25 janeiro 2020

Monitor Mercantil: Normalização da violência política

O artigo abaixo foi publicado no jornal carioca Monitor Mercantil, em 24.1.2020. A versão original pode ser lida aqui.

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A normalização da violência política no Brasil


Por Gustavo Biscaia de Lacerda.

Opinião / 22:46 - 24 de jan de 2020
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Ao longo dos últimos dois anos, publiquei artigos em que convidava os conservadores brasileiros a refletirem sobre suas escolhas políticas. Em um primeiro momento, observei que esses conservadores estavam à deriva, pois em 2018 manifestavam majoritário apoio a um candidato a presidente da República que seria qualquer coisa menos “conservador”, isto é, respeitador das tradições, das instituições públicas e, acima de tudo, das liberdades políticas; aliás, esse candidato foi eleito, e sua plataforma baseia-se na destruição sistemática, de acordo com suas próprias palavras.
Em seguida, em face dessa sistemática destruição das instituições e das liberdades públicas, observei que os conservadores brasileiros estavam destinando a si mesmos e ao país ao desastre. Mais recentemente, questionei esses conservadores a respeito de quais seriam os valores e as tradições que eles defendem e valorizam: as liberdades públicas, o respeito efetivo à diversidade de opinião, o pacifismo, o multilateralismo e o Estado de bem-estar social são, de fato, tradições e tradicionais no Brasil; desprezá-los é contra o bom-senso, a moral e, no caso, a nossa tradição sociopolítica.
É necessário dar um passo além e observar que os prognósticos negativos feitos anteriormente estão confirmando-se a passos largos, o que pessoalmente me assusta muito, mas que deveria ser motivo da mais profunda apreensão da parte de qualquer cidadão brasileiro minimamente preocupado com o país.
Aumento da violência no país deve
ser debitado na conta pessoal do presidente
Antes de mais nada, é necessário notarmos que o que legitimou e, assim, elegeu o candidato vencedor nas eleições de 2018, foi o “antipetismo”, ou seja, a rejeição confusa, ainda que não necessariamente incorreta, de corrupção, apadrinhamentos políticos, ideologização das políticas públicas, má gestão da economia.
Ora, com estrondoso sucesso, o candidato eleito conseguiu impor ao país – e os brasileiros alegremente compraram sua tese – que no Brasil existe uma dicotomia político-ideológica: ou é-se “petista” (de “esquerda”) – e, portanto, e supostamente, corrupto, ineficiente, ideológico etc. – ou é-se “antipetista” – e, portanto, é-se a favor do capitão expulso da Academia Militar Jair M. Bolsonaro.
Enfatizemos: o maniqueísmo antipetista venceu as eleições e, infelizmente, continua vigente. O problema aí não é exatamente o “antipetismo”, mas o seu caráter maniqueísta, que se revela radical, extremista e, no final das contas, cego, surdo e profundamente burro.
Sim, burro: afinal de contas, para evitar-se a eleição do PT em 2018 bastava não votar no PT – e, para isso, havia uma pletora de candidatos infinitamente superiores ao candidato eleito (que é da mais extrema-direita possível), tanto de centro-esquerda quanto de centro e de centro-direita: Ciro Gomes, Geraldo Alckmin, Henrique Meirelles, Álvaro Dias... mesmo para os favoráveis ao ultraliberalismo inimigo do Welfare State de Paulo Guedes havia João Amoedo. Assim, a eleição do capitão expulso da academia militar não era uma necessidade política; mas, por outro lado, sua vitória tem acarretado os mais variados danos ao país.
Em termos institucionais, alguns são mais conhecidos, outros menos. Um crescimento econômico pífio, uma inflação acima das metas (aliás, em parte causada pelas trapalhadas do governo no comércio internacional); rejeição das estatísticas oficiais; desprezo por órgãos públicos; desprezo sistemático pelos servidores públicos; indicações ou impedimentos ideológicos em nomeações para cargos públicos; incompetência administrativa; reversão ou destruição de políticas públicas duramente constituídas ao longo de décadas... em termos institucionais, a lista não para.
Isso sem falar do assumido impulso para a censura dos meios de comunicação e da extrema e reiterada vulgaridade no trato com aqueles que o desagradam. Mais uma vez: em nome do “antipetismo”, os eleitores de Bolsonaro aceitam tudo isso, mesmo os eleitores “conservadores”.
Mas talvez seja no âmbito das relações sociais que a figura de Bolsonaro, seus apoiadores, seus “ideólogos” produzam os efeitos mais nefastos – nomeadamente, na legitimação da violência, em particular da violência política.
Ao contrário do que a dona da Companhia das Letras, a sra. Lília Schwarcz, afirma, o brasileiro não é nem sempre foi autoritário (e, portanto, violento); ainda que tenhamos grupos sociais mais propensos ao autoritarismo e à violência, esses não são traços específicos do brasileiro, na medida em que também temos, para nossa grande felicidade, inúmeros grupos sociais e correntes culturais pacíficas, tolerantes, respeitadoras etc. Nesse sentido, o aumento da violência no país deve ser debitado na conta pessoal do presente presidente da República. A esse respeito, quero contar um episódio que ocorreu comigo.
Em um sábado de janeiro de 2020 eu almoçava com minha mãe, uma frágil senhora de 75 anos, em um restaurante de um bairro de classe média/classe média alta de Curitiba; minha mãe tem problemas de audição e tenho que falar alto para ela ouvir. Como deve ser evidente, estou profundamente insatisfeito e irritado com o atual governo do Brasil; por isso, comento com ela os problemas indicados acima, lembrando que, em Curitiba, as classes média e alta votaram maciçamente em Bolsonaro (em nome do “antipetismo”) e que, portanto, elas são responsáveis por isso tudo.
À minha frente, atrás de minha mãe, sentava-se um homem de meia-idade com dois idosos, presumivelmente seus pais; ele demonstrava ouvir minha peroração. Quando ele saía, resolveu falar comigo: bateu-me no ombro, segurou-me e começou a falar; eu disse que não lhe dava autorização para segurar-me e que, portanto, não tinha interesse em falar com ele.
A reação? “Se você estivesse sozinho na rua seria diferente”. “Sozinho na rua”, ou seja, sem testemunhas (incluindo minha mãe) nem câmeras; “seria diferente”, ou seja, ele faria o possível para brigar comigo e, de preferência, para espancar-me. Como procurei gravá-lo com meu celular, ele deu-me tapas e jogou o meu telefone no chão; como se não bastasse, em apoio à violência gratuita do filho, o seu pai, ignorando o contexto da situação, xingou-me de “vagabundo filho da puta”. Minha mãe assistia a tudo muda e assustada. É claro que do restaurante fui à delegacia de polícia prestar queixa.
Desde o fim do regime militar até a eleição de Bolsonaro, esse tipo de violência política era cada vez mais excepcional no Brasil; todavia, a partir de meados de 2018, o país assiste cada vez mais a casos assim, com ameaças pessoais a cidadãos que têm a ousadia de criticar o presidente da República – aliás, de maneira torpe, muitas ameaças são estendidas a seus familiares –, sem falar nas variadas violências que grupos sociais detestados pelo presidente têm sofrido (mesmo quando são apoiadores dele).
Ah, mas Bolsonaro não é o responsável direto por isso!”. Talvez: na violência que eu sofri, não foi o presidente o seu autor, mas é inegável que o seu exemplo é poderoso e, acima de tudo, legitimador.
Se você estivesse sozinho na rua seria diferente”... se eu estivesse sozinho na rua, minhas liberdades de pensamento e expressão resultariam em espancamento. Em nome do “antipetismo”, os eleitores de Bolsonaro legitimaram esse tipo de comportamento (isso quando não o praticam), normalizando a violência política. O Brasil caminha célere para o desastre.
Gustavo Biscaia de Lacerda
Sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.
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19 janeiro 2020

19 de janeiro, aniversário de Augusto Comte, o fundador da Religião da Humanidade


No dia 19 de janeiro comemora-se o aniversário de nascimento de Augusto Comte (1798-1857), o fundador da Sociologia, da Moral Positiva, da História das Ciências e, mais importante que isso, da Religião da Humanidade.

Busto de Augusto Comte em frente à Universidade Sorbonne, em Paris.
Abaixo do nome está escrito "Merci par tout!" ("Obrigado por tudo!").

A Religião da Humanidade, ou simplesmente “Positivismo”, é uma religião humana e humanista, que busca harmonizar as várias facetas da natureza humana, entendendo que essa natureza compõe-se de três elementos – os sentimentos, a inteligência e a ação prática –; esses elementos, por sua vez, atuam tanto nos indivíduos quanto na vida coletiva. Assim, os seres humanos são sempre motivados pelos sentimentos, que podem ser altruístas ou egoístas; para viverem, devem conhecer a realidade que os cerca e, a partir disso, agem nas sociedades.

Augusto Comte percebeu que a moralidade humana consiste em agir sempre com vistas ao altruísmo, ou seja, em benefício dos demais, mesmo quando cada indivíduo e cada sociedade tem que satisfazer as suas próprias necessidades particulares. Esse princípio fundamental da moralidade é também o que permite que os seres humanos sejam felizes e, ao mesmo tempo, é o que permite que as concepções que cada um tem da realidade – a filosofia, a ciência – sejam organizadas de maneira racional e coerente. Por fim, todos sabemos que ao longo de nossas vidas enfrentamos inúmeros desafios, que exigem de cada um respostas intelectuais e práticas; como se diz, viver em sociedade não é fácil: a moralidade positiva, baseada na realização do altruísmo, permite que essas dificuldades sejam diminuídas e adequadamente tratadas, minorando os sofrimentos humanos e permitindo o máximo de justiça.

A Religião da Humanidade é uma “religião”: é um sistema de coordenação das concepções e dos comportamentos humanos. Ela não é uma teologia, pois não usa como princípio regulador máximo nenhuma entidade sobrenatural (os deuses); apesar disso, a Religião da Humanidade tem um símbolo maior, que representa os grandes valores humanos, resumidos no amor: é a própria Humanidade, representada por uma moça de cerca de 30 anos tendo em seu colo uma criança... a Humanidade cuidando e preparando, com amor, as gerações futuras.

Eduardo de Sá - A Humanidade

Estátua da Humanidade, Igreja Positivista do Brasil.

A história da humanidade é a grande escola de que dispomos. Graças ao lento acúmulo de pequenas e grandes modificações ocorridas ao longo dos anos, dos séculos, dos milênios, o ser humano pode erguer-se das pequenas famílias que viviam nas cavernas, com medo de tudo, até a grande civilização mundial que busca, cada vez mais, a paz entre todos os povos, o respeito a todas as culturas e todos os grupos, o trabalho digno, a justiça social. Também é graças à historicidade humana que a concepção de uma religião positiva, humana, foi possível, após o desenvolvimento das religiões fetichistas, politeístas e monoteístas: assumindo a liderança do ser humano, a Religião da Humanidade respeita, glorifica e agradece o serviço prestado por essas religiões anteriores. Por fim, também é graças à  historicidade humana que foi possível conhecermos o mundo que nos cerca e a realidade de que fazemos parte – cósmica, social e individual. A própria Religião da Humanidade é um fruto da historicidade do ser humano.

A Religião da Humanidade valoriza profundamente a subjetividade, isto é, os sentimentos, as crenças íntimas. Mas essa subjetividade também tem que ser regulada: o mundo existe objetivamente, com as suas regularidades que não dependem das nossas crenças nem dos nossos sentimentos. Entender que a mais rica subjetividade não pode negar a objetividade das leis naturais também é fonte de felicidade.

O reconhecimento de que a realidade tem seus princípios próprios, que o próprio ser humano tem um funcionamento específico, leva-nos a mais uma das características da Religião da Humanidade, o seu relativismo. O relativismo positivo não significa que “qualquer coisa vale”; ele significa que o ser humano não pode explicar toda a realidade a partir de um único princípio, de um único conceito, que explicaria tudo de uma única vez e sem fosse necessário referir-se a mais nada. Assim, no que Comte chamava de "síntese subjetiva", a Religião da Humanidade abandona e rejeita as concepções absolutas.

A Religião da Humanidade foi criada em 1848 por Augusto Comte sob a influência de sua esposa subjetiva, a sofrida Clotilde de Vaux (1815-1846). Após uma vida de dificuldades e sacrifícios, Augusto Comte apaixonou-se pela jovem Clotilde, cuja vida também se caracterizava por sacrifícios e dificuldades imensos; o apoio de Clotilde às reflexões de Comte permitiram a ele que entendesse profundamente o quanto o amor é poderoso... o amor de Comte por Clotilde permitiu ao filósofo perceber que o verdadeiro fundamento do ser humano, da moralidade real, é mesmo o amor, que é uma outra forma de denominar o altruísmo.

Busto de Clotilde, de Décio Villares.

Retrato de Clotilde, de Etex.

Todas essas concepções belas e reais foram condensadas na profissão de fé de um dos mais ilustres positivistas e mais ilustres cidadãos brasileiros, o Marechal Rondon:

 
Marechal Rondon

Eu Creio:

Que o homem e o mundo são governados por leis naturais.

Que a Ciência integrou o homem ao Universo, alargando a unidade constituída pela mulher, criando, assim, modesta e sublime: simpatia para com todos os seres de quem, como Poverello, se sente irmão.

Que a Ciência, estabelecendo a inateidade do amor, como a do egoísmo, deu ao homem a posse de si mesmo. E os meios de se transformar e de se aperfeiçoar.

Que a Ciência, a Arte e a Indústria hão de transformar a Terra em Paraíso, para todos os homens, sem distinção de raças, crenças,: nações – banido os espectros da guerra, da miséria, da moléstia.

Que ao lado das forças egoístas – a serem reduzidas a meios de conservar o indivíduo e a espécie – existem no coração do homem: tesouros de amor que a vida em sociedade sublimará cada vez mais.

Nas leis da Sociologia, fundada por Augusto Comte, e por que a missão dos intelectuais é, sobretudo, o preparo das massas humanas: desfavorecidas, para que se elevem, para que se possam incorporar à Sociedade.

Que, sendo, incompatíveis às vezes os interesses da Ordem com os do Progresso, cumpre tudo ser resolvido à luz do Amor.

Que a ordem material deve ser mantida, sobretudo, por causa das mulheres, a melhor parte de todas as pátrias e das crianças, as pátrias do futuro.

Que no estado de ansiedade atual, a solução é deixando o pensamento livre como a respiração, promover a Liga Religiosa,: convergindo todos para o Amor, o Bem Comum, postas de lado as divergências que ficarão em cada um como questões de foro íntimo, sem perturbar a esplêndida unidade – que é a verdadeira felicidade.