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03 outubro 2023

Sobre o método subjetivo

No dia 24 de Shakespeare de 169 (3.10.223) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua "Oitava conferência", dedicada à filosofia das ciências superiores (Sociologia e, ainda mais, a Moral).

No sermão abordamos o método subjetivo.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/3ABoP) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/OlSVZ). O sermão começa em 56' 30".

Abaixo reproduzimos as anotações que serviram de base para a exposição oral do sermão.

*   *   *


Sobre o método subjetivo 

-        A idéia do método subjetivo e sua aplicação sistemática é uma das mais belas, impressionantes e importantes elaborações de Augusto Comte

o   O método subjetivo estava presente, mesmo que implicitamente, desde as primeiras elaborações de nosso mestre, mas foi apenas com a criação da Religião da Humanidade que foi possível elaborá-lo de maneira clara e consciente

o   A vinculação do método subjetivo com a Religião da Humanidade já sugere muitas de suas características

-        A presente exposição terá um aspecto geral mais intelectual que qualquer outra coisa; entretanto, é importante ter em mente que, ao tratar-se do método subjetivo, a origem afetiva de todos os pensamentos deve estar bem clara e subjacente

-        Para apresentar de maneira simples e direta, podemos dizer que o método subjetivo consiste na afirmação da perspectiva humana sobre todas as concepções e reflexões humanas; em outras palavras, ele consiste na perspectiva subjetivista

o   Esse subjetivismo também pode ser entendido como a afirmação de um renovado antropocentrismo

o   Além disso, no caso específico do método subjetivo, tal subjetivismo deve ser entendido como sendo social e não individual, a par da origem sociológica da noção de Humanidade e, daí, da moral positiva

§  Caso esse subjetivismo tivesse um caráter estritamente individual, recairíamos nos mesmos problemas da moral e da inteligência teológicas, que são individualistas, solipsistas e não percebem plenamente o caráter social do ser humano

§  Embora a subjetividade do método subjetivo tenha um caráter social, o método subjetivo não desconsidera nem despreza a subjetividade individual

§  A subjetividade individual é incorporada ao método subjetivo por meio das propriedades específicas da ciência da Moral:

·         a Moral estuda diretamente os sentimentos humanos, em particular nos indivíduos

·         a Moral é a ciência que sintetiza todas as ciências anteriores, conforme eles manifestam-se nos indivíduos

·         a Moral é a ciência que realiza diretamente a transição para as artes práticas, começando pela educação e pelo aconselhamento individuais

-        O método subjetivo pode e deve ser entendido em relação de complementaridade com o método objetivo

o   Se o método subjetivo consiste na aplicação dos parâmetros humanos a todas as concepções, reflexões e atividades humanas, o método objetivo consiste no entendimento da realidade a partir da própria realidade, isto é, a partir de uma perspectiva objetiva

o   O método subjetivo é plenamente universal em sua aplicação, na medida em que se refere a tudo o que é humano: essa universalidade (ou generalidade) é, por definição, subjetiva; já o método objetivo é universalizável em termos objetivos, mas essa universalidade depende dos fenômenos considerados

o   Em outras palavras, os métodos subjetivo e objetivo são complementares em sentidos inversos, considerando os princípios de toda classificação: generalidade crescente ou decrescente, objetiva ou subjetiva; particularidade decrescente ou crescente, subjetiva ou objetiva

o   Novamente: enquanto por definição o método subjetivo é plenamente universal e universalizável, o método objetivo varia em sua generalidade de acordo com o fenômeno em questão

§  A constituição do método objetivo segue a classificação das ciências, do mais objetivamente geral e simples para o objetivamente mais específico e mais complicado: Matemática, Astronomia, Física, Química, Biologia, Sociologia, Moral

§  Na escala das ciências, a única ciência que é objetivamente plenamente universalizável é a Matemática (na medida em que ela estuda os números, a extensão e o movimento dos corpos); a partir dela, as demais ciências são mais específicas

-        Todas as concepções humanas sujeitam-se e devem sujeitar-se ao método subjetivo (o que inclui as ciências); entretanto, para que ele possa ter a sua adequada primazia, foi necessário antes corrigi-lo, por meio do desenvolvimento do método objetivo e de sua aplicação à realidade humana

o   A necessária correção do método subjetivo deve-se a diversos motivos conexos:

§  o método subjetivo inicialmente é absoluto (e não relativo);

§  ele inicialmente se pretende e afirma-se objetivo (embora seja sempre subjetivo);

§  ele inicialmente se baseia em concepções individualistas (em vez de concepções sociais);

§  ele inicialmente pretende que o mundo é total e infinitamente plástico e obediente às vontades caprichosas dos seres humanos e/ou de tipos semelhantes ou inspirados no ser humano (em vez de obedecer a leis naturais)

o   O método subjetivo é espontâneo, na medida em que se trata da aplicação das perspectivas humanas para tudo, incluindo as concepções sobre a realidade; essa espontaneidade baseia-se nos sentimentos e na percepção imediata da existência humana

o   O método objetivo também é espontâneo, mas sua espontaneidade é menor e mais fraca, na medida em que ela baseia-se na realidade prática e exige a intermediação da inteligência

o   Há assim um descompasso entre os dois métodos, em que o subjetivo surge antes do objetivo e este demora mais para constituir-se

o   Além disso, considerando a lei dos três estados, a subjetividade inicial é teológica (rigorosamente, ela começa fetíchica, mas depois se torna teológica)

§  Daí a necessidade de correção do método subjetivo pelo método objetivo

§  Daí a importância histórica e filosófica das ciências

·         Importa insistir e enfatizar: a longo prazo, a importância das ciências consiste no esclarecimento e na correção do método subjetivo; em comparação com isso, as outras aplicações da ciência (satisfação da curiosidade, estabelecimento de bases para a tecnologia) são secundárias

o   À medida que o método objetivo avança sobre o conhecimento da realidade, vai descobrindo como a realidade funciona e de que maneira o ser humano atua nessa realidade; descobre também que o ser humano não é onipotente, não é onisciente; que suas vontades têm que se submeter a relações constantes e invariáveis que independem de sua vontade (é o dogma das leis naturais) etc.

o   A longa demora na constituição do método objetivo e sua igualmente demorada oposição ao método subjetivo estimularam muitos dos vícios próprios ao método objetivo:

§  seu caráter dispersivo;

§  seu extremado intelectualismo (em contraposição à afetividade e mesmo à atividade prática);

§  seu caráter analítico e detalhista (em contraposição às visões sintéticas e de conjunto);

§  as inúmeras derivas materialistas/reducionistas;

§  a busca de uma síntese objetiva

§  desenvolvimento da impressão de que a ciência é sempre e naturalmente oposta à filosofia e ao método subjetivo

o   Os inúmeros e sérios vícios próprios ao método objetivo só podem ser corrigidos por meio da aplicação do método subjetivo

§  Mas como a renovação do método subjetivo depende do desenvolvimento do método objetivo, desenvolve-se ao longo do tempo uma situação difícil, um verdadeiro impasse

§  Na medida em que o método subjetivo durante muito tempo é teológico, a oposição entre ele e o método objetivo assume a forma da oposição (metafísica) entre a “fé e razão”

§  A única solução possível para esse impasse é por meio da correção e da renovação do método subjetivo a partir de elementos do método objetivo, seguida da correção do método objetivo pelo método subjetivo: esse duplo movimento só é possível na síntese positiva

o   Quando o método objetivo alcança as ciências superiores, muitos dos principais elementos renovadores do método objetivo já estão elaborados em termos gerais – em particular o dogma das leis naturais –, sendo possível então que o método subjetivo seja diretamente reelaborado e que ele possa, afinal, afirmar seu império sobre toda a realidade humana

o   O resultado geral da correção do método subjetivo pelo método objetivo é, após a afirmação da subjetividade humana, também a afirmação do relativismo de todos os nossos conhecimentos

§  A visão de conjunto também se afirma quando o método objetivo adentra as ciências superiores

o   A partir do subjetivismo relativista, o método subjetivo torna-se plenamente apto a realizar seu império sobre o mundo (incluindo a necessária correção dos vícios próprios ao método objetivo)

-        Convém retomarmos uma afirmação que fizemos no início desta exposição: o método subjetivo é a afirmação da perspectiva humana sobre toda a realidade humana; ou seja, é um renovado antropocentrismo

o   Muitos pensadores consideram que todo antropocentrismo é sempre e necessariamente particularista e excludente, especialmente sobre os seres vivos e o meio ambiente

o   À parte o oximoro implícito em “antropocentrismo excludente”, o fato é que o antropocentrismo próprio ao método subjetivo da Religião da Humanidade não nos autoriza a considerar que o ser humano pode fazer o que quiser, em particular em termos dos seres vivos e do meio ambiente e, ao contrário, que de modo geral temos que ter uma postura de cuidado e respeito para com eles

o   O respeito positivista ao meio ambiente baseia-se tanto na concepção ampliada de Humanidade (que inclui os animais domésticos) quanto os sentimentos afetivos e o respeito para com os seres vivos em geral

§  O compartilhamento da mesma estrutura cerebral entre seres humanos, animais superiores e aves é outro motivo para o respeito positivista para com os seres vivos

§  Além disso, a partir de sua renovação com elementos do método objetivo, o método subjetivo reconhece a subordinação do ser humano ao meio ambiente e, portanto, a necessidade de cuidar das condições ecológicas, do equilíbrio dos ciclos vitais etc.

o   Considerando o método subjetivo em relação às três fases da carreira de Augusto Comte, podemos sugerir o seguinte:

§  Sistema de filosofia positiva (1830-1842): consolidação do método objetivo nas ciências inferiores, estabelecimento do método objetivo nas ciências superiores, em particular na Sociologia e em rudimentos da Moral; elaboração implícita do método subjetivo em bases positivas

§  Sistema de política positiva (1851-1854): elaboração direta do método subjetivo em bases positivas, com a elaboração da Religião da Humanidade

§  Síntese subjetiva (1856): desenvolvimento, aprofundamento e aplicação do método subjetivo ao conjunto da realidade humana

-        Como observamos no início, o que expusemos até agora sobre o método subjetivo tem um caráter mais intelectual que qualquer outra coisa; entretanto, o reconhecimento de que o ser humano é acima de tudo afetivo tem conseqüências também sobre o método subjetivo, que deve incluir, necessariamente, aspectos e concepções afetivas

o   O procedimento específico adotado por Augusto Comte para a plena inclusão da afetividade no método subjetivo é a incorporação do fetichismo inicial ao positivismo final, no que alguns pesquisadores chamaram de “neofetichismo”

o   O resultado disso é que, com isso, o método subjetivo torna-se uma forma de pensar plenamente afetiva (e, inversamente, uma forma de sentir com conseqüências intelectuais)

§  Na verdade, sempre pensamos a partir da inspiração afetiva; o que o método subjetivo faz é reconhecer, estimular, sistematizar e aplicar essa relação

o   Temos aí, por um lado, a instituição da Trindade Positiva: Grão-Meio (o Espaço), Grão-Fetiche (a Terra) e Grão-Ser (a Humanidade)

o   Por outro lado, temos também a lógica positiva: “O concurso normal dos sentimentos, das imagens e dos sinais, para inspirar-nos as concepções que convêm às nossas necessidades morais, intelectuais e físicas”[1]

o   Além disso, no final de sua vida Augusto Comte propôs que a lei dos três estados deve ser entendida como uma lei dos quatro estados

§  Essa lei dos quatro estados estabelece que o estado positivo pode e deve dividir-se em estado científico e estado positivo, em que o estado científico mantém o aspecto analítico e potencialmente absolutista da ciência e o estado positivo caracteriza-se pela síntese relativa

§  Comentário pessoal do meu amigo Hernani Gomes da Costa logo após eu terminar a exposição acima, em 3.10.2023:

§  “Você veio confirmar inteiramente uma suspeita que eu vinha desenvolvendo há muito tempo no sentido de apresentar de um modo diferente a lei dos três estados, considerando-a não mais APENAS por referência exclusiva às suas produções externas, isto é, aos respectivos SISTEMAS teológicos, metafísicos e positivo, mas tendo em vista o processo interno de sua gênese. Isso significa, em outros termos, considerar todas as combinações possíveis dos dois binômios subjetivo-objetivo e relativo-absoluto.

Feita essa nova APRESENTAÇÃO, fica bem claro em que consiste o dito ‘quarto estado’.

O estado subjetivo e absoluto corresponderia ao teologismo, incluindo mesmo aí o fetichismo, o estado objetivo e absoluto corresponderia à metafísica espiritualista, o estado objetivo e relativo, à metafísica materialista, e por fim o estado subjetivo e relativo, ao positivismo.”

26 setembro 2023

Sobre títulos e tratamentos

No dia 17 de Shakespeare de 169 (26.9.2023) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua "Oitava conferência", dedicada à filosofia das ciências superiores (Sociologia e, acima de tudo, Moral).

Em seguida, fizemos nosso sermão a respeito dos títulos e dos tratamentos pessoais.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://acesse.dev/cLT8S) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/KTD6m). O sermão começa em 46' 47".

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Sobre títulos e tratamentos pessoais 

-        Em termos de relações pessoais e cívicas, a respeito dos pronomes de tratamento e do uso de títulos honoríficos, o Positivismo aplica alguns princípios muito claros e determinados e a regra é: não os usar

o   A base para tal procedimento é a fraternidade universal e a valorização do mérito individual, em um ambiente republicano

o   Em outras palavras, trata-se de realizar a sociocracia nas relações pessoais e cívicas

-        Em algum lugar – cito de memória, pois não consegui recuperar onde li essa bela passagem –, Augusto Comte observa que todos devemos tratar-nos por “senhor” (messieur, em francês), mas subentendendo nessa expressão o título de “cidadão” (citoyen, em francês)

o   A regra é usar “senhor” e também suas variações, como “senhora”, “senhorita”, “senhores” etc.

o   Adicionalmente ao uso de “senhor”, a prática positivista também indica a profissão de cada cidadão: “operário”, “professor”, “médico”, “apóstolo” etc.

-        Essas expressões (“senhor”, “cidadão”) têm uma vinculação inequívoca com a Revolução Francesa e com o seu duplo programa (a abolição da monarquia e do Antigo Regime; a constituição de novas sociedade e sociabilidade)

o   O emprego da expressão “senhor”, no século XIX, apesar de depurada pela Revolução Francesa, possuía ainda um certo elemento feudal, no sentido de que “messieur” referia-se antes aos nobres – daí a necessidade, de qualquer maneira justificada, de reforçar que o elemento “cidadão” deve estar subentendido

o   Na Revolução Francesa e no início da República no Brasil, era muito comum empregar-se o “cidadão” para referir-se aos vários indivíduos: “cidadão Teixeira Mendes”

-        Em todo caso, o que importa notar é que o emprego de “senhor” é uma forma respeitosa e simples de tratar os demais, sem reproduzir as fórmulas habituais: “vossa/sua excelência”, “vossa/sua alteza” etc. etc.

o   Evidentemente, ainda mais que os pronomes de tratamento, a regra sociocrática rejeita o uso dos títulos nobiliárquicos e das comendas: “barão”, “duque”, “marquês” etc.; “membro da ordem X”, “comendador da ordem Y” etc.

o   Isso estabelece uma grande proximidade – quase um igualitarismo – entre as pessoas, tanto afetiva quanto sociopolítica

§  Essa proximidade era uma realidade vivida na Igreja Positivista do Brasil, tanto na época de Miguel Lemos e Teixeira Mendes quanto depois (até os anos 1990)

-        A presente regra é uma orientação geral; mesmo Augusto Comte usava títulos honoríficos ao dirigir-se a outras pessoas, como a dois de seus executores testamenteiros, o espanhol Don José Flores e o alemão Barão Constant-Rebecque

o   É claro que, mesmo usando essas fórmulas tradicionais, Augusto Comte era muito comedido nesse emprego

o   Da mesma maneira, esse emprego de fórmulas tradicionais evidencia o uso de outra regra positivista: “inflexível quanto aos princípios, conciliante de fato”

-        O uso de outros pronomes de tratamento e de títulos honoríficos serve, tanto no Brasil quanto em outros países, para adular, dar carteirada e literalmente discriminar:

o   É extremamente comum vermos documentos oficiais dirigidos a “Sua Excelência o sr. prof. dr. Joãozinho da Silva”, com uma enorme profusão de títulos e pronomes de tratamentos

o   Essa profusão é particularmente notável nas áreas jurídicas, seja em escritórios de advocacia, seja na Ordem dos Advogados do Brasil, seja no Ministério Público, seja nos muitos tribunais

o   O Decreto n. 9.758/2019 estabeleceu que, no âmbito do poder Executivo federal (Art. 1º, § 2º), só se pode usar “senhor” (Art. 2º) – não por acaso, excetuando expressamente todo o pessoal jurídico (Art. 1º, § 3º, inc. II)

-        Uma observação pessoal: muitas pessoas tratam-me por “professor”

o   Embora, evidentemente, o uso de “professor” para dirigir-se a mim seja feito com total boa vontade, boa fé, respeito e reconhecimento de (alguma) capacidade, o fato é que essa palavra é problemática por pelo menos dois motivos:

§  Por um lado, ela não corresponde à minha profissão (eu sou servidor público, ocupando o cargo de sociólogo)

§  Por outro lado, em termos de atuação positivista, não apenas não corresponde à atuação como, pior, ela diminui: eu sou um apóstolo da Humanidade e um sacerdote

o   Vejamos cada um dos âmbitos de atuação:

§  O professor é alguém que domina um assunto e expõe para seus alunos; então, todo apóstolo e sacerdote tem que ser, necessariamente, um professor; mas um professor não é, necessariamente, nem apóstolo nem sacerdote

§  O apóstolo é quem se dedica à difusão sistemática de uma doutrina; sua preocupação é intelectual mas também, e acima de tudo, moral e social; então um apóstolo é um professor, mas cuja atuação é mais ampla

§  O sacerdote (que apresenta os três graus: noviciado, vicariado, sacerdote pleno) é quem divulga uma doutrina, interpreta-a nos diversos casos e atua como educador, conselheiro, avaliador e consagrador; assim, a função sacerdotal abrange necessariamente as atuações como professor e como apóstolo, mas é superior a elas

-        Uma última observação, que faço apenas para não deixar em silêncio o tema em uma prédica dedicada a tratamentos pessoais:

o   Pessoalmente, sou contrário à chamada “linguagem neutra”, que busca abolir a golpes de marretada os gêneros na língua portuguesa e impor um suposto “gênero neutro”, por meio do emprego da terminação “e” nos casos de palavras masculinas (e exclusivamente masculinas) e/ou pelo emprego de “x”, “@”, “#”[1] etc.

o   Sou contra o emprego desse linguajar porque ele é inócuo; porque desrespeita os falantes e os leitores da língua portuguesa; porque é radicalmente contrário ao caráter histórico (e sociológico) da língua; porque é a manifestação lingüística do ultraparticularismo político e moral do identitarismo



[1] Uma curiosidade: o símbolo # em português chama-se “cerquilha”.

19 setembro 2023

Sobre a expressão "funcionários públicos"

No dia 10 de Shakespeare de 169 (19.9.2023) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua "Oitava conferência". O trecho comentado aborda em particular a constituição da ciência-arte da Moral.

Na seqüência, na parte do sermão, comentamos a bela expressão "funcionários públicos", utilizada por Augusto Comte para referir-se a como todos os cidadãos, servidores da Humanidade, devem encarar-se ao de fato servirem a Humanidade.

Devido a problemas técnicos com a transmissão via Youtube, fomos obrigados a cancelar a transmissão nesse canal, limitando-nos ao Facebook.

A prédica foi transmitida no canal Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/G8FE6) e também está disponível no canal Positivismo (aqui: https://ury1.com/lpDoU). O sermão inicia-se em 56' 50".

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Sobre o conceito de “funcionalismo público” 

-        Uma das mais belas e instrutivas expressões de Augusto Comte por vezes é alvo de críticas e confusões, nem sempre originadas da boa-fé dos comentadores

o   Essa expressão é que regime normal, todos os servidores da Humanidade devem ser vistos como “funcionários públicos”

o   Alguns dos comentários deste sermão, especialmente no final, retomam considerações presentes na postagem “Dois erros sobre o Positivismo: ‘autoritarismo’, ‘funcionalismo público’” (disponível aqui: https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2017/03/dois-erros-sobre-o-positivismo.html) e esta, por sua vez, publicou o artigo de mesmo nome, que apareceu na Revista Espaço Acadêmico (Maringá, n. 87, agosto de 2008)

-        No Discurso sobre o conjunto do Positivismo, Augusto Comte afirma que somos todos “funcionários públicos”; eis o trecho[1]:

Sob esses diversos aspectos, o princípio fundamental do comunismo é então necessariamente absorvido pelo positivismo. Ao fortalecê-lo bastante, a nova filosofia estende-o mais, pois que ela aplica-o a todos os modos quaisquer da existência humana, indistintamente votados ao serviço contínuo da comunidade, conforme o verdadeiro espírito republicano. Os sentimentos de individualismo como as vistas de detalhe tiveram que prevalecer durante a longa transição revolucionária que nos separa da Idade Média. Mas uns convêm ainda menos que os outros à ordem final da sociedade moderna. Em todo estado normal da Humanidade, cada cidadão qualquer constitui realmente um funcionário público, cujas atribuições mais ou menos definidas determinam por sua vez as obrigações e as pretensões. Esse princípio universal deve certamente se estender até a propriedade, em que o positivismo vê sobretudo uma indispensável função social, destinada a formar e a administrar os capitais por meio dos quais cada geração prepara os trabalhos da seguinte. Sabiamente concebida, essa apreciação normal enobrece sua possessão, sem restringir sua justa liberdade e mesmo a fazendo ser melhor respeitada.

-        O trecho acima – cuja parte que para nós importa destacamos com sublinhado – é bastante claro e autoexplicativo:

(1) Nas situações sociais normais cada cidadão deve ver-se como um funcionário público e

(2) É a partir dessa atuação pública que se deve estabelecer suas possibilidades de atuação e de exigências

o   Apesar da clareza estilística, convém esclarecermos o conceito de “estado normal” e, em seguida, explorarmos a concepção de “funcionário público”

-        Antes de comentar especificamente o trecho acima, é interessante indicar que ele é apresentado no âmbito da discussão sobre o “comunismo”, realizada no capítulo 3 do livro em questão (“Eficácia popular do Positivismo”)

o   Nesse capítulo, após indicar quais as relações entre o sacerdócio positivo e o povo e, em particular, após apresentar sua teoria da opinião pública, Augusto Comte passa a comentar o chamado “comunismo”

o   Essa reflexão está no âmbito do regime; mas no Discurso sobre o conjunto do Positivismo Augusto Comte adotou outro critério para organização dos capítulos (especificamente, os âmbitos de atuação do Positivismo: filosofia, política, povo, mulheres, artes, religião)

-        Passando ao conceito de “estado normal”:

o   Podemos dizer que o objetivo do Positivismo é regular as forças humanas, a fim de que atinjamos a harmonia individual e coletiva; para isso, uma série de aspectos devem ser levados em consideração, adotados e/ou respeitados

o   A situação de harmonia dinâmica antevista pelo Positivismo é chamada por Augusto Comte de “estado normal”

§  Dito de outra forma, podemos considerar o “estado normal” a realização da utopia positivista

§  A descrição cuidadosa do estado normal e dos passos a serem seguidos até lá corresponde ao v. IV do Sistema de política positiva

o   Mas, além da referência à utopia positivista, no trecho acima há a referência aos estados normais, isto é, a uma pluralidade de estados normais

o   Nesse caso, a concepção de estado normal refere-se aos períodos históricos orgânicos, em que há efetivamente concepções gerais sobre a realidade, sobre o ser humano coletivo e sobre o ser humano individual

§  Daí a referência à Idade Média e também ao período crítico que prevalece desde o século XIV

-        Quais são as características do período crítico que Augusto Comte considera aí?

o   Por um lado, de maneira explícita, “os sentimentos de individualismo” e “as vistas de detalhe”

o   Por outro lado, de maneira implícita, as concepções de que cada indivíduo vive para si mesmo, que somente as suas preocupações particulares e exclusivas realmente importam; que não há concepção de bem comum vigente, que a propriedade privada é gerida de maneira absoluta e com vistas apenas à satisfação pessoal (ou seja, ao enriquecimento contínuo às expensas dos trabalhadores)

o   Além disso, Augusto Comte observa que o individualismo e as vistas de detalhe – convergentes entre si, especialmente contra as vistas gerais que estabelecem o real bem comum – foram fatais e mesmo necessárias desde o fim da Idade Média, como meios para destruir a antiga ordem social

-        O que Augusto Comte afirma, então, no trecho acima, é que devemos ultrapassar a fase crítica e estabelecer os hábitos e os valores próprios ao estado normal, em particular ao estado normal positivo

-        Ora, em um estado normal existe de verdade uma noção de bem comum; essa noção de bem comum – que, aliás, é uma concepção geral e não particular – organiza efetivamente a sociedade e permite que cada indivíduo saiba quais são suas responsabilidades, seus deveres, os meios de ação necessários e também os justos reclamos de recompensa

o   Assim, a partir de uma real concepção de bem comum – que Augusto Comte relaciona à idéia de república –, como cada qual tem clareza de qual sua participação na vida pública, importa se trabalhamos para empresas privadas, para o Estado ou para organizações sem fins lucrativos; se nossas atividades são teóricas ou práticas; se atuamos na economia “pública” ou se atuamos em atividades domésticas: toda atuação tem um caráter público

§  É devido ao caráter público de toda atividade estado normal que Augusto Comte afirma que os servidores da Humanidade são cidadãos e que devem perceber-se como funcionários públicos, isto é, como participantes de um grande empreendimento público

-        Outro aspecto implícito nos comentários acima é a relativização da divisão entre público e privado:

o   Evidentemente, existe uma área da vida social que corresponde àquilo que é específico de cada um e de cada família: esse é o âmbito do que se chama de “privado” ou de “particular”

o   O que a noção normal de funcionário público afirma é que não há, nem pode haver, uma cisão entre o “público” e “privado”: claro que são âmbitos diferentes, mas essa diferença não se pauta pela duplicidade de critérios morais e intelectuais

o   Deve haver o respeito ao âmbito privado e às suas particularidades, mas os critérios gerais que orientam a conduta humana são os mesmos

§  A continuidade dos parâmetros fica evidente no “viver às claras”, especialmente no sentido de adotar comportamentos publicamente justificáveis

§  Além disso, o “viver para outrem” também evidencia a continuidade dos critérios de conduta

o   Enquanto o individualismo estabelece uma rígida separação entre o público e o privado; em que o público é mais ou menos o que sobra do privado e os parâmetros de conduta privadas são absolutos, todo estado normal estabelece que, mesmo quando atuam no âmbito privado, os indivíduos devem entender-se como cidadãos cujas atividades integram uma concepção geral de bem comum

§  No estado normal, portanto, as famílias preparam os indivíduos para serem cidadãos atuando na república

o   Dito de outra forma, no estado normal, mesmo as atividades privadas são claramente percebidas como contribuindo – e, mais do que isso, como devendo contribuir – para o bem comum

§  Assim, a ação de todos assume uma dupla característica: a atividade privada tem sempre um aspecto público

§  Ou melhor, sendo mais correto e mais preciso: a atividade privada é orientada pelo bem público e, filosoficamente, o particular é englobado no público

o   Todas essas concepções tornam-se ainda mais claras quando, algumas páginas adiante, Augusto Comte observa que “O verdadeiro princípio republicano consiste a fazerem sempre concorrer para o bem comum todas as forças quaisquer”[2]

§  É claro que o “bem público”, o “bem comum”, a “república” etc. não são concepções vagas: elas são concepções claramente definidas pelo Positivismo e aplicadas e atualizadas pelo sacerdócio positivo

§  A afirmação do bem comum e a subordinação das atividades privadas ao bem público é o que estabelece o caráter específico da república sociocrática (e, em particular, é o que permite identificar o que há de extremamente metafísico nas concepções usuais de “república democrática”)

-        Dissemos no início que a expressão “funcionários públicos” por vezes é mal interpretada e/ou produz confusão: de que maneira?

o   Tomar o “funcionário público” como “funcionário do Estado

o   Esse erro tem sua origem lógica em uma interpretação especificamente jurídica da palavra “público”, na medida em que, no Direito, o que se opõe ao “privado” é o “público” cuja representação empírica é apenas e tão-somente o Estado

o   Essa confusão empobrece o pensamento social ao pressupor que apenas no Estado ou por meio dele é possível existir uma vida “pública”

§  Alfredo Bosi[3] cometeu esse erro, considerando que os “funcionários públicos da era normal” seriam uma justificativa para o aumento do aparelho estatal

§  Além disso, Olavo de Carvalho[4] usou a concepção comtiana para afirmar que o Positivismo seria a favor de alguma coisa como uma “estatolatria” e/ou do “Estado total”

o   Vale notar que o Positivismo favorece um forte, com capacidade de intervenção na sociedade, seguindo esta recomendação geral: o Estado deve ser o menor possível, de modo a não onerar em demasia a sociedade

§  Mas um Estado que seja “o menor possível” não equivale a “Estado mínimo”, conforme defendido pelos liberais

-        Em suma:

o   O conceito de “funcionário público” no estado normal refere-se à concepção de todos devem orientar suas condutas, sejam públicas, sejam privadas, para o bem comum

o   Ao orientar suas condutas pelo bem comum na sociocracia, é totalmente natural que todos os cidadãos percebam-se como colaborando com o benefício coletivo e, dessa forma, que se percebam como funcionários públicos

         



[1] Auguste Comte. 1851. Discours préliminaire sur l’ensemble du Positivisme. In : _____. Système de politique positive, ou traité de sociologie instituant la Religion de l’Humanité. Paris : L. Mathias. P. 156, disponível aqui: https://archive.org/details/systmedepolitiq07comtgoog/page/156/mode/2up.

Vale notar que esse livro foi publicado duas vezes: a primeira, em 1848, sob o título Discours sur l’ensemble du Positivisme; a segunda em 1851, como um prefácio geral ao Sistema de política positiva, sob o título indicado acima (Discours préliminaire...). A versão de 1851 contém algumas alterações em relação à de 1848, especialmente em termos de referências temporais e de acontecimentos correntes à época.

[2] Auguste Comte. 1851. Discours préliminaire sur l’ensemble du Positivisme. In : _____. Système de politique positive, ou traité de sociologie instituant la Religion de l’Humanité. Paris : L. Mathias. P. 163, disponível aqui: https://archive.org/details/systmedepolitiq07comtgoog/page/162/mode/2up?view=theater.

[3] BOSI, Alfredo. 2007. A arqueologia do Estado-providência: sobre um enxerto de idéias de longa duração. In: TRINDADE, Helgio. (org.). O Positivismo. Teoria e prática. 3ª ed. Porto Alegre: UFRS.

[4] CARVALHO, Olavo. 1999. O jardim das aflições. São Paulo: É Realizações.