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10 junho 2025

Monitor Mercantil: Parlamento e jornalismo, intrigas e fofocas

No dia 9 de junho o jornal carioca Monitor Mercantil publicou o meu artigo "Parlamento e jornalismo, intrigas e fofocas".

A versão do jornal está disponível aqui.

Reproduzimos abaixo o texto.

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Parlamento e jornalismo, intrigas e fofocas

Jornalismo reduz política às fofocas em associação com financismo 

Por Gustavo Biscaia de Lacerda

TV digital aberta (foto de Valter Campanato, ABr)

Considera-se, de modo geral, que jornalismo e política devem andar juntos e que tanto cada um deles, em particular, quanto sua união são virtuosos. Entretanto, essas concepções são altamente discutíveis e, com frequência, equivocadas.

A princípio, não há o que discutir a respeito da importância da política. Ela é importante porque organiza a vida coletiva; gostemos ou não, queiramos ou não, todos estamos sob a influência necessária da atividade política. Mas a submissão necessária à política gera, amiúde, confusões práticas e teóricas, nas quais se considera que “tudo é política”, ou seja, que tudo se reduz à disputa de poder.

Por mais importante que seja a política, a sociedade não se reduz a ela: os aspectos filosóficos, culturais e morais regulam, moldam e orientam a política; já os aspectos materiais sempre exercem sua pressão. O resultado é que a política molda, mas também é moldada.

Mas há várias maneiras de entender a política; em inglês, distingue-se a politics (a política do dia a dia), a polity (a estrutura sociopolítica geral, que alguns traduzem como “constituição”) e a policy (cada uma das políticas públicas). A disputa de poder corresponde à politics, ao passo que as policies e, ainda mais, a polity exigem consensos, convergências, legitimidade e aceitação de regras. Claro que a politics influencia a polity e as policies, mas confundir uma coisa com as outras, reduzir a polity à politics, é um grave erro, resultando apenas em cinismo e violência.


Passemos ao jornalismo. Sua missão básica é informar os acontecimentos; assim, há vários tipos de jornalismo: investigativo, científico, econômico, de amenidades etc. Mas talvez o mais famoso e prestigiado seja o político. O jornalismo político dedica-se a narrar o dia a dia da política: ele se concentra na politics. Como as policies e a polity são de longo prazo e conceituais, elas são “chatas”, desinteressantes e não recebem atenção jornalística.

A preferência jornalística pela politics e a rejeição da polity-policy têm várias consequências. Uma primeira é a concentração das coberturas na atividade parlamentar; uma segunda é a defesa (implícita ou explícita) da atividade dos parlamentares contra o governo. A política do dia a dia é das disputas, das briguinhas, dos ciúmes, das intrigas… Com frequência, isso recebe o título edulcorado de “negociações”, mas essa é apenas uma forma empolada de referir-se ao que costuma ser apenas mesquinhez.

O jornalismo especializado em intrigas e mesquinhez não é outra coisa senão fofoca. Como as intrigas são incessantes, mas despertam interesse e paixões, os fofoqueiros têm prestígio e legitimam a concepção de que as fofocas que noticiam (“repercutem”) são a “verdadeira” política. Claro que os políticos — ou melhor, os parlamentares — saem ganhando com isso, obtendo exposição pública e sendo apresentados como “ativos”, “representativos” etc.

Esse é um sistema que se retroalimenta, em que os parlamentares (especialmente no parlamentarismo) e os jornalistas beneficiam-se mutuamente: as intrigas mesquinhas são vendidas como a verdadeira política, e as fofocas parlamentares são vendidas como verdadeiras notícias. Esses dois blocos falam em causa própria e apoiam-se mutuamente, de maneira altissonante ou até estridente; com isso, as fofocas são apresentadas como a opinião pública, e as intrigas, como a manifestação do bem comum.

Tudo isso é péssimo. Para piorar, no Brasil, o jornalismo econômico não se preocupa em informar, mas atua ativa e conscientemente como porta-voz do liberalismo econômico, isto é, de elites financistas internacionais que não querem a regulação do capital nem sua taxação e, para isso, impõem as concepções de Estado mínimo, de iniciativa privada “eficiente” e de servidores públicos incompetentes. É fácil ver que o jornalismo de fofocas é convergente com os porta-vozes do financismo internacional.

Augusto Comte, o fundador da Sociologia, já criticava e denunciava, no século 19, essa união entre o jornalismo de fofocas e a política parlamentarista — que, devemos repetir, finge ser a opinião pública e despreza a política como projeto social amplo. Desgraçadamente, o que o fundador do Positivismo criticava já em 1824 corresponde à realidade brasileira atual.

O que se vê nos grandes jornais do país é exatamente a fofoca parlamentar vendida como jornalismo político e as intrigas parlamentares vendidas como grande política. Esse vínculo é camuflado pelas críticas reiteradas que se fazem à “falta de habilidade” do presidente Lula para “negociar” com o Congresso Nacional: o parlamento é fortemente reacionário e assustadoramente corporativista, duas características que foram estimuladas pelo governo anterior em sua busca dupla de dar um golpe de Estado e de evitar o impedimento.

Claro que o viés conservador do atual parlamento torna-o mais reticente às propostas do governo; mas os recursos que a Constituição Federal de 1988 legou ao presidente da República sempre bastaram para acomodar ou contornar dificuldades ideológicas. Entretanto, desde 2019 — na verdade, desde antes, desde 2016 —, o Congresso Nacional aprofundou cada vez mais o seu caráter clientelista, corporativista e — não há como evitar — parasitário, cobrando um preço cada vez maior para manter um simulacro de “governabilidade”. Esse parasitismo, associado ao golpismo/anti-impedimento, encontrou seu paroxismo no aberrante “orçamento secreto”.

Uma característica notável do atual governo Lula é sua moderação; seu lema de campanha — “União e reconstrução” — dá a exata medida das necessidades atuais do país e evidencia o aspecto profundamente republicano de sua proposta. Sendo bem direto, essa é uma proposta de um verdadeiro estadista. É claro que Lula não é perfeito e que as mais diversas críticas podem ser feitas contra ele, como a respeito da política identitária, com suas cotas divisionistas, e das ambiguidades em relação à Rússia e à China; mas, no conjunto, o governo está na direção certa e adota as medidas urgentes e necessárias para o desenvolvimento social e econômico do país.

Se está na direção certa, o que dificulta a ação de Lula? Basta bom senso e honestidade para perceber que é o parlamento parasitário, que é mesquinho, impede o desenvolvimento nacional, trai a confiança do governo e protege — senão estimula — o golpismo fascista. Por seu turno, o jornalismo político, reduzindo a política às fofocas e em associação com os porta-vozes do financismo internacionalista, finge que tudo isso não é uma agressiva chantagem nem o bloqueio de um programa social e político verdadeiramente republicano.

Não há país que vá para frente nessas condições. Mas também não há soluções simples: é necessário evitar — ou combater — a demagogia extremista (atualmente na versão fascista) e as fake news, que correspondem às versões extremas e irmanadas do parlamento parasitário e do jornalismo de fofocas. O caminho é longo.

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

05 junho 2025

Valter Duarte Ferreira: "Economia, obstáculo epistemológico"

No dia 15 de São Paulo de 171 (4 de junho de 2025) realizamos uma Live AOP com o cientista político e professor Dr. Valter Duarte Ferreira Filho (UERJ e UFRJ), que fez a exposição "Economia: obstáculo epistemológico", tratando das origens filosóficas, políticas e sociais do que se chama de "economia".

Essa Live AOP, como de hábito, foi transmitida exclusivamente no canal Positivismo e está disponível aqui: https://youtube.com/live/VnRZqumyAFw.



As idéias apresentadas também podem ser lidas no livro de mesmo título, disponível na Editora da UERJ: https://eduerj.com/produto/economia-obstaculo-epistemologico-estudo-das-raizes-politicas-e-religiosas-do-imaginario-liberal/
Além disso, o Prof. Valter mantém um canal no Youtube, disponível aqui: https://www.youtube.com/channel/UCsWfjyhs2nhgtrW1KMuxlww.

Por fiim, o Prof. Valter sugeriu a leitura de dois livros do pesquisador Daniel Kosinski, que seguem a inspiração teórica das concepções defendidas no livro "Economia: obstáculo epistemológico"; esses livros de Daniel Kosinski são estes:


12 setembro 2024

RN24h: "Candidaturas teológicas crescem no país"

No dia 5 de setembro o jornal eletrônico RN24H publicou matéria para a qual fomos entrevistados; a matéria foi intitulada "Candidaturas com viés religioso crescem no Brasil".

O original da máteria pode ser lido aqui.

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Candidaturas com viés religioso crescem no Brasil; entenda motivos

O estudo apontou que o crescimento das candidaturas com viés religioso é 16 vezes superior ao das demais.

Publicado em 5 set 2024, às 23h52.

As candidaturas com viés religioso cresceram 225% em 24 anos no Brasil, segundo pesquisa do Instituto de Pesquisa em Reputação e Imagem (IPRI), da FSB Holding.

Candidaturas com viés religioso crescem no Brasil; entenda motivos
Dados do IBGE, divulgados em 2010, apontam que cerca de 22% da população nacional se declara como evangélica. (Foto: Antonio Augusto/Ascom/TSE)

O IPRI realizou o levantamento com base em dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Foram utilizados filtros para separar esses candidatos e aplicadas palavras-chave como pai, mãe, pastor, pastora, pr., missionário, missionária, bispo, bispa, apóstolo, apóstola, reverendo, irmão, irmã, ir., padre, abençoado, abençoada, babalorixá, ialorixá, ministro, ministra, ogum, exú, iansã, yansã, iemanjá, obaluaê, oxalá, omulu, oxóssi, oxum, oxumaré, xangô

O estudo apontou que o crescimento das candidaturas com viés religioso é 16 vezes superior ao das demais.

Em 2000, as candidaturas com viés religioso representavam 2.215 registros e saltaram para 7.206 em 2024. Já os demais postulantes cresceram 14% no período – de 399.330 para 454.689 pessoas.

“A gente tem mais candidatos que querem se colocar seu nome com esse vínculo. Temos estudos acadêmicos que vão mostrar que a religião evangélica no Brasil cresceu bastante nos últimos 15, 20 anos. E aí temos um contingente maior de eleitorado que vai buscar ter a sua representação política, buscar na democracia o seu representante, aquele que vai defender as suas ideologias”, explica André Jácomo, diretor do IPRI.

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados em 2010, apontam que cerca de 22% da população nacional se declara como evangélica. Como comparação, em 1980 esse número era de 6%.

Para Gustavo Biscaia de Lacerda, sociólogo e pesquisador da Universidade Federal do Paraná (UFPR), esse crescimento das candidaturas evangélicas estão ligadas a uma sucessão de poder entre as matrizes religiosas do país.

“O Brasil é um país que surgiu a partir da colonização portuguesa, então a maior parte das nossas instituições é herdeira das instituições portuguesas. A Igreja Católica integrava plenamente a estrutura de poder no Brasil. A partir dos anos 1970, os evangélicos começam a se organizar de maneira mais agressiva. É um projeto muito explícito”, avalia o sociólogo.

Biscaia de Lacerda também apontou que foi a partir da década de 2010 que os evangélicos conseguiram ingressar de vez na política nacional.

“Por causa da mobilização da Lava Jato e pela crise de legitimação do Estado, os evangélicos passaram a deixar de querer ser somente sócios para serem os ativistas, os atores principais das coligações de poder. Então é uma lógica querer usar o Estado para impor suas crenças, mesmo em um Estado Laico”, prossegue.

Atualmente a bancada evangélica no Congresso Nacional reúne o maior conjunto de parlamentares na comparação com os demais grupos. Compõem essa frente parlamentar 213 deputados e 26 senadores.

Entre os paranaenses, fazem parte dessa bancada os deputados Diego Garcia (Republicanos), Felipe Francischini (UNIÃO), Filipe Barros (PL), Pedro Lupion (PP), Sargento Fahur (PSD) e Vermelho (PL), além do senador Flávio Arns (PSB).

Eleitores conservadores puxam candidaturas religiosas

Pesquisa desenvolvida pelo Ipec em 2024 apontou que 27% dos entrevistados se consideram conservadores. Por outro lado, 23% se definem como modernos ou progressistas.

Mesmo com empate técnico entre esses dois polos é possível apontar que o voto conservador é uma tendência nas disputas eleitorais. Com isso, os candidatos com viés religioso conseguiram uma base eleitoral para crescer nos últimos anos.

“Então uma vez que o eleitor demanda candidatos com uma ideologia mais conservadora, naturalmente a oferta desses candidatos tende a ser maior, que eles busquem se vincular dentro da forma como eles vão aparecer para esse eleitorado”, analisa Jácomo.

Biscaia de Lacerda observa que essa tendência do eleitorado conservador também encontra brechas para crescer dentro dos governos da esquerda no Brasil.

“Nós temos pobreza generalizada e ao mesmo tempo, uma insegurança social muito grande. E a esquerda lida muito mal com esse tema. A esquerda fica dizendo que o problema da segurança é causado pelas injustiças do capitalismo. Isso é muito bom, muito bonito, mas não resolve o problema”, complementa o sociólogo.

E dentro dessas brechas, Biscaia de Lacerda acredita que a comunicação das igrejas evangélicas é mais assertiva – até mesmo na comparação com a Igreja Católica.

“As igrejas evangélicas têm um apelo muito direto, muito imediato. É uma teologia altamente individualista e do sucesso aqui e agora. A teologia processual não vai combater a criminalidade, mas promete organizar a sociedade evitando ela. Os evangélicos em particular satisfazem, bem ou mal, as necessidades muito claras para a população”, finaliza.

Metodologia da pesquisa citada

A pesquisa Ipec, contratada pela Rede Globo, ouviu 2.512 pessoas entre 9 e 11 de setembro em 158 municípios.

A margem de erro é de dois pontos percentuais para mais ou para menos, considerando um nível de confiança de 95%.

07 novembro 2023

Moral, moralidade, moralismo

No dia 3 de Frederico de 169 (7.11.2023) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua nona conferência, dedicada ao conjunto do regime.

No sermão abordamos o tema da moral e da moralidade no Positivismo, bem como as críticas de "moralismo" que, por vezes, autores materialistas e imoralistas fazem contra a Religião da Humanidade.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://l1nk.dev/sUpIN) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.dev/qNoT7). O sermão começou aos 47' 18".

As anotações que serviram de base para a exposição oral do sermão encontram-se reproduzidas abaixo.

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Sobre moral e moralismo 

-        Como sabemos, o tema da moral é um dos mais importantes da Religião da Humanidade

-        Falar da “moral” no âmbito do Positivismo é ao mesmo fácil e difícil

o   É fácil porque em toda a Religião da Humanidade esse tema aparece

o   Mas é difícil porque há vários sentidos que se sobrepõem e é necessário um pouco de jogo de cintura (e conhecimento) para entendê-los, diferenciá-los e saber aplicá-los

-        Por outro lado, muitos comentadores do Positivismo e alguns filósofos usam com freqüência a expressão “moralismo” para referirem-se a uma certa ênfase na moralidade

o   Assim, é necessário entender o que seria esse “moralismo” e como o Positivismo encara-o

-        Podemos determinar dois ou três sentidos gerais para a palavra “moral” na Religião da Humanidade:

1)      Sentido 1: parâmetro de avaliação da existência humana, no que se refere ao que é bom, correto e justo, afirmando o caráter coletivo do ser humano

2)      Sentido 2: parâmetro que afirma que a política deve, sempre e necessariamente, subordinar-se à moral

3)      Sentido 3: ciência e arte do ser humano individual

o   Os três sentidos acima mantêm estreitas relações entre si, evidentemente, mas são suficientemente diferentes para que possamos falar deles como distintos entre si

-        Os sentidos 1 e 3 são os mais diferentes entre si; já o sentido 2 pode ser entendido como uma aplicação específica do sentido 1

o   O sentido 1 estabelece que a moralidade positiva é necessariamente coletiva e não individual

§  O caráter coletivo da moralidade positiva é a maior diferença entre as moralidades teológicas e metafísicas, de caráter absoluto, que se baseiam nos indivíduos

§  Uma outra forma de afirmar o caráter coletivo da moral positiva (relativa) em oposição ao caráter individual da moralidade absoluta é ter em mente que o objetivo da moral positiva é afirmar com clareza o altruísmo – que, por definição, move-se na direção dos outros e partir das relações com os outros –, em vez de centrar-se no egoísmo

§  Além disso, esse sentido também afirma o caráter coletivo (e histórico) da realidade humana e dos conhecimentos humanos, em vez de afirmar o individualismo e o solipsismo

o   O sentido 3 centra-se no estudo e no aperfeiçoamento do ser humano individual

§  Após estudar o ser humano como um ser biológico e como um ser social, a Moral concentra-se no ser humano individual

·         A Sociologia estuda as idéias e as ações práticas do ser humano; a Moral estuda os sentimentos

§  Sendo a ciência suprema, a Moral concentra em si todos os resultados das ciências anteriores

§  Assim, a Moral é a ciência mais complicada, a que exige maiores induções (ou seja, mais estudos empíricos), é a objetivamente mais específica mas é a subjetivamente mais geral

§  Da mesma forma, ao ser a ciência suprema, a Moral estabelece a transição natural e suave das ciências para as artes práticas

·         O domínio específico da arte da Moral é o do aconselhamento, o que, nos termos atuais, inclui por um lado a Pedagogia e, por outro lado, as chamadas psicoterapias

o   Assim, o critério de moralidade da Religião da Humanidade é um critério sociológico, isto é, baseado na realidade estudada pela Sociologia; mas a ciência suprema avança um degrau na escala das ciências, rumo à ciência da Moral

§  Se a moralidade positiva baseasse-se na ciência da Moral, o Positivismo manteria sua moralidade baseada no indivíduo: mesmo com a ênfase no altruísmo, centrar-se no indivíduo geraria confusões bastante difíceis de serem contornadas

§  No âmbito da Moral fala-se correntemente em “subjetividade”; mas podemos e devemos entender que a subjetividade é diferente quando se refere aos sentidos 1 e 2 (subjetividade coletiva ou sociológica) e ao sentido 3 (subjetividade individual)

·         Assim, por exemplo, quando Augusto Comte fala em “síntese subjetiva”, a subjetividade a que ele refere-se é a subjetividade humana em geral, isto é, coletiva – que, por sua vez, dependendo das necessidades intelectuais, se for o caso, pode desdobrar-se em subjetividade individual

o   O sentido 2 pode ser entendido como uma aplicação específica, mas importantíssima, do sentido 1

§  Entretanto, a sua importância prática é tão grande que este sentido deve ser indicado à parte

§  Este sentido, ao afirmar a subordinação da política à moral, move-se claramente contra uma tendência afirmada desde o Renascimento na ciência e na política prática, segundo a qual é correto entender a política de maneira separada da moral

§  A separação renascentista entre moral e política deveu-se à decadência do catolicismo: só isso já deveria bastar para indicar o aspecto transitório dessa separação

§  A expressão “política separada da moral”, no caso, significa “tratar a política como se não existisse a moral”

·         Isso sugeriria um entendimento amoral da política, no sentido de que é necessário ter um mínimo de clareza para distinguir-se entre aquilo que é e aquilo que gostaríamos que fosse

·         Entretanto, o entendimento amoral da política logo se converte em, e logo se revela, uma desculpa para o entendimento e a prática imoral da política

o   O amoralismo que se revela, necessariamente, como imoralismo celebra o egoísmo (não raro individualista, mas também nacionalista) como fim e a política de poder como meio (e/ou também como fim)

-        Definidos os sentidos da palavra “moral” na Religião da Humanidade, podemos lembrar quais são os parâmetros da moral no Positivismo:

o   Vale notar que os parâmetros que indicaremos abaixo reúnem e consolidam os três sentidos indicados acima

o   Além disso, os parâmetros que indicaremos podem ser complementados por outros; assim, o que apresentaremos são sugestões mínimas

o   Eis, então, os parâmetros que, pelo menos para o presente momento, podem ser considerados mínimos:

§  Antes de mais nada e acima de tudo, a afirmação do altruísmo e a subordinação do egoísmo a ele

§  A afirmação da vista de conjunto sobre as vistas particulares

§  A afirmação da sociabilidade sobre a personalidade

§  A (re)moralização geral da vida humana, em particular por meio da afirmação e da aplicação do método subjetivo após a conclusão do método objetivo

-        Mudando de questão, o que seria o “moralismo”?

o   Essa é uma expressão difícil, pois seu sentido é sempre negativo e é um adjetivo “crítico”, usado por alguém contra alguma perspectiva específica

§  Em outras palavras, a expressão “moralismo” não é definida com clareza, mas é sempre empregada contra alguma perspectiva específica

o   Os sentidos gerais (ou melhor, geralmente) atribuídos a “moralismo” incluem o seguinte:

§  Hipocrisia e/ou cinismo

·         O “moralismo” seria, neste caso, a falsidade no comportamento, em que os valores morais são usados como desculpas para ações opostas ao que se prega

§  Negação da política

·         Neste caso, o “moralismo” seria a rejeição da realidade da política, que é substituída por afirmações morais

·         A política, nesse caso, significa “disputas de poder”, “disputas de autoridade”

·         A substituição da política pela moral, nesse caso, consistiria em substituir o que é pelo que deve ser

§  Rejeição da realidade dos aspectos sociológicos do ser humano

·         O “moralismo”, neste caso, seria uma espécie de idealismo, ou de espiritualismo, em que os fenômenos morais são afirmados desconsiderando-se a sua base social

o   Esses três sentidos podem ser associados entre si (o que, de fato, geralmente ocorre), mas são suficientemente distintos para que os indiquemos à parte

-        Em diversos momentos já li atribuições ao Positivismo da crítica de “moralista” especialmente no sentido de negação da política, talvez se aproximando do sentido de espiritualismo moral

o   É, ou deveria ser, evidente que essa acusação é despropositada, para não dizer ridícula

o   Por um lado, a afirmação de que a Religião da Humanidade seria moralista porque desconsideraria a realidade da política baseia-se nas assunções de que (1) é possível, é correto e é necessário separar a política da moral e (2) a política consiste essencialmente em disputas de poder

§  Como vimos, separar a política da moral conduz muito rapidamente ao, quando não disfarça, o imoralismo dos raciocínios e das atividades

§  Considerar que a política é essencialmente disputa de poder é ter uma concepção medíocre e mesquinha do ser humano, ao eternizar a atual situação anárquica do Ocidente (em que não há um padrão comum a todas as sociedades e a todos os indivíduos), ao reduzir a realidade compartilhada pelos seres humanos a disputas incessantes (em vez de reconhecer e valorizar o ideal da harmonia humana) e, portanto, ao considerar que o objetivo da política é apenas a opressão de uma parte da sociedade por outra parte (em vez do efetivo compartilhamento de valores, perspectivas e projetos)

§  Além disso, é importante lembrar: considerar que a política é essencialmente disputa de poder é o mesmo que assumir que o ser humano é apenas egoísta e que toda disputa só se resolve por meio da opressão

o    Por outro lado, o Positivismo pura e simplesmente não “nega a realidade da política”

§  Bastaria a consideração do calendário positivista concreto para perceber esse fato, com a dedicação de três dos 13 meses à “política”: César (a civilização militar, ou seja, a política antiga), Carlos Magno (a civilização feudal, ou seja, a política medieval) e Frederico II (a política moderna)

§  Mas, além disso, a instituição da separação entre os poderes Temporal e Espiritual estabelece, com todas as letras, que o mando político deve ser separado do – e regulado pelo – aconselhamento espiritual e moral

·         O tempo todo Augusto Comte delimita a atividade política prática, indicando suas particularidades, especialmente em contraposição ao poder Espiritual: dura, âmbito do egoísmo, âmbito das visões particulares

·         Mas Augusto Comte não tem uma concepção mesquinha nem medíocre da política: ela não se limita às disputas; ela não é geral, necessária ou essencialmente disputa de poder, mas compartilhamento e composição

·         A exigência de submeter a política à moral é uma regra política e moral necessária para controlar, moderar e orientar a dureza das disputas políticas

o   Ao mesmo tempo em que a política deve ser moderada pela moral, o poder Espiritual submete-se ao poder Temporal: em outras palavras, assim como os políticos devem respeitar os parâmetros morais, as igrejas devem respeitar os ordenamentos jurídicos nacionais e, de qualquer maneira, todos os crentes têm suas responsabilidades cívicas de maneira mais ou menos independente das responsabilidades religiosas

§  Por fim, é importante lembrar que a concepção egoística e violenta da política despreza totalmente a noção sociológica fundamental de que o ser humano evolui ao longo do tempo

·         De maneira específica, despreza-se a segunda e a terceira lei dos três estados, que estabelecem (a) que a atividade pacífico-industrial sucede e surge a partir das sociedades militares, bem como (b) que a sociabilidade que considera toda a Humanidade sucede as sociabilidades mais restritas, vinculadas às famílias e às pátrias

-        Para concluir:

o   A Religião da Humanidade baseia sua moralidade no altruísmo, a partir de uma concepção sociológica do ser humano

o   A ciência da Moral é a ciência suprema, que estuda o ser humano individualmente e que estabelece uma transição natural das ciências para as artes práticas

o   A afirmação da moralidade implica necessariamente a subordinação da política à moral; mas isso não significa que a política seja negada: significa que – na hipótese alucinada e indefensável de que a política é apenas disputa de poder – as disputas políticas devem ser moderadas, aconselhadas e orientadas pela moral