalidade implica um respeito automático para quem possui essa formação e – mais importante – implica também um desrespeito, uma desvalorização, uma desconsideração igualmente automática para quem não tem a formação jurídica. É uma das formas mais grotescas e degradantes de academicismo, mas não apresenta o aspecto intelectualista de quem acha que o universo resume-se às universidades; ao contrário, o bacharelismo jurídico considera que só é bom, só presta, só pensa, só tem direito à dignidade humana, só é cidadão quem passou pelo curso de Direito. De modo mais importante, a relação inversa também é verdadeira: para o bacharelismo jurídico, quem não tem formação jurídica simplesmente não presta, não merece respeito, não é cidadão. A quem tem o título de bacharel, paciência, boa vontade, sorrisos abertos; a quem não tem o título, má vontade, irritação, ligeireza, caretas. Consciente e intencional ou, ainda mais, inconsciente e involuntário, trata-se do espírito de abjeta subserviência a quem é chamado de “dotô”.

É claro que, em face de uma acusação desse tipo, a resposta-padrão será negar os traços indicados acima. Mas é no dia-a-dia que percebemos que essa negativa é vazia e o bacharelismo é real e entranhado. De modo geral, o Judiciário é caro, complicado e, de propósito, muito distante da vida dos cidadãos e o Ministério Público segue a mesma trilha – claro, a despeito de todos os rios de tinta que juízes, desembargadores, ministros, procuradores e “membros do Ministério Público” gastam para justificarem-se em discursos autocongratulatórios. Há algumas instituições que deveriam ser mais próximas e acessíveis aos cidadãos, como os juizados especiais (um ramo do Judiciário) e até a Fundação Procon (que é privada): mesmo essas instituições são contaminadas pelo bacharelismo jurídico. (A Defensoria Pública é relativamente nova no Brasil e não temos como argumentar a respeito dela; mas, não duvidamos de que, se apostássemos contra ela no caso do bacharelismo, provavelmente ganharíamos.)

Procon, juizados especiais, ramos não penais do Ministério Público: em todos eles os funcionários têm uma especial deferência para com quem é bacharel em Direito ou está estudando para sê-lo; essa deferência é manifestada por profissionais de carreira e por estagiários, sejam ou não vinculados ao curso de Direito. Além disso, como indicamos, o respeito bacharelesco tem o seu reverso, em que todos os demais cidadãos são alvo de um tratamento impositivo, que faz questão de indicar que não ser bacharel implica uma condição social e moral inferior. O bacharel é tratado com um respeitoso “senhô dotô” (ou “senhora dotôra”); os demais são tratados por um reles “você”. Os estagiários são subservientes aos “dotores”, mas por sua vez exigem a subserviência calada dos demais cidadãos – e, claro, tal exigência é sempre feita sob a ameaça de penalidades, processos, atrasos, multas, decisões desfavoráveis etc. (Prática habitual do Ministério Público, aliás.) Os cidadãos podem estar certos em suas demandas e são ouvidos com displicência e rapidez; mas quando o “dotô” fala, os funcionários do Procon, dos juizados especiais, do Ministério Público, do Judiciário dão-lhe toda a atenção e o tempo do mundo. O “dotô” pode falar o que quiser, os maiores sofismas, as maiores mentiras, as maiores degradações: como é “dotô”, pode falar o que quiser; ao espetáculo de sofismas e erros, o cidadão comum tem que ouvir calado, satisfeito, fingindo que as mentiras são a verdade, que a degradação não rebaixa o ser humano; caso o cidadão reclame, ache ruim, no limite exalte-se, será ameaçado ou exemplarmente punido. É isso o bacharelismo.

A Justiça brasileira, sabe-se, é cara e feita com viés de classe. Ou melhor, ela tem viés de casta, com um aspecto medieval. Ela é cara não apenas porque juízes, desembargadores, promotores e “membros do Ministério Público” exigem salários e penduricalhos cada vez maiores e injustificáveis, sem que se responsabilizem de verdade por suas atuações. De modo mais importante, a Justiça é cara porque o acesso a ela é caro, porque é estruturada de maneira que apenas quem tem dinheiro, ou melhor, muito dinheiro paga as altíssimas taxas cobradas por advogados e pelo sistema judiciário (incluindo aí os cartórios). Esses custos não são feitos apenas para saciar a avidez pecuniária dos envolvidos; esses custos representam o aspecto material de preconceitos de casta, contrários ao povo e à noção republicana de cidadania. Eles são a face material do espírito bacharelesco.

Em suma: para recuperar a República e valorizar a cidadania, o caminho passa necessariamente pelo combate ao bacharelismo jurídico.

 

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

13 janeiro 2025

Monitor Mercantil: "Em 2024, o Positivismo continuou desrespeitado"

No dia 13 de janeiro de 2025 o jornal carioca Monitor Mercantil publicou o nosso artigo mensal, desta feita intitulado "Em 2024 o Positivismo continuou desrespeitado".

O original do texto pode ser lido aqui: https://monitormercantil.com.br/em-2024-o-positivismo-continuou-desrespeitado/.

Reproduzimos abaixo o nosso artigo.

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Em 2024 o Positivismo continuou desrespeitado

Em 30.12.2024, em uma das tradicionais retrospectivas, o antropólogo Juliano Spyer afirmou na Folha de S. Paulo (“O debate e a cobertura sobre religião se profissionalizaram em 2024”) que a cobertura jornalística sobre as “religiões” profissionalizou-se em 2024. Para o autor, a cobertura jornalística das religiões teria melhorado pois (1) mais religiões passaram a ser cobertas, (2) por pesquisadores acadêmicos profissionais e (3) com perspectivas mais simpáticas ou, pelo menos, mais compreensivas.

Não nos importa aqui criticar o aumento da cobertura academicista-jornalística das “religiões” apontada por Juliano Spyer; em si mesmo, isso parece algo positivo. O que importa notar são as características indicadas e as ausências não indicadas: nesse sentido, o articulista é exemplar de vieses tanto da cobertura jornalística quanto das análises acadêmicas.

Antes de mais nada, embora esse antropólogo tenha uma abordagem “científica”, tanto ele quanto os pesquisadores “científicos” das chamadas “ciências da religião” adotam um conceito de “religião” que é o mesmo que o senso comum adota e que iguala “religião” a “teologia”: crenças em divindades e em um suposto “outro mundo”. Além disso, de modo geral as teologias consideradas são as monoteístas, em particular as abraâmicas. O resultado dessas concepções – que, importa insistir, são de senso comum e repetidas acriticamente pelas “ciências da religião” – é que se forçam e distorcem os dados da realidade para que caibam no esquema teórico. Religiões que cabem muito mal no esquema das divindades são forçadas nessa concepção, como o fetichismo, o budismo e até o confucionismo – isso, claro, para não falar das religiões metafísicas e, mais importante para nós, das humanistas.

Pesquisadores-jornalistas podem contribuir para popularizar pesquisas científicas e qualificar o debate público: isso é urgente quando a desinformação corre solta nas redes sociais e em que donos de redes mundiais manifestam-se a favor da desinformação, em particular de extrema direita. Sobre as “religiões”, pode ser interessante a simpatia por elas, ou, pelo menos, um esforço maior para compreendê-las. Talvez como um sinal dos tempos, os pesquisadores-jornalistas citados por Spyer são também sacerdotes das religiões; essa participação nas religiões permite acesso a dados e interpretações que, de outra maneira, talvez fossem mais difíceis de obter e que o academicismo muitas vezes rejeita. Mas, embora Spyer não sugira nada assim, o fato é que essa participação nas religiões tem um certo ar de “lugar de fala”.

Ora, o conceito de religião das “ciências da religião” é ruim, muito restritivo; não diremos que é “etnocêntrico”, mas ele despreza tudo o que não se aproxima do sobrenaturalismo e dos monoteísmos abraâmicos. Na verdade, o materialismo cientificista tem nesse caso a degradante conseqüência de desprezar qualquer esforço religioso que seja humanista e imanentista. Da mesma forma, o quase “lugar de fala” aceito e valorizado para os monoteísmos é rejeitado para os humanismos.

Chegamos então ao que nos interessa. A maior cobertura supostamente mais profissional e com certeza mais simpática dos monoteísmos no jornalismo brasileiro não se estende ao Positivismo, à Religião da Humanidade. De maneira notável e escandalosa, as três características indicadas por Spyer para os monoteísmos não se aplicam ao Positivismo: a cobertura sobre ele não é melhor nem mais profissional, não se dá voz aos seus sacerdotes e não se concede a ele nem simpatia nem compreensão.

O fato de que vulgarmente se entende que religião são principalmente os monoteísmos é apenas o começo do problema, reforçado pelos preconceitos materialistas do cientificismo. Mas, no fundo, há apenas má vontade e má fé, ou seja, preconceito. Todos “sabem” o que é o Positivismo (e todos “sabem” o que é “religião”); todos “sabem” qual a influência do Positivismo no Brasil, no Ocidente e no mundo: assim, não é necessário ouvir os positivistas – e, em particular, quando o que há para ouvir vai contra o que se “sabe”.

Não importa que a extrema direita, durante o terrível governo fascista, tenha seguidamente afirmado que o Positivismo é o culpado pelos problemas nacionais e tenha estimulado a morte dos positivistas (ver o nosso artigo “O Positivismo como cortina de fumaça para os erros da direitabrasileira”, publicado no Monitor Mercantil de 23 a 25 de maio de 2020). No Brasil segue-se o seguinte padrão: pode-se falar sobre o Positivismo o que se desejar, mas nunca se pode, nem se deve, ouvir o que os positivistas têm a dizer.

Dois exemplos ilustram com perfeição nosso argumento. Em 30.8.2022 a BBC Brasil publicou o texto “Ordem e Progresso: como as ideias de um filósofo francês do século 19 ajudam a entender a formação do Brasil” (https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4gmp4nrw0wo). Nesse artigo, fala-se profusamente sobre o Positivismo, citam-se muitos professores universitários, argumentam-se muitas coisas, mostram-se muitas fotos. Mas o tom geral é negativo e, para quem conhece de verdade o Positivismo, a desinformação sistemática abunda. Além disso, coroando esses defeitos, é claro que absolutamente nenhum positivista foi ouvido.

Já em 16.12.2024, a ex-Deputada Federal comunista Manuela d’Ávila, em entrevista para o jornalista Chico Pinheiro pelo Instituto Conhecimento Liberta (https://www.youtube.com/watch?v=AbYAZF912eA), repetiu que o Positivismo é o responsável pelo militarismo e pelo fascismo no Brasil. Ela difundiu esses mitos conscientemente, com ligeireza e superficialidade, mesmo sendo jornalista e gaúcha, ou seja, tendo os meios para averiguar em primeira mão o que afirma (por exemplo, indo pessoalmente à Igreja Positivista do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre).

Os exemplos acima são apenas dois em dezenas de outros possíveis. Se versassem sobre outras religiões ou filosofias – comunismo, feminismo, marxismo, catolicismo, liberalismo, candomblecismo, espiritismo, budismo, islamismo, cristianismos evangélicos etc. –, ter simpatia ou compreensão pelo tema seria exigido, sem contar que ouvir algum representante seria pelo menos de bom tom; limitar-se a opiniões de terceiros, falar mal e não permitir réplica seria inimaginável. Mas no caso do Positivismo, esses comportamentos jornalisticamente antiéticos, politicamente irresponsáveis e moralmente desprezíveis são não apenas aceitos como são exigidos.

Em face disso tudo, o avanço sugerido por Juliano Spyer é assustadoramente parcial e enviesado: não se trata de melhoria na cobertura jornalística das “religiões”, mas apenas concessão às teologias monoteístas. O que não se enquadra nisso – em particular o humanismo positivista –, a par da degradação geral da República e da laicidade no Brasil, é desprezado. 

Gustavo Biscaia de Lacerda é Doutor em Sociologia Política e sociólogo da UFPR.

10 dezembro 2024

Monitor Mercantil: "Cultura política, STF e laicidade"

No dia 9.12.2024 o jornal carioca Monitor Mercantil publicou um artigo de nossa autoria intitulado "Cultura política, STF e laicidade".

O original da publicação está disponível aqui: https://monitormercantil.com.br/cultura-politica-stf-e-laicidade/.

O texto está reproduzido abaixo.

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Cultura política, STF e laicidade

É quase senso comum considerar que sem o apoio generalizado e difuso da sociedade, nenhum regime político pode manter-se. Isso se refere tanto ao apoio consciente ao regime quanto aos pequenos hábitos e comportamentos do dia a dia, incluindo aí as formas como agimos e as maneiras que rejeitamos para agir. Assim, todo regime apresenta um aspecto cultural; dito de outra maneira, toda cultura tem um aspecto político que se corporifica no regime político, que cria e que sustenta as instituições.

Vale notar que as instituições importam, e muito, mas seu funcionamento adequado depende do apoio social que o conjunto da sociedade fornece, da legitimidade que as instituições têm para agir da maneira adequada e, não menos importante, das convicções íntimas que os agentes públicos e os cidadãos têm para fazer valer as funções das instituições. Em outras palavras, sem a cultura política sustentando as instituições, estas não passam de cascas vazias e letras mortas.

A relevância dessas afirmações, aparentemente tão simples, pôde ser comprovada ao longo da última década, a partir de diferentes exemplos. O primeiro exemplo é o mais fácil de citar; trata-se da série crise de legitimidade com que as instituições políticas representativas têm-se defrontado faz tempo. Não se trata apenas de um sentimento difuso e difundido de que “os políticos não nos representam”. Isso por si só já seria bastante grave, mas em si gera mais apatia e cinismo que qualquer outra coisa: ora, a crise de legitimidade que temos visto desde pelo menos 2013 tem resultado em um ativo comportamento autoritário. Em vez de as instituições republicanas (nas equívocas formas “democrático-liberais”) perderem apoio por si sós, o que se tem visto é que essa perda tem sido trocada por um apoio a práticas e a propostas institucionais autoritárias, violentas, iliberais. O apelo democrático é o mesmo: é sempre a soberania popular que justifica essas propostas; como, supostamente, a vontade popular nunca erra (afinal, vox populi vox dei), muitos consideram que o misticismo saudosista do regime militar seria aceitável.

Essas concepções antirrepublicanas têm sido defendidas por muitos grupos sociais e políticos que tentam implementá-las por meio de duas estratégias complementares: (1) desgastando as instituições vigentes, corroendo sua autoridade e/ou mantendo-as inertes (ou melhor, omissas); (2) tentando a mudança total de uma única vez. A primeira estratégia come pelas beiradas, a segunda consiste em um ataque direto ao conjunto das instituições.

Ora, a partir de um sentimento social difuso e difundido, não necessariamente espontâneo, entre 2019 e 2022 o que se viu foi o seguinte: o poder Executivo buscou e apoiou o golpismo militarista, o poder Legislativo foi inicialmente um anteparo a isso (entre 2019 e 2020, com Rodrigo Maia à frente da Câmara dos Deputados) e depois foi um esteio dessas ambições (em 2021 e 2022, com Artur Lira como Presidente da Câmara) e a Procuradoria-Geral da República (PGR) exibiu uma omissão cúmplice: o grande anteparo dessa longa ofensiva foi o Supremo Tribunal Federal (STF), na figura de Alexandre de Moraes secundado pelos outros dez ministros.

Vimos, então, a cultura política em ação, seja no seu aspecto difuso, social, seja no seu aspecto concreto, institucional e individual; um intenso ativismo social apoiou e foi apoiado por um ativismo institucional contra o conjunto das instituições, parte das quais apresentou uma omissão conivente contra esse mesmo conjunto; uma instituição central em particular opôs-se a isso e evitou o triunfo da maré antirrepublicana.

Esse resultado é notável e torna-se ainda mais impressionante quando se o compara com o outro exemplo que queremos comentar. Os atores envolvidos são os mesmos (sociedade civil, os três poderes, PGR); a fundamentação filosófico-moral é a mesma (valores sociais compartilhados, caráter “democrático” das instituições), a tramitação é a mesma (propostas dos poderes Executivo e/ou Legislativo avaliadas pelo Judiciário); os casos que nos interessam agora também se referem a aspectos centrais e fundamentais da República: mas o resultado é inverso ao anterior. As questões são relativas à laicidade do Estado.

Desde 1890 o Estado brasileiro é laico. Isso deveria significar que o Estado não tem doutrina oficial nem que as doutrinas/igrejas não se valem do Estado para imporem-se sobre os cidadãos. O Estado mais ou menos não tem doutrina; mas as doutrinas/igrejas usam, sim, o Estado para imporem-se e querem, cada vez mais, que o Estado apóie ativamente esse uso. Nesse quadro, as instituições deveriam apoiar o que é uma disposição política e constitucional desde o início da República: mas o poder Legislativo tenta criar brechas o tempo todo; o Executivo é omisso ou partícipe ativo dessas iniciativas; o Ministério Público é igualmente omisso. Restaria o Judiciário, mas decisões tomadas nos últimos anos indicam que o STF também apóia o desprezo à laicidade. E, pior, esse desprezo manifesta-se pelo mesmo Ministro – infelizmente, Alexandre de Moraes.

Em 2017, Alexandre de Moraes pôs-se contra Roberto Barroso, foi favorável a que as escolas públicas tenham ensino religioso confessional e foi o autor do voto vencedor nessa questão. Para Moraes, é lícito ao Estado pagar sacerdotes para que eles imponham sobre os estudantes suas doutrinas, em caráter oficial (com a fantasiosa possibilidade de opção). Agora em 2024, o mesmo Moraes julgou que os crucifixos em órgãos públicos não ofendem a laicidade do Estado, ou seja, símbolos de uma doutrina específica podem ser exibidos em caráter oficial (e obrigatório) para todos os cidadãos, mesmo acima dos símbolos da República!

O argumento empregado nos dois casos pelo Ministro Moraes é o mesmo empregado pelo ex-Presidente que tentou dar um golpe militar durante quatro anos: trata-se de que, “se o Estado é laico, a população é cristã”. A laicidade tem que se dobrar a uma crença compartilhada e pode ser negada. Não se pode argumentar ignorância ou má fé do Ministro Moraes, nem mesmo tibieza ou medo: ele não é o tipo de pessoa que se dobra a pressões externas por medo. São convicções íntimas, compartilhadas pela maioria do STF em 2017 e novamente em 2024.

O problema, então, é de cultura política – e de filosofia política. Trata-se de considerar que as opiniões são secundárias e que a força, a violência do Estado é só o que importa. Um Estado autoritário é um grave problema e deve ser evitado, sem dúvida: essa é a opinião do STF e de metade da população brasileira. Mas um Estado que impõe doutrinas e símbolos – na verdade, de maneira ainda mais dura e agressiva que em um Estado autoritário –, isso não é problema, pois “a população é cristã” e é lícito que o Estado pague servidores públicos para pregação religiosa.

São opções filosóficas e morais incoerentes, na verdade incompatíveis. Essas opções revelam e conduzem a uma cultura política que é mais que incompatível: ela é suicida.

 

Gustavo Biscaia de Lacerda é Doutor em Sociologia Política e sociólogo da UFPR.

11 novembro 2024

Monitor Mercantil: "O identitarismo contra a laicidade"

O jornal carioca Monitor Mercantil publicou em 11.11.2024 um artigo de nossa autoria, intitulado "O identitarismo contra a laicidade".

Reproduzimos abaixo o texto. O original pode ser lido aqui: https://monitormercantil.com.br/o-identitarismo-contra-a-laicidade/.

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O identitarismo contra a laicidade

Vivemos em uma república. Embora essa afirmação banal não seja muito levada a sério atualmente, ela implica grandes ideais morais, sociais e políticos, começando pela dedicação de todos ao bem comum e pela subordinação da política à moral. Sem esgotar aqui o conteúdo da república, podemos simplificar indicando que um dos aspectos institucionais básicos das repúblicas é a laicidade do Estado. Isso implica uma dupla vedação:

1)      por um lado, o Estado não pode ter, manter ou beneficiar doutrinas específicas e, além disso, não pode condicionar o acesso a seus serviços (e, portanto, não pode condicionar a cidadania) à adesão dos indivíduos a essas doutrinas;

2)      por outro lado, as várias igrejas e os grupos promotores de doutrinas não podem usar o Estado para fazer valer suas concepções (ou seja, não podem impor suas doutrinas).

Essa dupla vedação baseia-se no respeito à dignidade e à autonomia individual e na consideração de que questões de foro íntimo só podem ser decididas intimamente; a isso se soma o fato de que o Estado é incapaz e ilegítimo para decidir a respeito dessas questões de foro íntimo e que a imposição de crenças também é errada e ilegítima. Geralmente se considera a laicidade em relação a igrejas ou cultos teológicos, mas ela está bem longe de limitar-se a eles, pois inclui doutrinas político-partidárias, filosofias variadas e até doutrinas especificamente “universitárias”. Assim, em si mesma a laicidade não é atéia (doutrina que nega a existência das divindades) nem anticlerical (o combate às igrejas).

A laicidade e a república exigem que as políticas públicas devem ser universalistas, ou seja, devem atingir todos os cidadãos. Toda sociedade tem suas clivagens, algumas voluntárias (religiosas, filosóficas, morais, culturais, políticas, recreativas, esportivas, de locais de moradia etc.) e outras involuntárias (classistas, sexuais, étnicas etc.); mas essas clivagens devem subordinar-se à universalidade da república, a partir do primado da fraternidade universal. Dessa forma, embora sempre existam agrupamentos particulares, o universalismo republicano rejeita os particularismos e os guetos – sejam guetos impostos sobre e contra os grupos sociais minoritários, sejam os guetos criados pelos grupos minoritários contra as sociedades maiores.

Essas características parecem intuitivamente corretas, mas elas têm sido duramente postas à prova, ou melhor, elas têm sido desafiadas, criticadas e repudiadas nos últimos anos pelo identitarismo. Em discussões acadêmicas os identitarismos são claros na recusa aos traços acima – dizem com todas as letras que “o universalismo é uma mentira” –, mas, para o grande público, sua ação é mais enviesada. Em vez de pôr-se direta e claramente contra os valores e as práticas republicanas, o identitarismo afirma os seus próprios valores, corroendo e corrompendo a vida política. Mas quais são os valores e as práticas do identitarismo?

Não há um único identitarismo; existem muitos, que tendem sempre, cada vez mais, a multiplicar-se. O identitarismo nega o universalismo cidadão e fraterno em prol da multiplicidade de exclusivismos e particularismos, minorias que se vêem como perseguidas pela “maioria”. Como são, ou como se vêem, como perseguidas, essas minorias adotam o ressentimento sistemático como sentimento político, pessoal e moral básico, buscando estabelecer sistematicamente a culpa da “maioria”; para isso exigem que o Estado atenda apenas ou prioritariamente as suas próprias demandas e que atue na difusão da mentalidade identitária, que passa a tornar-se doutrina oficial. A partir da teoria do “reconhecimento”, o objetivo do Estado torna-se reafirmar constantemente a existência desses grupos minoritários, perseguidos e ressentidos – e, claro, satisfazê-los e prover-lhes “reparações”. Participar desses grupos torna-se então, progressivamente, condição de acesso ao Estado e à cidadania.

Para evitar mal-entendidos, importa sermos claros: em inúmeras situações concretas as reclamações fundamentais dos grupos identitários são justificadas. Entretanto, se muitas situações concretas são de fato injustas, elas são respondidas da pior maneira possível, estimulando sentimentos, idéias, hábitos, práticas e instituições desastrosos.

O identitarismo pode ser de esquerda ou de direita. Pelo menos no Brasil, os identitarismos de esquerda são os mais conhecidos (ou mais estridentes): racialista, de gênero, de opção sexual, étnico etc.; mas há também os identitarismos de direita, vinculados especialmente à teologia (cristã) e a grupos étnicos. Tanto uns quanto outros dizem-se perseguidos e usam o Estado como instrumento para impor suas concepções: nada mais distante de dignidade, fraternidade, liberdade, autonomia.

Em face dessas características, percebe-se com clareza que o identitarismo encara a laicidade no mínimo como uma instituição inútil, no máximo um estorvo a ser destruído. Se o Estado deve estar a serviço dos grupos ressentidos em sua busca de reparações e se o reconhecimento do ressentimento-e-culpa é a mentalidade que orienta a vida pública, é claro que a laicidade deixa de ser importante, de ser útil, de fazer sentido.

Entre os identitários de direita, vinculados de modo geral às teologias, a laicidade deve ser simplesmente ignorada ou desprezada: o Estado deve estar a serviço da difusão do “cristianismo” (geralmente evangélico, mas também católico), sendo que a laicidade é vista como um instrumento dos valores da “esquerda” ou do afastamento da divindade (o que, para a direita teológica, dá na mesma). Temos então os cultos privados em espaços públicos; as referências obrigatórias às divindades e a leitura da Bíblia em espaços e órgãos públicos; os feriados teológicos etc.

Entre os identitários de esquerda, a situação é um pouco mais ampla. No fundo, a esquerda adota os mesmíssimos procedimentos que a direita, criando feriados particularistas, impondo a leitura de doutrinas identitárias etc. Mas, embora também ignore ou despreze a laicidade, quando convém a esquerda consegue lembrar-se dela, para um anticlericalismo tópico. Isso, aliás, é o que alguns chamam de “seqüestro da laicidade”.

Em meio a esses particularismos exclusivistas ressentidos, não há espaço para a fraternidade, para uma verdadeira vida em comum, para a dedicação ao bem comum. Simplesmente não há “bem comum”, que é denunciado como hipocrisia “anticristã”, ou “falocêntrica”, ou “heteronormativa”... há apenas ódio, ressentimento, particularismo.

Considerando o amplo apoio que os identitarismos têm no Brasil atual, à direita e à esquerda, não é de estranhar que nem a laicidade nem, de modo mais amplo, a república sejam levadas a sério. Daí resultam os desastres sociais, políticos, morais e intelectuais que todos vemos todos os dias. É escandaloso e desastroso que os identitarismos sigam tendo apoio no país. Urge retomar a república, a laicidade e a fraternidade, contra o identitarismo, o particularismo e o ressentimento.

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

15 outubro 2024

Monitor Mercantil: "O caso Sílvio Almeida e três padrões da moralidade pública"

No dia 8 de Descartes de 170 (14.10.2024) foi publicado um artigo de nossa autoria no jornal carioca Monitor Mercantil; o artigo intitula-se "O caso Sílvio Almeida e três padrões da moralidade pública".

O artigo pode ser lido no portal do periódico, aqui: https://monitormercantil.com.br/o-caso-silvio-almeida-e-tres-padroes-da-moralidade-publica/

Reproduzimos abaixo o texto.

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O caso Sílvio Almeida e três padrões da moralidade pública 

Em 6 de setembro de 2024 o Ministro dos Direitos Humanos, Sílvio Almeida, foi demitido, sob a grave acusação de assédio sexual – assédio que ocorreria desde final de 2022, seria praticada por um Ministro de Estado, contra uma colega Ministra de Estado (Anielle Franco, titular do Ministério da Igualdade Racial) (além de contra outras mulheres) e alegadamente integrava um padrão de assédio moral do denunciado. Os detalhes do episódio são preocupantes, pois (1) envolvem a alta administração federal em um longo período de tempo e em um governo cuja missão é recuperar a moralidade pública após o caos lavajatista-ultraliberal-neofascista e (2) envolvem uma organização não governamental estrangeira (a estadunidense Me Too), em vez dos adequados órgãos públicos (a Presidência da República e a Controladoria-Geral da União).

Na semana em que esse episódio desenrolou-se houve intensa agitação midiática; mas, como sói acontecer, passados alguns dias o tema desapareceu do noticiário. Ainda assim, vale a pena brevemente o reconsiderarmos, sob uma luz que não foi abordada: as perspectivas de moralidade pública. O nosso argumento é bastante direto: podemos identificar pelo menos três padrões de moralidade, a da direita, a da esquerda e o republicano – dois dos quais são insatisfatórios e um terceiro que não é (não é mais, ou ainda não é) praticado.

Comecemos notando que a vida política tem que se submeter à moral. Essa concepção pode parecer contraintuitiva; a reflexão academicista afirma, a partir de Maquiavel, que a política é “autônoma” em relação à moral, sugerindo assim que a prática política tem parâmetros próprios, irredutíveis, ou melhor, incompatíveis com a moral. Assim, a teoria política academicista postula que no âmbito privado é correto falar a verdade, honrar a palavra dada etc., mas na vida pública dá-se o inverso: mentir, trair, enganar é que seriam as virtudes. Esse amoralismo que logo se revela um imoralismo é vendido como “realismo”.

Claro, essas concepções chocantes são falsas: agir conforme o que se afirma e honrar a palavra dada são princípios elementares em qualquer lugar; inversamente, quem mente e trai, quem é incoerente em termos de alianças e práticas, logo é recriminado e perde apoio. Mais: quando a mentira, a hipocrisia, o cinismo viram a regra, o regime político como um todo perde legitimidade. Evidentemente, se a noção de república – isto é, de “res publica”, de coisa pública – tem algum sentido, tal sentido vincula-se à subordinação da política à moral; quando o bem comum é desrespeitado e usado como uma pomposa desculpa para o enriquecimento privado e o benefício de grupos particularistas e excludentes, o sistema político como um todo entra em crise e buscam-se opções antissistêmicas: essa é a origem profunda da aventura autoritária a que assistimos desde há dez anos, com o lavajatismo, o ultraliberalismo e o neofascismo. Mas, enfim, a crise do sistema confirma o primado da subordinação da política à moral, embora as opções buscadas sejam profundamente antirrepublicanas.

Em face da subordinação da política à moral, a “direita” considera basicamente que os valores morais devem ser “conservadores”; mas isso é uma forma meio enviesada de dizer que a sociedade moderna tem que se pautar por valores teológicos, em particular cristãos; não por acaso, esses conservadores costumam idealizar para as sociedades modernas uma volta no tempo, para quando se seguiam os parâmetros teológicos com ou sem a regulação da igreja (a Idade Média, ou as épocas de Abraão, Moisés ou São Paulo). Lidando mal com as concepções e instituições que não sejam as suas próprias, os conservadores pregam uma desaceleração geral do mundo; assim, de maneira confusa, parcial e muito incoerente pregam um certo respeito à continuidade histórica. Por fim, considerando que o cristianismo em si regulou apenas vida privada mas foi omisso sobre a vida pública, a subordinação da política à moral para a direita conservadora consiste em adotar parâmetros familistas e/ou um clericalismo generalizado.

Uma outra direita, mais recente, só é direita e só é “conservadora” em oposição à esquerda (e à esquerda revolucionária): são os liberais economicistas. Também para eles, a vida pública reduz-se à vida privada; mas em vez de clericalismo ou familismo, os parâmetros privados que devem ser generalizados são os das empresas privadas: a sociedade é vista como um vasto mercado; o Estado deve ser o seu regulador geral; a sociedade compõe-se de famílias e empresas, isto é, de consumidores e vendedores. Moralidade toda própria, sem dúvida.

Da parte da “esquerda”, especialmente a marxista, a moralidade é confusa. Por um lado, a partir do materialismo, finge-se que não há subjetividade nem moralidade em jogo; por outro lado, evidentemente há fortes princípios morais em ação. A moral pública é afirmada sobre a moral privada; mas não existe bem comum, apenas o bem de uma classe sobre outras; como as classes estão perpetuamente em conflito, só haverá bem comum quando não houver mais classes. O passado e o presente são hipócritas ou alienantes; até haver, no futuro, uma revolução salvadora, a moral pública consagra o conflito, a violência, a hipocrisia sistêmica e constitutiva.

Uma esquerda mais recente é a identitária. Ela também consagra a desconfiança e afirma o conflito constitutivo e sistêmico; mas não vê resolução desses problemas. A moral pública, então, basicamente é a moral da “maioria”, que, por definição, é opressora e cujos pecados constitutivos devem ser expiados eternamente. Em face disso, a esquerda identitária promove uma “contra-moral”, em que a história, ou melhor, o estudo da história serve para revelar e estimular a culpa de opressores (que são a “maioria”), bem como o ressentimento dos perseguidos e humilhados (sempre as “minorias”, que devem sempre ser compensadas). As preocupações privadas tomam conta da moral pública, que rejeita a confiança e estabelece um punitivismo sistemático e particularista como objetivo da política.

O caso Sílvio Almeida deve ser entendido com o identitarismo e seu punitivismo, particularismo raivoso e ânsia expiatória. Almeida e Franco são promotores de diferentes vieses identitários: ele, do identitarismo racialista; ela, do identitarismo feminista. Embora a demora para a denúncia sugira uma aliança temporária entre eles, os canais não oficiais, a presunção de culpa do denunciado e a conseqüente rapidez com que o denunciado foi demitido após a denúncia ilustram bem a lógica identitária: ânsia punitivista, desconfiança sistemática e generalizada, intenso particularismo moral e social, estímulo conjugado de culpa e ressentimento. Com dois identitarismos entrando em choque direto, para além da ânsia punitiva não se vê muito bem como o bem público está sendo servido; mas o que se percebe é que, em sendo verdadeiras as acusações feitas contra o ex-Ministro (cuja culpa ainda não comprovada), a mentalidade da “maioria” sempre culpada e da minoria sempre ressentida foi necessariamente insuficiente para regular o comportamento público e privado de um alto promotor do identitarismo e impedir um comportamento inaceitável sob qualquer ponto de vista.

No vaivém entre direita e esquerda, conservadores/retrógrados e revolucionários, ordem retrógrada e progresso anárquico, o bem comum é sacrificado: não se reconhece um efetivo bem comum (sempre sacrificado pelos particularismos, pelos conflitos e pelo punitivismo) nem se valoriza efetivamente a confiança pública (entre governantes e governados e entre os cidadãos). Ora, a solução para isso é deixar de lado as oposições entre ordem e progresso e assumir que esses dois elementos devem andar juntos; que o bem comum deve ser afirmado e que se deve estimular a confiança na sociedade; além disso, os âmbitos público e privado, sem serem radicalmente separados, devem ter suas particularidades respeitadas. Essas concepções, tão incomuns nos dias de hoje, têm um nome e uma autoria: trata-se do republicanismo, conforme delineado pelo fundador da Sociologia, o grande Augusto Comte. Cumpre valorizá-las e aplicá-las.

 

Gustavo Biscaia de Lacerda é doutor em Sociologia Política (UFSC) e sociólogo da UFPR.

10 setembro 2024

Monitor Mercantil: O que é um voto republicano consciente?

A partir do manifesto "Programa republicano mínimo - orientações para o voto no dia 6 de outubro", redigimos um artigo que foi publicado no jornal carioca Monitor Mercantil do dia 1º de Shakespeare de 170 (9.9.2024), sob o título "O que é um voto republicano consciente?".

Reproduzimos abaixo a versão publicada no jornal. O original pode ser lido aqui: https://monitormercantil.com.br/o-que-e-um-voto-republicano-consciente/.

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O que é um voto republicano consciente?

Alguns parâmetros e algumas orientações para escolher candidatos através do voto consciente. Por Gustavo Biscaia de Lacerda


Como ocorre a cada dois anos no Brasil, neste 2024 teremos eleições; nesta rodada elegeremos prefeitos e vereadores. As campanhas estão a pleno vapor, desde o dia 16 de agosto. Como sempre ocorre, partidos políticos, Justiça Eleitoral, meios de comunicação, vários grupos da sociedade civil e candidatos afirmam que é importante “votar com consciência”, “votar de maneira esclarecida”, “buscar os melhores candidatos”, mas muito raramente, para não dizer nunca, são apresentados com clareza os critérios que definem a “consciência”, o “esclarecimento”, os “melhores”.

No máximo há a afirmação de que os candidatos escolhidos devem “representar” os eleitores, com isso querendo dizer que os eleitores devem buscar candidatos que pensem e ajam de maneira semelhante aos próprios eleitores; mas, dizendo com clareza, esse parâmetro “demográfico” é péssimo, pois simplesmente desconsidera, quando não despreza, os verdadeiros interesses coletivos e públicos.

Assim, correndo um pouco o risco de soar prepotente, propomo-nos aqui a indicar alguns parâmetros gerais e algumas orientações específicas para a escolha de candidatos a prefeito e a vereador nas próximas (e em todas as demais) eleições. O pressuposto fundamental nessas sugestões é que no Brasil vivemos em uma república, e que isso não é somente um regime político, mas um denso e profundo programa político, social e moral. Como se verá, à primeira vista talvez o programa abaixo pareça muito exigente; mas, por um lado, isso não é motivo para desconsiderá-lo; por outro lado, isso indica o quanto estamos distantes do republicanismo no Brasil.

Com antecedentes históricos que recuam pelo menos até Tiradentes, no final do século 18, desde 15 de novembro de 1889 o Brasil é uma república. Embora à primeira vista o conceito de “república” pareça pouco, na verdade ele é de fato um dos mais densos e importantes conceitos. A noção de república é ao mesmo tempo um ideal e uma realidade: surgida do desenvolvimento histórico, ela também deve orientar a nossa atuação no sentido de valores e a práticas considerados bons, corretos e justos. É claro que nem sempre esses ideais se realizam na prática, mas isso não é motivo para desvalorizá-los ou rejeitá-los.

O sentido fundamental da república é a realização do bem comum, superando o individualismo, o egoísmo, os particularismos. Além disso, a república opõe-se à monarquia, embora isso nem sempre seja tão evidente, daí a república opõe-se à sociedade de castas; isso quer dizer que na república o valor de uma pessoa é dado pelo mérito individual, em vez de ser pelas condições em que nasceu, ou seja, pelo “berço”.

Se a república é a dedicação ao bem comum, é claro que o conjunto da sociedade deve sempre ser levado em consideração, e todos devem orientar suas condutas para a melhoria da vida de todos. Daí se segue que a fraternidade universal é um valor básico e, portanto, o respeito mútuo e a afirmação da dignidade fundamental de todos são pilares da vida coletiva.

Além disso, as relações sociais têm que ser pacíficas: qualquer forma de violência degrada as relações humanas e o ambiente social. O pacifismo e a fraternidade universal impõem, por seu turno, o repúdio ao racismo e às discriminações de “gênero”; da mesma forma, eles exigem o respeito ao meio ambiente e, claro, aos animais. De maneira mais ampla, como a maior parte da sociedade é composta pelo proletariado (ou seja, pelos trabalhadores), os esforços sociais têm que se orientar para a melhoria das suas condições de vida: é esse o objetivo que se deve orientar a ação dos “capitalistas” e da classe média.

Acima de tudo, a dedicação ao bem comum significa a subordinação da política à moral; isso não é um “moralismo” sistemático, mas implica subordinar a política aos princípios e valores maiores da Humanidade, com a família subordinando-se à pátria, e a pátria subordinando-se à Humanidade. Somente assim a política pode ser a dedicação ao bem comum – e, a partir disso, ser fiscalizável e responsabilizável.

O resultado disso é a regra do “viver às claras”: cada um deve adotar valores em sua vida que sejam publicamente defensáveis (e viver conforme esses valores). No caso dos governantes e das figuras públicas, o viver às claras também significa que todos os seus atos são responsabilizáveis, passíveis de acompanhamento, avaliação e cobrança públicas. Como consequência do viver às claras, todos devem sempre falar a verdade e cumprir o prometido – ou, em outras palavras, não se deve mentir nem se deve trair.

Por fim, a instituição republicana básica é a separação entre igreja e Estado: quem aconselha não pode usar a violência do Estado para fazer-se valer; inversamente, o Estado não pode condicionar os seus serviços à aceitação de crenças oficiais. Dessa forma, os sacerdotes devem manter-se afastados do Estado a fim de garantirem sua dignidade, assim como o Estado deve recusar sacerdotes para não ser usado como instrumento de opressão.

Esse afastamento dos sacerdotes em relação à política não quer dizer alienação nem indiferença, mas que, como sacerdotes, não podem trabalhar para o Estado. Daí se seguem as liberdades fundamentais: as liberdades de crença, de manifestação e de associação, além do direito de ir e vir, o habeas corpus e o devido processo legal.

Tudo isso converge para as seguintes orientações específicas

Em primeiro lugar, deve-se votar em quem apresentar estes comportamentos: quem respeitar a laicidade do Estado; a dignidade humana e a fraternidade universal; a dignidade do espaço público e das instituições republicanas; a dignidade e as condições de vida da população brasileira, em particular dos trabalhadores, dos mais pobres e dos povos indígenas; a dignidade da família, independentemente da orientação sexual de cada família; a dignidade das mulheres; quem combater o racismo e outras discriminações; quem defender o meio ambiente e as condições de vida dos animais.

Em segundo lugar, não se deve votar em quem apresentar estes comportamentos: quem for sacerdote (padre, pastor etc.); quem usar o Estado para promover cultos; desvalorizar os problemas sociais e/ou criminalizar a pobreza; promover a cultura da violência e estimular o uso de armas de fogo pela população civil; promover valores e práticas exclusivistas e excludentes, incluindo aí as chamadas pautas identitárias; negar os problemas ambientais (os “negacionistas climáticos”); promover a “cultura do cancelamento” e a “cultura da baixaria”; tiver histórico de ligação com o crime; promover o racismo, a misoginia e preconceitos diversos.

Parece muito? Talvez. Mas, bem vistas as coisas, isso é o mínimo de uma sociedade decente, saudável, digna de ser vivida em conjunto. Menos do que isso é o triste espetáculo que vivemos.

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

22 agosto 2024

Monitor Mercantil: "Degradação como progresso (!)"

O jornal carioca Monitor Mercantil publicou no dia 21.8.2024 um texto de nossa autoria, intitulado "Degradação como progresso (!)".

Como de hábito, redigimos uma versão inicial grande, que depois foi cortada para adequar-se aos parâmetros de publicação jornalística.

A versão publicada está disponível aqui: https://monitormercantil.com.br/degradacao-como-progresso/.

Apresentamos abaixo a versão inicial do texto.

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Degradação como progresso (!) 

Gustavo Biscaia de Lacerda

 

Advertência inicial

Antes de mais nada, um aviso: este artigo certamente desagradará muitos, talvez a maioria, de quem se considera “progressista”; mas é justamente em nome do progresso, em defesa do progresso, que escrevi estas linhas. Começarei expondo duas situações concretas, geralmente celebradas (de maneira equivocada) como progressistas e em seguida comentarei o que se deve entender por progresso.

A polêmica olímpica

A primeira situação concreta refere-se aos jogos olímpicos. O belo espetáculo das Olimpíadas, em sua recente edição de Paris 2024, foi marcado em sua abertura, no dia 28 de julho, por polêmicas intensas. Não foi todo o evento de abertura, que se caracterizou por múltiplas atividades realizadas ao mesmo tempo, muitas delas realmente bonitas e inovadoras, respeitando e exaltando o universalismo próprio aos jogos olímpicos, bem como celebrando aspectos da cultura francesa e da preocupação com o futuro da Humanidade. Contudo, alguns aspectos foram particularmente polêmicos – e, convém dizê-lo com clareza, propositalmente agressivos. Essas polêmicas referiram-se em particular a uma suposta representação teatral, ou “performática”, do famoso afresco de Leonardo da Vinci, A última ceia (1495-1498), em que – supostamente, conforme as críticas – as figuras de Jesus Cristo e dos apóstolos teriam sido trocadas por figuras de diabos, bacantes etc., em poses e situações extremamente eróticas e sexualizadas. Em contraposição, alguns dos defensores da “performance” afirmaram que se tratava na realidade de uma representação da tela A festa dos deuses, de Utrecht Jan Harmensz (1635-1640), ou, ainda (mas com menos verossimilhança), de A festa dos deuses, de Giovanni Bellini (1514). O diretor artístico do evento, Thomas Jolly, foi extremamente ambígüo a respeito: embora inicialmente ele não tenha confirmado nem negado nada, após as imediatas críticas feitas pela igreja católica da França, por católicos e por políticos de direita e extrema direita, ele afirmou que não se tratava de nenhuma tentativa de degradar ou desprezar o afresco de Leonardo da Vinci nem, por extensão, o catolicismo, mas, ao contrário, de ser “inclusivo ao máximo”; aliás, ele também afirmou que “um pouco de polêmica é sempre bom”, pois um mundo sem polêmicas seria “muito chato”. Em face de tal polêmica, tanto o presidente da comissão francesa para os jogos olímpicos, o canoísta Tony Stanguet, quanto o Presidente da República, Emmanuel Macron, viram-se obrigados a confirmar e a apoiar o espetáculo, inclusive fazendo coro ao empenharem o republicanismo, a laicidade e até a tradição anticlerical francesa como base para esse apoio.

Os ideais olímpicos: paz, universalismo, inclusão

Se a “performance” foi mesmo baseada na Última ceia, isso está aberto à discussão; de fato, é necessário forçar um pouco para concluir que ela referiu-se mesmo à obra de Da Vinci. Entretanto, o que não está sujeito a debate é a intenção consciente de ser polêmico – e de ser polêmico por meio da vulgaridade. Bem distante de buscar o máximo de inclusão, o que o “diretor artístico” da abertura das Olímpiadas desejava era chocar ao máximo a platéia, causar mal-estar, a partir de cenas degradantes e inadequadas. A importância dos jogos olímpicos está na afirmação do seu universalismo, bem como na belíssima idéia de que as disputas violentas entre as nações – em particular as guerras – são suspensas e, mais do que tudo, substituídas por disputas pacíficas, em que se busca não a destruição e a morte, mas o respeito e o desenvolvimento do ser humano. Esses ideais foram comprovados repetidamente durante o evento, com as selfies conjuntas de coreanos do Sul e do Norte, os auxílios de corredores que acudiram seus adversários/colegas, a “adoração” das ginastas estadunidenses pela nossa Rebeca Andrade.

A recorrente vulgaridade de Madonna

Mas o fato é que a vulgaridade que degradou a abertura dos jogos olímpicos de Paris, em 2024, não é algo novo; aqui no Brasil já vimos cenas parecidas antes, como na apresentação da cantora Madonna, em Copacabana, em maio de 2024. À diferença dos jogos olímpicos, Madonna não tem a menor preocupação em ser universalista; mas, à semelhança do ocorrido em Paris, desde o início de sua carreira, no começo dos anos 1980, ela busca chocar e causar comoção, em particular por meio de cenas agressivamente sexualizadas. É claro que em parte isso é jogo de cena com fins de propaganda, para ela aumentar a vendagem de seus produtos (ou seja, para ela enriquecer mais); mas essa estratégia baseia-se em valores profundos professados pela cantora.

A hipersexualização vendida como progresso

Pois bem: tanto no caso dos jogos olímpicos quanto no de Madonna a vulgaridade da extrema sexualização é apresentada como sinal de progresso – e isso é amplamente entendido como correto e aceitável por grupos autointitulados “progressistas”. Ora, basta um pouco de bom senso para perceber-se com clareza que nem a degradação nem a vulgaridade correspondem a qualquer sentido aceitável de “progresso”. Devemos, então, saber o que é o progresso.

Definindo o progresso

Um sentido elementar do progresso é o desenvolvimento das capacidades humanas, seja em termos coletivos, seja em termos individuais: progredir, nesse sentido, é o ser humano “crescer”. Não se trata simplesmente de mudar: afinal de contas, podemos mudar para pior. Assim, a noção de progresso implica tanto o desenvolvimento quanto o aperfeiçoamento. Clara e necessariamente há um juízo de valor implicado aí, em que devemos melhorar as coisas. Daí decorre também um outro aspecto, o espírito construtivo do progresso: progredir significa necessariamente construir. Por certo que às vezes, para progredirmos, temos que antes destruir algumas coisas (isto é, algumas práticas, algumas instituições, até mesmo alguns objetos); mas, como deve (ou deveria) ser evidente, essas destruições prévias têm que ser excepcionais e, acima de tudo, as coisas destruídas têm que ser substituídas por outras. Isso equivale a dizer – aliás, repetindo o que o líder da Revolução Francesa Georges Danton já dizia (mas que, quase com certeza, nem Thomas Jolly nem Madonna conhecem e muito menos respeitam) – que “só se destrói o que se substitui”: o puro espírito destruidor, a pura destruição, o mero destruir por destruir, nada disso é de verdade o “progresso” – mesmo que se diga que é.

O progresso geralmente é contraposto à ordem, seja em termos filosóficos e morais, seja em termos sociopolíticos. De fato, essa é uma possibilidade; entretanto, a contraposição entre ordem e progresso resulta em oscilações intensas e em disputas sociais amargas, como vivemos ao longo do século XX e como temos tido a infelicidade de atualizar neste século XXI. Assim, para ultrapassar as oscilações entre a ordem e o progresso, é necessário uni-los e constituir uma nova síntese, de “ordem e progresso”. Tal síntese foi elaborada pelo fundador da Sociologia, o francês Augusto Comte, herdeiro da Revolução Francesa, indicando que a ordem tem que ser a consolidação do progresso e que, assim, o progresso é o desenvolvimento da ordem. (A ordem, dessa forma, não é entendida como imóvel, como estática.)

Não deixa de ser irônico, ou melhor, triste que a degradante “performance” realizada em Paris tenha sido feita ao mesmo tempo em nome do progresso, do espírito olímpico e da Revolução Francesa. Ora, como indicamos acima, foi justamente durante a Revolução e não por acaso que se concebeu a máxima “só se destrói o que se substitui”; mas, mais do que isso, a degradação exibida em julho de 2024 em Paris também foi feita em nome do “amor”, mas tanto para os revolucionários de 1789 quanto para a maioria dos cidadãos de hoje espetáculos hipersexualizados como os de Thomas Jolly e de Madonna têm pouco ou nada a ver com o amor, mas apenas com uma nauseante caricatura do que deve ser o amor.

Christopher Lasch e Oscar Wilde: progresso como “subida mecânica” e como “decadência com elegância”

Dito isso, voltemos à degradação fantasiada de progresso. Em 1994 o ensaísta estadunidense Christopher Lasch (A revolta das elites), ao abordar o conceito de progresso, propôs e defendeu que desde o final do século XIX havia duas possibilidades para esse conceito; a primeira ele caracterizou como sendo a noção de desenvolvimento contínuo e irreversível para cima, uma “subida mecânica” – na verdade, uma caricatura elaborada pelos críticos conservadores e retrógrados do progresso e que, na falta de elaboração filosófica verdadeira, foi referendada pela esquerda e pelo próprio Lasch. O outro conceito apresentado pelo estadunidense seria o do desenvolvimento da arte e das faculdades artísticas, em que a arte seria cada vez mais autônoma, isto é, cada vez mais independente dos outros âmbitos da vida, em particular o da moralidade; esse segundo conceito teria sido proposto pelo dramaturgo irlandês Oscar Wilde, que propunha, de maneira concomitante, as noções de que o primeiro sentido do progresso seria “chato” e próprio a pessoas “estúpidas”, enquanto a arte seria a expressão e o desenvolvimento cada vez maior do egoísmo e da mais pura autoexpressão individual e antissocial. (Como se vê, Lasch desconsidera, talvez ignore, o sentido mais cuidadoso, matizado e complexo que expusemos acima.) Ao mesmo tempo, na linha dessa superficialidade inidividualista, Oscar Wilde celebrava a noção de que o conteúdo específico da arte contemporânea é o da “decadência com elegância” (a tal décadence avec élégance, que foi popularizada por um ambígüo e polêmico cantor brasileiro nos anos 1980). O conceito de “progresso” proposto por Oscar Wilde (que Christopher Lasch acaba pessoalmente subscrevendo) evidentemente é paradoxal; com um pouco de atenção logo se vê que ele não é de fato progresso em nenhum sentido razoável, embora corresponda perfeitamente à inteligência ágil, à mentalidade e à sensibilidade aristocrática, superficial e desorientada de Wilde, esse Voltaire atrasado e de segunda linha posterior à Era Vitoriana.

O fato é que a sensibilidade de Oscar Wilde, com sua marcada superficialidade e sua agressiva destruição, é o que alimenta a noção de progresso “decadente e elegante” dos recentes espetáculos hipersexualizados que citamos antes. Não há nesses espetáculos nenhuma busca efetiva de “progresso”, isto é, de aperfeiçoamento humano, de melhoria das condições sociais e individuais; há apenas a degradação moral travestida de, ou melhor, corruptora da bela e importante noção de “progresso”.

Silêncio constrangido e/ou omisso dos progressistas

Em face das inevitáveis críticas que tais apresentações receberiam dos grupos conservadores e retrógrados – aliás, sendo franco: críticas que em grande parte estão corretas –, muitos intelectuais que se dizem progressistas vão em bloco em defesa dessas apresentações, no famoso movimento de briga de torcida, incapazes de qualquer verdadeira apreciação. Com essa defesa em bloco, mecânica e acrítica, não é à toa que esses “progressistas”, ou a chamada esquerda, sejam tantas vezes mal vistos ou percebidas como “imorais”.

Dissemos “muitos intelectuais defendem”, com isso querendo sugerir que não são todos e, talvez, nem a maioria: temos a impressão de que aqueles intelectuais progressistas que não se manifestam têm clareza de o quão degradantes são esses espetáculos e que, por isso, não querem expor-se ao ridículo de defender o indefensável, embora, ao mesmo tempo, não queiram indispor-se com seus colegas “progressistas” ao custo de serem vistos como “conservadores” ou retrógrados. Tal silêncio também é conveniente com a dupla percepção (e duplamente incorreta), da parte desses intelectuais, (1) de que as mudanças sociais que importam seriam as mudanças materiais (políticas e econômicas) e (2) de que a agenda de “costumes”, dita moral, é secundária e, portanto, poderia ficar à mercê de espetáculos como os comentados acima.

Defesa da “cultura LGBTQIAP+”?

Podemos abordar agora o elefante branco desta reflexão. Muitos dos intelectuais que defendem esses espetáculos e que subscrevem a noção de progresso como “destruição com degradação” preocupam-se com o fato de que esses espetáculos muitas vezes são feitos por artistas “LGBTQIAP+” e nominalmente em sua defesa. Entretanto, como indicamos acima, esses espetáculos são extremamente agressivos e destruidores: talvez, quem sabe, fosse possível defendê-los argumentando que se trata de manifestações específicas de uma “cultura LGBTQIAP+”, mas isso é muito discutível e pouco defensável, na medida em que “essencializa” essa cultura e degrada a própria comunidade “LGBTQIAP+”, reduzindo-a à hipersexualização. Aliás, a redução do amor a manifestações públicas hipersexualizadas feitas com o objetivo de chocar é, sob qualquer parâmetro, uma péssima estratégia, que serve apenas para irritar e afastar quem se deveria agradar e atrair, bem como para degradar o ambiente público, a arte, os grupos envolvidos e as noções de progresso e amor. O tolo comentário de Thomas Jolly, de que “a vida seria muito chata sem polêmicas”, dá a medida da infeliz superficialidade que move tais espetáculos.

Em suma, no fundo, o que se evidencia é a ausência de qualquer concepção verdadeira de progresso – isto é, de qualquer concepção que ultrapasse o sentido caricato de “subida mecânica” ou o sentido de “decadência com elegância” de Oscar Wilde.

 

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo e doutor em Sociologia Política.

11 abril 2024

Monitor Mercantil: "Deltan Dallagnol sobre Elon Musk e laicidade do Estado"

O jornal Monitor Mercantil, do Rio de Janeiro, publicou um artigo de minha autoria intitulado "Deltan Dallagnol sobre Elon Musk e laicidade do Estado". 

O texto pode ser lido diretamente na página do jornal, aqui: https://monitormercantil.com.br/deltan-dallagnol-sobre-elon-musk-e-laicidade-do-estado/.

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Deltan Dallagnol sobre Elon Musk e laicidade do Estado 

Gustavo Biscaia de Lacerda

 

Em 7 de abril de 2024, o ex-procurador da República e ex-Deputado Federal Deltan Dallagnol palestrou no Massachussets Institute of Technology (MIT) (“Deltan dá razão a Musk em briga com STF e é vaiado nos EUA ao defender religião na política”, Folha S. Paulo, 7.4.2024). Os seus comentários suscitam muitas reflexões, que ultrapassam disputas episódicas e referem-se a elementos importantes da política nacional contemporânea.

Inicialmente, Dallagnol defendeu as críticas que o empresário Elon Musk fez contra Alexandre de Moraes, Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), sugerindo que o Ministro seria a favor da censura, que deveria sofrer impedimento e que ele, Musk, não respeitará as decisões da Justiça brasileira. Depois Dallagnol defendeu o emprego explícito de critérios teológicos na política e que a rejeição desses critérios seria um “preconceito secularizante” de origem “humanista”.

Deltan Dallagnol ficou famoso a partir de 2014, à frente da Operação Lava Jato. Ele e sua equipe evidenciaram que, muito além de buscarem identificar e processar judicialmente práticas de corrupção em empresas públicas, eram movidos por um desejo de fazer política (pública) atrás e por meio de instituições do Estado, ao mesmo tempo em que buscavam executar um anunciado plano de destruir as instituições públicas, vistas como corruptas em sua generalidade (com exceção dessa equipe iluminada). As investigações geraram merecido amplo apoio público; mas esse apoio era mantido com a “espetacularização” das investigações, realizadas com um agressivo espírito ultradraconiano e um objetivo de destruir (em um apocalipse?) as instituições públicas. Nisso, Dallagnol ocupou papel de destaque, embora não fosse o único líder, nem, talvez, o cérebro jurídico da equipe do fim do mundo. Ele também sempre deixou claros os seus valores político-teológicos evangélicos: na verdade, é possível conjecturar que suas crenças teológicas inspiram uma concepção teocrática que fundamenta sua orientação apocalíptica e ultradraconiana da política. 

Assim, o apoio de Dallagnol a Elon Musk é curioso, ou melhor, contraditório. Elon Musk é um bilionário sul-africano favorável a favor de golpes de Estado quando seus interesses comerciais são contrariados; é contra a regulação pública das Big Techs a respeito de discursos de ódio (ele é dono do Twitter); ele é contra os direitos trabalhistas; ele já se manifestou a favor de perspectivas políticas reacionárias; agora ele manifesta-se contra as legítimas instituições públicas brasileiras. Deveria ser evidente que se impõe ao ex-procurador da República Dallagnol manifestar-se pelo repúdio às declarações de Musk. O ex-Deputado Federal não atua como um defensor das leis, mas como integrante do establishment, em busca de apoio público e de votos – e também do apoio daqueles mesmos grupos e indivíduos que, quando liderava a equipe do fim do mundo, ele supostamente combatia. 

Passemos à defesa da teologia na política. Para Dallagnol, existiria um “preconceito” secularizante e “humanista” contra a afirmação política de valores teológicos; enquanto outras filosofias políticas teriam legitimidade para exprimir-se publicamente, a “religião” não a teria. Essas afirmações são todas altamente problemáticas. 

Comecemos pelo erro de confundir “religião” com teologia. A religião é a sistematização do conjunto da vida humana, para a harmonia coletiva e individual, a partir de alguma filosofia. Dessa forma, a religião é um conceito amplo, de que a teologia é apenas um tipo específico. O erro de Dallagnol é ainda maior porque ele compartilha o preconceito segundo o qual a “religião” (a teologia) é apenas o monoteísmo, em particular o monoteísmo cristão, e ainda mais em particular o monoteísmo cristão protestante – e ainda mais em particular o monoteísmo cristão protestante evangélico e de origem estadunidense. Mas se religião é sistematização da vida humana a partir de alguma filosofia, é correto considerar que há outras religiões (além da dos evangélicos dos EUA), incluindo os humanismos que Deltan Dallagnol critica. Assim, o que se nota em Dallagnol é uma visão de mundo estreita e particularista. 

Como ex-procurador da República, Dallagnol deveria conhecer o livro MinistérioPúblico: em defesa do Estado laico, publicado em 2014 pelo Conselho Nacional do Ministério Público. Nesse livro – de que participo com um capítulo – há textos históricos e filosóficos; Dallagnol deveria conhecer as reflexões presentes nele; ainda assim, vale expô-las aqui. 

No século XVI ocorreu o cisma protestante e surgiu um problema muito maior que uma disputa filosófica: havia um problema político. Considerava-se então que todo Estado deveria ter uma religião oficial para a ordem pública; essa religião seria a do governante (é a frase francesa: une foi, une loi, un roi – “uma fé, uma lei, um rei”). A disseminação do protestantismo e a reação católica converteram-se em guerras generalizadas e que duraram cerca de 150 anos (as “guerras religiosas”). Essas guerras só acabaram quando, ao término da Guerra dos 30 Anos (1618-1648), decidiu-se que a política internacional deveria basear-se em bases apenas políticas, deixando-se de lado os aspectos teológicos e com o respeito à autonomia de cada país. Não é que a religião tenha deixado de ser levada em consideração; mas os vários países tiveram que reconhecer que as disputas teológicas causavam danos políticos demais. Daí os países da Europa ocidental foram obrigados a instituir em diversos graus a tolerância religiosa, ou melhor, as liberdades de consciência, de expressão e de associação, resultando na separação entre o âmbito religioso e a vida política. Exatamente porque a manifestação pública das crenças teológicas conduziu às guerras que os países europeus decidiram que seria melhor que a “religião” deveria ser um assunto cada vez mais estritamente particular. Não se trata de “preconceito” contra a teologia, mas de um acordo tácito que buscou realizar a paz e evitar os conflitos: grosso modo, é a “laicidade do Estado”. 

Os seres humanos discordam pelos mais variados motivos, mas alguns motivos geram mais disputas que outros. O que pode ser discutido com liberdade e clareza produz menos conflito que aquilo que só pode ser aceito sem discussão, pela pura “fé”: as crenças absolutas (teológicas) são do último tipo. É claro que qualquer teológico pode discutir com liberdade suas crenças, mas a lógica interna das crenças teológicas rejeita essa liberdade – e essa lógica interna impõe-se aos indivíduos e tem efeitos concretos. Os crentes pessoalmente podem estimular a tolerância e a liberdade, mas por si mesmas as crenças rejeitam a discussão: quem não crê é um “infiel”, quem discorda é “herético”, “ateu”, “servo do demônio”. Assim, não foi por acaso que ocorreram as guerras religiosas: o absolutismo das crenças teológicos estimula a falta de tolerância, a imposição de crenças, a ausência de compromissos. Por outro lado, foi justamente a secularização da política (após e devido à Guerra dos 30 Anos) que passou a estimular a paz e a evitar os conflitos. A tendência secularizante da política, então, não é um preconceito contra a teologia; essa tendência é uma conseqüência da busca da paz e da rejeição da guerra. 

Retornemos a Dallagnol. Ao apoiar Musk, Dallagnol episodicamente referenda concepções e práticas que devemos chamar de golpistas. Isso por si só é muito preocupante. Por outro lado, em termos de mais longo prazo e mais profundos, é assustadora a idéia de que haveria um preconceito secularizante e humanista contra teologias políticas. Essa concepção, embora denuncie um suposto preconceito, é ela mesma preconceituosa e revela ignorância histórica, filosófica e política. Não sendo o ideal, é até aceitável que o comum dos cidadãos (e dos teológicos) não tenha conhecimentos históricos e filosóficos; mas o mesmo já não pode ser dito dos líderes políticos e espirituais, especialmente se eles são ex-procuradores da República.

 

Gustavo Biscaia de Lacerda é Doutor em Sociologia Política.