25 novembro 2017

Carta à Ciência Hoje: contra as "medicinas tradicionais" e os placebos

A revista Ciência Hoje, órgão de divulgação científica da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), publicou em sua edição n. 322, de fevereiro de 2015, um interessante artigo de história das ciências e das técnicas, intitulada "Medicina e superstição". Essa matéria, consistindo em uma entrevista com o historiador Timothy Walker, indicava que no Portugal medieval os médicos e suas corporações combateram as superstições, os xamãs, os curandeiros etc. 

Até aí, tudo bem: o problema é que, além de fazer um trabalho historiográfico, T. Walker afirma a validade técnica das chamadas medicinas alternativas, isto é, das superstições, do curandeirismo e assim por diante, em particular sublinhando uma suposta importância biopsicossocial dos placebos. Essa afirmação é um completo disparate, devido aos mais variados motivos: criticando essa opinião, eu redigi a carta reproduzida abaixo, que foi publicada pela Ciência Hoje n. 324, em forma ligeiramente abreviada (devido a questões de espaço).

Como, modestamente, considero que os argumentos expostos na carta original valem a pena de serem lidos e meditados, reproduzo-os abaixo. A entrevista original pode ser lida aqui.



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A edição 322 da revista Ciência Hoje está bastante interessante, com diversas matérias que prendem a atenção. Em particular, o texto "Medicina e superstição" é digno de nota, ao apresentar a pesquisa sobre a Inquisição lusa e a participação dos médicos nela.

Todavia, chamou-me também a atenção a opinião exposta pelo pesquisador T. Walker a respeito das chamadas "medicinas tradicionais" e "medicinas alternativas", no sentido de que elas manteriam um valor, seja sociocultural, seja clínico, sugerindo como critério de relevância o efeito placebo. Esse gênero de opinião traz pelo menos dois problemas: (1) um especialista em uma área (História Moderna) opina sobre uma outra área, que por sinal é muito mais especializada; (2) valoriza práticas e "saberes" que são valorizados apenas porque são "tradicionais". Esses dois problemas estão estreitamente vinculados, é claro.

O autor, sem conhecimentos médicos, afirma que a "medicina tradicional" é válida e que deveria ser mantida. Ora, o mero caráter tradicional de algo não é motivo para sua permanência: a extirpação do clitóris, o trote violento dos calouros universitários, a coivara, o estupro e o machismo, o dote feminino, o tratamento de doenças com sanguessugas e sangrias e até a corrupção, além de inúmeras outras práticas e "saberes", são perfeitamente tradicionais; mas o conhecimento científico e o desenvolvimento social, filosófico e humanístico já os indicou como errados, daninhos e/ou atentatórios contra a dignidade humana. A valorização da tradição sempre desconsidera esses problemas. Em vez de valorizar a "tradição", o autor deveria valorizar o contato humano, o respeito - racional, humanista e baseado na ciência - aos valores sociais e à dignidade etc.

O efeito placebo não é e não pode ser parâmetro para valorizar as "medicinas tradicionais". O autor valoriza o efeito placebo afirmando que ele traria benefícios indiretos aos pacientes: mas o efeito placebo consiste basicamente em enganar o paciente, ao administrar uma droga inócua. Ora, não apenas é melhor administrar uma droga eficiente, que produza efeitos, como ainda mais importante é não enganar os pacientes. A afirmação do efeito placebo como motivo para valorizar as "medicinas tradicionais" consiste, portanto, em evitar o desenvolvimento real de práticas, saberes e tratamentos efetivamente eficientes; todavia, isso nem de longe é o mais importante. 

O conhecimento da realidade é o que está em questão: saber como a realidade funciona, saber quais os mecanismos efetivos por que o corpo humano funciona e de que maneira as diversas substâncias interagem com os órgãos e com os tecidos, isso é fundamental; o efeito placebo e, em particular, o efeito placebo associado a "medicinas tradicionais" defendido pelo autor, simplesmente joga fora esses desenvolvimentos. Mas não duvido de que essa defesa do efeito placebo seja para os outros: não creio nem um pouco que esse historiador inglês aceite submeter-se ao xamanismo para tratar o que quer que seja, desde a gripe comum até um câncer de pâncreas, passando pela hepatite, pela sida/aids e pela enxaqueca. 

Mas conhecer a realidade é importante não somente devido às tecnologias que podem ser derivadas dela; é importante conhecer a realidade para saber lidar psicologicamente com ela. Desde o Iluminismo até Freud, passando por Augusto Comte, mas na verdade desde antes e depois desses autores, muitos pensadores salientam que a realidade é rebelde à vontade humana, que desejar submeter a realidade à pura volição é ato de imaturidade, de egoísmo, de irracionalidade - e, por todos esses motivos, é fonte de profunda infelicidade. É claro que conhecer a realidade é duro, é difícil e é demorado; também é claro que é mais agradável desconhecer a realidade; mas é somente entendendo como é a realidade que se pode amadurecer, aceitar os acontecimentos fatídicos e ter os elementos para alterá-la naquilo que está à disposição do ser humano alterar.

A defesa que o historiador inglês faz da "medicina tradicional", usando para justificá-la o efeito placebo, desconsidera olimpicamente esses sérios problemas de relacionamento com a realidade. Sabe-se que muitos pesquisadores, especialmente das Ciências Humanas - historiadores, sociólogos, filósofos -, põem em questão a própria idéia de "realidade"; todavia, esse construtivismo radical despreza o avanço dos conhecimentos científicos, afirma que o avanço das Ciências Humanas consiste em "desconstruir mitos, principalmente o 'mito' da ciência" e, conforme argumentei no parágrafo acima, afirma ou pressupõe que o cúmulo da dignidade humana é postular a plasticidade da realidade frente à nossa volição - ou seja, toma como ápice do conhecimento humano precisamente a valorização da postura infantil e egocêntrica criticada pelos humanistas científicos.

Infelizmente, pesquisadores das Ciências Humanas que se dedicam a investigar as disciplinas ligadas à saúde tendem a valorizar os "saberes tradicionais" - e, não por acaso, sempre se referindo ao efeito placebo como legitimador clínico de suas perspectivas -, ao mesmo tempo que desvalorizam, ou desprezam, a Medicina "ocidental". Há um forte viés anti-Medicina, assim como um forte viés antimédicos, em muitas dessas pesquisas: "denunciar" os médicos, o "poder dos médicos", o "biopoder" é a cumulação dos conhecimentos humanos para tais pesquisadores. No Brasil, o viés antimédico e anti-Medicina da Sociologia da Saúde é extremamente forte, mesmo em instituições de pesquisa que são primariamente dedicadas ao avanço do conhecimento médico. Como comentei antes, é claro que, quando doentes, tais pesquisadores fazem questão dos melhores remédios e tratamentos e sentir-se-iam profundamente ofendidos se fossem tratados com placebos (seja por serem enganados, seja porque desejam tratamentos efetivos).

Sem dúvida que estudar a influência dos médicos na Inquisição lusa é interessante; também é interessante saber que foi devido à sua influência que os curandeiros, os xamanistas foram perseguidos em Portugal e suas colônias. Isso é trabalho de historiador e deve ser valorizado - aliás, deve ser valorizado precisamente com base nos critérios científicos, ou seja, nos critérios que informam tanto as investigações historiográficas e sociológicas, quanto as médicas e clínicas. Algo totalmente diverso é um historiador querer defender a "medicina tradicional" contra a "medicina científica": não apenas ele não tem formação específica para isso, como ele é incapaz de avaliar as consequências filosóficas, sociais e psicológicas mais profundas dessa defesa; mesmo os argumentos "humanos" e "sociológicos" aventados para tal defesa são poucos, superficiais e insustentáveis.

16 novembro 2017

Hernani G. Costa: "Sobre o 'Amor' na bandeira nacional"

O meu amigo e correligionário Hernani Gomes da Costa fez uma interessante intervenção a propósito da proposta de inclusão da palavra "Amor" na bandeira nacional republicana, feita recentemente por Hans Donner. Em virtude da alta qualidade desse texto, com sua autorização reproduzo abaixo a intervenção.

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A exclusão do “amor” na bandeira nacional tem a ver com duas circunstâncias conexas na evolução do Positivismo. A primeira dessas circunstância refere-se ao fato de o lema principal (ou como Comte o chamava, a Fórmula Sagrada do Positivismo) haver passado por uma pequena mas significativa mudança.
  

Mas antes de se entrar nesse assunto é preciso definir os três termos da fórmula. Nossa mente é constituída por três elementos básicos: a afetividade, o intelecto e a ação.

Na fórmula sagrada, Comte procurou expressar sinteticamente cada um deles tal como se apresentam estaticamente em nossa vida psíquica, bem como, dinamicamente, caracterizando seus respectivos papéis e articulações no estabelecimento da harmonia tanto individual, quanto coletiva.

Por amor, Comte entendia o conjunto dos nossos três pendores sociais ou altruístas, os instintos inatos que nos predispõe (assim como a muitas outras espécies animais) a uma vida social. São eles (1) a amizade, ou amor aos iguais; isto é a camaradagem, o companheirismo, a cordialidade; (2) a veneração, o amor aos superiores; isto é, a admiração, a reverência; por fim, (3) a bondade, ou amor aos inferiores, isto é, a comiseração, a misericórdia, a compaixão, a solidariedade[1].

Por ordem Comte entendia o conjunto abstrato das leis naturais que regem o mundo e o homem, e cujo estudo forma o que se denomina a ciência; ordem, no caso se refere, pois, à ordem natural das coisas, ao conjunto das circunstâncias mediante as quais os fatos se dão, e por meio das quais estes podem ser inclusive antecipados com relativo sucesso.

Por progresso Comte entendia a dinâmica do mundo e do homem e, em conseqüência, o modo como podemos atuar sobre essas leis de modo a produzir determinados resultados almejados. O amor resume, na fórmula, o aspecto afetivo, emocional, passional da nossa natureza, a ordem, o aspecto intelectivo, teórico, científico, e o progresso, o aspecto prático, ativo, técnico, político (no sentido mais amplo da palavra).

Outra fórmula que caracteriza a articulação desses três elementos é “Agir por afeição e pensar para agir”.


 Pois bem. Primeiramente Comte redigiu a fórmula da seguinte maneira: “O Amor por Princípio, a Ordem por Base e o Progresso por Fim”. Assim, nesse primeiro esboço, o amor ficava isolado, e “ordem e progresso” ficavam juntos de modo a comportar uma possibilidade maior de decomposição.

Todavia, numa segunda redação Comte aperfeiçoou a fórmula, escrevendo-a da seguinte forma: “O Amor por Princípio e a Ordem por Base; o Progresso por fim”. Desse modo Comte passou a caracterizar antes de tudo o vínculo necessário do amor com a ordem (isto é, com o conhecimento) para conduzir consecutivamente ao progresso[2].

Em outras palavras, é o amor esclarecido que guia e conduz à atividade pacífica, e não este isoladamente, tal como a primeira redação parecia sugerir.

Comte foi o primeiro a reconhecer a insuficiência do lema "Ordem e Progresso", numa carta a um discípulo. Afinal, esse lema apenas versa sobre a harmonização entre as condições de existência (ordem) e de desenvolvimento (progresso) possuindo hoje uma expressão espontânea na idéia de desenvolvimento sustentável.

Como, porém, essa harmonização da sustentabilidade (ordem) com o desenvolvimento (progresso) é ainda o principal problema político a ser resolvido (isto é, tanto a superação da ordem retrógrada – que sacrifica em seu nome o progresso – quanto do progresso revolucionário – que em seu nome sacrifica as condições de ordem), Comte julgou dever manter o lema, como algo “separado”. Aliás é preciso lembrar que a bandeira positivista atual é necessariamente transitória, devendo o lema ordem e progresso ser incorporado na fórmula sagrada, quando houver de se operar a grande decomposição do Brasil em diversas pátrias (ou mátrias) independentes.

A segunda circunstância tem a ver com o fato de que, tal como concebida por Teixeira Mendes, a bandeira deveria conter duas fórmulas, uma de cada lado: “Ordem e progresso” (divisa política) de um lado e “Viver para outrem” (divisa afetiva correspondente ao amor universal) de outro. A meu ver a inclusão do amor na bandeira é, positivisticamente falando, ortodoxa, um “sinal dos tempos”, e portanto muito bem vinda, assim como, aliás, é bem vinda a presença do amor em qualquer outro lugar ou circunstância da vida.

Lamento apenas que Hans Doner não tenha exposto as origens de uma idéia que ele parece reputar como original[3]...




[1] Esses sentimentos também têm uma perspectiva temporal, ou histórica: o apego pode ser visto como os vínculos que nos unem aos seres humanos atualmente vivos, com quem neste momento e ao longo de nossas vidas dividimos nossas existências; a veneração são os sentimentos de respeito e gratidão para com os nossos antepassados; a bondade são os sentimentos mais puramente altruístas para com os nossos sucessores, não apenas com os nossos filhos e netos, mas principalmente para com todos aqueles que não conheceremos e virão após nós.
[2] É necessário notar que a palavra “fim”, aí, não significa “término” ou “encerramento”; é a tradução do francês “but”, que significa “objetivo”. Assim, o progresso deve ser entendido como o objetivo das nossas ações e do amor esclarecido.
[3] No início de novembro de 2017, o projetista gráfico Hans Donner propôs uma versão modificada da bandeira nacional republicana, incluindo a palavra “Amor” antes do “Ordem e Progresso”, além de outras alterações propriamente estilísticas (https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/11/09/bandeira-do-brasil.htm).

13 novembro 2017

Gazeta do Povo: "Pós-verdades liberais contra o Positivismo"

Artigo de minha autoria, publicado na Gazeta do Povo de 11.11.2017. O original pode ser lido aqui.


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Pós-verdades liberais contra o Positivismo

Em tempos de “pós-verdade”, nada mais difícil de fazer que decidir o que é ou não verdade ou real. Isso se torna mais grave quando o autor de um texto afirma-se “historiador”, pois então a “pós-verdade” ganha ares de respeitabilidade, mesmo não tendo base factual. Nesse sentido, o artigo “Raízes autoritárias”, de Ney Carvalho, publicado na edição de 22 de outubro no jornal O Globo, é um monumento à pós-verdade.
A tradição liberal brasileira é extremamente particular. Ela abrange desde defensores do abolicionismo (Joaquim Nabuco) quanto de defensores da escravidão (José de Alencar, o romancista de O guarani), assim como figuras ambíguas como o legalista Rui Barbosa (que era e não era ateu, que queimou os registros da escravidão, que promoveu a primeira crise de hiperinflação do país e que assumia para si obras e ações de outros). O liberalismo brasileiro também abrange defensores do laissez-faire (Tavares Bastos, Eugênio Gudin), ex-comunistas (Carlos Lacerda) e ex-integralistas (Miguel Reale), passando por apoiadores do regime militar (Roberto Campos, Antônio Paim) e por intelectuais de qualidade como José Guilherme Merquior. Recentemente, entre as hostes liberais brasileiras podemos encontrar figuras tão – como dizer? – curiosas quanto Jair Bolsonaro, o Movimento Brasil Livre e o seu guru, o astrólogo Olavo de Carvalho.
Assim, é como integrante dessa particularíssima tradição liberal brasileira que Ney Carvalho afirma em seu artigo que o autoritarismo nacional tem suas origens no Positivismo, isto é, na doutrina fundada por Augusto Comte e nas práticas dela oriundas. Para isso, o autor adota a conhecida prática de citar palavras e expressões sem os explicar adequadamente e de abusar de adjetivos e juízos de valor. Como o espaço aqui disponível é curto, vamos diretamente aos pontos.
Atualmente o Positivismo é amplamente desconhecido do público brasileiro
O autor afirma que o Positivismo por definição é autoritário, e que desde o início de sua difusão no Brasil, em meados do século 19, ele estimula o golpismo, especialmente militar. Exemplos disso seriam a ação do professor de Matemática, o coronel Benjamin Constant Botelho de Magalhães, na Escola Militar; a Proclamação da República, em 1889; o projeto de constituição “ditatorial” da Igreja Positivista do Brasil e, por fim, a ação dos castilhistas no Rio Grande do Sul. Tudo isso o autor afirma, de maneira gratuita, tratar-se de antecedentes intelectuais e institucionais do golpismo sugerido recentemente pelo general Antônio Hamilton Mourão.
Por que essas afirmações são gratuitas? Porque são meras afirmações, sem quaisquer bases factuais. Aliás, pior que isso: são afirmações contrárias à verdade dos acontecimentos – de tal sorte que o conjunto dos comentários do “historiador” Ney Carvalho enquadra-se perfeitamente nas “desinformações” ou nas atuais “pós-verdades”. A isso se deve acrescentar o fato de que, embora tenha tido enorme importância social, política e intelectual entre o fim do Império e a Primeira República (ou seja, entre 1870 e 1930), atualmente o Positivismo é amplamente desconhecido do público brasileiro: nesses termos, basta assumir-se um ar doutoral e fazer afirmações bombásticas para que se crie a impressão de que é sabedor das coisas e possa-se dizer o que se quiser sobre temas menos conhecidos nos dias atuais, como é o caso do Positivismo.
Para perceber os erros e os problemas do que Ney Carvalho afirma, basta ler os artigos da Igreja Positivista do Brasil (situada no Rio de Janeiro, na Rua Benjamin Constant, no bairro da Glória) ou, caso leia-se em francês, as obras de Augusto Comte. Como, de qualquer maneira, esses documentos são um pouco difíceis de achar atualmente, é possível procurar na internet em repositórios eletrônicos de textos, como o portal Archive.org ou a página do Senado Federal. Uma outra possibilidade é consultar o livro Laicidade na I República brasileira: os positivistas ortodoxos, de minha autoria, em que apresento as características desses documentos e examino em profundidade diversos de seus argumentos.
De qualquer maneira, as publicações da Igreja Positivista e as obras de Augusto Comte são todas muito claras no sentido de que a ação política deve ser sempre pacífica, com amplas liberdades de pensamento e de expressão claramente garantidas e com as possibilidades permanentes de crítica pública ao governo e de sugestão às propostas governamentais, da parte de todos os cidadãos. Isso, aliás, é o que se chama atualmente de “república”, “democracia” e “Estado de Direito”. Os gaúchos seguidores de Júlio de Castilhos atuavam nesse mesmo sentido.
Embora afirme-se historiador, Ney Carvalho deixa de lado importantes pesquisas historiográficas que examinam precisamente as relações entre os positivistas e as escolas militares, em particular no caso de Benjamin Constant. O mineiro José Murilo de Carvalho há muito tempo indicou, no célebre artigo “O poder desestabilizador”, que os ensinamentos de Benjamin Constant para a juventude militar iam na direção da “civilização”, isto é, de tornar cada vez mais civil e menos militar o comportamento de seus alunos. Esse aspecto é central, pois foi justamente em reação explícita à orientação de Benjamin Constant que se constituíram os “jovens turcos” brasileiros. Esses militares, integrantes de uma geração posterior à formada por Benjamin Constant, a partir da década de 1910 procuraram adotar as doutrinas militares da França e da Alemanha e, com isso, mudaram os rumos do ensino militar, no sentido da “profissionalização” castrense. Essa “profissionalização” era politicamente ambígua: propunha que os militares deveriam ser apenas militares, mas ao mesmo tempo arrogava-se o papel institucional de fiscal do Estado, resultando em um ativismo político: o maior exemplo disso foi o general Góes Monteiro, inimigo declarado do Positivismo e da orientação de Benjamin Constant, além de justamente ter sido o articulador militar da Revolução de 1930. Aliás, Góes Monteiro também foi o inspirador de outro militar golpista, o general Olympio Mourão Filho, o realizador do golpe de 1964 – este, sim, o predecessor do atual general Antônio Hamilton Mourão.
A referência à proposta de constituição “ditatorial” exige comentários específicos. Como há muito tempo lembrava o social-liberal italiano Norberto Bobbio, ao contrário do que ocorre nos dias atuais, em que após a Revolução Russa e o nazismo a “ditadura” é sinônima de autoritarismo, no século 19 essa palavra era entendida com um sentido positivo, de modo geral como governo ativo. Dessa forma, seguindo em linhas gerais os hábitos linguísticos de sua época, Augusto Comte – o fundador do Positivismo, da sociologia e da história das ciências – adotava a palavra ditadura, com a particularidade de que a definia como sendo qualquer governo: nesses termos, Comte distingue ditaduras tirânicas, despóticas, retrógradas, conservadoras, assim como ditaduras liberais, progressistas, positivas. Uma longa comprovação disso está disponível na minha tese de doutorado, intitulada O momento comtiano, defendida em 2010.
A Igreja Positivista do Brasil e, de modo geral, os positivistas brasileiros, ao adotarem o linguajar proposto por Comte, adotavam também essas referências filosóficas; a constituição “ditatorial” por eles proposta consistia não em um regime autoritário, mas, bem ao contrário, em um regime de amplas liberdades, em que o governo limitar-se-ia a manter a ordem pública, consagrando a mais estrita separação entre igreja e Estado, sem se intrometer em questões morais, religiosas e “ideológicas”. Atribuir a esse projeto o caráter de autoritário com base em um problema semântico é, na melhor das hipóteses, desconhecer a história das ideias políticas; na pior das hipóteses, é profunda má-fé.
Mas, por outro lado, ao atribuir aos positivistas o autoritarismo nacional, Ney Carvalho obscurece o efetivo papel que outros grupos sociais, políticos e intelectuais desempenharam de fato para a constituição de uma tradição e de mentalidades liberticidas no país. Quais seriam esses grupos? Como é fácil de perceber a partir da década de 1930, os católicos, os marxistas e, também, os liberais. Durante toda a Primeira República, a Igreja Católica desejava retomar os privilégios de que gozava durante o Império; após a Revolução de 1930, Getúlio Vargas e a Igreja Católica mantiveram um regime de apoio mútuo que lembrava muito a estreita colaboração mantida, ao mesmo tempo, entre Mussolini e Pio XI: isso apenas se alterou (mas não muito) após 1966. Sobre o papel liberticida desempenhado pelos marxistas, não é preciso discorrer muito: basta pensar no golpismo estimulado por Luís Carlos Prestes, com o apoio de sua primeira esposa, a agente soviética de origem alemã Olga Benário Prestes. Por fim, embora tenha havido poucos liberais ao longo da Era Vargas, o fato é que houve muitos integralistas, muitos dos quais, após 1946, conveniente e rapidamente se transformaram em liberais.
Em suma, ao difundir “pós-verdades”, o liberal Ney Carvalho atribui ao Positivismo as origens e a estrutura da mentalidade autoritária brasileira; com isso, ele ao mesmo tempo contribui para manter em silêncio uma poderosa filosofia social de liberdade e para desviar a atenção das fontes reais do autoritarismo brasileiro. Talvez ele faça isso para tentar justificar a existência de alguns integrantes recentes, mas estranhos, do liberalismo nacional, como é Jair Bolsonaro: entretanto, como observamos, nesse caso, sua origem liga-se aos generais Mourão (Filho) e Góes Monteiro, não ao Positivismo e a Benjamin Constant.
Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

07 novembro 2017

Casa de Benjamin Constant: resenha do livro "Laicidade na I República"

Há cerca de um ano, o Museu Casa de Benjamin Constant publicou uma pequena resenha do meu livro Laicidade na I República brasileira: os positivistas ortodoxos (Curitiba: Appris, 2016), da autoria de Murilo Haither, aproveitando a efemérida da Proclamação da República.

Aproveito que estamos prestes a comemorar novamente essa importante data e reproduzo abaixo a resenha. O original pode ser lido aqui.

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segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Semana da República 2016: 15 a 19 de novembro

Estado e Igreja: um divórcio republicano 
Por Murilo Haither

Mais uma vez, como acontece anualmente, inicia-se mais uma Semana da República. Já vivemos, por 126 vezes, estes dias de efemérides. Não é só o 15 de novembro, dia da Proclamação da República que, em 1889, já era pensada e esperada por alguns. Foram criados também símbolos, como a Bandeira Nacional, celebrada no dia 19, as Armas Nacionais, o Hino Nacional e o Selo Nacional.

A Bandeira Nacional, um dos símbolos da República - versão em arte contemporânea.
Os Positivistas talvez tenham sido o grupo que mais prezou pelos cultos cívicos da República. Os arquivos de Benjamin Constant e de sua família estão recheados de cartas, telegramas e bilhetes que, a cada 15 de novembro, eram enviados parabenizando Benjamin por sua atuação em 1889. Entretanto, para que esses símbolos fossem incorporados à vida dos novos cidadãos, não bastava serem celebrados no círculo fechado dos positivistas ou republicanos declarados. Fez-se necessário criar verdadeiros movimentos cívicos e populares e símbolo algum parece ter recebido maior ênfase que a Bandeira Nacional. Entretanto, a República abriu as portas para algumas discussões que, nas tradições e celebrações, foram deixadas em segundo plano, mas que hoje se mostram centrais e mesmo urgentes. Na 127ª Semana da República, daremos destaque à separação entre a Igreja e o Estado, conhecida também como a laicidade da República. O tema foi tratado pelo sociólogo Gustavo Biscaia de Lacerda, professor da Universidade Federal do Paraná, da perspectiva da ortodoxia positivista, e aproveitamos a semana da República e o recente lançamento de seu livro, Laicidade na I República Brasileira: Os positivistas ortodoxos, para oferecer uma resenha aos nossos leitores.

O autor analisa parte da teoria política do filósofo francês, Augusto Comte, desenvolvida na obra Sistema de política positivista (1851 – 1854). Neste conjunto de livros, o elaborador do Positivismo analisa os cinco aspectos característicos, em sua concepção, de todas as sociedades: família, propriedade, linguagem, governo e religião. Para sua pesquisa, Gustavo Lacerda se detém apenas nos dois últimos termos, governo e religião – essenciais para o que Comte identifica como o processo necessário para o desenvolvimento civilizatório: a separação entre o Poder Espiritual e o Poder Temporal. O autor francês, segundo Lacerda, identifica o Poder Espiritual como permanente, teórico, geral, subjetivo e atemporal. Por outro lado, o Poder Temporal seria constituído por uma transitoriedade, praticidade, localidade e especialidade. Nesse sentido, podemos correlacionar o último Poder com as instituições que regulamentam e dão alicerce para a sociedade – como o Congresso ou Tribunais, por exemplo -, e o primeiro com a mentalidade – cabe notar que o Poder Espiritual não é limitado apenas ao Catolicismo, Protestantismo ou demais religiões, mas também à Metafísica, abrangendo, portanto, outras ideologias políticas. Ainda aqui, Lacerda reconhece que ambos os poderes sempre foram distintos – lembra-se das divisões na sociedade feudal entre os guerreiros e sacerdotes – e que, portanto, quando concentrados compõem um “corpo doutrinário que faz valer-se pela violência física” (p. 42). Deste modo, a separação do Poder Espiritual e do Poder Temporal constitui um processo de transição para a sociocracia de Augusto Comte, ou seja, transição para o Estado de tipo ideal, passando, portanto, de um absolutismo ideológico para um relativismo ideológico, como coloca Lacerda. Ainda em Comte, Lacerda observa a necessidade de não se ocorrer, na sociedade, um sistema hipócrita, onde uma religião oficial do Estado obriga os políticos e demais cidadãos a professarem uma determinada fé, sendo que “(...) o Positivismo não deve constituir um monopólio espiritual opressivo” e, portanto, “... não busca extinguir as crenças teológicas” (p. 57).

A capa do recém lançado livro de Gustavo Biscaia de Lacerda:
"Laicidade na I República Brasileira: Os positivistas ortodoxos"

Dois pontos abordados pelo autor, que nos ajudam a compreender a atuação dos positivistas na transição do Império para a Primeira República, bem como a complexidade dos conflitos ligados à questão da laicidade no Brasil, são o processo de secularização dos cemitérios e a questão dos símbolos religiosos nos estabelecimentos do Estado.

Até então tomado como espaços de domínio da Igreja Católica, os cemitérios foram tema de debate entre os republicanos e positivistas já na década de 1870. Os pontos levantados questionavam o privilégio dado aos católicos em detrimento de adeptos de outras religiões. Também questionava o privilégio dado pela Igreja Católica – única administradora oficial de cemitérios públicos na época - tornando os cemitérios civis como uma solução que pudesse dar respeito à pluralidade religiosa do país, ainda que os católicos fossem a maioria da população.

O filósofo francês, Augusto Comte.

O segundo aspecto tomado por Lacerda – sobre os símbolos religiosos em estabelecimentos do Estado - nos coloca ante situações apontadas por Teixeira Mendes, então vice-diretor da Igreja Positivista do Brasil, relacionadas ao uso de símbolos religiosos em instituições do Estado republicano. Um dos casos abordados por Teixeira Mendes e que, aos nossos olhos, talvez possa nos dar um panorama da disputa pela laicidade do espaço público, é o caso de Domingos Eleodoro Pereira que, em 25 de março de 1892, arrancou um crucifixo que estava pendurado em um Tribunal de Júri na cidade do Rio de Janeiro.

Estes dois aspectos trabalhados nos folhetos da Igreja Positivista e analisados na obra de Lacerda nos mostram que a laicidade fazia parte de um projeto positivista que, ao garantir a liberdade religiosa somada a outros fatores, pudesse criar alicerces para o Estado ideal, ou sociocracia, na concepção comtiana, que garantiria a pluralidade religiosa e ideológica, alimentada pela fraternidade e altruísmo entre os homens. Tal Estado impediria abusos que resultariam da combinação entre o Poder Espiritual e Poder Temporal

O diretor da Igreja Positivista, Raimundo Teixeira Mendes.
Nota-se, ainda aqui, a importância dada pelos positivistas à memória dos mortos, pela valorização dos cemitérios como espaços de culto cívico, onde as pessoas pudessem lembrar-se dos feitos de outros cidadãos e relembrar os ideais defendidos pelos mesmos, sejam católicos, protestantes, judeus, ou de outras religiões. Mostram-nos também que o processo de laicização da República, mesmo com a Constituição de 1891 garantindo a separação entre Igreja e Estado, não foi realizado por completo e de imediato, sofrendo conflitos entre diversos setores da sociedade. Lacerda ressalta esse último ponto como um processo que, desde a Proclamação da República, sofreu avanços e retrocessos, encontrando-se ainda incompleto: observa que, por exemplo, a primeira Constituição republicana retirou o Ensino Religioso do currículo escolar público, sendo retomado na Constituição de 1934. Isso nos mostra que o Estado é um espaço de disputa entre os agentes da sociedade, onde, se em dado momento, algumas pautas avançam em detrimento das demais, em outro momento podemos observar a aspiração de outras demandas e o esforço para a retomada de velhas formas de organização social.

Gustavo Lacerda, em seu livro, permite-nos refletir sobre os problemas que enfrentamos na Primeira República referentes à Laicidade. Mas, em tempos em que vemos o avanço religioso sobre as instituições do Estado Republicano, também nos dá ferramentas para podermos pensar as fronteiras dessa questão tão cara para a sociedade ocidental em nossa contemporaneidade.