Mostrando postagens com marcador Raimundo Teixeira Mendes. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Raimundo Teixeira Mendes. Mostrar todas as postagens

07 janeiro 2025

Teixeira Mendes: Altruísmo, ciência da moral, vida em família e regulação religiosa

O belo trecho abaixo, escrito por Teixeira Mendes, está no início do capítulo quarto (“Novembro – abandono sem reserva”) do imponente O ano sem par, que é uma biografia escrita em 1900 sobre Augusto Comte e Clotilde de Vaux no período em que ambos relacionaram-se, ou seja, entre abril de 1845 e abril de 1846[1]. Em termos da vida conjunta de Augusto Comte e Clotilde, o trecho abaixo serve como introdução à fase dessa vida em que Clotilde passava a ter problemas crescentes com sua mãe mas, ao mesmo tempo e felizmente, já tinha grande confiança no respeito e no carinho do filósofo por si, de modo que, confiando nele, podia expandir-se afetivamente e buscar apoio nele para emergentes dificuldades familiares e antigas dificuldades domésticas.

Como de hábito nos textos positivistas, em particular nos de Augusto Comte e também nos de Teixeira Mendes, a riqueza dos comentários é impressionante, em que poucas linhas condensam reflexões das mais diversas ordens. Assim, a clareza e a beleza da exposição abaixo, bem como a rica concisão das idéias, motivaram-nos a reproduzir o trecho abaixo, para maior divulgação.

As reflexões abaixo lembram-nos das belezas e dos prazeres da vida doméstica, que, em situações normais (ou seja, em situações reguladas religiosamente), estimulam o altruísmo, comprimem o egoísmo e compensam as dissensões externas, a partir da intimidade, da confiança e do respeito mútuo do casal fundamental de cada família. O trecho abaixo também lembra que, inversamente, em épocas revolucionárias, em que essas intimidade e essa confiança são fragilizadas e criticadas, a vida doméstica deixa de ter ou tem menos a capacidade de proteger-nos e preparar-nos para a vida social mais ampla, além de compensá-la.

O texto abaixo aborda igualmente a ciência da moral, em vários sentidos. Por um lado, aborda-se o desenvolvimento da ciência da moral, em termos de conhecimento do ser humano mas também das exigências morais, intelectuais e práticas para que esse conhecimento (e a prática dele decorrente) seja elaborado. Por outro lado, o trecho expõe uma explicação sintética de uma das questões teóricas e práticas mais difíceis de serem entendidas – pelo menos no Ocidente, à luz do egoísmo materialista herdado tanto da teologia quanto do cientificismo –, a saber, a da primazia do altruísmo sobre o egoísmo e da relação entre ambos.

Contra o presentismo próprio à nossa época, que é aliás estimulado pelo cientificismo e pelo academicismo, todas essas considerações têm um valor permanente, ou seja, eram corretas em 1845 (quando Augusto Comte e Clotilde relacionaram-se), eram corretas em 1900 (quando Teixeira Mendes escreveu o texto abaixo) e são corretas em 2025 (quando escrevemos estes comentários). Mas, além disso, elas mantêm uma impressionante atualidade – como, de resto, o Positivismo e, claro, a Religião da Humanidade –, ao percebermos que elas abordam e resolvem questões tratadas como “atuais” nos dias de hoje.

Nesse sentido, a valorização da vida em família vai feliz e frontalmente contra os hábitos morais e políticos contemporâneos, na medida em que, em particular, grande parte do feminismo contemporâneo rejeita ou despreza a vida em família. Afirmando a necessidade de “tornar político o que é privado”, o feminismo estranhamente denuncia a família como um esquema criado pelos homens (o “patriarcado”) para oprimir as mulheres, resultando de uma única vez em que:

1)     em nome de uma crítica necessária às concepções retrógradas da família, promovidas pela teologia e que consideram que o chefe da família é dono (e dono absoluto) dos demais membros da família, o feminismo “joga fora o bebê juntamente com a água do banho”;

2)     a família é entendida unicamente como fonte de opressão e não como resguardo, local de intimidade, fonte de estímulo do altruísmo e fonte de aperfeiçoamentos efetivos;

3)     a família é negada e desprezada, em vez de ser afirmada, valorizada, respeitada e orientada para uma realização digna e valorizadora de homens e mulheres e de seu relacionamento terno e mutuamente cuidadoso e respeitoso;

4)     a família é “denunciada”, ou seja, é entendida sob as luzes da violência própria ao poder Temporal (“tornar político o que é privado”), em vez de mantê-la sob a delicadeza do poder Espiritual e de vincular de maneira efetiva e construtiva as existências privada e pública;

5)     em nome de supostamente valorizar as mulheres, na verdade desqualifica-as ou despreza-as, tornando-as iguais, ou melhor, idênticas aos homens; ao mesmo tempo, de maneira muito confusa (resultando então em hipocrisia), alega querer defender as mulheres e, aí, afirma a diferença das mulheres em relação aos homens (embora com a desvalorização dos traços específicos às mulheres).

6)     A partir do conjunto dos problemas indicados acima, torna-se mais evidente e mais chocante a afirmação corrente de que “falta amor no mundo atual”: com certeza o desprezo político da família não contribui para reverter essa falta de amor e, ao contrário, estimula muito a violência.

7)     Vale notar que a virulência e a dureza do feminismo – virulência e dureza intencionais – contrastam fortemente com a delicadeza dos comentários abaixo. Não deixa mesmo de ser degradante contrastar as considerações abaixo com a agressiva rejeição política da família promovida pelo feminismo.


 *   *   *


A vida doméstica é um santuário cujos arcanos só podem ser desvendados pelos olhos daqueles que têm corações unidos por um profundo amor. Porque, a natureza humana sendo fatalmente constituída pelo concurso dos pendores pessoais ou egoístas e das propensões sociais ou altruístas, todos os nossos atos trazem o cunho do permanente conflito entre uns e outros, de que é teatro a nossa alma. As maiores Santas não podem evitar semelhante fatalidade, como o evidenciam as tentações que não cessão de perturbar os seus esforços de contínuo aperfeiçoamento. Mas o amor supera tanto mais dificilmente as sugestões do individualismo, quanto mais revolucionária é a situação social que se teve por sorte. Nessas épocas calamitosas, as regras da conduta se acham mais ou menos profundamente alteradas em todos, mesmo nos que se julgam fiéis às crenças religiosas mortalmente feridas. Em vez de normas ligadas por um sistema, cada um não possui então senão opiniões insuficientes ou preconceitos desconexos e expostos a todas as sugestões da personalidade. De sorte que nada é mais fácil então do que o extravio de um sincero altruísmo.

É esta situação social e moral, – inevitável enquanto não se restabelece a unidade religiosa, – que determina todas as lutas da vida humana, pública ou privada. A existência pública, quer cívica, quer internacional, exigindo uma participação superior da atividade e da inteligência, torna então os choques mais rudes, e a intervenção do altruísmo mais difícil para moderá-los. Na existência doméstica, porém, o predomínio do sentimento sendo imensamente maior, a simpatia pode evitar mais os atritos; e, quando eles se dão, atenuar e anular mesmo as suas reações. Com efeito, a certeza de uma afeição profunda e mútua bem como de uma sincera estima recíproca espontaneamente assegura a todos que cada um julga então proceder conforme as aspirações do mais puro amor de que é capaz. De sorte que só resta imputar a erros fatais de apreciação as injustiças e os descuidos de que porventura se é vítima.

A moral positiva nos patenteia hoje que os extravios do espírito são, mesmo em tais casos, devidos muitas vezes à inconsciente reação da personalidade[2]. O catolicismo já tinha apanhado semelhante verdade, embora através das ilusões teológicas relativas à nossa natureza moral. A Religião da Humanidade vem pois sistematizar cientificamente os hábitos de humildade instituídos pelo regime medievo, tornando-nos atentos às ciladas das nossas propensões egoístas. Mas, por outro lado, a mesma Religião consolida igualmente a tendência vulgar a interpretar simpaticamente o procedimento dos entes que nos são mais caros. Porque nos mostra a impossibilidade do altruísmo superar o egoísmo sem as luzes que só podem provir da evolução coletiva, e que se tornam extremamente vacilantes nas épocas de dissolução religiosa.

A Moral só conseguiu, porém, tornar-se uma ciência positiva, justamente depois que o nosso Mestre consumou o seu surto[3] altruísta, graças ao amor inspirado pela sublime grandeza de Clotilde. A concepção científica da nossa alma só atingiu a sua forma definitiva em 4 de janeiro de 1850; e, desde então, a verdadeira natureza dos pendores benévolos foi ficando cada vez mais bem caracterizada. Na Síntese Subjetiva, escrita em 1856, o nosso Mestre formulou esta conclusão: “Todos os sofismas do orgulho não podem impedir o espírito positivo de reconhecer que toda revolta emana dos impulsos pessoais” (Síntese Subjetiva, p. 16).

Semelhante verdade é tão incontestável como o princípio que toda estimulação a alimentar-se provém do instinto nutritivo. O altruísmo intervém em tais casos apenas para determinar o inteligência a julgar da conveniência ou inconveniência simpática da inspiração egoísta. Porque, à vista da nossa organização e da nossa situação, a existência humana exige o concurso permanente dos instintos individuais com as propensões benévolas. Donde resulta que a virtude não consiste na anulação dos pendores egoístas, e sim na sua conveniente subordinação contínua ao amor.

Portanto, na época que estamos considerando[4], as melhores almas[5] mesmo se viam na fatal contingência de sofrer inconscientemente as reações da personalidade em um grau que o conhecimento positivo da nossa natureza teria impedido. Essa circunstância serve sem dúvida para realçar ainda mais a grandeza moral das naturezas superiores e patentear o alcance espontâneo do altruísmo delas. Mas a apreciação de cada conduta se torna assim mais melindrosa, em conseqüência da dificuldade de reconhecer que o procedimento foi sempre o mais altruísta que as condições de cada um comportava. E, por outro lado, ficaram possíveis erros e equívocos tanto mais dolorosos, quanto o esclarecimento da situação, de modo a permitir o restabelecimento da concórdia anterior, exigia condições que só o tempo permitiria realizar e de que uma morte prematura[6] frustra tão comumente!

(Raimundo Teixeira Mendes, O ano sem par, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900, p. 451-453).



[1] Na transcrição abaixo mantivemos a pontuação original, mas atualizamos a grafia.

[2] A “personalidade”, neste trecho (como também adiante), tem o sentido de individualismo ou egoísmo.

[3] “Surto”, aqui, significa “desenvolvimento”.

[4] A época em questão é a década de 1840 na França.

[5] A expressão empregada por Teixeira Mendes é um pouco abstrata, mas ele refere-se em particular a Augusto Comte e a Clotilde.

[6] A “morte prematura” é a de Augusto Comte, em 5 de setembro de 1857, em que ele não conseguiu dar continuidade a inúmeras reflexões sociais e morais anunciadas, em particular para os volumes 2 a 4 da sua Síntese subjetiva; mas, bem vistas as coisas, a morte prematura também pode ser entendida como a de Clotilde, que faleceu em 5 de abril de 1846.

31 outubro 2024

Miguel Lemos e Teixeira Mendes apreciam-se mutuamente

A partir de nossa prédica de 23 de Descartes de 170 (29.10.2024) (Entendendo a atuação de Miguel Lemos e Teixeira Mendes), nosso amigo Hernani Gomes da Costa lembrou-se de duas referências mútuas de Miguel Lemos (1854-1917, fundador e Diretor da Igreja Positivista do Brasil) e Raimundo Teixeira Mendes (1855-1927, fundador e Vice-Diretor da IPB), um a respeito do outro; são as citações abaixo.

Os comentários de Teixeira Mendes sobre Miguel Lemos foram elaborados por ocasião das conversas sobre a sucessão de Miguel Lemos na direção da IPB, haja vista os problemas de saúde que acometiam Miguel Lemos.

Já os comentários de Miguel Lemos sobre Teixeira Mendes são menos específicos em sua conjuntura e consistem em uma avaliação mais ampla de seu amigo e colega.

Escritos após várias décadas de atuação como sacerdotes da Humanidade, os dois trechos são notáveis em termos de respeito mútuo, adesão à doutrina e de evidenciar a superioridade moral, mental e prática de ambos.

Eis os trechos:

- Teixeira Mendes sobre Miguel Lemos (Décima oitava circular anual da IPB, 1901):

“A minha convicção a tal respeito [da sucessão apostólica] é tão inabalável que todas as vezes que o Miguel alega sua insuficiência e manifesta o desejo de deixar a direção eu me oponho aos seus argumentos. Seria a única das suas resoluções a que eu jamais me submeteria. Porque quaisquer que tivessem sido as provas de capacidade apresentadas pelo confrade a quem ele quisesse passar a direção, se este confrade aceitasse semelhante investidura, ofereceria com isso, segundo tudo o que sei do Positivismo e tudo quanto aprendi dos antecedentes católicos, a demonstração irrefutável da inferioridade moral e mesmo mental de semelhante sucessor”.

Miguel Lemos sobre Teixeira Mendes (Posititivisme et laffittisme, 1902):

“Teixeira Mendes foi de início meu lugar-tenente, mas ele não tardou em tornar-se meu colega, pela importância de sua colaboração, e meu superior por suas qualidades intelectuais e morais. Se nesse caso, como em muitos outros, a hierarquia oficial não corresponde exatamente à hierarquia real, a falta deve-se ao meu eminente amigo, que não vem tomar meu lugar como eu desejaria ceder-lhe. Por seu ardor social, sua elevação moral, suas aptidões e conhecimentos teóricos e, sobretudo, pelo seu conhecimento aprofundado da doutrina, eu estimo que Teixeira Mendes seja o discípulo mais completo que nosso Mestre teve até aqui no mundo inteiro”.


 

30 outubro 2024

Entendendo a atuação de Miguel Lemos e Teixeira Mendes

No dia 23 de Descartes de 170 (29.10.2024) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua décima terceira conferência, dedicada à evolução histórica própria ao Ocidente (em particular, tratando do duplo movimento moderno).

Na parte do sermão abordamos a atuação de Miguel Lemos e Teixeira Mendes.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://www.youtube.com/watch?v=pYyA6e-ptbg) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://www.facebook.com/IgrejaPositivistaVirtual/videos/579410534647835/).

Os tempos da prédica foram estes:

00 min 00 s - início da prédica

02 min 14 s - exortações iniciais

11 min 41 s - efemérides

21 min 40 s - leitura comentada do Catecismo positivista

01 h 02 min 53 s - entendendo a atuação de Miguel Lemos e Teixeira Mendes

01 h 49 min 00 s - sobre o preconceito de Sérgio Buarque do "secreto horror à realidade" 

02 h 01 min 47 s - exortações finais

02 h 08 min 50 s - invocação final

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

*   *   *

Adendo de 31.10.2024:

A partir da prédica indicada acima, nosso amigo Hernani Gomes da Costa lembrou-se de dois elogios mútuos de Miguel Lemos e Teixeira Mendes. Como esses elogios são belos e mesmo impressionantes, em vez de apenas os reproduzirmos no roteiro abaixo, decidimos publicá-los em uma postagem toda própria. É esta a nova postagem: Miguel Lemos e Teixeira Mendes apreciam-se mutuamente.

*   *   *

Prédica positiva

(23.Descartes.170/29.10.2024) 

1.       Invocação inicial

2.       Exortações iniciais

2.1.1. Sejamos altruístas!

2.1.1.1.             Em particular 1: doemos sangue!

2.1.1.2.             Em particular 2: mutirão para obter endereços eletrônicos

2.1.2. Façamos orações!

2.1.3. Façamos o Pix da Positividade! (Chave Pix: ApostoladoPositivista@gmail.com)

3.       Efemérides

3.1.     Dia 22 de Descartes (28.10): transformação de Edgar de Proença Rosa (2001)

3.2.    Dia 23 de Descartes (29.10): centenário de nascimento de E. Kant (1724)

3.3.    Dia 27 de Descartes (2 de novembro): dia de finados

3.4.    Dia 28 de Descartes (3 de novembro): transformação de J.-F. E. Robinet (1899)

3.5.    Menção honrosa à tese de doutorado em Antropologia de Vaida Norvilaite, na New School for Social Research (Nova Iorque), intitulada “The Afterlife of Positivism: Intellectual Ethnography of Auguste Comte’s Church of Humanity in Brazil”

4.       Leitura comentada do Catecismo positivista

4.1.    Leitura da décima terceira conferência, dedicada à tríplice transição ocidental e ao duplo movimento moderno

5.       Sermão: entendendo a atuação de Miguel Lemos e R. Teixeira Mendes

5.1.     O tema de hoje é tanto uma pequena homenagem aos apóstolos da Humanidade no Brasil quanto uma apreciação de sua atuação

5.1.1. Embora a apreciação de suas ações seja por si só uma homenagem, parece-me que é importante explicitamente os homenagear

5.1.2. Esse tema veio-me à mente por duas vias:

5.1.2.1.             Por um lado, em diversos momentos já ouvi ou li comentários no sentido (negativo) de que os apóstolos teriam sido meros repetidores de Augusto Comte

5.1.2.2.             Por outro lado, quanto mais leio os textos dos apóstolos, em particular de Teixeira Mendes, mais e melhor conheço e entendo Augusto Comte e o Positivismo e mais percebo a elevação moral, intelectual e prática dos próprios apóstolos

5.2.    Comecemos então com a homenagem

5.2.1. Alguns dados biográficos muito sumários:

5.2.1.1.             Miguel Lemos nasceu em Niterói em 25.11.1854 e faleceu em Petrópolis em 10.8.1917; em 1874 matriculou-se na Escola Central (depois Escola Politécnica) do Rio de Janeiro, onde teve contato com o Positivismo; em 1876, juntamente com Benjamin Constant, Teixeira Mendes, Oliveira Guimarães e outros, fundou o Centro Positivista Brasileiro; em 1877, em virtude de uma manifestação contrária ao diretor da Escola Politécnica (Visconde do Rio Branco), ele e Teixeira Mendes foram suspensos por dois anos, indo então para Paris, estudar com Pierre Laffitte; aí, após alguns anos, recebeu a investidura de aspirante ao sacerdócio em 1881 e voltou ao Brasil, onde transformou em 11 de maio de 1881 a modesta Sociedade Positivista do Brasil em Igreja e Apostolado Positivista Brasileiro, muito mais arrojado; iniciou uma intensa propaganda e atividade religiosa, política e social, lançando a pedra fundamental do prédio da IPB em 1887; sendo o Diretor da IPB, a partir da década de 1890 sua atividade diminuiu, cedendo espaço para Teixeira Mendes, seu amigo, cunhado e Vice-Diretor da IPB; em 1903 afastou-se formalmente da direção da Igreja, devido a problemas de saúde, e faleceu em 1917

5.2.1.2.             Raimundo Teixeira Mendes nasceu em 5 de janeiro de 1855 em Caixas (Maranhão) e faleceu em 28.6.1927 no Rio de Janeiro; mudou-se para a capital em 1867, para concluir o primário e fazer o ensino secundário; em 1874 matriculou-se na também Escola Central, onde teve contato com o Positivismo via Benjamin Constant e, em 1875, já afirmava publicamente sua adesão à doutrina; também conheceu Miguel Lemos em 1874-1875 e tornaram-se amigos e colegas de doutrina; em 1876 foi cofundador da Sociedade Positivista Brasileira e matriculou-se na faculdade de Medicina; em 1877 foi com Miguel Lemos para Paris; a partir daí, especialmente nas décadas iniciais, seguiu os passos do amigo e líder; em 1881 voltou ao Brasil e, após alguns meses atuando na Sociedade Positivista Brasileira, refundou-a como IPB, na função de Vice-Diretor, até a sua morte, em 1927; em 1903, quando Miguel Lemos viu-se obrigado a deixar a posição de Diretor, Teixeira Mendes recusou-se a assumir a posição do amigo, em vista da superioridade moral, intelectual e prática que percebia nele

5.2.1.3.             Vale notar que ambos eram amigos íntimos e que um gozava da mais plena confiança do outro; casaram-se com duas irmãs; em inúmeros momentos (como nas linhas iniciais de As últimas concepções de Augusto Comte), Teixeira Mendes fala do “chefe e amigo” Miguel Lemos

5.2.1.4.             Uma belíssima biografia de ambos é o livro Os dois apóstolos, do paranaense João Pernetta, escrito em 1927-1929 em três volumes, logo após a transformação de Teixeira Mendes

5.2.2. Desde quando conheceram o Positivismo, ambos já eram pessoas superiores; mas a atividade como apóstolos da Humanidade elevou-os ainda mais

5.2.2.1.             O homem superior pela inteligência é um gênio; um homem superior pelo caráter é um herói, um estadista ou, talvez, um gênio prático; um homem superior pelos sentimentos é um santo: indiscutivelmente Miguel Lemos e, ainda mais, Teixeira Mendes eram santos – sem embargo de suas altas qualidades intelectuais e práticas

5.2.2.2.             Não fazemos essas observações para bajulá-los postumamente, mas porque eles realmente eram superiores: basta ler seus escritos (mas, claro, é necessário de fato ler esses escritos)

5.2.3. Assim, o respeito e o culto à sua memória não é algo banal, mecânico, dogmático ou, ainda, fanático: é o respeito devido a pessoas que se dedicaram intensamente a atividades públicas de alto valor, com altruísmo e responsabilidade e sendo exemplos para todos

5.2.3.1.             Assim, a melhor maneira de percebermos o seu valor é por meio da sua atuação pública, ou seja, por meio dos seus escritos

5.2.3.2.             Importa notar que eles atuaram entre o final do século XIX e o começo do século XX (entre 1881 e 1927): nesse período, a atuação pública dava-se por meio de manifestações orais (presenciais) e por meio de escritos (livros, artigos, panfletos, manifestos); os meios de comunicação de massa além dos jornais ainda não existiam (ou, no caso do rádio, ainda não eram disseminados)

5.2.4. Um comentário que é lateral mas que eu não poderia jamais deixar de fazer: mutatis mutandis, todos os elogios que fazemos a Miguel Lemos e a Teixeira Mendes são também devidos aos grandes irmãos Lagarrigues (Jorge, João Henrique, Frederico e Luís), que atuaram no Chile e em Paris

5.3.    Consideremos a sua atuação pública, começando pela seguinte observação: é um profundo erro considerá-los como (1) somente “repetindo Augusto Comte” e (2) que por isso eles teriam pouco valor

5.3.1. Essas duas noções baseiam-se em um preconceito academicista e intelectualista segundo o qual o valor de um pessoa, ou melhor, de um intelectual vincula-se à produção intelectual original

5.3.2. O que Miguel Lemos e Teixeira Mendes fizeram foi atuar verdadeiramente como um “poder espiritual”, difundindo, explicando e aplicando o Positivismo

5.3.2.1.             Nos dias atuais, o que o Positivismo chama de “poder espiritual” é chamado pelo academicismo de “intelectuais”

5.3.2.2.             Entretanto, a noção de intelectuais é caracteristicamente individualista (um intelectual é alguém percebido como um indivíduo isolado, não um membro mais ou menos destacado de uma corporação) e anticlerical (essa noção foi elaborada desprezando os cleros em termos históricos e em termos conjunturais, a partir de 1895, com o Caso Dreyfus)

5.3.2.3.             O conceito positivista de poder espiritual é muito superior ao de “intelectual”, pois é historicamente mais amplo, socialmente mais profundo e moralmente mais correto

5.3.2.4.             Enquanto os intelectuais são indivíduos que falam em nome de ideais abstratos ou em defesa de questões específicas, o poder espiritual atua como conselheiro, consagrador e regulador, além de organizador, mantenedor e intérprete da opinião pública, avaliador/fiscal e educador

5.3.3. Então, o que alguns desmerecem afirmando que Miguel Lemos e Teixeira Mendes foram meros repetidores de Comte, na verdade foi, sim, feliz, necessária e exatamente isso – e muito, muito mais:

5.3.3.1.             Antes de mais nada, a educação, isto é, a atividade pedagógica baseia-se em larga medida na repetição: para aprender alguma coisa, temos que repetir e/ou temos que ler e ouvir repetidamente vários conceitos

5.3.3.1.1.                   Para não gerar equívocos desnecessários e cansativos: essa repetição não é necessariamente maquinal, não é necessariamente privada de criatividade, não é necessariamente a repetição dos mesmos termos e das mesmas expressões e não ocorre sem a autonomia individual (a “agência” individual)

5.3.3.2.             Em segundo lugar, na absoluta maior parte das vezes essa “mera repetição” deu-se em meio a explicações da obra de Augusto Comte, ou seja, teve um caráter verdadeiramente pedagógico

5.3.3.2.1.                   Nesses casos, era necessário repetir os conceitos para poder explicar adequadamente Augusto Comte ou, inversamente, era necessário repetir as citações de Augusto Comte para poder explicar os conceitos

5.3.3.2.2.                   Além disso, no caso das citações repetidas, a repetição era necessária para comprovar que os conceitos apresentadas eram conformes as idéias de Augusto Comte, ou seja, que suas interpretações eram corretas

5.3.3.3.             Como um verdadeiro poder espiritual, além do aspecto estritamente pedagógico, os apóstolos aplicaram as concepções de Augusto Comte à realidade social carioca, brasileira, sul-americana, ocidental e mundial

5.3.3.3.1.                   Temos que ter clareza de que, para aplicar algum conceito, convém conhecer esse conceito: assim, a repetição com freqüência impunha-se como condição para a aplicação

5.3.3.3.2.                   A respeito da aplicação prática dos conceitos positivistas, é necessário termos clareza de três aspectos intimamente vinculados: (1) uma doutrina só tem valor efetivo quando ela é aplicada e aplicável na realidade; (2) a aplicação só ocorre quando há agentes responsáveis por essa aplicação; (3) a aplicação envolve sempre e necessariamente a criatividade (além de exigir coragem prática e intelectual)

5.3.3.4.             Os apóstolos, em particular Teixeira Mendes, realizaram esforços enormes para explicar e historiar o Positivismo; nesses esforços vê-se o Positivismo em ação, com o estímulo do altruísmo, com o altruísmo inspirando e orientando a inteligência e a atividade prática etc.

5.3.3.4.1.                   As publicações da IPB sob a responsabilidade de Miguel Lemos e Teixeira Mendes compreende bem mais de 500 títulos; em meio a essa impressionante atividade, considero que bastam apenas alguns volumes para ilustrar o que quero dizer: o Esboço biográfico de Benjamin Constant (1892), As últimas concepções de Augusto Comte (1898), Uma visita aos lugares santos do Positivismo (1899), O ano sem par (1900), O culto católico (1903), os escritos Pela Humanidade! (mais de dez títulos, em português e francês, escritos durante a I Guerra Mundial)

5.3.3.5.             Além disso tudo, há também efetivamente obras inovadoras; podemos considerar aí As últimas concepções de Augusto Comte (1898), A filosofia química segundo Augusto Comte (1898), O ano sem par (1900), O culto católico (1903)

5.4.    Uma concepção que se aproxima bastante da idéia dos apóstolos como “meros repetidores”, mas que por si só é diferente dela, é o preconceito desenvolvido pelo historiador paulista Sérgio Buarque de Holanda, para quem os positivistas tinham um “secreto horror à realidade”

5.4.1. Para expor com algum detalhe a atuação dos apóstolos, retomo algumas considerações feitas em 2014 e publicadas nos livros Laicidade na I República (Curitiba, Appris, 2016) e, em particular, no cap. 6 de Comtianas brasileiras (Curitiba, Appris, 2018)

5.4.1.1.             Reproduzirei uma tabela e repetirei algumas reflexões que fiz no final do cap. 6 de Comtianas

5.4.1.2.             O objetivo dessa repetição é retomar uma reflexão que, embora surgida de outras preocupações, cabe muito bem aqui

5.4.2. Nos documentos indicados acima, fiz a análise dos temas de 355 títulos da IPB publicados entre 1881 e 1927, chegando a 27 categorias principais:

Distribuição das categorias principais

 

CATEGORIAS PRINCIPAIS

N.

%

1.            

Abolição da escravidão

8

2,25

2.            

Aliança religiosa

2

0,56

3.            

Casamento civil

6

1,69

4.            

Catolicismo

3

0,85

5.            

Combate à imigração

1

0,28

6.            

Comemoração histórica

17

4,79

7.            

Culto católico

1

0,28

8.            

Culto positivista

54

15,21

9.            

Despotismo sanitário

25

7,04

10.          

Ensino obrigatório

12

3,38

11.          

História do Positivismo no Brasil

26

7,32

12.          

Indigenismo

10

2,82

13.          

Liberdade comercial

1

0,28

14.          

Liberdade de testar

1

0,28

15.          

Liberdade espiritual

13

3,66

16.          

Liberdade profissional

3

0,85

17.          

Militarismo

15

4,23

18.          

Organização da República

55

15,49

19.          

Proclamação da República

10

2,82

20.          

Incorporação do proletariado

1

0,28

21.          

Reforma ortográfica

5

1,41

22.          

Relações internacionais

43

12,11

23.          

Separação Igreja-Estado

14

3,94

24.          

Teoria do Brasil

2

0,56

25.          

Teoria política

23

6,48

26.          

Teoria médica

1

0,28

27.          

Teoria psicológica

3

0,85

 

TOTAL

355

100,00

  

Categorias principais recorrentes

 

CATEGORIAS PRINCIPAIS

N.

%

1.             

Organização da República

55

15,49

2.             

Relações internacionais

43

12,11

3.             

Despotismo sanitário

25

7,04

4.             

Teoria política

23

6,48

5.             

Militarismo

15

4,23

6.             

Separação Igreja-Estado

14

3,94

 

TOTAL

179

49,29

 

5.4.3. Esses dados indicam que a atuação dos apóstolos foi bastante variada, abarcando uma grande quantidade de temas e assuntos; ao mesmo tempo em que se dedicaram com atenção e cuidado aos aspectos religiosos do Positivismo, também atuaram de maneira cívica, intervindo em temas que agitavam a opinião pública e nos quais um poder espiritual era necessário

5.4.3.1.             Cerca de metade (49,29%) dos opúsculos aborda questões concretas e de caráter cívico imediato, com profundas implicações para a vida coletiva, para as famílias e para os indivíduos

5.4.3.2.             Como indiquei nos livros acima, essa atuação rejeita de maneira cabal o degradante preconceito manifestado pelo historiador paulista Sérgio Buarque de Holanda (em Raízes do Brasil, de 1936), segundo quem os positivistas, assim como os intelectuais da I República, eram “grandes ledores”, intelectualmente molengas, que tinham “um secreto horror à realidade”

5.4.4. Em face do preconceito criado por Sérgio Buarque, impõem-se as seguintes reflexões:

5.4.4.1.             Os positivistas, em particular Miguel Lemos e Teixeira Mendes, desejavam reformar a sociedade; “Sua preocupação era constituir uma nova opinião pública, ou, por outra, uma opinião pública renovada. Buscavam aconselhar, sugerir, orientar, ensinar; transmitiam valores e ideias e rejeitavam o mando”

5.4.4.2.             Essa atuação era extremamente realista – mas “realista” no sentido positivo, ou seja, conhecendo a realidade, entendendo os problemas e, a partir do altruísmo, da fraternidade universal, da dignidade humana, da atividade pacífica, colaborativa e construtiva, propondo soluções

5.4.4.3.             Além disso, cabe refletir:

“qual seria o oposto do ‘horror à realidade’, isto é, como se poderia entender alguma forma de ‘aceitação da realidade’? Não é aceitável a proposta, avançada por Sérgio Buarque, de que consistiria em propor soluções para os problemas denunciados ou mesmo soluções críveis para tais problemas: os ortodoxos proponham, sim, soluções e eram soluções críveis, factíveis. Mas o que mais poderia ser a ‘adequação à realidade’? Aceitar que a ‘questão social’ fosse tratada como ‘caso de polícia’? Aceitar que as oligarquias explorassem o proletariado urbano, os imigrantes europeus e asiáticos e, principalmente, mantivessem a discriminação contra os negros ex-escravos? Aceitar que dizimassem os índios brasileiros? Aceitar a Realpolitik como princípio de regulação entre as unidades políticas, quer fossem entes da federação (os estados), quer fossem estados nacionais? Poderíamos continuar a lista ad infinitum.

Os ortodoxos não tinham nenhum ‘horror à realidade’, secreto ou não. E mesmo que, por hipótese, eles fossem mais idealistas do que eram, qual o problema? O papel do intelectual, dizem e teorizam muitos, é propor alternativas ao que ‘aí está’, é, precisamente, ser utópico. Ora, Augusto Comte defendia o conceito de utopia, entendendo-o, entre outros elementos, como a antecipação de uma realidade social possível: os ortodoxos diziam exatamente isso”

5.5.    Para concluir, a atuação dos apóstolos da Humanidade foi verdadeiramente exemplar, ou seja, eles atuaram de maneira positiva no Brasil, na América do Sul e no mundo, além de oferecerem um importante e fortíssimo exemplo de conduta moral, intelectual, prática, nos âmbitos público e privado, que podem e devem ser imitados, ou melhor, emulados em todos os lugares

5.5.1. Cremos que reconhecer, valorizar e emular as contribuições de Miguel Lemos e Teixeira Mendes é a melhor homenagem que lhes podemos fazer

6.       Exortações finais

7.       Invocação final