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15 novembro 2022

Propostas políticas e sociais do Positivismo em face do trabalhismo

No ano de 2022, em duas ocasiões (4 de abril e 10 de novembro) tive a honra de ser convidado por militantes do Partido Democrático Trabalhista (PDT) para apresentar alguns dos princípios e das propostas sociopolíticas do Positivismo, tendo especialmente em vista a influência que eles exerceram sobre o trabalhismo no Brasil. Na primeira oportunidade fui convidado pelo gaúcho Luciano B. Zini; na segunda ocasião, pelo cearense Samuelson Xavier: a ambos, o meu agradecimento!

Em ambas as ocasiões as conversas subsequentes duraram várias horas, abordando os mais variados temas, inclusive aspectos da história política e social brasileira, como a influência do Positivismo no Rio Grande do Sul e também sobre os militares. Assim, foram ocasiões excelentes para o esclarecimento e a correção de mitos há muito difundidos. Da mesma forma, essas conversas sugeriram-me novos temas para reflexão e pesquisa.

Reproduzo abaixo o roteiro das minhas exposições.

*   *   * 

Roteiro:

o   Apresentação pessoal

o   Definição apofática

o   “Ordem e Progresso”

o   Primado da sociedade, ação individual

o   Propostas políticas

o   Propostas sócio-econômicas

 

-        Apresentação pessoal

o   Sociólogo da UFPR

o   Doutor em Sociologia Política (UFSC)

o   Positivista ortodoxo

o   Dono dos canais Positivismo, Apostolado Positivista e Filosofia Social e Positivismo

-        Definições apofáticas

o   Que é o Positivismo?

§  O Positivismo é:

1)      “Positivismo” significa, para mim, a obra de Augusto Comte

2)      Uma religião secular, uma filosofia histórica, relativista e objetiva-subjetiva, uma prática humanista, pacifista, tolerante, universalista e includente

a.       É um sistema de educação universal

3)      “Real, útil, certo, preciso, relativo, orgânico, simpático”

4)      Uma religião que afirma, regula e estimula o altruísmo inato (que, por sua vez, orienta e limita o egoísmo também inato)

5)      Uma política humanista, altruísta, racional, histórica, sensível à opinião pública e baseada em evidências e nas liberdades

6)      Uma afirmação da realidade humana e dos valores humanos

7)      Uma afirmação da historicidade humana e, portanto, do relativismo

§  O Positivismo não é:

1)      Não é ateísmo

2)      Não é uma “teologia científica” (Religião da Humanidade)

3)      Não é um cientificismo nem um academicismo

a.       Não é reducionista (ele afirma a dignidade de cada ciência e, em particular, do ser humano e das Ciências Humanas)

4)      Não é um “naturalismo” (não reduz as Ciências Humanas às Ciências Naturais)

a.       Não é a favor da oposição “explicação” versus “compreensão”

5)      Não é um “empiricismo”

6)      Não é ideológico

a.       Não é uma ideologia burguesa

7)      Não é militarista

8)      Não é uma afirmação do Estado totalitário nem da sociedade sufocante anti-indivíduo

9)      Não é otimismo ingênuo (“pensamento positivo”)

10)  Não é nem idealista nem materialista

11)  Não é fatalista nem nega a liberdade humana

-        “Ordem e Progresso”

o   França posterior à Revolução Francesa

§  Busca de uma nova organização social e de novos princípios legitimadores, adequados a uma sociedade industrial e com a ciência

§  Oscilação entre a “ordem” (retrógrados, teológicos, absolutistas) e o “progresso” (revolucionários, metafísicos, absolutistas)

§  Necessidade de conciliação e superação entre a ordem e o progresso:

·         Sociologia da ordem: fundada por José de Maistre

·         Sociologia do progresso: fundada por Condorcet

·         Contribuição de Augusto Comte: conjugação entre a ordem e o progresso (além do desenvolvimento da reflexão sobre as ciências, sobre o que é a cientificidade, sobre os métodos e o objeto da Sociologia, sobre a aplicabilidade da Sociologia etc.)

§  Busca de um novo poder espiritual: necessidade e oportunidade de fundação de uma ciência relativa à sociedade:

·         necessidade de entender o que ocorria na Europa após a Revolução Francesa e de solucionar os problemas sociais e políticos

·         disponibilidade de meios intelectuais para isso (o desenvolvimento do método científico e a conseqüente maturidade intelectual para a criação da Sociologia)

-        Primado da sociedade, ação individual:

o   A fundação da Sociologia evidencia que o ser humano é antes e acima de tudo um ser social e histórico

o   Como a Sociologia parte do conjunto para as partes, não existem “indivíduos”, apenas seres humanos em sociedades

§  Antepor a análise dos indivíduos à das sociedades resulta em considerar os seres humanos como animais, não como seres humanos

§  As “células sociais”, isto é, as menores unidades de análise sociológica são as famílias

o   Apesar disso, a sociedade possui agentes: são os indivíduos

§  Os “indivíduos” criticados por A. Comte são as elaborações próprias ao individualismo (que rejeita a sociedade e a vida coletiva, em uma busca da satisfação estritamente pessoal), que surgiram na Idade Média teológica e reafirmaram-se na Idade Moderna com a metafísica

o   “Consagrar para regular”: indivíduo buscando a satisfação pelo altruísmo

§  A consagração dos indivíduos é necessária não somente porque são eles que concretamente agem como também porque é necessário afirmar a responsabilização social das condutas e das decisões individuais

-        Propostas políticas:

o   Governo

§  Conjugação dos princípios de Aristóteles e de Hobbes:

·         Aristóteles: “a sociedade consiste na divisão do trabalho e na convergência dos esforços”

·         Hobbes: todo governo baseia-se na força

§  “Não existe sociedade sem governo”

·         Afirmação das vistas de conjunto da sociedade

·         Preocupação em como se maneja o poder, não com quem o ocupa

·         Dois pólos sociopolíticos: Estado e sociedade civil

§  Poderes:

·         Temporal: manutenção da ordem civil (âmbito de aplicação das ciências inferiores)

·         Espiritual: opiniões e crenças (âmbito de atuação das ciências superiores)

o   Em termos gerais:

§  pacifismo, antimilitarismo, rejeição normal da violência

§  política humanista, altruísta, racional, histórica, sensível à opinião pública e baseada em evidências e nas liberdades

§  afirmação de deveres de todos para com todos

§  meritocracia com justiça social

§  afirmação da sociedade civil

o   Governo:

§  republicanismo

§  separação dos dois poderes (“laicidade do Estado”)

§  desenvolvimento econômico e social

-        Propostas sócio-econômicas:

o   A teologia e a metafísica são incapazes de abarcar a realidade material da sociedade; portanto, são incapazes de solucionar seus problemas

o   A propriedade enquanto tal sempre existe (privada ou coletiva)

o   Manutenção e aumento dos tipos de capital

§  material, intelectual e moral

§  responsabilidade pessoal pela gestão dos recursos

§  “O capital é social em sua origem e deve sê-lo em sua destinação”

o   Formas de transmissão do capital: guerra: conquista; paz: dádiva, troca, herança

o   Emancipação paulatina dos trabalhadores (e das mulheres): escravos na Antigüidade, servos na Idade Média, trabalhadores livres na modernidade

o   Necessidade de concurso entre o patriciado e o proletariado

§  Riqueza: força concentrada; trabalho: força dispersa

§  Caráter instrumental da luta de classes

o   Justiça social:

§  incorporação social do proletariado

§  “funcionalismo público”

§  conjugação entre liberdades políticas e econômicas e atuação do governo (crítica ao liberalismo econômico)

§  caráter social da riqueza

§  responsabilidades individuais e coletivas

·         noção de deveres: relações mútuas devidas entre indivíduos e grupos entre si


06 setembro 2022

O verdadeiro antifascismo exige a autocrítica da esquerda

Eu sou antifascista; quem conhece-me sabe disso. Sou a favor da fraternidade e da liberdade, da harmonia e da paz, do desenvolvimento e do progresso. Enfim, sou um positivista.

O que eu escreverei, entretanto, desagradará muita gente.

O fascista e seus acólitos conspurcam, há muito tempo, os símbolos nacionais, a começar pela Bandeira Nacional e seguindo para o Hino Nacional (embora, evidentemente, por felicidade eles desconheçam outros símbolos).

Há gente autodenominada "progressista", gente de "esquerda" que, há algum tempo, tem denunciado essa conspurcação.

Mas a verdade é que a esquerda - os marxistas e outros grupos - tradicionalmente cuspiu nos símbolos nacionais: seriam "burgueses", "imperialistas", "alienantes". Da mesma forma, figuras heróicas, pacifistas, a favor da cooperação nacional e internacional, republicanas foram desprezadas e vilipendiadas em nome da "consciência crítica", da "consciência de classe" etc.: Tiradentes, José Bonifácio, Benjamin Constant, Cândido Rondon. Mas também dos símbolos internacionais: Danton, Jefferson, Toussaint Louverture. Atualmente, o reacionarismo identitário de esquerda inclui aí Colombo, James Cook... até mesmo Churchill!

No lugar dos símbolos nacionais, essas esquerdas sempre apresentaram a efígie de Che Guevara, de Lênin, de Stálin; a foice e o martelo, a Internacional Socialista, a luta de classes.

Desde criança leio, ouço e vejo manifestações reiteradas nesse sentido de políticos e de intelectuais de esquerda, sempre "progressistas". Com frequência ouço e leio que devemos ser "críticos" e que, por isso, "não precisamos de heróis" - com isso querendo dizer que as grandes personalidades da nossa história, aquelas que se dedicaram intensamente ao nosso país e à Humanidade, não merecem respeito nem consideração... mas isso apenas para que, logo em seguida, sejam apontados "heróis" "críticos", que diametralmente negam os valores do bem comum, da fraternidade, da liberdade: não o bem comum, mas o particularismo de classe.

(Quando criança, nos anos 1980, fazer a bandeira nacional na aula de artes era visto como brega, tolo, sem criatividade... talvez até fosse sem criatividade, mas, no final das contas, qual o problema? Na ausência de criatividade, um símbolo que une todos os brasileiros não é um bom exercício?)

Assim, não é à toa que os fascistas conseguem ao mesmo tempo afirmarem-se como "conservadores", "antiprogressistas" e também "patriotas". Se os "progressistas" são particularistas, destruidores e antinacionais, os fascistas têm todo o espaço do mundo para rejeitarem esse "progresso" (que é ao mesmo tempo falso e hipócrita) e serem conservadores (ou, ainda mais: para serem reacionários), mantendo o caráter destruidor e o particularismo (mas o particularismo nacionalista).

O combate ao fascismo no Brasil exige que essa esquerda faça uma autocrítica conscienciosa, profunda e urgente. Se hoje os símbolos nacionais são tomados pelos fascistas, isso implica, sim, culpa da esquerda. O particularismo nacional é afirmado em negação ao particularismo de classe na exata medida em que o particularismo de classe despreza os valores universais que abrangem também os valores nacionais.

No Brasil, mas também na Europa (a começar pela França), o Positivismo sempre foi alvo prioritário dos "progressistas" de esquerda e pelos reacionários de direita - e pelos mesmos motivos. Os positivistas somos a favor da fraternidade, da liberdade, da dignidade, da responsabilidade social, dos deveres, do "viver às claras" - e do pacifismo. Por isso mesmo, somos contra os particularismos de classe, de país, de "raça" e de sexo; somos contra a violência. A esquerda habitualmente foi contra o Positivismo porque somos contra o violento particularismo de classe; a direita é contra o Positivismo porque somos contra o violento particularismo nacionalista. (
Não foi à toa que, no Brasil, o ocaso do Positivismo, no final dos anos 1920, conduziu aos violentos particularismo de classe, de "raça" e de país nos anos 1930-1940.)

Em suma: n
ão é possível ser antifascista e fingir que setores importantes da esquerda não foram antinacionais, que não desprezaram os símbolos nacionais - mesmo e principalmente quando os símbolos nacionais afirmavam a fraternidade, a cooperação, a harmonia, a dignidade. Se isso não ocorrer, de nada adiantará derrotar eleitoralmente o fascismo no ano do bicentenário do Brasil.

Felipe Zorzi apresenta o seu "ecopositivismo"

O cientista político gaúcho Felipe Zorzi defendeu sua tese de doutorado em 2022, intitulada "Democracia e entropia: uma teoria decolonial dos sistemas sociais e um estudo empírico sobre desigualdade no Brasil".

Nessa tese, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a partir de concepções científicas cosmológicas e sociológicas, o autor critica a alienação e a dependência brasileiras, indicando a necessidade de elaborarmos e aplicarmos modelos autóctones de desenvolvimento. Nesse esforço, cumpre-nos também recuperarmos modelos e estratégias que já foram aplicados antes mas que, por diversos motivos - muitos vezes condenáveis -, foram postos de lado. Nesse sentido, o Positivismo surge como uma proposta e uma experiência que cumpre retomar com seriedade. 

Felipe Zorzi é filiado ao Partido Democrático Trabalhista (PDT), em sua seção gaúcha; a pedido do partido, ele realizou uma aula pública, transmitida oralmente via Twitter, no dia 22 de agosto de 2022, em que expôs a sua concepção de "ecopositivismo".

A aula pública ocorrida via Twitter está disponível aqui: https://twitter.com/i/spaces/1BdxYwZkMazGX.

O currículo lattes de Felipe Zorzi está disponível aqui: http://lattes.cnpq.br/0487585070203377.

05 setembro 2022

Monitor Mercantil: Positivismo pró-desenvolvimento e crítico do liberalismo oligárquico

O jornal carioca Monitor Mercantil publicou, em 23 de julho de 2019, um artigo interessantíssimo em que se recupera e aplica-se o Positivismo à realidade brasileira.

Os autores lembram o quanto o Positivismo, em termos de teoria sociopolítica, afirma com clareza, com todas as letras, a importância central de um Estado republicano com caráter social. Da mesma forma, em termos históricos, os autores lembram as grandes contribuições do Positivismo para o desenvolvimento nacional.

Esse texto é tanto mais interessante quanto os autores não são positivistas. Além disso, o que se evidencia com esse texto é o quanto o Positivismo é necessário nesta época em que a demagogia liberticida assola o Brasil (e o Ocidente) e em que inúmeros intelectuais e grupos sociopolíticos defendem o particularismo, o facciosismo, a nostalgia pelo autoritarismo, a nostalgia pelo liberalismo escravocrata.

Não há dúvida de que vale totalmente a leitura, a reflexão e a aplicação!

O original encontra-se disponível aqui.


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Preparando o Estado para Soberania: crítica ao liberalismo oligárquico

Por Monitor Mercantil -17:36 - 23 de julho de 2019

 

O positivismo, tal como estabelecido por Augusto Comte, preconizava a necessidade de uma reorganização da sociedade em bases científicas, industriais, altruístas e progressistas, ou seja, positivas, partindo do material intelectual e institucional acumulado nas experiências históricas.

O estudo dos fenômenos sociais, considerando a relatividade e as “leis naturais invariáveis” inerentes a eles, devia servir de base para uma ação sobre a realidade, dirigida por um governo forte e centralizado, de modo a impulsionar um conjunto de transformações que favorecessem o aperfeiçoamento coletivo e, portanto, moral, das sociedades e dos seus membros. A etapa definitiva de evolução da humanidade em que isso se daria, a positiva, sucederia a metafísica, que por sua vez havia sucedido a teológica.

As fases teológica e metafísica procuravam determinado fator absoluto de explicação cosmológica. Nelas, o espírito humano buscava a origem e o destino do universo, atribuindo, na primeira, o princípio causal a entes sobrenaturais e, na segunda, a abstrações intelectuais.

Na fase positiva, o espírito humano abdicaria dessa procura e passaria a investigar as leis que governam os fenômenos sociais, isto é, as relações invariáveis de semelhança e sucessão entre eles e que os caracterizam. O relativo substituiria o absoluto e prepararia a humanidade para conhecer adequadamente o seu próprio mundo e reconstruí-lo conforme seus próprios desígnios.

Para Comte, a modernidade até então, ao consagrar princípios individualistas, abstratos e negativos próprios da metafísica liberal (como o contratualismo, o constitucionalismo e o livre-cambismo), não lograra integrar a sociedade, ao contrário, a esfacelara em benefício apenas de oligarquias várias, como as proprietárias, as parlamentares e as intelectuais, essas últimas sobretudo na imprensa.

A ausência de critérios compartilhados de sociabilidade abriu caminho ao arbítrio, manifestado tanto pela “democracia anárquica” quanto pela “aristocracia retrógrada”, ambas incapazes de restabelecer a unidade social necessária ao desenvolvimento comum, ou, em outras palavras, a ordem e o progresso.

A unidade social própria do medievo estaria, para Comte, perdida, mas não de maneira definitiva. A desorganização característica da modernidade ocidental se dava pela transição de um sistema social, o metafísico, para outro, o positivo, no qual adviria a reorganização por ele preconizada.

A unidade a ser alcançada no estágio positivo seria, inclusive, superior ao do medievo, por a sociedade dispor de um grau maior de conhecimento acerca das suas condições e das leis que a regem. A positividade dessa nova fase consistiria, fundamentalmente, no domínio da humanidade sobre si mesma, fazendo prevalecer a ciência sobre a metafísica e o altruísmo sobre o egoísmo.

O proletariado e as mulheres seriam os porta-vozes e os agentes principais dessas mudanças, daí que Comte defendeu, ipsis litteris, as “revoluções” proletária e feminina. Revoluções que, longe de romperem com a ordem, a restabelecessem, fundamentando o progresso vindouro e vinculando-o ao conjunto histórico, que não deveria ser rechaçado, mas elaborado, extraindo dele o impulso para o desenvolvimento social.

A humanidade assumiria, a partir dessa fase, a posição anteriormente atribuída a Deus. A “religião da humanidade”, proposta por Comte, enaltece a imanência da humanidade e sua capacidade de aprimoramento, ao mesmo tempo progressivo e ordeiro.

Não é difícil verificar a incompatibilidade da doutrina positivista, largamente difundida no Brasil entre o final do século XIX e início do XX, com a organização social e institucional existente durante a Primeira República.

Republicanos e abolicionistas inveterados, os positivistas brasileiros não tiveram força política para converter a maior parte de seus ideais em realidade quando da Proclamação da República, ainda que muitos deles fossem presentes em instituições politicamente decisivas como o Exército e tivessem apoiado e mesmo participado da instauração republicana.

O lema presente na bandeira nacional e a separação entre Estado e Igreja consagrada na Constituição de 1891 foram as principais contribuições positivistas em âmbito nacional. No mais, o reformismo político e social positivista, inspirado em Comte, não obteve efetividade prática em âmbito nacional durante a Primeira República, principalmente a partir do governo de Prudente de Morais, que consolidou no comando do país a coalizão agrário-exportadora e mercantil.

O arranjo institucional do período, caracterizado por um federalismo que fortalecia a autonomia dos estados em relação à União e facilitava assim o fenômeno do coronelismo, e o arranjo econômico, organizado sobretudo em torno da produção de café para o exterior e no aprofundamento da dependência para com o capital financeiro e industrial estrangeiro, principalmente inglês e estadunidense, consagravam o pleno domínio das oligarquias primário-exportadoras do centro-sul (particularmente de São Paulo) no comando do país.

Foi um período de vigência de valores e políticas de forte conteúdo liberal, que iam ao encontro das demandas oligárquicas vigentes, exceto quando se tratava de pleitear a proteção do Estado para negócios particulares ligados à cafeicultura, como se verificou no Convênio de Taubaté em 1906.

Nesse contexto, o positivismo, uma das ideologias fundantes da República, assumiu um papel crítico e contestador, análogo ao de Comte em relação à França que vivenciou, propugnando uma organização alternativa do país, consoante os princípios do mestre francês, jamais esquecendo de sua lição acerca da relatividade dos fenômenos sociais, o que estimulou a formulação de propostas adequadas à realidade específica brasileira.

Medidas defendidas pelos positivistas desde o Império, como o fortalecimento do Executivo e a centralização do poder, a função social da propriedade, a emancipação material (para além da formal) dos negros, a mediação do Estado nas relações entre o capital e o trabalho para proteger o segundo e a responsabilização do Estado pela educação pública e pelo desenvolvimento industrial, opostas aos interesses dos grupos dominantes na Primeira República, teriam que esperar a Revolução de 1930 para serem colocadas em prática.

Ainda assim, devido à forte autonomia estadual então existente, foi possível ao Partido Republicano Rio-grandense (PRR), de linha programática positivista, governar o Rio Grande do Sul na contramão do Governo Federal e erigir instituições estaduais mais apropriadas à execução do programa positivista. Como bem assinalou Alfredo Bosi em seu brilhante Dialética da Colonização (Companhia das Letras, RJ, 1992), o positivismo gaúcho antagonizou, em termos de projeto de Estado e de país, com o liberalismo paulista/federal.

A Constituição do estado gaúcho, de 1891, teve o positivismo como sua linha mestra. Poder Executivo forte, educação primária pública e leiga a todos, separação entre Estado e Igreja, abolição de privilégios de nascimento, nobiliárquicos e acadêmicos, estabelecimento de concurso para provisão dos cargos públicos civis e a supressão de todas as distinções entre funcionários públicos e outros tipos de empregados foram aspectos marcantes da Constituição do RS e balizaram o chamado castilhismo, tendência política batizada em homenagem a Júlio de Castilhos, líder do PRR, presidente do RS de 1891 a 1898 e autor dessa Carta, seguida por Borges de Medeiros, presidente do estado de 1898 a 1908 e de 1913 a 1928.

Foram medidas políticas dos governos positivistas gaúchos: o imposto territorial, seguindo a preferência comteana por impostos diretos e desafiando o poder dos grandes fazendeiros, que eram privilegiados no âmbito federal; incentivos fiscais às manufaturas gaúchas infantes, dentro de um projeto industrialista liderado pelo governo, contrastando com a opção primário-exportadora da Primeira República desde Prudente de Morais, quando as oligarquias paulistas conseguiram derrotar o desenvolvimentismo avant la lettre de Rui Barbosa e de Floriano Peixoto; a socialização dos serviços públicos, com a defesa explícita de Borges de Medeiros, em sua Mensagem de 1913, da municipalização de serviços essenciais como água, esgoto, iluminação, energia elétrica, bondes e ferrovias.

A estatização do porto do Rio Grande e da belga Compagnie Auxiliaire de Chemins du Fer au Brésil se contrapunha ao privatismo do Governo Federal, que manteve a política prevalecente no Segundo Império de subordinação da infraestrutura ao capital estrangeiro.

Também no âmbito trabalhista, o positivismo gaúcho opôs-se frontalmente ao liberalismo oligárquico federal. No programa do Partido Republicano Histórico, Júlio de Castilhos defendia uma série de medidas que anteciparam boa parte da legislação trabalhista implementada por Vargas desde a década de 1930, contradizendo assim o lamentável folclore da inspiração “fascista” das leis do trabalho: o regime de 8 horas de trabalho na indústria, férias, aposentadoria, proteção aos menores, mulheres e idosos, direito de greve e um tribunal de arbitragem para resolução de conflitos entre patrões e empregados, tudo isso já constava no ideário castilhista.

Enquanto os governos Federal e paulista reprimiam violentamente as greves operárias de 1917, o governo gaúcho negociou com os grevistas e induziu os patrões no estado a aceitarem as reivindicações dos trabalhadores (Bosi citado, cap. 9).

Também o engenheiro paraense Aarão Reis, positivista e socialista, contribuiu enormemente para a oposição ao status quo oligárquico da Primeira República, ao defender, em compêndio de economia política adotado oficialmente na Escola Politécnica, a maior intervenção e direção do Estado na economia e da sociedade a fim de estimular a industrialização, proteger o trabalho da coerção do capital, fomentar o mercado interno e o associativismo civil, e promover “carinhosamente” a educação popular no sentido do aperfeiçoamento da cidadania e do patriotismo no âmbito de uma organização democrática da sociedade (Antônio Paim, “O Pensamento Político Positivista na República”, In: Adolpho Crippa (org.) As Idéias Políticas no Brasil, vol. II, Editora Convívio, RJ, 1979, p. 59-61).

Pode-se, portando, concluir que cabe ao positivismo brasileiro no Segundo Império e na Primeira República, aplicado na política nos governos estaduais gaúchos durante essa última, a formulação de um projeto alternativo ao que era dominante no período.

Nesse projeto constava a edificação de país soberano, desenvolvido e socialmente igualitário, dirigido a partir de um Estado forte e centralizado que coordenasse a totalidade da Nação para equilibrar e harmonizar os grupos sociais particulares e estabelecer um planejamento de longo prazo, acima dos interesses privados e tendo por fim a construção nacional em bases industriais e solidárias.

A gênese do Estado social e nacional-desenvolvimentista, triunfante entre 1930 e 1980 (apesar de recuos e nuances ao longo do período) em oposição ao liberalismo oligárquico prevalecente em quase todo o período republicano anterior, pode enfim ser localizada na teoria e na prática positivistas nas décadas anteriores à emergência de Vargas como líder político nacional.

O castilhismo, a principal vertente política do positivismo em sua versão gaúcha, foi o berço do trabalhismo de Getúlio Vargas e Leonel Brizola. Assim como o conjunto do positivismo, tem ainda hoje muito a iluminar acerca dos problemas nacionais brasileiros e da formulação e encaminhamento de soluções integradas em um projeto de desenvolvimento nacional.

 

Felipe Quintas

Doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

Gustavo Galvão

Doutor em economia, é autor de As 21 lições das Finanças Funcionais e da Teoria do Dinheiro Moderno (MMT).

Pedro Augusto Pinho

Administrador aposentado. 

15 novembro 2021

Diário de Caratinga - entrevista sobre Positivismo e República

O jornal Diário de Caratinga, do interior de Minas Gerais, fez uma entrevista por escrito comigo sobre o Positivismo e a República, para ser publicado em sua edição de final de semana, de 13 e 14 de novembro de 2021. Realizada pelo jornalista José Horta da Silva, essa longa entrevista foi publicada na íntegra; eu reproduzo-a abaixo.


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O que é Positivismo?

Essa pergunta é simples mas exige uma resposta que pode ser um pouco complexa.

Ele é uma filosofia, uma política e uma religião, ou seja, é um sistema de pensamento que busca explicar o conjunto do mundo e do ser humano e, a partir daí, busca orientar as condutas humanas (individuais e coletivas). O Positivismo baseia-se na realidade e na importância do amor e do altruísmo para orientar a conduta humana; como precisamos conhecer a realidade para satisfazer as nossas necessidades, o conhecimento científico é a base desse conhecimento. Isso tudo é sintetizado na Religião da Humanidade, que é uma religião humanista, secular e laica, que afasta o absoluto e busca a fraternidade universal.

 

Como o Positivismo influenciou a Proclamação da República?

O Positivismo influenciou pelo menos de duas maneiras.

Por um lado, ele criou um forte ambiente progressista, modernizador, secular, laico, que propunha a ultrapassagem dos traços profundamente atrasados da sociedade brasileira do século XIX, como a monarquia e a sua base social, política e econômica, a escravidão.

Por outro lado, o positivista Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1836-1891) era professor de matemática na Escola Militar; suas aulas eram consideradas excelentes, por seu estilo e por sua profundidade filosófica. Além disso, o Positivismo afirma que a ciência pela ciência é imoral, ou seja, que a ciência tem que ter uma preocupação, uma orientação social. Tudo isso foi reconhecido por seus alunos (entre os quais estavam, por exemplo, Rondon e Euclides da Cunha) como importante e correto, o que os levou a empolgarem-se politicamente; naquela época, a militância social e política era bastante clara: contra a escravidão e a favor da república.

Aqui é necessário narrar vários fatores daquela época. Após a abolição da escravidão em 1888, as pressões em favor da república cresceram muito, devido a vários motivos. Em parte porque muitos reconheciam que a monarquia sacraliza uma sociedade atrasada, baseada em privilégios de casta, isto é, vinculados ao nascimento, e que deveria ser substituída por uma sociedade de isonomia (igualdade perante a lei), socialmente inclusiva e que valorize o mérito, não o berço. Vinculado a isso está o fato de que a monarquia nunca foi solidamente implantada no Brasil; havia um certo respeito pela figura de d. Pedro II, mas a monarquia em si era vista em termos meramente instrumentais: não havia uma adesão à monarquia como um princípio moral a ser seguido. O fato de a monarquia ter-se baseado durante toda a sua duração na escravidão indicava o quanto ela era retrógrada, assim como a ausência de indústrias no Brasil e a falta de trabalho livre (e da dignidade do trabalho e dos trabalhadores). A princesa Isabel era clericalista e, ainda por cima, era casada com um francês: mesmo quem não era republicano tinha medo do possível terceiro reinado (o possível futuro reinado da princesa Isabel), que viam como retrógrado ou até reacionário. O excessivo centralismo monárquico, em prejuízo das autonomias provinciais (isto é, dos estados), era bastante criticado, como nos casos de São Paulo e, ainda mais, do Rio Grande do Sul. Da mesma forma, os antigos donos de escravos, principalmente da atual região Sudeste (São Paulo em particular) ficaram muito irritados com o fim da escravidão, ou seja, com seus prejuízos econômicos.

Há outros fatores, mas importa também indicar a situação dos militares. Havia também um forte ressentimento dos militares contra a monarquia: soldos baixos, desprestígio político e social, falta de reconhecimento pelos seus esforços na violentíssima Guerra da Tríplice Aliança (“Guerra do Paraguai”). A Guerra da Tríplice Aliança foi uma aventura militar imperialista do Brasil contra o Paraguai e a favor do intervencionismo brasileiro nos países platinos, especialmente no Uruguai. Durante o conflito os soldados brasileiros travaram contato com as repúblicas platinas livres, isto é, repúblicas sem escravidão; isso os impressionou muito, bem como a resistência heróica dos cidadãos livres do Paraguai e as promessas (cumpridas pela metade) de alforria dos soldados brasileiros escravos. Por fim, a guerra acabou com a caçada a Solano López, ordenada pelo próprio d. Pedro II ao Conde d'Eu, consorte da princesa Isabel.

Na década de 1880 os militares quiseram expressar-se politicamente e foram seguidamente reprimidos, na chamada “Questão militar”; em um regime que se baseava no militarismo mas que se proclamava civilista, isso foi fatal.

Enfim: em 1887 foi fundado o Clube Militar, com Deodoro da Fonseca como presidente e Benjamin Constant como vice-presidente; eles eram os dois militares fora do governo que gozavam de maior prestígio, representantes das duas principais alas dos militares, os vinculados à vida na caserna (Deodoro) e os que buscavam fundamentos científicos para sua atuação (Benjamin Constant). Com isso os militares passaram a manifestar-se politicamente de maneira organizada, atuando nas duas principais questões da época, a abolição e a república. Em 1887 eles recusaram-se a caçar os escravos fugitivos; depois disso, a pressão política pela república aumentou cada vez mais e Benjamin Constant tornou-se o foco dessas pressões.

Embora pessoalmente Benjamin Constant não quisesse participar das conspirações, naquela conjuntura ele era realmente o foco das atenções e um líder natural; buscando evitar o caudilhismo, o militarismo na política e a violência, ele aceitou. Com isso, ele convenceu Deodoro a participar da ação e, juntamente com outros líderes militares e civis, planejavam proclamar a república na segunda quinzena de novembro. Entretanto, os acontecimentos precipitaram-se e na madrugada de 15 de novembro houve, afinal, a proclamação.

Essas várias críticas são importantes também porque atualmente há uma expressiva mas estranha revalorização da monarquia e, em particular, de d. Pedro II. Essa revalorização é bastante romântica e deixa de lado todos os problemas criados e mantidos pela monarquia (e pelo próprio d. Pedro II).

 

Ainda sobre a questão da influência do Positivismo na Proclamação da República, muito se fala do lema “O amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim”. Porque 'amor' ficou fora da bandeira nacional?

Essa é uma boa questão.

A atual bandeira nacional foi tornada oficial em 19 de novembro de 1889, ou seja, apenas quatro dias após a proclamação. O esboço é da autoria de Raimundo Teixeira Mendes (fundador e vice-Diretor da Igreja Positivista do Brasil) e a sua pintura ficou a cargo do também positivista Décio Villares, importante pintor e escultor da I República.

A frase central do Positivismo é um pouco diferente da que você indicou; é assim: “O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim”. Essa é a fórmula religiosa mais importante do Positivismo; já o “Ordem e Progresso” corresponde a uma fórmula política, que indica os anseios de todos os cidadãos por ordem e progresso, isto é, por uma ordem que propicie o progresso e um progresso que respeite a ordem (é claro que, nesse sentido, a “ordem” não pode ser estática). Tanto a fórmula “O amor por princípio...” quanto o “Ordem e Progresso” foram propostas desde o início por Augusto Comte, fundador do Positivismo, em suas obras; o que Teixeira Mendes fez foi seguir as indicações de Comte para a bandeira do Brasil, em que há a permanência da sociedade brasileira (com o fundo verde e o losango amarelo, que já estavam na bandeira do império) e também a evolução nacional (com a esfera azul e a faixa branca com o “Ordem e Progresso” em letras verdes).

Em outras palavras, na bandeira o “amor” não ficou de fora, pois o “Ordem e Progresso” é um programa político e não religioso.

Dito isso, eu tenho que admitir que vejo com grande simpatia as propostas de incluir o “amor” na bandeira nacional. O único erro de tais propostas é considerar que Teixeira Mendes teria “errado”, teria “alterado” as propostas originais de Comte ao deixar lado – querendo com isso dar-se a impressão de que Teixeira Mendes teria desprezado – o “amor”.

 

Hoje é muito comentada a questão o Estado Laico, mas o Positivismo já tratava dessa separação do Estado com a Religião. Poderia nos explicar?

Um dos princípios políticos mais elementares do Positivismo é a separação entre o poder Temporal e o poder Espiritual, isto é, entre o governo e todos aqueles que emitem opiniões. Isso significa que o Estado não pode ter religião oficial, ou seja, não é aceitável que o Estado imponha alguma doutrina sobre o conjunto da sociedade. Se pensarmos na situação do império brasileiro, o catolicismo era a religião oficial do Estado: havia uma limitada tolerância, em que os protestantismos eram aceitos (em grande parte devido à imigração de alemãoes e suíços para o Rio de Janeiro e para a atual região Sul) e também os positivistas; mas as religiões de origem africana, o espiritismo e muitas outras eram simplesmente proibidas e tratadas com base em prisões e espancamentos. (Os templos não católicos eram permitidos, desde que suas fachadas não exibissem o aspecto de templo.) Além disso, só eram aceitos como cidadãos brasileiros quem professasse o catolicismo. Algo muito parecido ocorre ainda hoje na Inglaterra: como a religião oficial de Estado lá é o anglicanismo (e a rainha é a chefe da igreja), somente anglicanos podem ser primeiros-ministros.

A separação entre os dois poderes também implica, inversamente, que nenhuma doutrina pode valer-se do Estado para sua promoção, para seu financiamento. Isso significa que é inaceitável que as igrejas (como instituições e como prédios físicos) usem o Estado para financiarem-se; ou seja, os impostos não podem ser empregados na promoção das doutrinas. Isso vale tanto para as teologias quanto para as doutrinas metafísicas quanto para as doutrinas científicas.

A separação entre igreja e Estado foi uma das primeiras medidas adotadas pela República, dois meses após a proclamação, por meio do Decreto n. 119-A, de 7 de janeiro de 1890. A proposta inicial era de Demétrio Ribeiro (positivista gaúcho) e previa a separação entre igreja e Estado, o fim do catolicismo como religião oficial, as liberdades de consciência, expressão e organização, a instituição dos registros civis de nascimento, casamento e morte e a manutenção dos salários dos sacerdotes católicos que até então eram pagos pelo Estado. O texto que finalmente foi aprovado é da lavra de Rui Barbosa e, além dos dispositivos iniciais, apresenta um forte caráter anticlericalista (isto é, contrário às igrejas, em particular a católica) – anticlericalismo que era ausente do projeto positivista.

Vale notar que a separação entre igreja e Estado, com as liberdades civis, era pedida fazia muitos anos por muitos grupos políticos e que, após 1890, não houve nenhuma reação popular contra ela. A igreja católica reclamou da perda dos seus privilégios, mas, anos depois, reconheceu que a laicidade do Estado deu-lhe a liberdade para reorganizar-se; a partir de 1916, com a proposta de “neocristandade” de Sebastião Leme uma nova ofensiva sobre o Estado teve início e foi coroada de êxito em 1931, quando esse cardeal intimou Getúlio Vargas, na inauguração do Cristo Redentor, a apoiar a igreja para que Vargas tivesse apoio político (a Revolução de 1930 ocorrera um pouco antes e Getúlio Vargas precisava muito de apoio).

 

Algumas correntes filosóficas costumam marcar um determinado período. E hoje, ainda podemos notar traços do Positivismo no mundo?

Sim e não. É bem verdade que o período de maior importância do Positivismo no Brasil e no mundo foi entre o final do século XIX e o início do século XX – digamos, entre 1870 e 1914. De lá para cá muitas outras correntes políticas, sociais e filosóficas surgiram, a maior parte delas negando o Positivismo, seja por meio do irracionalismo, seja por meio do culto à violência, seja por meio da busca do absoluto, seja por meio do cientificismo. Além disso, o período que vai da I Guerra ao fim da II Guerra foi muito difícil para o mundo e para a Europa em particular; esse período exterminou as elites sociais européias e no fim marcou a ruína da Europa e do mundo legado pelo século XIX como parâmetros para o mundo. O que surgiu com clareza após a II Guerra foi um mundo realmente diferente, com a hegemonia dos EUA – e da sua superficialidade filosófica – e o conflito da Guerra Fria, seguidos pela descolonização da Ásia e da África e a crítica correta e cada vez maior ao colonialismo ocidental. Embora o Positivismo não seja eurocêntrico, é certo que o declínio da Europa teve um impacto poderoso sobre seus destinos. Em termos intelectuais, o século XX apresentou uma série de correntes que negam o Positivismo: as filosofias do entre-guerras, como os irracionalismos dadaísta e existencialista, o culto à violência próprio aos fascismos, os totalitarismos nazi-soviéticos; depois da II Guerra, ainda o totalitarismo soviético, o liberalismo materialista dos EUA, as críticas “descoloniais”, o pós-modernismo inaugurado em 1968, o neoliberalismo vitorioso a partir da década de 1980 e, mais recentemente, as políticas identitárias antiuniversalistas desde os anos 1990...

Mas, por outro lado, outras tendências políticas, sociais e filosóficas retomam valores claramente positivistas: políticas sociais combinadas com as liberdades, como nos casos do Welfare State e/ou da proclamação presente em nossa Constituição Federal de 1988 que a propriedade privada tem que ter objetivos sociais (concepções que foram resgatadas no Hemisfério Norte depois da crise de 2008 e, no Brasil e no mundo em geral, com a atual pandemia); o pacifismo cada vez mais generalizado; a preocupação cada vez maior com as gerações futuras, na forma do ambientalismo; o respeito à autonomia dos povos indígenas; a busca de vidas humanas plenas de sentido mas seculares, com a afirmação generalizada da importância dos sentimentos na vida humana... mesmo o desenvolvimento de práticas religiosas seculares nos EUA e na Europa vai na direção do Positivismo.

É certo que as tendências positivas indicadas acima têm muitas lacunas e muitas vezes são pouco sistemáticas; mas, no conjunto, elas realizam o que o Positivismo afirma como certo e como o futuro do ser humano. Em outras palavras: as tendências acima indicam que o Positivismo está certo, embora a doutrina positivista em si muitas vezes não seja seguida.

Sobre o legado do Positivismo hoje: há uma importante e crescente atividade positivista no Rio Grande do Sul, na igreja positivista de lá (e que fica em Porto Alegre).