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18 maio 2023

Teoria positiva da confiança

No dia 24 de César de 169 (16.5.2023) realizamos nossa prédica positiva. Após darmos continuidade à leitura comentada da sexta conferência do Catecismo positivista (dedicada ao conjunto do dogma positivo), proferimos um sermão sobre a teoria positiva da confiança. As anotações que serviram de base para essa exposição, acrescidas de comentários sugeridos pelo público, estão reproduzidas abaixo.

A prédica pode ser vista nos canais Positivismo (aqui: https://l1nq.com/gl2k6) e Apostolado Positivista do Brasil (aqui: https://l1nk.dev/vPER3). O sermão pode ser visto a partir de 41' 45".

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Sobre a confiança

 -        Podemos dizer que a confiança é a base todas as relações sociais

o   Assim, a confiança é um dos conceitos sociais, políticos e morais mais importantes de qualquer sociedade e de qualquer pessoa

o   A confiança seria importante para o Positivismo de qualquer maneira; mas, além disso, o Positivismo fundamenta de diferentes maneiras e tira inúmeras conseqüências da confiança

-        A confiança em si mesma tem aspectos subjetivos e outros objetivos

-        À primeira vista, a confiança seria apenas subjetiva e individual

o   Podemos defini-la basicamente como a crença de que alguém e/ou alguma instituição merece respeito e apoio

§  Em certo sentido, a confiança aproxima-se da esperança: mas, enquanto a esperança tem um aspecto mais abstrato e de longo prazo, a confiança é mais concreta e de curto prazo

o   Mais do que apoio e respeito: trata-se da crença de que, em um determinado âmbito da vida, podemos confiar no julgamento e nas ações tomadas por outras pessoas e/ou instituições

§  Assim, esse aspecto puramente subjetivo assume um âmbito coletivo e tem conseqüências diretas também coletivas

o   Um outro aspecto importante, também subjetivo e objetivo, individual e coletivo: a confiança exige sempre a liberdade e, portanto, a autonomia dos indivíduos

§  Inversamente, isso equivale a dizer que em face do medo, da coerção, da ameaça de violência, não é possível a confiança

 

[Comentários de Hernani Gomes da Costa, feitos em 14.5.2023.]

Boa tarde, Gustavo! Tudo bem? Acabei de ler a sinopse de seu próximo sermão. Pareceu-me capaz de fornecer as bases necessárias para uma apresentação completa do assunto em seu próprio âmbito.

Assim, tenho pois a acrescentar aqui apenas uma sugestão, que embora me pareça acessória (e dispensável, portanto, à compreensão do assunto) proveria o sermão de uma base mais geral e sistemática.

Ela consiste em ligar o tema específico da confiança fazendo-o derivar do conjunto inteiro do dogma, isto é, vinculando-o à concepção fundamental deste.

Se a base da nossa confiança reside na fé demonstrável segundo a qual a Humanidade habita um mundo onde os fenômenos quaisquer seguem leis apreciáveis, é esta precisamente a confiança que nos haverá de conferir toda a segurança emocional necessária à nossa harmonia mental nas relações humanas. O “mundo assombrado pelos demônios”, de que fala Carl Sagan, é o mundo onde se imagina que “tudo pode acontecer”, e que longe de nos favorecer a confiança seja lá no que for, apenas pode nos fazer mergulhar a mente nas mais delirantes e antipáticas possibilidades todas elas tornadas igualmente plausíveis.

Einstein em contrapartida (que costumava “jogar pra a platéia” servindo-se de metáforas teológicas para exprimir seu pensamento, de maneira atraente) certa vez afirmou que “o Senhor é sutil mas não malicioso”, querendo, no fundo, dizer com isso que a Natureza não se furta nunca a dar-se a conhecer à Humanidade, podendo cada um de nós, confiar nela tal como confiaria em alguém radicalmente honesto. Essa fé na regularidade dos fenômenos quaisquer corresponde à mais longínqua referência a que podemos levar o conceito de confiança.

Aquele mesmo pensamento que Einstein exprimiu em termos teológicos, Carl Rogers o expressou vantajosamente em termos fetíchicos, quando afirmou que “os fatos são amigos”. Ora se um amigo é fundamentalmente digno de confiança, nada nos impede de dizer, inversamente, que o que é digno de confiança é amigo.

Assim, a transparência que fundamenta as relações fraternas entre os homens não é um sentimento que precise ser procurado e desenvolvido apenas no interior da ordem moral. Ao contrário ele nos é desde sempre e o tempo todo exemplificado e robustecido por uma concepção diretamente sugerida já pela própria ordem física e mesmo pela ordem lógica. Com efeito, o mundo espontaneamente se oferece à Humanidade tal como sistematicamente as pessoas se propõem a fazê-lo guiadas pelo altruísmo. Ao apenas ser tal como é, e portanto ao tão só manifestar-se a nós apenas (e totalmente) pelo que é, o mundo vem assim a nos prover do mais recuado exemplo físico e lógico de tudo aquilo que nós devemos ser e desenvolver moralmente.

Um outro ponto que talvez merecesse comentar é o contraste radical entre os conceitos teológico e positivo de confiança: o mesmo teologismo que nos convida (ou antes nos intima) a confiar cegamente num ser que - a menos de ser concebido a priori como bom - não poderia deixar de ser tomado como o responsável direto por todas as nossas misérias (sempre então imaginadas como devendo obedecer a algum propósito maior que nos escapa) esse mesmo teologismo, dizia, é também aquele que não hesita em pôr sob suspeita e em difamar a Humanidade inteira, declarando maldito o homem que confia no próprio homem; e isso, note-se, não importando quais possam ter sido as maiores e as mais numerosas provas reconhecíveis e decisivas de sua sempre e inconfundível benevolência progressiva para com seus filhos.

 

-        A confiança exige comportamentos práticos reiterados:

o   É uma questão (1) de honestidade; (2) de coerência dos comportamentos entre si ao longo do tempo; (3) de coerência das idéias e dos valores entre si ao longo do tempo; (4) de coerência entre idéias/valores e atos ao longo do tempo

o   Daí, portanto, o “viver às claras”: sem a publicidade dos atos, é impossível averiguar a coerência e a constância dos comportamentos

-        A Religião da Humanidade estabelece que o dever de simpatia implica uma postura geral de boa vontade de todos para com todos: essa boa vontade implica, por sua vez, uma boa-fé generalizada, o que equivale a uma confiança generalizada

o   Essa é uma das conseqüências da lei-mãe da Filosofia Primeira, “formular a hipótese mais simples, mais estética e mais simpática que comporte os dados disponíveis”

o   Entretanto, como indicamos antes, a confiança tem que ser comprovada e merecida na prática

§  Os atributos que nos permitem desenvolver a confiança são pelo menos estes: liberdade (e/ou autonomia), honestidade, coerência, constância (ou consistência), publicidade

o   Aquele que deixa de merecer a confiança de outrem tem que tratar de reconstituí-la, agindo de maneira adequada

§  Nesse caso, evidentemente, o esforço de recuperar a confiança é daquele que a perdeu, não daquele(s) que foi(ram) frustrado(s)

-        Dois aspectos do “viver às claras”, ambos evidentemente relacionados entre si: um mais moral, outro mais político

o   O sentido moral é o sentido básico e corresponde à moralidade dos atos quaisquer, em que se deve sempre poder justificar publicamente nossas condutas e nossas decisões

o   O sentido político é o da publicidade dos atos quaisquer, sejam públicos, sejam privados

-        A confiança abrange também aspectos sociais e mais objetivos:

o   Há a confiança diretamente nas instituições

§  Exemplos: na ciência; no Estado; nas igrejas; nas escolas

o   Diferentes sociedades, filosofias e modos de entender a realidade estimulam mais ou menos a confiança nas pessoas e/ou nas instituições

§  Exemplo positivo, que comprova diretamente a importância e a validade da confiança: na China pré-comunista, havia uma confiança generalizada e espontânea no governo

§  Exemplos negativos, que comprovam indiretamente a importância da confiança: (1) a teoria política ocidental, herdando a concepção monoteísta e teológica de que qualquer crítica ao governo é uma sublevação (quase) herética, tende a consagrar a revolta sistemática como sinal de afirmação da liberdade; (2) da mesma forma, herdando no fundo uma concepção absolutisto-monoteísta, a teoria política ocidental tende a considerar que a liberdade é ausência de qualquer parâmetro, ou seja, que a liberdade é anárquica e/ou caprichosa; (3) a metafísica consagra a concepção de que todos os poderes e, no fundo, todas as instituições são imerecedoras de confiança

§  Devemos insistir, a partir das considerações acima, em que a metafísica, com seu caráter corrosivo, é completamente contrária à confiança

§  Como, no Ocidente, vivemos em uma época metafísica, a valorização efetiva da confiança torna-se uma tarefa complicada, difícil e até heróica

-        O Positivismo distingue vários tipos de relações sociais; daí, podemos determinar várias “direções” da confiança:

o   Sentidos vertical e horizontal da confiança:

§  Sentido horizontal: entre “iguais” (amigos, correligionários, namorados, cônjuges etc.)

§  Sentido vertical de baixo para cima: dos seguidores para os líderes

§  Sentido vertical de cima para baixo: dos líderes para os seguidores

o   Sentidos restrito e ampliado da confiança:

§  Assim como todo ser humano é um servidor da Humanidade (nesse sentido amplo e um tanto figurado, um “servidor público”) e tem uma atuação restrita (sua profissão, seu ofício) e outra ampliada (a preocupação com as atividades coletivas e a respectiva fiscalização), podemos dizer que a confiança também tem um âmbito restrito e outro ampliado

§  Sentido restrito: confiança nas atividades específicas e limitadas de cada qual (exemplos: nos médicos que nos atendem, nos professores que nos ensinam)

§  Sentido ampliado: confiança que depositamos em alguém e/ou alguma instituição de caráter geral (exemplo: no sacerdócio positivo)

·         É importante lembrar que somos todos servidores da Humanidade, quer trabalhemos no setor “privado”, quer trabalhemos no setor “público”

-        Há um aspecto diretamente político da confiança (“político” no sentido de “pólis”, isto é, de vida coletiva):

o   Toda função social sempre se baseia na confiança

§  Isso quer dizer que não é possível a ninguém desempenhar suas funções (sejam elas estritamente privadas, sejam elas públicas) sem que o conjunto da sociedade e os demais concidadãos confiem uns nos outros

§  Sem essa confiança, o exercício das funções e a eficácia social das atividades fica seriamente prejudicada

o   A plena responsabilidade dos atos e do cumprimento das funções sociais baseia-se sempre na plena confiança

§  Ao dever geral de confiança (ou seja, de confiarmos uns nos outros) corresponde, em contrapartida, o dever específico de que os servidores da Humanidade sejam sempre responsáveis perante o conjunto da sociedade e os demais concidadãos

·         Convém lembrar que a “responsabilidade” significa aqui tanto a efetiva capacidade de ação quanto a responsabilização dos servidores da Humanidade

·         Também importa lembrar que, quanto maiores as responsabilidades, maiores os poderes necessários

21 dezembro 2021

Moralidade podre de "Homem-Aranha: sem volta para casa"

(ATENÇÃO: FAÇO REFERÊNCIAS À TRAMA. OU SEJA: DIVULGO SPOILERS.)

Assisti ao filme Homem-Aranha: sem volta para casa. Estava ansioso por isso - tanto pelo filme em si, que prometia por exemplo um retorno parcial do Tobey Maguire (o primeiro Homem-Aranha no cinema), quanto porque não ia ao cinema desde o início da pandemia.

Enfim, o filme é tudo o que prometeram e muito mais, tendo encontros inesperados, muitos momentos divertidos e também muito drama e choro. (E muitas cenas extremamente violentas.)

Mas já na metade do filme fiquei muito irritado. A moralidade apresentada é a típica moral de super-heróis: destroem tudo o que há pela frente e as únicas considerações pelos demais referem-se às pessoas ao redor (amigos e família); além disso, todas as decisões de âmbito público são tomadas na mais estrita esfera privada (ou melhor, no mais completo segredo). Se morre alguém próximo aos "heróis", a reação é imediata e violenta; se qualquer outra pessoa morre, ninguém dá a menor atenção. E, claro, quem exige que os "super-heróis" sejam responsabilizados por suas condutas é tratado como adversário, ou melhor, como inimigo ou até "vilão".

Mas o filme Homem-Aranha: sem volta para casa dá um passo além mesmo nessa odiosa moralidade de "super-heróis": enquanto nos filmes anteriores havia "vilões" que realmente agiam de maneira negativa e os super-heróis limitavam-se a reagir, neste filme todas as ações negativas decorrem das decisões conscientes do próprio Homem-Aranha, "aconselhado" ou não por sua tia e/ou por seus amigos. Essas decisões incluem (1) duas tentativas de lavagem cerebral em todo o planeta; (2) a libertação de cinco perigosíssimos criminosos; (3) a destruição de monumentos públicos, prédios residenciais, pontes e estradas e muitos e muitos carros; (4) o combate a quem deseja evitar todos esses problemas.

Para não ser injusto, há dois momentos em que o filme muda um pouco essa moralidade de super-herói. O primeiro momento é quando Peter Parker decide tentar mudar os vilões, revertendo os acidentes que os transformaram em vilões: essa decisão em si é bastante generosa, mas, ainda assim, no contexto do filme, ela é irrefletida e inconseqüente; em outras palavras, ela é absoluta e infantil. O segundo momento é quando a tia May repete para Peter Parker a bela fórmula "grandes poderes trazem grandes responsabilidades". No conjunto do filme essa fórmula não tem nenhuma conseqüência, mas a fórmula em si é correta e relativa - e, aliás, é de origem positivista (https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/.../gran...). No fim das contas, esses dois momentos acabam reafirmando os problemas da moralidade de super-heróis, seja porque (no primeiro momento) essa moralidade é reafirmada, seja porque (no segundo momento) de fato a moralidade verdadeira, que não é a dos super-heróis, não é aplicada.

Em suma, a moralidade apresentada e desenvolvida no filme é absoluta, infantil - e não consigo pensar em outra palavra que não seja "podre". Não dá para gostar de um filme assim.

(A qualidade técnica do filme - realmente excepcional - não muda nem evita os graves problemas acima. Na verdade, essa qualidade técnica apenas realça os problemas, na medida em que está a serviço dessa moralidade podre.)

01 julho 2021

Sobre o livro "Passado imperfeito", de Tony Judt

O livro Passado imperfeito, do historiador Tony Judt (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2008), é muito interessante e suscita muitas reflexões; essas reflexões concernem tanto ao tema de que o autor trata quanto dos defeitos que o livro apresenta. Como não poderia deixar de ser, a forma como o autor cita Augusto Comte e o Positivismo é exemplar dos defeitos desse livro. Assim, por todos os motivos - positivos e negativos -, parece-me que vale a pena divulgar estas pequenas anotações sobre ele.

O livro pode ser comprado, entre outras lojas, aqui.

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Sobre o livro Passado imperfeito, de Tony Judt



O livro expõe e critica, com base em um certo liberalismo, o comportamento dos intelectuais franceses nos dez anos que se seguiram à II Guerra Mundial. Na última seção do livro essas diversas escolhas são explicadas e justificadas: por que os franceses; por que os dez anos após a II Guerra; até mesmo por que o liberalismo. De modo geral, essas escolhas temáticas fazem pleno sentido: os intelectuais franceses costumavam ser a consciência moral e intelectual da Europa e, daí, do mundo; além disso, o período posterior à II Guerra foi o de acerto de contas com a devastação feita pelo nazismo (antes e durante o conflito). Mas, de modo mais importante, após a II Guerra ocorreu o início da Guerra Fria, o engajamento político estridente dos intelectuais, após uma atividade em geral apolítica e antipolítica até 1940 (ou, pior, até 1944, isto é, até a libertação da França pelos aliados), a adesão da maioria desses intelectuais ao comunismo (quer fossem, quer não fossem eles mesmos comunistas, incluindo aí muitos católicos e todos os existencialistas) e o conseqüente silêncio sistemático desses intelectuais às atrocidades stalinistas e/ou as justificativas mirabolantes que eles davam aos crimes stalinistas.

O argumento do autor em linhas gerais é simples e convincente: antes e durante a II Guerra, muitos intelectuais eram apolíticos ou antipolíticos; o conflito e a Libertação, com o acerto de contas político e moral dos colaboracionistas, acarretou uma crise de consciência dos intelectuais, levando-os ao engajamento; quanto maior a crise (e, antes, quanto mais irracionais e sem sentido os sistemas filosóficos esposados pelos intelectuais, como nos casos paradigmáticos dos existencialistas, Sartre e sua consorte à frente), mais estridente era o engajamento. Na conjuntura da época, esse engajamento era necessariamente esquerdista, na medida em que ele decorria, por um lado, da luta contra o fascismo e, por outro lado, da então recente aliança da União Soviética como “país democrático”. Entretanto, a má consciência dos intelectuais franceses, seja por sua atuação antes da guerra, seja por sua atuação durante a guerra, levou-os a serem cada vez mais radicais em seus engajamentos; a isso se associava também o antiamericanismo e uma valorização extremada da “francesice”: o resultado disso tudo foi uma valorização intensa e intensamente acrítica da União Soviética e uma desvalorização do “liberalismo”; assim, na década que se seguiu à II Guerra, a grande maioria dos intelectuais franceses silenciou-se a respeito dos crimes cometidos por Stálin e/ou pelo comunismo, quando não os justificaram das maneiras mais estapafúrdias possíveis. (Quais os crimes do comunismo? Invasão de países; antissemitismo; aprisionamentos, julgamentos e execuções arbitrárias e em massa; incoerências sistemáticas; censura sistemática.) Essa submissão dos intelectuais ao comunismo tinha elementos messiânicos e milenaristas, bem como de auto-rejeição: no que se refere a este último aspecto, os intelectuais afirmavam com todas as letras, em seus artigos e livros, que, como burgueses, eram desprezíveis e que precisavam do povo, ou do proletariado, para justificarem-se socialmente; por sua vez, o comunismo – e o Partido Comunista em particular – era o canal por definição desse acesso ao proletariado; entretanto, o próprio Partido Comunista (francês, no caso) era explicitamente contra esses mesmos intelectuais.

Esse quadro só mudou após a morte de Stálin, em 1953, e, ainda mais, após o “vazamento” do relatório de 1956 de Kruschev, no XX Congresso do PCUS, em que o novo líder soviético denunciava o culto à personalidade e os crimes de Stálin. O autor observa que, embora a partir disso os intelectuais franceses tenham-se “libertado” do comunismo (ou, pelo menos, tenham passado a “libertar-se” dele), tal libertação foi apenas dos próprios intelectuais, que não deixaram de adotar o mesmo comportamento em relação a outros temas – fosse o anticolonialismo (em face da independência da Argélia), fosse o terceiromundismo (em que a revolução comunista camponesa fora da Europa ganhava o espaço da admiração pelo comunismo europeu) – e, em particular, os intelectuais não passaram, após 1956, a mudar de comportamento em relação ao comunismo na Europa Oriental e na União Soviética: eles simplesmente abandonaram o tema do comunismo europeu (sendo, todavia, obrigados a enfrentá-lo novamente a partir de 1974 – embora o autor não esclareça o que teria ocorrido em 1974 na França).

A exposição que o autor faz das idéias e do comportamento dos intelectuais franceses entre 1944 e 1956 é o ponto forte do livro; essa exposição é organizada tematicamente. Não resta pedra sobre pedra do que ele expõe; os intelectuais franceses foram mesmo infantis e irresponsáveis.

Entretanto, há uma série de problemas metodológicos e teóricos no livro. Em primeiro lugar, o autor faz suas reflexões muito com base em literatura de segunda mão; embora ele cite com freqüência textos dos intelectuais franceses, tais citações com grande regularidade – talvez em pelo menos metade das citações – são obtidas em livros de outros pesquisadores, que já selecionaram as passagens que julgam importantes e interessantes; em outras palavras, o autor não fez de fato uma pesquisa sistemática sobre os originais. Em segundo lugar, embora à primeira vista possa parecer secundário, faltam exposições historiográficas elementares; por exemplo, não faria nenhum mal indicar aos leitores quando ocorreu a invasão nazista da França, a instalação do regime de Vichy, a tomada total do território francês pelos nazistas – ou, então, quando ocorreu o governo socialista de Léon Blum nos anos 1930 ou o que ocorreu na França em 1974.

Mas é nas explicações sociológicas e até psicológicas que o autor oferece para os comportamentos dos intelectuais franceses que estão os seus aspectos mais fracos. O autor argumenta que os intelectuais que atuaram após 1944 desprezavam o liberalismo; o conjunto de sua exposição parece confirmar com clareza esse diagnóstico; mas o autor recua até a Revolução Francesa, ou melhor, até o século XVII (até antes do Iluminismo!) para explicar esse desprezo. Ao tratar das tentativas dos liberais franceses de terem e manterem o poder, ele observa que eles fracassaram mas que a culpa pela falta de êxito do liberalismo na França, em última análise, seria da III República (1870-1940) e dos republicanos, que estavam mais preocupados em serem republicanos que em serem liberais. Ora, os liberais que ele defende eram monarquistas e parlamentaristas (Guizot e Tocqueville, por exemplo), ou seja, defensores da sociedade de castas, dos privilégios de classe, da censura, da repressão e até do colonialismo: nada disso é exposto pelo autor e, assim, muito menos entendido como defeito. Já os republicanos, preocupados em acabar com a instabilidade política e social que caracterizava a França desde 1789, são acusados de não serem liberais, apesar de garantirem as liberdades públicas e mesmo tendo que lidar com o reacionarismo da Igreja Católica e do Exército. Em outras palavras, se a França republicana estava preocupada em garantir a estabilidade e em ser moderna e com liberdades, isso não é problema do e para o autor; na verdade, isso é um defeito a ser criticado. Não é que os “liberais” franceses fossem ruins – para o autor, assim como para outros historiadores (como Pierre Rosanvallon), os liberais franceses seriam bons, a despeito de suas ações concretas e dos regimes que eles apoiaram, justificaram e legitimaram ativamente –; os políticos não liberais é que seriam ruins, mesmo que tais políticos (na III República francesa) tenham procurado agir da melhor maneira possível, de modo a estabilizar o regime, legitimá-lo, combater os reacionários e garantir as liberdades públicas. (Isso não quer dizer que a III República tenha sido perfeita: por exemplo, ela reforçou o colonialismo no Norte da África; mas por outro lado, ela conseguiu manter-se durante 70 anos, enquadrou os reacionários militares ao longo do caso Dreyfus, separou (imperfeitamente) igreja e Estado, passou pela prova duríssima da I Guerra, conseguiu manter-se relativamente ilesa da crise econômica iniciada em 1929 e ainda elegeu um governo socialista em 1936: tudo isso é muito mais do que os liberais franceses fizeram e pretenderam.) Em um aspecto o autor está certo, todavia: a concepção – democrática – de que a Assembléia Nacional seria todo-poderosa; essa idéia, em si mesma puramente democrática, já é em si mesma desastrosa e era criticada por muitos (por exemplo, Augusto Comte) desde antes da III República; no parlamentarismo – que, aliás, é o regime que se segue naturalmente dessa concepção totalitária – isso se torna desastroso. Entretanto, mesmo ao indicar o defeito congênito da democracia rousseauniana, o autor é superficial, seja porque não considera a história política e intelectual efetiva da III República, seja porque, como conseqüência do problema anterior, o autor procede dedutivamente a respeito dessa fase histórica da França.

Essa concepção curiosa que o autor defende baseia-se no seu liberalismo anticomunista. Esse liberalismo anticomunista não é de tradição estadunidense; é mais próximo do liberalismo anticomunista francês, conforme exposto e defendido por Raymond Aron (citado em muitas e elogiosas ocasiões) e, depois, retomado por François Furet. Esse liberalismo anticomunista seguia a tradição do conservadorismo britânico, à la Burke, que rejeitava os projetos de mudança racional e planejada da sociedade, bem como a visão correlata de homens aperfeiçoados: deixando de lado a necessária e correta crítica da total irresponsabilidade dos intelectuais franceses entre 1944 e 1956, o autor considera que eles estavam fadados a serem errados devido ao projeto de mudança racional e planejada do homem e da sociedade; esse projeto seria em si mesmo errado e até imoral, sendo a base para a crítica da Revolução Francesa, da III República francesa, da Revolução Russa e do que veio depois. É bem verdade que os comunistas russos fizeram o possível para estabelecer uma conexão histórica e moral entre 1917 e 1789; mas, em vez de perceber que a história da França era uma coisa e a da Rússia, outra, o autor compra a tese dos comunistas e condena em bloco todo o projeto. Aliás, mais do que isso; o liberalismo anticomunista do autor fá-lo adotar as mesmas concepções historiográficas e sociológicas de François Furet, cuja “nova história crítica” da Revolução Francesa consistia em entender os acontecimentos de 1789-1799 meramente como a sucessão de eventos sociais e políticos – eventos de grande porte, mas em si mesmos sem maiores conseqüências ou importâncias filosóficas, sociológicas e históricas; em outras palavras, para combater o determinismo materialista dos comunistas, o melhor que Furet (e, no presente caso, Judt) tem para oferecer é um historicismo hipercontextualista e politicista, que rejeita qualquer filosofia da história e qualquer filosofia do progresso do ser humano.

Resumindo em si os defeitos do livro, a postura que o autor adota a respeito de Augusto Comte e do Positivismo é exemplar: são poucas citações e referências, mas essas poucas são todas elas negativas e superficiais. Por um lado, as breves exposições que o autor faz do Positivismo são todas erradas e baseiam-se em procedimentos “dedutivos”: o autor tem uma idéia preconcebida (um preconceito, em outras palavras) e quer usar o Positivismo para ilustrar um argumento qualquer; a fim de realizar tal ilustração, ele deduz as conseqüências que lhe interessa no momento. Nenhum dos seus argumentos baseia-se em qualquer tipo de citação ou de referência – e, evidentemente, não há nenhuma do próprio Comte ou dos positivistas –, mas com freqüência, e injustificadamente, o autor associa Comte a Saint-Simon, como se o fundador do Positivismo fosse uma derivação, e uma versão piorada, do conde falido. Por outro lado, o Positivismo é mobilizado para explicar traços que interessam ao autor: por exemplo, um culto às estatísticas; entretanto, não apenas esse traço não corresponde ao Positivismo (Comte era contrário à sociometria como sinônima de Sociologia, como no projeto de Quétélet), como o autor só faz aparecer no presente traços longínquos do Positivismo se esses traços antigos forem, supostamente, negativos, mas nunca positivos; em outras palavras, todas as vezes em que ele invoca o Positivismo ele comete o vício teórico-metodológico do viés de seleção. (Além disso, o autor é incoerente, ao afirmar, no começo do livro, que no início da IV República havia uma preocupação entre muitos intelectuais com as estatísticas oficiais, mas, no final do livro, insistir na idéia de que os intelectuais buscavam manter-se ignorantes da realidade (fosse francesa, fosse estrangeira)).

No que se refere ao tema específico do livro – a exposição das imbecilidades dos intelectuais franceses entre 1944 (ou, talvez, 1940) e 1956 –, isto é, em termos de história das idéias no período subseqüente à II Guerra, o autor é muito bem-sucedido, embora haja diversas limitações, como as indicadas acima. Entretanto, assim que o autor afasta-se do tema específico do livro, as limitações indicadas ganham peso e maculam o seu esforço; sua interpretação filosófica, sociológica e histórica das fontes do irracionalismo, da irresponsabilidade e da imoralidade dos intelectuais franceses desde a década de 1930 e até, pelo menos, 1956 (mas estendendo-se até 1974) revela-se profundamente falha e insatisfatória.

O conjunto do livro deixa, então, um sabor misto, ambígüo, para o leitor. Por um lado, o núcleo duro da pesquisa do autor é importante e em linhas gerais é convincente; a crítica moral que ele realiza funciona, em termos amplos. Mas, por outro lado, a interpretação sociológico-filosófica que ele propõe das origens do problema que denuncia é fraca e, se isso não fosse pouco, a concepção que ele esposa do ser humano e da sociedade, na qual baseia a sua crítica, é ainda mais frágil e superficial (ainda que tenha alguns elementos relevantes – basicamente, a idéia moderna de que as liberdades individuais devem ser preservadas).

Anos depois, o autor pelo menos abrandaria esse liberalismo em favor da defesa de uma certa social-democracia; como o seu liberalismo não é exatamente o anglossaxão (ao estilo Tatcher-Reagan, ou Popper-Hayek-Friedman), mas segue as linhas do liberalismo conforme entendido e praticado por Aron e Furet, essa defesa posterior da social-democracia não é totalmente incoerente; mas, mesmo assim, a ênfase estrita no indivíduo (contra a sociedade) passa para o respeito às noções de coletividade e de bem público. Da mesma forma, Tony Judt tornou-se famoso por seu gigantesco livro Pós-guerra e por centenas de resenhas e comentários sobre livros e pesquisas históricas, filosóficas e políticas: não deixa de ser motivo de tristeza percebermos que uma investigação prévia que ele fez, relevante e útil em si mesma, apresenta uma quantidade enorme de falhas, limitações e equívocos.

(Vale notar que a tradução brasileira é péssima, o que também não ajuda o livro.)

02 junho 2021

A contra-reforma administrativa como ausência de projeto nacional de nossas péssimas elites

O texto abaixo é um manifesto em favor de uma alteração profunda na sensibilidade, na mentalidade e nos comportamentos das elites brasileiras, no sentido de que voltem a preocupar-se com o conjunto da população e também com o desenvolvimento nacional. O que se tem visto nas últimas quatro décadas é a abdicação total de um projeto de desenvolvimento, querendo com isso que nossos problemas sociais magicamente desapareçam - isso, claro, quando as nossas elites têm, de fato, alguma preocupação com a população. Mas sem desenvolvimento nacional não teremos solução para os problemas sociais; isso não deveria nunca ter sido esquecido ou negado e, portanto, é urgente que as elites abandonem o ultraliberalismo especulativo e voltem a investir em projetos de desenvolvimento real.

Uma versão resumida do texto abaixo foi publicada na grande imprensa, em fevereiro de 2021; ela pode ser lida na postagem "Contra alguns mitos da 'reforma administrativa'".

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A contra-reforma administrativa como ausência de projeto nacional de nossas péssimas elites


A tragédia global e nacional que caracterizou o ano de 2020 deveria reverter-se em várias lições para o conjunto da sociedade, pelo menos no Brasil; entretanto, o início de 2021 já dá sinais de que nós, brasileiros, teimamos em não querer aprender com nossos erros e com nossas tragédias. A retomada, mais uma vez, da proposta de “reforma administrativa” é exemplar nesse sentido[1].

A “reforma administrativa” prevê a alteração radical de diversos dispositivos que regram a estrutura do Estado brasileiro, em particular no que se refere à contratação e à manutenção de servidores. O principal advogado dessa “reforma” é o Ministro da Economia, Paulo Guedes: ultraliberal[2], em inúmeras ocasiões ele já demonstrou desprezar os servidores públicos (considerados por ele como “parasitas”), querer reduzir o Estado ao mínimo dos mínimos (de preferência mantendo apenas a Casa da Moeda, o Banco Central e, claro, as Forças Armadas – todo o “resto” sendo julgado desnecessário e envenenador da “iniciativa privada”) e não ter nenhum problema em conjugar seu “liberalismo” com o autoritarismo (não é por acaso que ele estima Pinochet). Para Guedes, os mesmos servidores públicos que desenvolvem vacinas contra o coronavírus 2, que estão na linha de frente do combate à pandemia, que mantêm a ordem pública, que em condições dificílimas lecionam à distância no ensino virtual; enfim, para Guedes, todos esses servidores públicos não são vistos como constituindo uma infraestrutura pública indispensável à manutenção mínima de uma ordem social que entenda os brasileiros como cidadãos, mas são apenas e tão-somente gastos que devem ser reduzidos, quando não extintos, sem maiores preocupações além de “não nos endividarmos”. Esse ultraeconomicismo de Paulo Guedes – que, no final das contas, é apenas um economicismo simplista e rasteiro, totalmente antissociológico e anticívico – é tão acentuado que ele considera a atividade política (os debates públicos, as trocas de idéias, as disputas (pacíficas!) entre grupos organizados) como impedimentos sistemáticos à produção econômica; mesmo em termos de economia, para ele os verdadeiros agentes são apenas os patrões: os sindicatos, nesse sentido, não são órgãos importantes de representação de interesses legítimos, mas a institucionalização do corporativismo mais grosseiro e do combate ao lucro privado, além de serem mais uma forma de a “política” atravancar a “economia”; não por acaso, Paulo Guedes sonha em proibir os sindicatos de servidores públicos e em demitir os servidores sindicalizados!

Os valores profundos que orientam Paulo Guedes deveriam bastar para convencer qualquer cidadão honesto e sensato de que a reforma administrativa deve ser entendida com extrema cautela, especialmente quando se afirma que ela buscará maior eficiência administrativa. Na verdade, há muito tempo já virou um chavão dizer-se que os problemas do serviço público são de “gestão”: “choque de gestão”, “fazer mais com menos”, “apertar o cinto” – essas e outras frases feitas inundam periodicamente as páginas de jornais e os discursos políticos, em particular durante campanhas eleitorais. A imprecisão e a vagueza dessas expressões, somadas à impressão de modernidade que elas sugerem, garantem parte do seu sucesso; a busca de “criticidade”, o uso sistemático de sofismas e vários exemplos (ainda que dispersos e descontextualizados) completam o quadro.

Comparando os trabalhadores públicos e privados

Como dissemos no início do artigo, o ano de 2020 deveria dar-nos inúmeras lições a respeito, tanto negativas quanto positivas; mas, no fundo, o governo Bolsonaro, desde o seu início, também tem sido pródigo em importantes lições para o encaminhamento da “reforma administrativa”. Senão, vejamos.

Em primeiro lugar, não se pode dizer que o Estado brasileiro é “grande demais”; na verdade, seja em termos de quantidade de servidores públicos, seja em termos de gastos com pessoal, o Brasil está longe de ser “grande”. O tamanho do Estado tem que ser medido pela quantidade e pela qualidade de serviços públicos prestados: ora, por qualquer parâmetro, o que se percebe é que a estrutura pública disponível para os serviços públicos é insuficiente para as necessidades nacionais (cf. IPEA, s/d; CARDOSO JR., 2011; LASSANCE, 2017; PIRES, LOTTA & OLIVEIRA, 2018). Os serviços mais evidentes já o ilustram: professores, médicos, enfermeiros, peritos previdenciários etc., sua quantidade está longe de ser suficiente. Os problemas suscitados pela pandemia de covid-19 estão escancarando essa insuficiência brutal.

Mas as necessidades públicas supridas pelos servidores públicos não são todas, nem necessariamente, de entrega imediata: basta pensarmos nas pesquisas científicas feitas nos laboratórios nacionais, que buscam desde vacinas totalmente nacionais contra o coronavírus até técnicas mais baratas e eficientes de produção de álcool 70%; ou, então, as pesquisas de longo prazo e a fundo perdido feitas pela Petrobrás para a extração do petróleo na camada pré-sal; ou as pesquisas feitas pela Embraer para o desenvolvimento de uma indústria aeronáutica nacional de ponta: esses são apenas alguns exemplos banalizados e que deveriam ser levados mais a sério.

Os exemplos acima deveriam lembrar-nos de que as necessidades sociais brasileiras não são pequenas, não são de curto prazo nem são estritamente econômicas; inversamente, isso lembra (ou deveria lembrar) que o Estado brasileiro não pode ser entendido meramente como o “regulador neutro do ambiente de negócios”; como representante prático e realizador concreto do “interesse nacional”, o Estado tem a obrigação de realizar mudanças necessárias na sociedade (em conformidade com a opinião pública, claro está) e também a de orientar em grandes linhas a atividade econômica. Entretanto, desde a crise da dívida na década de 1980, progressivamente o Estado brasileiro abdicou de sua função de orientar os rumos do país: a abertura econômica indiscriminada e, em particular, a abertura financeira são a expressão disso. Os resultados dessa progressiva omissão pública nos rumos do país não poderiam ser piores: a progressiva desindustrialização nacional, a reversão da economia brasileira à condição de exportador de commodities para os países mais industrializados (agora, em particular, para a China), a diminuição brutal dos empregos de qualidade e a multiplicação de trabalhos cada vez piores (cf. BENJAMIN, 2015)... embora em si mesma tenha sido chocante a afirmação de Paulo Guedes de que o auxílio emergencial contra a pandemia “revelou 38 milhões de miseráveis antes ocultos” (cf. CHAIB & URIBE, 2020), o fato é que a omissão estatal após os anos 1980 é plenamente compatível com a ignorância desses 38 milhões de subcidadãos.

Os servidores públicos, portanto, têm um papel central na realização de algo que está meio fora de moda, mas que deveria voltar aos debates públicos: um “projeto de país”. É claro que a centralidade dos servidores no projeto nacional deve ser entendido tanto como a descrição de um fato quanto o enunciado de um juízo de valor, ou seja, os próprios servidores públicos têm que se compenetrar de sua importância para o país e adotar essa relevância como um verdadeiro guia ético para suas condutas profissionais.

Passamos, então, à estabilidade dos servidores: simplesmente não se deveria pô-la em questão. A perseguição político-ideológica, realizada com freqüência de maneira raivosa, levada a cabo pelo governo Bolsonaro (a bem da verdade, como é de conhecimento público, realizada em inúmeras vezes pelo próprio Presidente da República!) é a própria justificativa para a existência da estabilidade. Não se trata de um “privilégio” do funcionalismo público, que se erige em casta, contra a instabilidade do setor privado, mas a garantia de que os servidores públicos exercerão um serviço profissional e, ainda mais, que eles não estarão sujeitos aos humores dos governantes do momento. Desde 2019 assistimos no Brasil à demissão de Ricardo Galvão do cargo de Presidente do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), à exoneração de José Olímpio Augusto Morelli da chefia do Centro de Operações Aéreas do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente) e a muitas outras situações semelhantes apenas porque, no primeiro caso, o servidor divergiu publicamente de afirmações do Presidente da República e de seu entorno palaciano e, no segundo caso, porque o servidor cumpriu o seu dever e multou o Presidente, então mero Deputado Federal, por pescar em área proibida (em 2012): esses são apenas dois exemplos entre muitos que ocorrem também em níveis inferiores e com menor visibilidade, em que os servidores têm sido punidos porque os governantes em exercício não gostam deles e que só não perderam os respectivos empregos porque são concursados e gozam de estabilidade[3]. (Eu mesmo, se não fosse a estabilidade funcional, estaria correndo o risco de demissão, apenas por manifestar minha opinião neste artigo.) Por fim, convém lembrarmos o desejo – anticonstitucional, diga-se de passagem – expresso pelo Ministro da Economia de demitir todos os servidores públicos que sejam sindicalizados. (Referindo-se a outro ambiente e a outra época, o historiador Richard Evans (2017) mostrou que o partido nazista expandiu-se no setor público alemão e dizimou os outros partidos políticos, em particular o comunista e o social-democrata, entre outras medidas, ao demitir sumariamente todos os filiados a qualquer outro partido.) A estabilidade dos servidores públicos, portanto, não é um luxo: é a garantia mínima de que eles poderão trabalhar para o bem comum sem sofrerem pressões ilegítimas e imorais.

Também se afirma que os servidores públicos “ganham muito”, com o juízo implícito de que tais “grandes salários” seriam ultrajantes. O ultraje não está tanto no “ganhar muito”, mas na comparação com o setor privado, cujos trabalhadores supostamente ganhariam bem menos. O problema é que essa comparação é extremamente superficial, tomando-se uma simples média aritmética dos gastos do setor público com alguma média do setor privado; assim, comparam-se duas coisas que, aparentemente, seriam homogêneas, quando, na verdade, elas não são homogêneas (cf. IPEA, s/d; ROSSI & BUONO, 2020). Vale notar que essa comparação baseia-se nas concepções, implícitas ou explícitas, de que o setor privado corresponde ao “mercado”, que os salários pagos pelo “mercado” são mais verdadeiros e que, por isso, os salários pagos no setor privado são mais “justos”. Ora, isso está longe de ser verdade, em particular porque a noção de salário justo é o que está na base da proposta do salário mínimo – e todos sabemos que o salário mínimo oficial no Brasil é violentamente baixo e que uma quantidade descomunal de brasileiros não recebe nem esse salário mínimo oficial (são muitíssimos mais que os 38 milhões de invisíveis do dr. Paulo Guedes).

Se as médias comparadas entre o setor público e o privado não são homogêneas, é importante então as entender de maneira heterogênea. Tanto em um setor quanto no outro, quem está no início de carreira recebe bem menos que quem está no final da carreira; da mesma forma, quem exerce cargo de chefia recebe mais que quem está nas posições mais humildes. O setor público, por um lado, divide-se em três ou quatro poderes (Executivo, Legislativo, Judiciário e o Ministério Público) e em três níveis federativos (nacional ou federal, estadual e municipal). Todos os estudos sérios sobre o setor público indicam que a quantidade de servidores aumenta quando passamos do nível federal para o nível municipal, mas que os salários pagos diminuem nessa mesma direção. Além disso, o poder Judiciário e o Ministério Público têm salários muito maiores que os do poder Legislativo e estes, por sua vez, são maiores que os do poder Executivo. O poder Executivo, por sua vez, especialmente no âmbito federal, é bastante heterogêneo: as Forças Armadas, os diplomatas, os servidores da Receita Federal e mais algumas carreiras são regiamente pagas. Também vale lembrar que algumas áreas são necessariamente grandes, especialmente aquelas que lidam diretamente com a população: educação, saúde, previdência e assistência social, segurança pública; além disso, há setores que são intrinsecamente caros e custosos, como as áreas de infraestrutura e as de pesquisa: tudo isso entra na conta do poder Executivo.

Aqui é importante notar que o setor público tem uma dinâmica específica: a estabilidade no emprego permite que as carreiras desenvolvam-se de maneira efetiva, isto é, que haja de fato carreiras profissionais, caracterizadas pela ascensão profissional; tal ascensão ocorre a partir de cursos que são feitos pelos servidores. É claro que o egoísmo pessoal tem aqui seu papel: os servidores buscam subir na carreira porque isso se converte em salários maiores – e é bom que seja assim. Do ponto de vista da utilidade pública, isso significa que os servidores públicos podem de fato especializar-se e ampliarem suas habilidades profissionais; mas, de uma perspectiva meramente contábil e fiscalista, a maior qualificação dos servidores públicos é vista apenas como correspondendo a mais gastos públicos! Quando se fala em supersalários no setor público – e, o mais das vezes, a “reforma administrativa” é defendida como sendo o instrumento necessário para combaterem-se os “supersalários” – não é por acaso que eles ocorrem apenas no poder Judiciário, no Ministério Público e na cúpula do poder Executivo federal; ainda assim, a “reforma administrativa” terá efeito apenas no Executivo civil federal, sendo completamente silenciosa a respeito das Forças Armadas e dos outros três poderes[4].

O setor privado, como se sabe (ou como deveríamos saber), tem outra dinâmica. Para começo de conversa, ele não investe de verdade na qualificação dos trabalhadores: ele espera que haja trabalhadores qualificados no “mercado” e que possam ser contratados; quando há “qualificação”, elas são tópicas e de curto prazo. As qualificações de longo prazo, exatamente porque são demoradas, não são realizadas pelo setor privado. Aliás, a constante busca da “redução de custos” tem um efeito paradoxal e trágico, na medida em que há trabalhadores superqualificados que, por isso mesmo, não encontram emprego, pois custariam muito! A idéia de lealdade das empresas para com os trabalhadores é algo que inexiste; como há apenas o “mercado” e a competição entre as empresas, os trabalhadores mais velhos e mais qualificados – mais caros – são mandados embora em benefício de trabalhadores mais novos, menos experientes e, claro, mais baratos. (E, seguindo a lógica do dr. Paulo Guedes, de preferência que não sejam sindicalizados.) Nesse sentido, o setor privado ou privatiza a qualificação profissional mais exigente ou, então, alegremente se beneficia dos investimentos feitos no e pelo setor público: não é por acaso que os grandes programas de mestrado e doutorado no país são todos públicos (ou pesadamente financiados pelo setor público).

A lógica do “mercado” é sempre a de achatar os salários. Ora, esse achatamento ocorre na base, para a massa dos trabalhadores; no ápice a tendência é de aumentos sucessivos, especialmente para os presidentes (“CEOs”) e gerentes-gerais das empresas. Nesse caso, não se ouve falar em “supersalários”, isto é, não há o tom de reprovação quando se usa essa expressão para referir-se ao setor público; os cada vez maiores salários da cúpula do setor privado são vistos como motivo de inveja e admiração. Tem-se aí uma situação ambígua, para não dizer paradoxal ou hipócrita: enquanto os “megassalários” da iniciativa privada são apresentados como o ideal de vida para todos os que estão no setor privado, apenas alguns poderão gozar deles, ao mesmo tempo em que a dinâmica salarial do setor privado, como vimos e como se sabe, tende sempre a achatar cada vez mais esses salários.

Infelizmente, o problema é ainda pior do que estamos indicando. A definição da omissão do Estado como projeto nacional a partir dos anos 1980 resultou em que estamos fortemente vinculados aos fluxos internacionais de capital especulativo e em que o país progressivamente se desindustrializa (cf. BENJAMIN, 2015). Esses dois fatos conjugados resultam em que no país temos cada vez menos investimento na economia real, isto é, na economia que gera renda e empregos, e temos cada vez menos empregos, isto é, trabalhos com carteira assinada, salários dignos e benefícios efetivos. A descoberta dos mais de 38 milhões de “invisíveis” pelo dr. Paulo Guedes, em 2020, é exemplar a respeito disso tudo: vinculado ao capital especulativo internacional, ele nunca teve experiência concreta nem com políticas públicas nem, muito menos, com a economia real; por outro lado, a dinâmica de financeirização do capital e de desindustrialização do país resultaram em que um vago setor de “serviços” ampliou-se dramaticamente nas últimas década, não porque tenhamos uma população altamente qualificada prestando serviços de complexidade média a alta, mas porque temos uma população que é pobre, ganha pouco, não consegue empregos e meramente realiza serviços ou “trabalhos”, ou melhor, faz “bicos”: vende água na esquina, trabalha como vendedor na alta estação etc. O grande símbolo disso é o entregador de comida vendida por meio de aplicativos de celulares que vai de bicicleta entregar o produto: recebe uma miséria, não tem estabilidade, não tem benefício social nenhum e tem que usar os próprios recursos (a bicicleta) para o trabalho; é a “uberização” do trabalho erigida como ideal social. Não é que falte engenhosidade, operosidade ou industriosidade à população: o que falta são políticas públicas que gerem emprego de verdade, um projeto de país que se afaste do capital especulativo e uma elite que valorize o país (e não seja nem autoritária nem seja cega para os “invisíveis”.)

O anti-timing da reforma contracionista

Algumas palavras sobre o timing da proposta de reforma administrativa são necessárias. Desde o governo Michel Temer (2015-2018), as “reformas” são apresentadas como fundamentais e imprescindíveis para que o Brasil deslanche em termos econômicos (nada se diz sobre as liberdades públicas, sobre nossos padrões civilizatórios etc. ­– mais deixemos esses temas “menores” de lado); mais do que isso: cada uma das reformas é apresentada para a nação como a verdadeira reforma fundamental, sem a qual o país não tem futuro e com a qual o sucesso será imediato e garantido. Todavia, uma reforma após a outra fracassa completamente em conduzir o país ao desenvolvimento e ao progresso; encerrada uma reforma, a próxima é imediatamente alçada à posição de reforma fundamental, imprescindível e bastante. Essa dinâmica política desmoraliza a noção de “reforma” e, com isso, levanta a suspeita de que seu objetivo não é tornar o Brasil um país melhor, mas apenas desmontar as instituições nacionais, em particular as estabelecidas em 1988. Isso, por si só, já bastaria para levantar-se sérias suspeitas sobre a atual proposta de “reforma administrativa”; os preconceitos políticos, sociais e ideológicos do dr. Paulo Guedes aumentam ainda mais as suspeitas. Todavia, o Brasil – como o mundo, aliás – atravessa a grave crise da pandemia, que será seguida necessariamente por uma recessão ou, talvez, por uma depressão: se há algo que o século XX ensinou é que crises desse tipo não podem ser enfrentadas por políticas contracionistas, que visem a cortar os gastos públicos; sem desperdiçarmos valiosos recursos, os gastos públicos terão que se aumentar ou, pelo menos, manterem-se nos próximos anos. Ora, a “reforma administrativa” claramente tem um objetivo contracionista – o que pode ser coerente com o ultraliberalismo do dr. Paulo Guedes, mas que vai contra a história político-econômica dos últimos 150 anos e vai contra também o interesse nacional brasileiro.

Algumas palavras sobre as elites brasileiras

Para concluir, uma palavra sobre as elites brasileiras. Ao longo deste artigo fizemos diversas referências ao fato de que o Brasil não tem um verdadeiro projeto nacional desde a década de 1980; a partir dessa época, definiu-se que o país deveria integrar-se ao resto do mundo, por um lado saindo do isolamento político em que se encontrava devido ao autoritarismo militar, por outro lado vinculando-se aos fluxos econômicos internacionais, cada vez maiores. A expressão “projeto nacional” e as decisões que orientaram o país na direção da abertura político-econômica tornam-se vagas e muito abstratas – metafísicas, na verdade – quando não se considera que o conjunto da população e, em particular, as elites têm que encampar esses projetos, formulando-os com clareza e implementando políticas públicas de acordo – políticas que devem ser mais ou menos coerentes e que devem ser concebidas em termos de décadas, não somente de anos ou meses. A abertura política dos anos 1980-1990 foi exitosa; já a abertura econômica, como indicamos, foi bem mais problemática, em particular porque ela consistiu na abertura unilateral e mais ou menos sem critérios da nossa economia: as nossas elites apostaram no automatismo do “mercado” para resolver os problemas sociais e econômicos, desvalorizando o Estado no processo; a reação à valorização do Estado em termos econômico-sociais, isto é, em termos de “projeto nacional”, era no sentido de equivaler essa valorização ao autoritarismo, ao totalitarismo e, de qualquer maneira, à ineficiência e ao desperdício.

A inabilidade política e, por isso mesmo, a inabilidade econômica de Dilma Rousseff em um ambiente política cada vez mais polarizado – em que tiveram grande (ir)responsabilidade tanto o PT quanto o PSDB – permitiu a ascensão política e social do ultraliberalismo irresponsável e, no fundo, intelectualmente alienado do dr. Paulo Guedes; ao mesmo tempo, o desgaste institucional permitiu a ascensão de mais um político supostamente outsider com propostas violentamente anti-establishment – Bolsonaro. Provavelmente porque ambos eram rejeitados pelo establishment social-democrata dos irmãos-inimigos PT-PSDB, mas também porque um precisava do outro, logo Paulo Guedes e Bolsonaro passaram a apoiar-se; como se sabe pelo notório exemplo chileno, as compatibilidades mútuas eram maiores do que a mera necessidade que um tinha do outro e do fato de que ambos eram underdogs: o ultraliberalismo de Guedes é compatível e mesmo precisa do autoritarismo repressivo e persecutório de Bolsonaro, enquanto este, por seu turno, fica bastante à vontade com o capitalismo especulativo e socialmente irresponsável de Guedes, desde que sua família, seu entorno palaciano e seus apoios militares e paramilitares sejam satisfeitos.

A ausência de um verdadeiro projeto nacional desde os anos 1990 já indicava uma séria falha das elites brasileiras; mas era possível argumentar, com tranqüilidade, que havia preocupações verdadeiras com o país. É bem verdade que o PSDB era bem mais criticável a esse respeito que o PT; mas, por outro lado, não somente o exclusivismo próprio ao PT (e a Lula em particular), derivado do seu messianismo católico-comunista, dificultou ou impediu a correção intelectual e moral das nossas elites a esse respeito, como o PT, quando esteve no poder, não fez muito para alterar a situação. Assim, o vazio de um projeto nacional das nossas elites manteve-se. Em 2018, o que era uma falha tornou-se um buraco, ou melhor, uma retrogradação profunda em nossos valores, com a aliança entre o ultraliberalismo e o autoritarismo delirante – aliança que se viu vitoriosa. Essa vitória, claro está, não ocorreu por acaso e nem no vazio; em particular, ela deu-se porque as elites brasileiras apoiaram a aliança retrógrada. Se em 2018 e 2019 as elites brasileiras decidiram pular no abismo, ou no esgoto, em 2020 o que se evidenciou foi o completo desprezo dessas elites pela população: o apoio meio cerrado, meio explícito às inúmeras tentativas de golpe de Estado pelo próprio Presidente da República, à afirmada necessidade de um novo “AI-5” conforme expresso pelo dr. Paulo Guedes, pelos filhos do Presidente da República, por políticos da “base de apoio” e pelos ministros militares; da mesma forma, a rejeição de muitos e muitos presidentes de grandes empresas das medidas mais elementares de prevenção à pandemia de covid-19, bem como o apoio às sandices do Presidente da República – tudo isso revela o quanto nossas elites estão moralmente podres, o quanto estão muito abaixo das necessidades do Brasil[5]. Em qualquer momento, são as elites que comandam um país – em termos políticos e econômicos, não há dúvida, mas também sociais, intelectuais e morais. As atuais elites decidiram que o ultraliberalismo econômico, o autoritarismo repressivo e persecutório, o desprezo pela vida e pela verdade são “aceitáveis”[6]: talvez em outras épocas e outros lugares essa combinação ao mesmo tempo explosiva e degradante fosse aceitável, mas no Brasil após 1988 definitivamente ela não é.

A “reforma administrativa” é apenas a mais recente proposta de uma elite que está aquém das necessidades e das possibilidades brasileiras: urgem novas elites e a rejeição dessa soi-disant reforma!

 

Referências bibliográficas

BENJAMIN, César. 2015. Desindustrialização – pode o Brasil sobreviver sem um expressivo setor industrial? Boletim Conjuntura Brasil, Brasília, n. 2, out.

CARDOSO JR., José C. (org.). 2011. Burocracia e ocupação no setor público brasileiro. Série “Diálogos para o desenvolvimento”, n. 5. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.

CHAIB, Júlia & URIBE, Gustavo. 2020. Guedes confirma auxílio emergencial por mais dois meses e criação do Renda Brasil. Folha de S. Paulo, 9.jun.

EVANS, Richard. 2017. A chegada do Terceiro Reich. 3ª ed. São Paulo: Crítica.

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LACERDA, Gustavo B. 2020. Lamento por uma burguesia abaixo do mínimo político-moral. Filosofia Social e Positivismo, 7.maio. Disponível em: https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2020/05/lamento-por-uma-burguesia-abaixo-do.html. Acesso em: 4.fev.2020.

LASSANCE, Antonio. 2017. O serviço público federal brasileiro e a fábula do ataque das formigas gigantes. Texto para Discussão n. 2287. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.

LYNCH, Christian E. 2020. “Nada de NOVO sob o Sol”: teoria e prática do neoliberalismo brasileiro. Insight Inteligência, Rio de Janeiro, ano 23, n. 91, p. 16-34, out.-dez.

PIRES, Roberto; LOTTA, Gabriela & OLIVEIRA, Vanessa E. (orgs.). 2018. Burocracia e políticas públicas no Brasil: interseções analíticas. Brasília: Instituto Econômico de Pesquisa Aplicada.

ROSSI, Amanda & BUONO, Renata. 2020. Quem ganha mais no serviço público. Piauí, São Paulo, 2.mar. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/quem-ganha-mais-no-servico-publico/. Acesso em: 3.fev.2021.

THE LANCET. 2020. COVID-19 in Brazil: “So What?”. V. 395, n. 10235, May 9. Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)31095-3/fulltext. Acesso em: 3.fev.2021.



[1] O presente texto destinava-se inicialmente apenas a tratar de maneira rápida da comparação entre os salários do setor público e do privado, considerando-se as consequências acarretadas pelas diferenças de regime jurídico e de carreiras em cada caso. Entretanto, à medida que escrevíamos a extensão do texto aumentou paulatinamente. De qualquer maneira, o seu caráter opinativo manteve-se.

[2] Em recente e interessante artigo publicado na Insight Inteligência, Christian Lynch (2020) diferencia as inúmeras variedades de liberalismo, distinguindo em particular as que enfatizam a liberdade política (“liberais” simplesmente, sem maiores qualificativos) das que enfatizam a liberdade econômica (“neoliberais”). Claro está que, nessa classificação, Paulo Guedes seria um “neoliberal”; mas sua crença pura nas virtudes da liberdade econômica e seu desprezo pela política – que, não por acaso, permitem-no admirar o Chile sob o tacão de Pinochet e dos Chicagoboys (c. 1975-c. 1984) – levam-me a chamá-lo de “ultraliberal”.

[3] Em janeiro de 2021 a revista The Lancet publicou uma carta aberta do pesquisador Pedro Hallal, de Pelotas, em que o autor denuncia a perseguição política que sofreu; ele não perdeu cargo de chefia, mas teve cortados recursos públicos de pesquisas que coordenava. Esse caso não teve o mesmo impacto midiático na imprensa brasileira que os outros dois, mas revela de maneira muito mais clara a ausência de um “projeto de país”.

[4] O mesmo ocorreu na reforma da previdência de 2019 – que, aliás, teve a característica de que os militares foram a única categoria que, então, teve aumento salarial e cuja exclusão da reforma foi a condição política imposta pelas Forças Armadas para apoiarem tanto a própria reforma como continuarem a subscrever o governo Bolsonaro de modo mais amplo.

[5] Já no início de maio de 2020 manifestei publicamente meu lamento e meu desagrado por essas elites retrógradas e insensíveis à sorte da população em uma longa postagem em meu blogue (LACERDA, 2020).

[6] Por motivos evidentes, no presente artigo insistimos apenas nas questões políticas e econômicas; entretanto, o apoio das elites brasileiras a Bolsonaro tem que incluir também o apoio às fake news e à política de “pós-verdade”, o apoio ao desmatamento e às queimadas ilegais, o apoio ao isolamento internacional do país (reduzido à condição de pária em menos de dois anos), a violação sistemática à laicidade do Estado, o apoio a uma nova dizimação dos índios etc. Para usar a linguagem contábil, tão querida por esses ultraliberais autoritárias, o passivo político-social dessas elites aumenta cada vez mais.