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15 dezembro 2021

Um ministro "terrivelmente evangélico" contra a República

O artigo abaixo critica inicialmente a indicação e, depois, a aprovação em sabatina de André Mendonça para ministro do Supremo Tribunal Federal. Como se sabe, essa indicação foi feita com base no predicado de que ele seria um ministro "terrivelmente evangélico", o que deveria ser encarado como um descalabro por todos aqueles que se preocupam com a República. 

Infelizmente, poucas foram as pessoas e as instituições que se manifestaram contra esse descalabro; a maioria dos "formadores de opinião" no Brasil permaneceu quieta (e, portanto, omissa) ou apoiou (e, portanto, é cúmplice) desse verdadeiro crime de lesa-república. O artigo explica, em poucas linhas, os inúmeros problemas teóricos e práticos causados por essa indicação clericalista.

Vale notar que todas as manifestações públicas de André Mendonça antes e, principalmente, depois da sabatina no Senado Federal confirmam os meus argumentos abaixo.

O texto foi publicado no jornal carioca Monitor Mercantil em 8 de dezembro de 2021 (disponível aqui, com acesso aberto) e no jornal curitibano Gazeta do Povo em 14 de dezembro de 2021 (disponível aqui, para assinantes).


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Um ministro "terrivelmente evangélico" contra a República

No dia 1° de dezembro de 2021, André Mendonça, ex-ministro da Justiça do Governo Bolsonaro, foi sabatinado pelo Senado Federal para a vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). A sabatina, que terminou por aprovar a indicação, e a própria indicação constituem episódios lamentáveis na vida política brasileira, no sentido de que são atentatórios contra o conjunto da República e, em particular, contra a laicidade do Estado. Sem nos deter em detalhes, vejamos os problemas.

Antes de mais nada, temos que dizer com todas as letras: a indicação pelo presidente da República e a aprovação pelo Senado Federal – mesmo que quase cinco meses depois da indicação – de alguém que foi indicado apenas por ser “terrivelmente evangélico” é um retrocesso político e social no Brasil.

O problema não está exatamente nas crenças íntimas de André Mendonça, mas no motivo da indicação e também no fato de que o próprio indicado jamais renegou esse motivo. Se o Estado é laico – e se ele deve ser e deve manter-se laico – a condição religiosa dos ministros é completamente irrelevante: o que importa é se o indicado valoriza as instituições republicanas e seus valores fundantes (liberdades públicas, inclusão social, fraternidade e paz universais etc.). Se o indicado respeitar e, mais do que isso, se ele valorizar de fato as instituições e os valores republicanos, não importa se ele é católico, ateu, budista, presbiteriano, umbandista, cardecista, positivista, luterano, satanista ou evangélico.

Antes de seguirmos adiante, uma pequena digressão. Ao contrário do que prega a mistificação parlamentarista, o parlamento não é uma instituição de “debates” e serve mal para a defesa das garantias e das liberdades públicas. Se o Congresso Nacional, representado pelo Senado, quisesse de fato garantir as instituições republicanas, deveria ter dado uma resposta institucional e reprovado a cínica indicação clericalista do ministro “terrivelmente evangélico”; essa recusa teria um peso e um impacto muito maiores que a mera decisão individual de David Alcolumbre de postergar por cinco meses a sabatina de André Mendonça.

Aliás, o concomitante desprezo do conjunto do Congresso Nacional pela ordem do próprio STF para tornar público o “orçamento secreto” – que é o instrumento atual da corrupção política em favor dos parlamentares – deveria bastar para pôr abaixo todas as pretensões parlamentaristas, apesar da retórica diversionista que trata do “presidencialismo de coalizão”.

Enfim, a futura nomeação do ministro do STF “terrivelmente evangélico” coroa paradoxalmente uma política seguida desde sempre pela... Igreja Católica. Essa instituição combateu a laicização do Estado em 1889-1891, voltou orgulhosa ao poder em 1931 e, sempre que pode, reafirma suas pretensões a religião oficial do país, bem como um sem-número de privilégios políticos, fiscais, pedagógicos (como no caso da Concordata de 2008, assinada por Lula).

Em face disso, os evangélicos sempre foram ambíguos: defendem a laicidade apenas para opor-se aos católicos, mas, quando percebem que podem ganhar, aliam-se despudoradamente aos inimigos da véspera (novamente, a Concordata de 2008 é exemplar). Não se trata, portanto, de respeito doutrinário à laicidade do Estado ou às instituições republicanas: é a mais rasteira conveniência política.

A aprovação do ministro “terrivelmente evangélico” – indicado pelo “católico” Jair Bolsonaro – é também a vitória da política identitária. O identitarismo opõe-se violentamente aos universalismos republicanos, ao defender uma política de representação das identidades, em termos de proporcionalidade demográfica.

Em outras palavras, o identitarismo rejeita a concepção de que a República é composta por cidadãos e que se constitui de regras universais; ao mesmo tempo, o identitarismo defende a concepção de que a política serve para representar os particularismos e que a República é apenas a justaposição desses grupos particularismos, que teriam direito a nacos do Estado com base nas proporções demográficas da população brasileira – idealmente, por meio de… cotas. Sem tirar nem pôr, foram exatamente essas as justificativas de Bolsonaro ao fazer a indicação do ministro “terrivelmente evangélico”.

Mas também é importante realçar que a política identitária é indiferente ou até hostil à laicidade do Estado, defendendo-a apenas se e quando lhe convém, sem maior engajamento filosófico e político. E mais do que isso: embora o identitarismo seja atualmente instrumento da esquerda, dos chamados “progressistas”, o fato é que a política identitária é uma invenção da direita, na Alemanha das décadas de 1920 e 1930, cuja expressão máxima coube a um cabo e pintor de rua que obteve o poder. Enfim, os efeitos nefastos do identitarismo deveriam agora, mais do que nunca, estar claros para todos, na medida em que o identitarismo foi aplicado à perfeição no Brasil.

Indicado contra a laicidade e a República, a partir de uma concepção identitária, André Mendonça já deixou claro que não entende o que é a laicidade – e, portanto, o que é a República. Para ele, respeitar o Estado laico significa limitar-se a não fazer orações no plenário ou no ambiente do STF... isso é mais ou menos o mesmo que dizer que um servidor público deve respeitar o Código de Ética e que isso significa não andar pelado nas repartições públicas.

A laicidade é não conceder privilégios para as doutrinas e suas igrejas; é não restringir a cidadania aos adeptos de uma determinada instituição; é não ser indicado para a vaga de ministro do STF por ser pastor de uma igreja; é não deturpar a belíssima frase de Neil Armstrong para comemorar o particularismo identitário da sua aprovação como futuro integrante do STF.

Para concluir, é importante lembrar: o Positivismo (como filosofia social e política) e os positivistas (como cidadãos brasileiros) são uns dos poucos, se não forem simplesmente os únicos, que defendem a laicidade do Estado e o universalismo da República, como elementos da Ordem e do Progresso do Brasil e da Humanidade.

Desde o início de suas atividades no Brasil, na década de 1870, os positivistas sempre deixaram claro que laicidade e republicanismo andam juntos, apoiam-se e reforçam-se; combater um é combater o outro, necessariamente. Assim, é como positivista e, portanto, como cidadão brasileiro que observo: o presidente da República que, com base em uma concepção de identitarismo clericalista, indicou um “ministro terrivelmente evangélico”; o Congresso Nacional, que atuou como cúmplice na sabatina desse indicado; o próprio pastor terrivelmente evangélico – todos atuam contra a laicidade e contra a República; contra a ordem e o progresso.

  

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

25 janeiro 2020

Monitor Mercantil: Normalização da violência política

O artigo abaixo foi publicado no jornal carioca Monitor Mercantil, em 24.1.2020. A versão original pode ser lida aqui.

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A normalização da violência política no Brasil


Por Gustavo Biscaia de Lacerda.

Opinião / 22:46 - 24 de jan de 2020
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Ao longo dos últimos dois anos, publiquei artigos em que convidava os conservadores brasileiros a refletirem sobre suas escolhas políticas. Em um primeiro momento, observei que esses conservadores estavam à deriva, pois em 2018 manifestavam majoritário apoio a um candidato a presidente da República que seria qualquer coisa menos “conservador”, isto é, respeitador das tradições, das instituições públicas e, acima de tudo, das liberdades políticas; aliás, esse candidato foi eleito, e sua plataforma baseia-se na destruição sistemática, de acordo com suas próprias palavras.
Em seguida, em face dessa sistemática destruição das instituições e das liberdades públicas, observei que os conservadores brasileiros estavam destinando a si mesmos e ao país ao desastre. Mais recentemente, questionei esses conservadores a respeito de quais seriam os valores e as tradições que eles defendem e valorizam: as liberdades públicas, o respeito efetivo à diversidade de opinião, o pacifismo, o multilateralismo e o Estado de bem-estar social são, de fato, tradições e tradicionais no Brasil; desprezá-los é contra o bom-senso, a moral e, no caso, a nossa tradição sociopolítica.
É necessário dar um passo além e observar que os prognósticos negativos feitos anteriormente estão confirmando-se a passos largos, o que pessoalmente me assusta muito, mas que deveria ser motivo da mais profunda apreensão da parte de qualquer cidadão brasileiro minimamente preocupado com o país.
Aumento da violência no país deve
ser debitado na conta pessoal do presidente
Antes de mais nada, é necessário notarmos que o que legitimou e, assim, elegeu o candidato vencedor nas eleições de 2018, foi o “antipetismo”, ou seja, a rejeição confusa, ainda que não necessariamente incorreta, de corrupção, apadrinhamentos políticos, ideologização das políticas públicas, má gestão da economia.
Ora, com estrondoso sucesso, o candidato eleito conseguiu impor ao país – e os brasileiros alegremente compraram sua tese – que no Brasil existe uma dicotomia político-ideológica: ou é-se “petista” (de “esquerda”) – e, portanto, e supostamente, corrupto, ineficiente, ideológico etc. – ou é-se “antipetista” – e, portanto, é-se a favor do capitão expulso da Academia Militar Jair M. Bolsonaro.
Enfatizemos: o maniqueísmo antipetista venceu as eleições e, infelizmente, continua vigente. O problema aí não é exatamente o “antipetismo”, mas o seu caráter maniqueísta, que se revela radical, extremista e, no final das contas, cego, surdo e profundamente burro.
Sim, burro: afinal de contas, para evitar-se a eleição do PT em 2018 bastava não votar no PT – e, para isso, havia uma pletora de candidatos infinitamente superiores ao candidato eleito (que é da mais extrema-direita possível), tanto de centro-esquerda quanto de centro e de centro-direita: Ciro Gomes, Geraldo Alckmin, Henrique Meirelles, Álvaro Dias... mesmo para os favoráveis ao ultraliberalismo inimigo do Welfare State de Paulo Guedes havia João Amoedo. Assim, a eleição do capitão expulso da academia militar não era uma necessidade política; mas, por outro lado, sua vitória tem acarretado os mais variados danos ao país.
Em termos institucionais, alguns são mais conhecidos, outros menos. Um crescimento econômico pífio, uma inflação acima das metas (aliás, em parte causada pelas trapalhadas do governo no comércio internacional); rejeição das estatísticas oficiais; desprezo por órgãos públicos; desprezo sistemático pelos servidores públicos; indicações ou impedimentos ideológicos em nomeações para cargos públicos; incompetência administrativa; reversão ou destruição de políticas públicas duramente constituídas ao longo de décadas... em termos institucionais, a lista não para.
Isso sem falar do assumido impulso para a censura dos meios de comunicação e da extrema e reiterada vulgaridade no trato com aqueles que o desagradam. Mais uma vez: em nome do “antipetismo”, os eleitores de Bolsonaro aceitam tudo isso, mesmo os eleitores “conservadores”.
Mas talvez seja no âmbito das relações sociais que a figura de Bolsonaro, seus apoiadores, seus “ideólogos” produzam os efeitos mais nefastos – nomeadamente, na legitimação da violência, em particular da violência política.
Ao contrário do que a dona da Companhia das Letras, a sra. Lília Schwarcz, afirma, o brasileiro não é nem sempre foi autoritário (e, portanto, violento); ainda que tenhamos grupos sociais mais propensos ao autoritarismo e à violência, esses não são traços específicos do brasileiro, na medida em que também temos, para nossa grande felicidade, inúmeros grupos sociais e correntes culturais pacíficas, tolerantes, respeitadoras etc. Nesse sentido, o aumento da violência no país deve ser debitado na conta pessoal do presente presidente da República. A esse respeito, quero contar um episódio que ocorreu comigo.
Em um sábado de janeiro de 2020 eu almoçava com minha mãe, uma frágil senhora de 75 anos, em um restaurante de um bairro de classe média/classe média alta de Curitiba; minha mãe tem problemas de audição e tenho que falar alto para ela ouvir. Como deve ser evidente, estou profundamente insatisfeito e irritado com o atual governo do Brasil; por isso, comento com ela os problemas indicados acima, lembrando que, em Curitiba, as classes média e alta votaram maciçamente em Bolsonaro (em nome do “antipetismo”) e que, portanto, elas são responsáveis por isso tudo.
À minha frente, atrás de minha mãe, sentava-se um homem de meia-idade com dois idosos, presumivelmente seus pais; ele demonstrava ouvir minha peroração. Quando ele saía, resolveu falar comigo: bateu-me no ombro, segurou-me e começou a falar; eu disse que não lhe dava autorização para segurar-me e que, portanto, não tinha interesse em falar com ele.
A reação? “Se você estivesse sozinho na rua seria diferente”. “Sozinho na rua”, ou seja, sem testemunhas (incluindo minha mãe) nem câmeras; “seria diferente”, ou seja, ele faria o possível para brigar comigo e, de preferência, para espancar-me. Como procurei gravá-lo com meu celular, ele deu-me tapas e jogou o meu telefone no chão; como se não bastasse, em apoio à violência gratuita do filho, o seu pai, ignorando o contexto da situação, xingou-me de “vagabundo filho da puta”. Minha mãe assistia a tudo muda e assustada. É claro que do restaurante fui à delegacia de polícia prestar queixa.
Desde o fim do regime militar até a eleição de Bolsonaro, esse tipo de violência política era cada vez mais excepcional no Brasil; todavia, a partir de meados de 2018, o país assiste cada vez mais a casos assim, com ameaças pessoais a cidadãos que têm a ousadia de criticar o presidente da República – aliás, de maneira torpe, muitas ameaças são estendidas a seus familiares –, sem falar nas variadas violências que grupos sociais detestados pelo presidente têm sofrido (mesmo quando são apoiadores dele).
Ah, mas Bolsonaro não é o responsável direto por isso!”. Talvez: na violência que eu sofri, não foi o presidente o seu autor, mas é inegável que o seu exemplo é poderoso e, acima de tudo, legitimador.
Se você estivesse sozinho na rua seria diferente”... se eu estivesse sozinho na rua, minhas liberdades de pensamento e expressão resultariam em espancamento. Em nome do “antipetismo”, os eleitores de Bolsonaro legitimaram esse tipo de comportamento (isso quando não o praticam), normalizando a violência política. O Brasil caminha célere para o desastre.
Gustavo Biscaia de Lacerda
Sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.
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22 julho 2019

Esclarecimento sobre a ausência de publicações em 231 (2019)

Caros leitores: 

Como o ano de 231 (2019) já se encontra avançado e até o momento a quantidade de publicações neste blogue Filosofia Social e Positivismo tem sido bastante reduzida, um pequeno esclarecimento faz-se necessário.

Em primeiro lugar, devemos notar que uma série de compromissos profissionais exigiram de nós uma atenção concentrada no primeiro semestre do ano, obrigando-nos a, lamentavelmente, deixar em segundo plano considerações mais amplas de caráter social.

Mas, em segundo lugar, desde a campanha eleitoral para Presidente da República no Brasil que teve curso em 2018 e a subseqüente eleição de Jair Bolsonaro para ocupar esse cargo, o país vem passando por um maremoto de notícias, concepções e mudanças de políticas públicas que conduzem a nação para a retrogradação. Estímulos ao militarismo, ao irracionalismo, à intolerância, ao servilismo internacional, à manipulação de estatísticas públicas, além de muitos outros problemas têm sido constantes desde outubro de 2018 e, ainda mais, a partir de janeiro de 2019. Isso gerou em nós um sobressalto constante, que virtualmente não teve fim desde o início do ano e que, portanto, dificulta sobremaneira a reflexão mais calma sobre a realidade nacional - que é, em última análise, um dos objetivos deste blogue.

Tal situação calamitosa confirma, a nosso ver, as profundas análises elaboradas por Augusto Comte no século XIX a respeito da dinâmica sociopolítica ocidental desde a Revolução Francesa e que foram sintetizadas na seguinte formulação: "enquanto o progresso for anárquico, a ordem será retrógrada". Os governos do PT, à frente dos autointitulados "progressistas", basearam-se em princípios equivocados, como as políticas identitárias, que consagram o mais brutal egoísmo grupal, corporativo e "étnico"; da mesma forma, foram incapazes de implementar um novo ciclo de desenvolvimento econômico e social; também não se pode esquecer do saque sistemático de empresas públicas e da política também sistemática de divisão do país (na estratégia do "nós contra eles" e do "nunca antes neste país"), além do revanchismo político, do elogio a autoritarismos e totalitarismos de esquerda (que, por isso mesmo, seriam "progressistas") etc. 

Face a isso, os grupos "à direita" (isto é, conservadores, retrógrados, reacionários) obtiveram notável sucesso em campanhas de desinformação e de manipulação da opinião pública, baseando-se em mitos e nas mais baixas paixões políticos, nos mais odiosos preconceitos sociopolíticos. Deixando-se levar intelectualmente pelo ex-astrólogo cultor da desinformação Olavo de Carvalho (o que, por si só, já indica a indigência intelectual do atual governo) e baseando-se socialmente em seitas evangélicas ultraindividualistas, retrógradas e intolerantes; em grupos militaristas; em empresários contrários às garantias mínimas para populações desamparadas, o incompleto desenvolvimento intelectual (conforme ele mesmo admitiu) do atual Presidente da República dá livres asas à desorganização nacional.

Em outras palavras, aqueles que se denominam "progressistas" pautaram-se por princípios incapazes de levar adiante o efetivo progresso do país; contra isso, organizou-se com grande sucesso uma violenta reação que prega um conceito de ordem que, basicamente, é apenas o retorno a um passado mítico, intolerante, irracionalista e individualista.

Essas vistas de Augusto Comte foram expostas com grande clareza em sua obra política Apelo aos conservadores, de 1856. Nesse livro, o fundador do Positivismo evidencia e explica como é necessária e como é possível uma política que una de maneira profunda e duradoura a ordem ao progresso. Em outras palavas, é necessário unir esses dois termos, para transcender cada um deles tomados individualmente: trata-se de ordem E progresso, não apenas da ordem às custas do progresso, como querem os retrógrados (a "direita"), nem apenas do progresso contra qualquer ordem, como querem os ditos progressistas (a "esquerda").

Há uma tradução brasileira do Apelo, de 1899; ela é extremamente fiel à letra e ao espírito de Comte, mas, como é antiga, é de difícil acesso. Por outro lado, é possível ler em minha tese de doutorado ("O momento comtiano", defendida em 2010 e disponível aqui) uma exposição detalhada dos argumentos de Augusto Comte.

11 julho 2019

Agência Brasil: "Bolsonaro diz que indicará evangélico para STF"

O atual Presidente da República, como é amplamente sabido, é uma pessoa reacionária, grosseira, mesquinha e vingativa; entre as inúmeras demonstrações de sua incivilidade e de seu anti-republicanismo, podemos lembrar que nunca escondeu sua defesa da tortura como "política social".

Dito isso, a declaração indicada na matéria abaixo, em que o Presidente da República reitera uma observação feita diversas vezes antes, indica o quanto ele não entende (e não quer entender) os princípios da República e em particular o da laicidade, a despeito de ele presidir essa mesma República.

A República é laica e essa laicidade é a condição de todas as liberdades de que gozamos e de que queremos gozar. Não importa se um brasileiro em particular é candoblecista, satanista, católico, evangélico, ateu, muçulmano, agnóstico ou positivista: a laicidade há que ser preservada como um valor fundamental.

Além de cometer esse erro - esse crime, na verdade -, o Presidente da República evidencia que não entende (e não quer entender) que a obrigação fundamental dos ministros do Supremo Tribunal Federal é respeitar e aplicar a Constituição da República Federativa do Brasil atualmente em vigor, promulgada em 5 de outubro de 1988. A filiação religiosa dos ministros é completamente secundária nesse sentido; o respeito à Constituição obriga os ministros, como magistrados da República, a pôr em segundo plano suas convicções religiosas em benefício da Constituição caso haja conflito entre ambas.

(Apesar disso, é importante notar que tanto o Presidente da República quanto muitos dos seus mais fervorosos apoiadores evangélicos primam por desrespeitar essa regra elementar da cidadania republicana, isto é, da cidadania.)

A notícia abaixo foi originalmente publicada pela Agência Brasil em 10.7.2019 aqui; não reproduzi toda a notícia porque há trechos, especialmente no final, que não dizem respeito ao tema da laicidade.

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Bolsonaro diz que indicará evangélico para Supremo Tribunal Federal

Presidente participou de culto na Câmara dos Deputados


Publicado em 10/07/2019 - 10:32
Por Andreia Verdélio – Repórter da Agência Brasil  Brasília


O presidente Jair Bolsonaro afirmou que indicará um ministro evangélico para o Supremo Tribunal Federal (STF), pois, para ele, a busca pelo “resgate dos valores familiares” deve estar presente em todos os poderes do país. “Entre as duas vagas que terei para indicar para o Supremo um deles será terrivelmente evangélico”, disse, durante sua participação em um culto da bancada evangélica na Câmara dos Deputados, na manhã de hoje (10).
No mês passado, ao criticar a decisão do STF de criminalizar a homofobia como forma de racismo, Bolsonaro já havia sugerido a indicação de um evangélico para a Corte. Até 2022, o presidente da República poderá indicar nomes para pelo menos duas vagas, que serão aberta com a aposentadoria compulsória dos ministros Marco Aurélio e Celso de Mello.
Hoje, Bolsonaro elogiou a atuação dos parlamentares evangélicos nos últimos anos. “Vocês sabem o quanto a família sofreu nos últimos governos. Vocês foram decisivos na busca da inflexão do resgate dos valores familiares”, disse. “Quantos tentam nos deixar de lado dizendo que o Estado é laico. O Estado é laico mas nós somos cristãos. Ou para plagiar a minha querida Damares, nós somos terrivelmente cristãos”, disse, em referência à declaração da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves.
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