Fenômenos mais modificáveis são menos
irresistíveis
O trecho abaixo é notável em sua importância epistemológica e em sua aplicação pedagógica. Comentando as críticas sofridas pelas teorias de Gall e Spurtzheim sobre o cérebro e seu funcionamento, Augusto Comte nota que uma delas em particular, conquanto errada em si mesma, permitiu lançar luz sobre questões importantes – daí a conveniência de examinar tal crítica. Essa crítica afirma que a noção de leis naturais (e, mais particularmente, a noção de que os fenômenos cerebrais seguem, também, leis naturais) impede a liberdade humana e torna a educação irrelevante ou inútil.
Para responder a essa crítica, Augusto Comte observa que os fenômenos mais complicados (e mais específicos) são os mais modificáveis e, inversamente, que os mais simples (e mais gerais) são os menos modificáveis. Além disso, o fundador da Sociologia nota que o aumento da complicação e da especificidade implica um acréscimo contínuo de novas leis naturais específicas, cada qual com suas próprias variações: esse acúmulo paulatino de novas variações acarreta nos fenômenos mais complicados maiores graus de variação, ou, nos termos abaixo, menores graus de irresistibilidade, sem que isso acarrete, de qualquer maneira, a negação da noção de leis naturais próprias a cada fenômeno. No que se refere à educação, a menor irresistibilidade juntamente com as leis naturais específicas resultam em que há grande espaço para a educação, o que não significa, todavia, que leis e instituições possam, por si sós, pura e simplesmente fazer o que quiser com o ser humano, da mesma forma que não podem criar gênios.
Em termos epistemológicos, esse trecho é importantíssimo porque esclarece, mais uma vez, o que significa a expressão “maior complicação, maior modificabilidade”. Do ponto de vista pedagógico – mas também da política prática –, esse trecho é importantíssimo porque assenta que o ser humano não é infinitamente maleável nem que é maleável conforme vontades arbitrárias e caprichosas[1].
De modo geral o trecho é autoexplicativo. Convém notar, entretanto, que Augusto Comte critica a “ideologia francesa” e a “psicologia germânica”: no primeiro caso, a referência é à “Ideologia” e aos ideólogos, que se constituíram nos intelectuais franceses de maior nomeada após o Iluminismo e a Revolução Francesa; Comte considera em particular as obras de Étienne de Condillac e Claude-Adrien Helvétius. No que se refere à “psicologia”, eu não sei identificar por ora a quem ele referia-se especificamente. De qualquer maneira, tanto em um caso quanto no outro, para Comte as doutrinas ideológicas e psicológicas eram profundamente metafísicas, afirmando concepções degradadas da teologia, como a noção de “alma”, ou a de “eu” unitário[2]. Em contraposição a tais doutrinas, Augusto Comte elogia o estudo empírico do cérebro, com a busca da determinação tanto das funções cerebrais elementares quanto dos órgãos cerebrais específicos[3] – e, a partir daí, estabelecendo as bases positivas para o estudo e a compreensão da subjetividade do ser humano. Assim, o elogio que Augusto Comte faz à frenologia, a Gall e a Spurtzheim considera as importantes pesquisas empíricas de neuroanatomia e de neurofisiologia, que estabeleceram indiscutivelmente as bases realmente elementares do que se chama nos dias de hoje de “neurociência”; essas pesquisas têm valor por si sós, independentes das aplicações posteriores e/ou de exageros interpretativos, que Augusto Comte criticava ou que deixava de lado[4].
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“Entre as inúmeras objeções que foram sucessivamente levantadas contra essa bela doutrina, considerada sempre unicamente nas suas disposições fundamentais, e continuando a eliminar toda especialização, só uma merece ser assinada aqui, tanto pela sua alta importância, como pela nova luz que a sua inteira resolução fez jorrar sobre o espírito da teoria. Consiste ela na pretensa irresistibilidade que juízes irrefletidos creram dever assim ser atribuída às ações humanas, e que é necessário examinar sumariamente do ponto de vista geral peculiar à filosofia positiva.
Só uma profunda ignorância do verdadeiro espírito da filosofia natural poderia fazer confundir, em princípio, a subordinação de acontecimentos quaisquer a leis invariáveis, com a irresistível consumação necessária deles. No conjunto do mundo real, orgânico ou inorgânico, é evidente, como já o estabeleci, que os fenômenos das diversas ordens são tanto menos modificáveis, e determinam tendências tanto mais irresistíveis, quanto mais simples e mais gerais são ao mesmo tempo eles. Sob este aspecto, os atos da gravidade, por serem relativos à mais geral e a mais simples de todas as leis naturais, são os únicos que possamos conceber como plenamente e necessariamente irresistíveis, pois que não podem jamais ser inteiramente suspensos; eles se fazem sempre sentir, de uma maneira qualquer, já por um movimento, já por uma pressão. Mas a medida que os fenômenos se complicam, a sua produção exigindo o concurso indispensável de um número sempre crescente de influências distintas e independentes, eles se tornam, só por isso, cada vez mais modificáveis, ou, em outros termos, a sua consumação se faz cada vez menos irresistível. Isso resulta das combinações cada vez mais variadas que comportam as diversas condições necessárias, cada uma das quais continua todavia a ser isoladamente sujeita às suas leis fundamentais, sem as quais a concepção geral da natureza ficaria nesse estado arbitrário e desordenado que a filosofia teológica é diretamente destinada a representar. É assim que os fenômenos físicos, e sobretudo os fenômenos químicos, comportam modificações continuamente mais profundas, e apresentam, por conseqüência, uma irresistibilidade sempre menor, como tive o cuidado de explicá-lo. Notamos igualmente que, em virtude da sua complicação e da sua especialidade superiores, os fenômenos fisiológicos são os mais modificáveis e os menos irresistíveis de todos, conquanto sempre submetidos, na sua consumação, a leis naturais invariáveis. Por uma conseqüência evidente da mesma noção filosófica, é claro que os fenômenos da vida animal, em razão da sua menor indispensabilidade e da sua inevitável intermitência, devem realmente ser encarados como mais modificáveis e menos irresistíveis ainda do que os da vida orgânica propriamente dita. Enfim, os fenômenos intelectuais e morais, que, pela sua natureza, são a um tempo mais complicados e mais especiais do que todos os outros fenômenos precedentes, devem evidentemente comportar mais importantes modificações e manifestar, portanto, uma irresistibilidade muito menor. Mas por isso cada uma das numerosas influências elementares que concorrem para eles não cessa de obedecer, no seu exercício espontâneo, a leis rigorosamente invariáveis, apesar do mais das vezes desconhecidas até ao presente. É o que Gall e Spurtzheim verificaram diretamente no caso atual, da maneira menos indubitável, por uma luminosa argumentação. Bastou-lhes, depois de ter lembrado que os atos reais dependem quase sempre da ação combinada de várias faculdades fundamentais, observar, em primeiro lugar, que o exercício pode desenvolver muito cada faculdade qualquer, como a inatividade tende a atrofiá-la; e, em segundo lugar, que as faculdade intelectuais diretamente destinada, pela sua natureza, a modificar a conduta geral do animal segundo as exigências variáveis da situação dele, podem alterar muito a influência prática de todas as outras faculdades. Em virtude desse pulo princípio, não pode haver verdadeira irresistibilidade, e por conseqüência irresponsabilidade necessária, conforme as indicações gerais da razão pública, senão nos casos de mania propriamente dita. Nestes a preponderância exagerada de uma faculdade determinada, proveniente da inflamação ou da hipertrofia do órgão correspondente, reduza de alguma sorte o organismo ao estado de simplicidade e de fatalidade da natureza inerte. É pois bem vãmente, e com leviandade bem superficial, que se acusou a fisiologia cerebral de menosprezar a alta influência da educação, e da legislação que constitui o prolongamento necessário desta, porque fixou judiciosamente os verdadeiros limites gerais de ambas. Por haver negado, contra a ideologia francesa, a possibilidade de converter, à vontade, mediante instituições convenientes, todo os homens em outros tantos Sócrates, Homeros, ou Arquimedes, e, contra a psicologia germânica, o império absoluto, muito mais absurdo ainda, que a energia do eu exerceria para transformar, ao seu sabor, a sua natureza moral, a doutrina frenológica foi representada como radicalmente destrutiva de toda liberdade razoável, e de todo aperfeiçoamento do homem por meio de uma educação bem concebida e sabiamente dirigida! É todavia evidente, só pela definição geral da educação, que essa incontestável perfectibilidade supõe necessariamente a existência fundamental de predisposições convenientes, e, demais, que cada uma delas é submetida a leis determinadas. Sem estas não se poderia conceber que se tornasse possível exercer sobre o conjunto das nossas disposições influência alguma verdadeiramente sistemática. De sorte que é precisamente, pelo contrário, à fisiologia cerebral que pertence exclusivamente a posição racional do problema filosófico da educação. Enfim, segundo uma última consideração mais especial, essa fisiologia erige em princípio incontestável que os homens são, de ordinário, essencialmente medíocres, tanto para o bem como para o mal, na sua dupla natureza afetiva e intelectual. Isto é, a fisiologia cerebral mostra que, afastando um pequeníssimo número de organizações excepcionais, cada um deles possui, em grau pouco pronunciado, todos os instintos, todos os sentimentos, e todas as aptidões elementares, sem que a maioria das vezes faculdade alguma seja, em si mesma, altamente preponderante. É portanto claro que o mais vasto campo acha-se assim diretamente aberto à educação para modificar, quase em todos os sentidos, organismos tão flexíveis; embora, quanto ao grau, o seu desenvolvimento deva sempre ficar nesse estado pouco assinalada que basta plenamente para a boa harmonia social, como o explicarei mais tarde”.
(Augusto Comte, Sistema de filosofia positiva, v. 3, lição 45, p. 808-813, apud Raimundo Teixeira Mendes, O ano sem par, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900, p. 14-17; itálicos de Teixeira Mendes. Esse trecho pode ser lido no original aqui: https://archive.org/details/bub_gb_i-cx5K6kWVMC/page/807/mode/2up?view=theater.)
[1] Uma aplicação política imediata dessas reflexões pedagógicas é no sentido de pôr por terra a noção pós-moderna e identitária, ao mesmo tempo vulgar, falsa e errada, tão comum nos dias atuais, segundo a qual “tudo é social”, no sentido de que tudo seria “socialmente construído”, ou seja, de que tudo seria passível de manipulação (e destruição) intencional e caprichosa.
[2] Mesmo hoje, essa noção metafísica continua exercendo profunda influência entre inúmeros pensadores, em virtude de sua filiação com a teologia. As doutrinas psicológicas, especialmente as de origem alemã (a psicanálise à frente), também são profundamente metafísicas, embora com freqüência devido a outros motivos.
[3] A noção de que o cérebro na verdade é um aparelho e não um órgão unitário, era bastante clara para Comte, a partir das pesquisas precisamente de Gall e Spurtzheim.
[4] Entre as aplicações posteriores e/ou os exageros que A. Comte criticava ou deixava de lado estão a “craniometria”, a busca (e a suposta determinação) do “órgão do roubo”, do “órgão do assassinato” etc. (Cf. Augusto Comte, Sistema de filosofia positiva, v. 3, lição 45, p. 797-798, apud Raimundo Teixeira Mendes, O ano sem par, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900, p. 9, nota de rodapé. Disponível na postagem “Instintos e genética não são fatalidades” (https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2024/05/instintos-e-genetica-nao-sao-fatalidades.html).)