Entrevista sobre o Positivismo
Entrevista eletrônica feita por Daniel Araújo, bacharel em
Relações Internacionais pela Universidade Federal da Paraíba (campus de Campina Grande), realizada em quatro
partes: em 21.11.2016, em 30.11.2016, em 21.6.2017 e em 9.8.2017.
Após respondidas as questões, editei o conjunto de perguntas
e respostas, organizando-o em três seções, a fim de torná-lo mais orgânico e
didático: (I) “Sobre o Positivismo em geral”; (II) “Sobre o Positivismo no
Brasil, maçonaria e política brasileira”; (III) “Sobre pseudociência”.
I – Sobre o Positivismo em geral
Boa tarde, Prof. Gustavo Lacerda – tudo bem? Vi seu trabalho na internet
e seu Lattes. Estou estudando RI (Relações Internacionais, quase concluído), fazendo
TCC sobre o primeiro ministério da república. Tenho algumas dúvidas importantes
e gostaria da ajuda de um especialista. Independente disso, desde adolescente acho
que o positivismo é muito ignorado nas escolas e gostaria de compreender melhor.
Minha pesquisa diz que quase todo o primeiro ministério
da república brasileira era maçom, mas diz também que muitos desses maçons eram
positivistas. Vi autores dizerem que o positivismo é de linha ateísta por obrigação,
e outros dizerem que e agnosticista por sentido de libertação da religião (o que
me pareceu mais correto), e segundo minha pesquisa, acreditar em algum criador é
pré-requisito para ser aceito na maçonaria. Pode me explicar isso ou indicar alguma
referência?
Uma observação preliminar: o que eu
entendo por “Positivismo” é a doutrina elaborada por Augusto Comte, incluindo aí
a chamada Religião da Humanidade. Há várias outras correntes chamadas de positivismo,
isto é, autodenominadas assim ou chamadas dessa forma por críticos ou comentadores.
O “positivismo lógico”, o chamado “positivismo” em RI e nas Ciências Sociais etc.
– nada disso eu entendo por “Positivismo”, o que pode não ser o seu caso. (Um amigo
meu, que também cursou RI (na Uninter, aqui em Curitiba), chegou à conclusão de
que, no âmbito de RI, o Positivismo, de Comte, aproxima-se mais do “pós-positivismo”
que do que se chama de “positivismo” nessa área.)
Uma mente livre que busque o ideal positivista pode
usar alguns valores da religião cristã (ou mesmo de outras) ou necessariamente o
indivíduo deve evoluir para um estado de agnosticismo por ser toda forma de religião
uma forma de superstição e mitologia? Em seu blog, o senhor diz: “a emancipação
em relação à teologia é condição necessária, mas é não é nem suficiente nem pode
ser o estado permanente do ser humano”. Gostaria de entender melhor.
Antes de mais nada, o Positivismo
não é um ateísmo. Por que não? Porque o ateísmo é uma negação de deus. Essa negação
apresenta vários problemas:
1) embora
a idéia de deus (ou melhor, de deuses) não faça sentido em termos empíricos, isto
é, embora a experiência prática reiteradamente indique que não há nada que se possa
entender como intervenção divina na existência humana, ao mesmo tempo não há como
provar que não há essa atividade subjacente.
2) O ateísmo
nega uma resposta – as divindades – mas mantém a pergunta: “de onde viemos?” ou
“para onde vamos?”. O problema é que essas perguntas têm como resposta, no final
das contas, a idéia de deus, que, como foi visto, não é defensável empiricamente,
nem muito menos racionalmente (ou até moralmente).
3) O ateísmo
concentra-se em negar a idéia de deus, quando o que importa de fato para o ser humano
é a valorização do ser humano como um ser histórico, social e moral, em que o desenvolvimento
histórico permite e, em grandes linhas, conduz ao pacifismo, à atividade colaborativa
e ao altruísmo.
4) O ateísmo
de modo geral conduz ao individualismo mais rasteiro, negando o caráter social do
ser humano e, a partir daí, o seu caráter histórico.
O conjunto das observações acima indica
que o Positivismo é um humanismo agnóstico. Isso significa, de modo mais prático,
que a emancipação relativamente à teologia é uma condição, isto é, é uma etapa preliminar,
mas não consideramos que o objetivo da emancipação seja negar a teologia, mas, muito
mais, ela consiste em valorizar o ser humano. A lei dos três estados intelectuais
(a sucessão dos modos de interpretar teológico, metafísico e positivo) indica isso:
não se trata de negar a teologia e/ou a metafísica, mas de valorizar a positividade
e, portanto, o ser humano.
Você usou a expressão “mente livre”:
sociologicamente, isso não existe. Para o Positivismo, o que há como ideal é a positividade,
que é o conhecimento da realidade moral, social e cósmica; o desenvolvimento do
altruísmo e a orientação altruística do egoísmo; a atividade pacífica orientada
para o melhoramento da condição humana.
Falei várias vezes em “historicidade
do ser humano”: para o Positivismo, isso não quer dizer apenas que o ser humano
desenvolve-se em um ritmo talvez próximo à idéia sociológica da path dependence, mas que há uma acumulação
ao longo da história. Acumulação do quê? De experiências, de idéias, de valores
e, é claro, de tecnologias e de riquezas. Mas é importante notar que, bem ou mal,
só chegamos aonde estamos porque passamos pelas etapas anteriores. Em outras palavras,
só é possível estarmos em uma sociedade mais positiva, mais fraterna, mais pacífica,
porque atravessamos milênios e inúmeras sociedades e valores que nos orientavam
para a teologia, para a guerra, para o particularismo. Mais do que isso: sem passarmos
por essas etapas anteriores, não seria possível chegar aonde chegamos. Assim, por
exemplo, só vivemos em uma época em que a idéia de humanidade é um princípio normativo
em nível global porque, antes, passamos por associações familiares, depois citadinas
(das cidades, das pólis), depois nacionais.
Sem querer voltar a essas experiências
anteriores, é necessário que elas sejam respeitadas e valorizadas. Bem entendido,
essa valorização não é um convite ao retorno a elas: não faz sentido, não é praticável
e não é moral voltarmos a sociedades familistas (como as descritas por Fustel de
Coulanges em A cidade antiga) quando nós
vivemos em uma sociedade que almeja a humanidade e que tem instituições como a ONU
para isso. Desse modo, a valorização é de caráter histórico ou até antropológico:
não se trata de encarar essas sociedades como peças de museu, como coisas externas
a nós mesmos, mas como etapas de nossa própria existência, a que podemos aceder
subjetivamente para compreendê-las e, eventualmente, para utilizar aspectos positivos
delas.
A partir dos valores e das idéias
acima, o humanismo positivista respeita e valoriza o cristianismo, entendendo-o
como uma etapa necessária na evolução específica do Ocidente. Além disso, mais que
uma valorização abstrata, o Positivismo considera que o cristianismo permitiu durante
a Idade Média a separação entre a igreja e o Estado, a emancipação e a valorização
da mulher, a emancipação dos servos da gleba e um princípio geral de coordenação
política – isso para não citar as obras artísticas. Trata-se, portanto, de uma valorização
humanista, enfatizando os aspectos humanos do cristianismo; as questões teológicas
são simples e resolutamente deixadas de lado (exceto como etapas do desenvolvimento
intelectual).
Os humanistas, de modo geral, tendem
a concordar com essas perspectivas do Positivismo. Os movimentos humanistas dos
EUA, da Europa e da América Latina têm esse viés, como se pode ver, de certa forma,
no livro do Christopher Hitchens, Deus não
é grande. Em contraposição – e confirmando o que observei no início desta resposta
-, os ateus apresentam um comportamento bastante agressivo e destruidor, de modo
geral rejeitando sem maiores considerações a história humana e adotando um racionalismo
cru, individualista e anistórico.
(Sobre a concepção de historicidade
no Positivismo, publiquei há pouco um capítulo no livro Curso livre de teoria política, lançado pela editora Appris e intitulado
“Violência e política em Comte”.)
Posso encontrar alguma semelhança entre positivismo
e socialismo?
Sim, embora seja necessário definir
o que é “socialismo”. Hoje em dia nós entendemos por essa palavra, basicamente,
alguma forma de marxismo, em que também é necessário distinguir o socialismo do
comunismo. Na época de A. Comte, o socialismo eram as doutrinas que, depois, Marx
chamaria de “socialismos utópicos”.
Há vários elementos próximos: valorização
da historicidade e da fraternidade, respeito ao proletariado e às mulheres, preocupação
com os problemas materiais das sociedades. Assim, o próprio Comte observava que
há uma aproximação grande especialmente em termos afetivos. Mas, ao mesmo tempo,
há importantes aspectos divergentes: o socialismo enfatiza os aspectos materiais
– econômicos e políticos – em detrimento dos morais, preferindo fazer reformas econômicas
e/ou políticas, ou mesmo “revoluções”, de modo geral à força, a fazer as necessárias
mudanças morais prévias. Além disso, o socialismo prefere a igualdade à liberdade,
de modo que se torna opressor (quando não violento) para impedir que as diferenças
sociais desenvolvam-se e sejam reguladas. Por fim, o socialismo é contra o Estado
e a propriedade privada, ao contrário do Positivismo: no que se refere a esses dois
elementos, o Positivismo considera que eles são necessários, que eles são socialmente
inescapáveis, mas que, ao mesmo tempo, eles devem ser socialmente regulados, isto
é, o uso da riqueza e da propriedade deve atender a critérios sociais e o Estado
não pode ser nem autoritário nem pode impedir que suas decisões sejam discutidas
ou mesmo criticadas.
Os comentários acima, como eu observei,
foram feitos por Augusto Comte em relação ao que ele chamava de socialismo, mas
podem ser aplicados sem muita dificuldade ao que se chama, atualmente, de socialismo.
O senhor tem uma opinião pessoal, ou a igreja positivista
tem alguma posição, sobre o socialismo (crítica ou elogiosa)?
A minha opinião pessoal segue muito
a do Positivismo, ou seja, a proposta por Augusto Comte e indicada acima. A ela
é necessário acrescentar o que a experiência histórica indicou-nos: que o comunismo
– ou seja, o regime praticado inicialmente na União Soviética e a partir dela em
vários outros países – é um regime totalitário e liberticida, ou seja, tirânico.
Da mesma forma, não se pode deixar de lado as ações terríveis que os comunistas
desenvolveram no Ocidente ao longo do século XX e que foram analisadas em inúmeras
ocasiões pelo Raymond Aron e, mais recentemente, pelo François Furet e pelo Tony
Judt.
Maquiavel teria um lugar de destaque entre
positivistas?
Não tem – pelo menos, não uma
posição de “destaque”. Evidentemente, os positivistas conhecem o livro O príncipe e é possível que os eruditos
conheçam outras obras do florentino, como os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio ou A mandrágora. Mas o que importa notar
são dois aspectos. Em primeiro lugar, no Sistema
de filosofia positiva, Augusto Comte faz uma rápida referência a Maquiavel,
em tom bastante crítico, no sentido de que ele (Maquiavel) fez algumas
observações bastante interessantes, mas que ignorou, ou melhor, desconheceu o
caráter da política moderna. Qual seria esse caráter? A progressiva pacificação
das relações sociais e políticas. As reflexões de Maquiavel, embora tenham por
meta serem aplicadas à Itália de sua época (séculos XV e XVI), claramente se
baseiam nos modelos práticos e mentais da Antigüidade clássica, em particular
na de Roma: uma leitura direta de O
príncipe, dos Discursos e também A arte da guerra evidenciam-no
sobejamente.
Maquiavel tem sido celebrado nas
últimas décadas como um dos fundadores da Ciência Política moderna – se não o
próprio fundador. A observação de Augusto Comte indica a direção contrária: ele
não fundou a Ciência Política moderna,
na medida em que, dirigindo-se para o presente, tinha os olhos postos no
passado, não no futuro.
Em contraposição, Augusto Comte
concede um lugar de grande importância para Thomas Hobbes, que ele associa a
Aristóteles: esses dois pensadores é que teriam sido os fundadores da Ciência
Política, ou melhor, da Sociologia Estática. Enquanto o conjunto da obra de
Aristóteles estabeleceu o princípio de que a sociedade consiste na separação
dos ofícios e na convergência dos esforços – do que se deduz a existência da
sociedade civil e do governo –, Hobbes evidenciou que o fundamento do poder
Temporal (ou seja, do que chamamos habitualmente de “governo”, ou de “Estado”)
é a força física – o que é um complemento fundamental ao princípio de
Aristóteles e sugere a necessidade do poder Temporal (baseado na força física e
que regula os atos) separado do poder Espiritual (baseado no aconselhamento e
que regula as idéias e os valores).
As obras políticas e morais de
Aristóteles são primorosas; por exemplo: a sua Constituição de Atenas, descoberta no final do século XIX, é uma
obra de Ciência Política que não deve nada a ninguém, mesmo hoje em dia. Já o
princípio de Hobbes, que Augusto Comte considerava o único passo decisivo na
constituição da Sociologia Política desde a obra de Aristóteles, evidentemente
é a verdadeira origem da idéia imputada erroneamente a Max Weber sobre o
fundamento do Estado. (A originalidade de Weber, a respeito, consiste apenas em
dar uma roupagem economicista ao princípio de Hobbes, ao afirmar que o Estado
busca deter o monopólio da força
física.)
O positivismo diria que a humanidade tem
dificuldade para suportar o clímax, ou algo próximo deste, e por isso sempre
ocorre alguma ruptura, regresso, ou destruição de tudo o que foi conquistado
(tal como ocorreu com grandes civilizações, mesmo a Europa durante o contexto
de surgimento do positivismo)?
Eu não diria que a humanidade não
sabe lidar com o “clímax” – mesmo porque é necessário definir o que seria esse
“clímax”. Agora, sem dúvida alguma, é mais ou menos fácil perceber que todas as
sociedades precisam de objetivos coletivos e que a busca da realização desses
objetivos é fonte de organização e disciplina. (É importante ver que, para o
Positivismo, “disciplina” não é o mesmo que “disciplina militar” ou “ordem
policial”: tem mais a ver com valores compartilhados, com regras de conduta
pública e privada etc.) A ausência de objetivos coletivos, necessariamente de
longo prazo, conduz à desorientação moral e política; essa ausência pode
ocorrer pela realização dos objetivos ou pela sua ausência pura e simples.
No que se refere ao “contexto do
surgimento do Positivismo”, havia metas coletivas mais ou menos claras em todo
o Ocidente: o desenvolvimento da sociedade, no sentido do progresso moral,
material, político. O que ocorria era a dificuldade de uma nova ordem social
estabelecer-se em meio às ruínas da antiga ordem: a Revolução Francesa foi um dos
grandes indícios disso, as disputas havidas durante o século XIX podem (e
devem) ser entendidas assim e, bem vistas as coisas, o longo conflito social,
político e econômico da “II Guerra dos 30 Anos” (ou seja, o período que vai de
1914 a 1945) é a etapa final desses esforços.
Como o positivismo trata justamente dessa evolução
e procura entender essa necessidade constante de mudança, como interpretar o
desejo de destruição aparente em certos momentos? Isso é uma resposta violenta
e instintiva ao fato de não conseguirmos mudar de modo mais brando?
Para o Positivismo, o instinto
destruidor integra a natureza humana; nesse sentido, ele pode ser estimulado ou
reprimido, da mesma forma que ele pode ser orientado para fins altruístas ou
fins egoístas. Certamente, momentos ou situações em que os anseios de mudança
vêem-se constrangidos exasperam as tendências destruidoras do ser humano:
sublevações, revoluções, revoltas estão aí para comprová-lo. O que o
Positivismo diria, adicionalmente, é o que o bom senso sugere: as mudanças
fazem parte da vida e, no caso de serem justas, corretas e necessárias, há que
se proceder a elas.
Convém notar, por outro lado, que
a inteligência orienta a ação prática e informa os sentimentos: há inúmeras
teorias filosóficas, sociológicas e psicológicas que estimulam a violência, a
revolta etc. O fascismo, o nazismo, o comunismo, diversas formas de socialismo
e inúmeras teorias da democracia claramente defendem as virtudes e as belezas
da violência.
Há momentos em que a confusão
social permite a afirmação da violência: o surgimento e o desenvolvimento do
fascismo evidenciam-no bastante. O fascismo surgiu do socialismo radical;
durante e após a I Guerra Mundial, o elogio da violência passou da extrema
esquerda para a extrema direita e desgraçadamente isso se tornou um objetivo
coletivo, capaz de organizar as massas e dar vazão aos ressentimentos
resultantes da I Guerra e do processo de modernização (no caso, da Itália). A
Igreja Católica, aliás, de maneira desprezível, abriu mão de seu papel de
orientadora de consciências em favor do poder político e da possibilidade de
impor pela força do Estado seus dogmas (isso se realizou por meio do Tratado de
Latrão e, depois, das inúmeras concordatas): por esse motivo, a Igreja desde o
início e sempre apoiou o regime fascista.
Em suma: há momentos em que as
pressões sociais acabam vendo a violência como uma forma de satisfazer suas
necessidades ou de dar vazão aos seus anseios. A solução normativa para isso é
conhecida: a “cultura da paz”, a rejeição da violência, o entendimento de que
as mudanças ocorrem – e o estímulo do altruísmo e do relativismo.
II – Sobre o Positivismo no
Brasil, maçonaria e política brasileira
Existiram mesmo positivistas maçons no primeiro
ministério da república? Isso é possível?
O primeiro ministério republicano
tinha oito pessoas:
1) Marechal
Deodoro;
2) Aristides
Lobo;
3) Rui
Barbosa;
4) Benjamin
Constant;
5) Eduardo
Wandenkolk;
6) Campos
Salles;
7) Demétrio
Ribeiro;
8) Quintino
Bocaiúva.
Dessas oito pessoas, eram
positivistas apenas Benjamin Constant e Demétrio Ribeiro. O gaúcho Demétrio
Ribeiro não era maçom; talvez Benjamin Constant tivesse sido, embora eu não
tenha certeza.
(Dependendo de quem fala, é
possível considerar Quintino Bocaiúva um positivista; isso me parece errado – o
que não quer dizer que ele não tenha eventualmente sido influenciado pelo
Positivismo, mais ou menos como todos os seus contemporâneos.)
Se tiver interesse, acabei de
lançar um livro sobre a ação dos positivistas ortodoxos na I República,
especialmente a respeito da separação entre igreja e Estado (Laicidade na I República brasileira,
pela Appris.)
Um maçom disse-se que, contanto que o indivíduo não
seja ateu, ele pode ser maçom. Mas como uma sociedade que mistura tanto
misticismo e que nesse sentido parece ir na contramão de um ideal como o
positivismo que busca cada vez mais racionalismo podem se confraternizar dessa
forma?
A literatura católica costuma
enfatizar o eventual viés maçom do início da República no Brasil. A impressão
que tenho é que isso se deve a pelo menos duas ordens de motivos: (1) o
catolicismo é contra a maçonaria (tendo sido essa sociedade secreta condenada
pela bula Quanta Cura); atribuir um caráter maçom aos republicanos – que,
afinal de contas, acabaram com a religião de Estado e combateram os privilégios
católicos no Brasil – é uma forma de os católicos “demonstrarem” uma espécie de
vileza da República. (2) Na França, efetivamente, as lojas maçônicas foram
importantíssimas para o estabelecimento da República – bem entendido, da III
República, em 1870, tendo também apoiado as medidas laicizantes da década de
1880 e, depois, a lei da separação entre igreja e Estado de 1905. Como os
positivistas foram importantes lá e como muitos positivistas franceses eram
efetivamente maçons, faz-se uma associação para o caso brasileiro. Mas importa
notar que, na França, não eram apenas os positivistas que eram maçons: eram-no
também católicos, livre-pensadores, socialistas e protestantes.
Não sou eu quem vai discutir a
doutrina maçônica, especialmente com um maçom. Todavia, o que eu já ouvi de
alguns maçons é que não se trata de rejeitar o ateísmo, mas de aceitar um
“poder superior”: nesse caso, há espaço para interpretações. As concepções
positivistas de “Humanidade” (que é o nosso Grão Ser) e de “leis naturais”
constituem, sem dúvida alguma, uma forma de poder superior, mas sem o caráter
absoluto e místico das teologias e/ou das metafísicas. Na França de meados do
século XIX havia uma famosa loja maçônica chamada “Filosofia Positiva” e os
positivistas (heterodoxos, é verdade) Émile Littré e Jules Ferry foram membros
dela. Aliás, tornou-se famoso o discurso de ingresso de Jules Ferry na
maçonaria, em que ele fez profissão de fé no Positivismo e no republicanismo.
Getúlio Vargas e JK eram positivistas em suas
formas de governo? Vi vários textos na internet afirmando isso.
No que se refere a Getúlio
Vargas, essa é uma afirmação bastante comum. Isso é um problema grande, que
apresenta um elemento ainda maior de interpretação subjetiva. Evidentemente,
Getúlio Vargas nasceu, cresceu e fez carreira em um ambiente marcadamente
positivista, como era o Rio Grande do Sul da I República, com a constituição
estadual de 14 de Julho, elaborada por Júlio de Castilhos. Nesse ambiente ele
seguramente absorveu elementos positivistas, como a proteção social ao trabalho
e aos trabalhadores, o apoio do Estado ao desenvolvimento econômico e até um
certo nacionalismo. Todavia, nem o corporativismo nem o autoritarismo são
positivistas; o corporativismo foi influência da legislação fascista italiana,
assim como o autoritarismo. Aliás, convém notar que não existiu “um” governo
Vargas, mas diversos: 1930-1932; 1932-1934; 1934-1937; 1937-1945 – e, depois,
1951-1954. Quando se fala em “influência positivista sobre Getúlio Vargas”,
costuma-se considerar que a Era Vargas (1930-1945) foi um período inteiriço e
marcado pelo autoritarismo, o que é errado e dificulta a análise.
A Constituição de 1891 sofreu
grande influência do Positivismo. Entretanto, a década de 1920 assistiu a
crises políticas e sociais constantes, em que o arranjo jurídico-político de
1891 foi posto em questão. De modo mais específico, as críticas eram contra as
oligarquias, mas também contra o liberalismo da I República: nisso, havia
concordância entre tenentes, comunistas e fascistas. Ora, por diferentes
caminhos, foram esses os grupos que apoiaram Getúlio Vargas entre 1930 e 1945.
Basta pensar que o Estado Novo foi instaurado por militares fascistas (Góes
Monteiro, por exemplo) com o apoio de notórios autoritários (Francisco Campos,
por exemplo): todos eles eram também declarados inimigos do Positivismo.
No caso de JK, isso é novidade
para mim. É claro que o caráter “positivista” de seu governo depende da pessoa
que afirma esse caráter. Em todo caso, o bisavô da minha esposa era positivista
e da Marinha e quase foi ministro de JK – mas, nesse caso, creio que era um
apoio mais pessoal que “filosófico”. (Aliás, esse mesmo positivista referia-se
a Góes Monteiro como “Gás Morteiro”, querendo com isso dar a entender que não
gostava dele – e, nesse caso específico, havia também um forte elemento de
rejeição do Positivismo da parte de Góes Monteiro, o que é bastante
significativo.)
O positivismo ainda tem alguma influência em algum
nível sobre os militares brasileiros, incluindo o regime militar que por aqui
passou?
Não tem nenhuma influência atual,
nem teve no regime militar. Atribuir o regime de 1964-1985 ao Positivismo é um
recurso bastante comum e uma ligação bastante fácil: como os militares que
proclamaram a República eram positivistas, eles iniciaram uma tradição golpista
que se repetiu em 1930, 1945 e até 1964. O problema disso é que os militares
positivistas eram contrários ao militarismo; além disso, já na década de 1920
diversos líderes militares – entre os quais se destacava Góes Monteiro –
opunham-se politicamente ao Positivismo, bem como condenavam fortemente a
influência do Positivismo sofre o Exército, que, a par dos ensinamentos de
Benjamin Constant, de Miguel Lemos e de Teixeira Mendes, era a favor da
civilização dos militares e da sociedade. Dessa forma, logo antes e ainda mais
após a I Guerra Mundial, houve profundas reformas no Exército, cujo resultado
prático foi eliminar delas a tradição positivista. Ora, tanto os patrocinadores
dessas reformas quanto os militares resultantes delas foram os articuladores da
tradição golpista e intervencionista dos militares nas décadas seguintes. Há um
longo artigo do José Murilo de Carvalho, intitulado “As Forças Armadas na
República: o poder desestabilizador” (ou alguma coisa assim) que não deixa
dúvidas a respeito dessas questões.
Existe a possibilidade de surgir algum partido
positivista no Brasil? Sempre tenho a impressão de que o positivismo tem algo
ainda por acrescentar ao Brasil.
No que se refere a um partido
político positivista, eu acho bastante difícil. Laicidade do Estado e
republicanismo como projeto político, que são temas básicos do Positivismo, não
encontram guarida efetiva em nenhum partido brasileiro e são poucos os grupos
sociais que desejam defendê-los, mesmo apesar de haver partidos que se dizem “republicanos”.
Outros aspectos do Positivismo político são incorporados de diferentes maneiras
pelos partidos: presidencialismo, Estado ativo, incorporação do proletariado.
Mas é necessário notar que, de
acordo com as propostas de Comte, a função primordial do Positivismo é
constituir-se como pólo da opinião pública; nesse sentido, ele deve(ria) ser o
que se chama atualmente de “movimento social”.
Quanto a contribuições para a
política brasileira, se você olhar o meu blogue, há algumas reflexões nesse
sentido, motivadas principalmente devido às manifestações dos últimos anos.
Essas reflexões são um pouco gerais, mas, creio, evidenciam que o Positivismo
tem, sim, o que oferecer para os debates públicos e, portanto, para a política
nacional.
O movimento integralista sofreu alguma influência
do positivismo (além dos movimentos fascistas europeus)? O que o positivismo
diria sobre os integralistas de Plínio Salgado?
Bem, isso é bastante simples e
direto de responder: não, não sofreu. O Positivismo considera o fascismo um
movimento retrógrado e reacionário, que é contrário às liberdades públicas, é
clericalista e teológico, que prega a xenofobia e que adota a violência como
instrumento básico da política. Em tudo e por tudo, é um movimento contrário às
características da política moderna, conforme entendida por A. Comte:
humanista, pacífica, fraterna, com vistas à forte cooperação internacional. Os
comentários que fiz acima sobre Getúlio Vargas, creio, evidenciam o quanto o
Positivismo afasta-se do integralismo em particular e do fascismo de modo
geral. Um pequeno fato pode ilustrar também essa distância: o Hélgio Trindade,
que é o autor do estudo mais importante sobre o integralismo, redigido ainda
nos anos 1970, volta e meia vai a atividades culturais e políticas promovidas
pela Igreja Positivista de Porto Alegre; ele mesmo não é positivista, mas, sem
dúvida alguma, se ele recusasse o Positivismo ou, no caso, se considerasse o
Positivismo alguma coisa próxima ao fascismo, com certeza não iria a tais
eventos.
Agora, infelizmente, na história
das idéias, intelectuais e grupos políticos apropriam-se de elementos de
pensadores do jeito que bem entendem. Assim, na França, o líder do movimento de
direita Action Française, Charles Maurras, afirmava que extraía de Comte alguns
elementos de seu pensamento político para seu movimento de extrema direita;
mais exatamente, a definição de ordem, a valorização dos sentimentos e da Idade
Média. A Action Française foi antidreyfusista e era xenófoba e monarquista, o
que, por si só, evidencia o quanto ela era distante do Positivismo. Mas as
afirmações de Maurras acabaram infelizmente vinculando Comte a essa direita.
Por outro lado, felizmente, ao
mesmo tempo – embora seja bem menos conhecido -, outros intelectuais de
esquerda e/ou dreyfusistas baseavam-se em Comte: o exemplo mais notório e
importante é Alain (seu nome era Émile-Auguste Chartier, mas era conhecido
apenas pelo pseudônimo “Alain”). Da mesma forma, a III República francesa – que
sofreu a oposição de Maurras e da Action Française – foi obra de políticos
fortemente inspirados pelo Positivismo ou claramente positivistas, como nos
casos de Jules Ferry, Émile Littré e Léon Gambetta.
O que o senhor (ou o positivismo) diria, se o
pudesse fazer, a todos os brasileiros nesse momento conturbado de nossa
história? Seria algo como: “Não se deixe levar pelas paixões” ou “Administre
bem suas paixões”? Ou algo diferente, e o que seria?
É uma boa questão. Ou melhor, é
uma excelente questão. Parece-me que vivemos em um período que combina crise
institucional com crise de valores (ou seja, de “cultura política”); ambos os
problemas estão estreitamente relacionados, embora tenham, cada qual, sua
dinâmica própria.
O mais profundo é a crise de
valores, que acaba refletindo-se na crise institucional. Sente-se que há uma
desvinculação entre a sociedade e os governantes (em que se deve incluir aqui
não apenas o poder Executivo, mas também o Legislativo, o Judiciário e o
Ministério Público). Para além do problema de “representação” – em que,
supostamente, a sociedade não se vê “representada” nos governantes –, há uma
desmoralização geral com a atividade política.
Não me parece correto dizer que a
“representação” é tão falha quanto dizem: a quantidade de grupos mobilizados na
sociedade civil brasileira é enorme e esses grupos elegem os seus
representantes. Há “bancadas” legislativas para tudo: teológicos, mulheres,
homossexuais, professores, servidores públicos, grandes empresários, produtores
rurais etc. Esses deputados cobram do Executivo políticas específicas; da mesma
forma, inúmeras políticas públicas são definidas a partir de parâmetros
específicos elaborados em comitês, comissões, pareceres etc.
A sensação de distanciamento
entre a sociedade civil e o Estado, assim, deve-se à sensação generalizada de
que o Estado está a serviço não da coletividade, mas de particularismos – sem
dúvida alguma a começar pelos particularismos dos agentes do próprio Estado
(juízes, promotores, parlamentares), mas também os particularismos dos grupos
sociais organizados (ruralistas, evangélicos, católicos, homossexuais,
feministas etc.).
Nesses termos, há uma pujança da
sociedade civil, que não se vê refletida no Estado; mas, por outro lado, a
própria sociedade civil adota valores contrários ao espírito público. “Espírito
público”: essa expressão lembra “república” – e, daí, lembra “deveres”. Em
última análise, a pujança social – não apenas no Brasil, mas no Ocidente como
um todo e, a partir daí, para o resto do mundo – baseia-se na concepção de
“direitos”, ou seja, de prerrogativas específicas e particularistas, que são
cobradas em favor de indivíduos ou grupos sobre o resto da sociedade. Falta
espírito público, falta a concepção de “deveres”, isto é, de responsabilidades
compartilhadas, de responsabilidades de cada indivíduo e de cada grupo em
benefício dos demais.
Há alguns anos eu li um artigo de
introdução às políticas públicas, redigido em uma universidade pública federal;
a definição básica das políticas públicas era justamente esta: “ampliação e
cobrança dos direitos”. Assim, para concluir a resposta à questão: se fosse
para eu aconselhar os brasileiros, eu diria isto: “preocupem-se menos com os
seus direitos, que representam particularismos, e cumpram e cobrem os deveres,
compartilhados e relativos ao conjunto da sociedade”.
Além disso, de modo mais prático,
é importante refrear as paixões, adotar o espírito positivo (real, útil,
relativo, histórico, simpático) e rejeitar completamente os meios violentos
(brigas, confrontos, golpes etc.).
Ainda falta “Amor” na bandeira do Brasil, ou
precisamos antes cuidar do que está lá?
Não é que falte o “Amor” na
bandeira nacional brasileira: o “Ordem e Progresso” corresponde a uma fórmula
política por si só, ao afirmar a necessidade de constituir uma política que una
de maneira radical a ordem e o progresso, sem antagonizar essas duas
aspirações. Aliás, essa fórmula deveria ser implantada em todas as bandeiras do
mundo, a começar pelas ocidentais.
O “Amor” deve ser inserido na
frase completa – “O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim”
– quando o conjunto da sociedade (brasileira, no caso) tornar-se positivo e
positivista.
No início de 2013 publiquei um
pequeno artigo na Gazeta do Povo, em
que comento a suposta ausência do “Amor” em nossa bandeira nacional;
reproduzo-o abaixo.
Ordem
e progresso – e o amor?
Recentemente, o senador Eduardo Suplicy (PT-SP)
manifestou apoio à proposta do deputado federal Chico Alencar (PSOL-RJ) de
incluir a palavra “amor” na frase “Ordem e progresso”, da bandeira nacional.
Essa proposta é simpática, ao afirmar a importância do “amor”, mas apresenta
vários equívocos.
As justificativas para a mudança, em poucas
palavras, são as seguintes: o “amor” integra a frase do filósofo positivista
francês Augusto Comte (1798-1857) “o amor por princípio e a ordem por base; o
progresso por fim”; entretanto, o autor do símbolo, Raimundo Teixeira Mendes,
teria simplesmente deixado de lado o “amor”. Com isso, para Alencar as
propostas de Comte teriam sido deformadas. Já Suplicy afirma que a influência
do militar Benjamin Constant Botelho de Magalhães teria sido a responsável por
essa ausência e que, no século 21, um “novo paradigma” se impõe, valorizando a
solidariedade e combatendo-se as violências.
Mas nem Benjamin Constant nem Teixeira Mendes
tiraram nenhuma palavra da frase original; ambos seguiram a sugestão de Comte.
A frase completa sintetiza uma densa filosofia moral, política, histórica e
religiosa; já “Ordem e progresso” é um programa político, com dois ideais mais
ou menos compartilhados por todos os cidadãos.
O senso comum opõe a ordem ao progresso, mas Comte
propunha a união e a superação dos dois termos, considerando que “a ordem é a
base do progresso” e o “progresso é o desenvolvimento da ordem”: as condições
sociais básicas de educação, moradia, respeito, inclusão etc. (“ordem”) devem
ser satisfeitas para que a sociedade avance (“progresso”). Mais: o progresso
deve ser entendido em vários sentidos: material, físico, intelectual – e
sobretudo moral e afetivo, como o desenvolvimento do altruísmo, da
fraternidade, do respeito, da paz universal.
O amor, para Comte, era pressuposto da ordem e
resultado do progresso; mas, enquanto “ordem” e “progresso” opõem-se e disputam
a primazia em detrimento um do outro, não há nem ordem nem progresso – que se
dirá amor.
Essas ideias foram defendidas no século 19, como
projeto político para o Brasil. Tinham validade em 1889 (na Proclamação da
República) e têm agora, em 2013. Quais as propostas que Benjamin Constant e
Teixeira Mendes defendiam? A paz universal, o respeito aos trabalhadores, a
dignidade do trabalho, a laicidade do Estado, as liberdades individuais e
coletivas. Tais ideias foram promovidas com grande intensidade entre 1881 e
1927 (quando Teixeira Mendes morreu); mas de 1930 em diante Getúlio Vargas
rejeitou-as todas, com sua tirania civil apoiada pela Igreja Católica.
Assim, “Ordem e progresso” não é uma deturpação da
proposta de Comte, nem foi desvirtuada por obra de militares. As ideias
subjacentes a ela não são um “novo paradigma” a ser criado, mas um “paradigma
antigo” a ser resgatado. A despeito dos desvios autoritários e/ou
revolucionários que o Brasil viveu no século 20, oscilando entre “ordem” e
“progresso”, parece que neste início do século 21 volta-se às propostas de
Comte, honrando-se, mesmo que sem o saber e cometendo-se equívocos, as memórias
de Benjamin Constant e Teixeira Mendes.
Qual seria o maior desafio de um primeiro-ministro
positivista se eleito para um eventual, mesmo que remoto, retorno da monarquia?
Decretar a república
presidencialista, com conteúdo social.
III – Sobre pseudociência
A ignorância aparentemente injustificada, que
abraça a pseudociência (tanto na internet quanto nas universidades), seria um
comportamento instintivo das massas (que assim como as mulheres), estimularia o
surgimento de respostas mais coerentes?
A despeito dos discursos
pós-modernos, que elogiam o ultra-relativismo, o fragmentário e as
incoerências, o fato é que o ser humano busca, sim, concepções (1) gerais e (2)
coerentes da realidade; nesse sentido, as pessoas buscam concepções sintéticas.
A difusão das pseudociências revela ao mesmo tempo o prestígio que a ciência
possui e a busca dessas concepções sintéticas; mas, por outro lado, os
cientistas não fazem muita questão de estimularem concepções sintéticas, nem de
fazerem divulgação científica de verdade. Também é necessário ver que, desde
fins do século XIX, as concepções científicas tornaram-se cada vez mais
exotéricas, de difícil compreensão pelos vulgos. Ao mesmo tempo, muitas
concepções científicas têm suas próprias exigências intelectuais, ou seja,
exigem um preparo teórico e filosófico que não é simples: basta ver as milhares
de concepções “quânticas”, que são uma forma disfarçada (ou até escancarada) de
misticismo.
Em suma: as pseudociências em si
indicam um traço da natureza humana que exige satisfação; tal satisfação tem
que ser fornecida pelo espírito positivo (altruísta, relativo, histórico,
sintético) em um processo pedagógico contínuo. (Perceba que a educação, para o
Positivismo, não é somente a instrução intelectual: a educação é a cultura
moral, prática e intelectual, no sentido do altruísmo, do relativismo, do
espírito positivo.)
Vemos nas redes sociais coisas como:
Defesa cega de teorias anticientíficas
(Terra plana, ETs que nos deram a tecnologia do micro-chip e construiram as
pirâmides), ou o desejo de uma terceira guerra mundial (onde inclusive já se
escolhe de forma entusiasmada os atores do conflito por quem irão torcer). E
mais recentemente, cresce um desejo do que parece já ser o plano de base para
algo “novo” que deva substituir o velho sistema (atual) republicano: o retorno
da monarquia.
Sabemos que a humanidade esqueceu
mais de uma vez que a Terra é redonda, ou deixou-se perder grandes períodos de
progresso (muitas vezes por superstições primitivas demais para seu estágios de
evolução, ou decisões injustificadas como a queima da frota chinesa que
desbravava o mundo a muitos séculos). Ainda hoje não se sabe como Filippo
Brunelleschi construiu seu Duomo da cúpula de uma igreja em Florença, e isso
foi apenas em 1290 d.C (mas ninguém ainda teve coragem de atribuir a ETs. Quem
sabe Illuminati e coisa do tipo um dia...), mas ETs projetaram as pirâmides de
uma sociedade que acabou. Sempre o cinema se diverte destruindo cidades e tudo
o mais que a civilização produziu de mais moderno, e nos sentimos bem com isso.
Igrejas lotam em épocas de milenarismos, etc. Jovens que não encontram nada
mais empolgante ou desafiador se aventuram no Estado Islâmico buscando
atividades de homens, e uma valorização que a sociedade não lhe de (temos aí um
componente bem biológico de demonstração de vigor reprodutivo).
O socialismo falhou várias vezes
por não permitir o surgimento de ideias mais individuais, sufocou a criatividade
em nome do controle do Estado, enquanto o positivismo vê o mérito e é cauteloso
quando se trata de mexer na ordem social, defendendo, porém, sempre o direito à
educação e qualificação de todos (fornecendo assim potencial para o surgimento
da evolução por mérito individual). Ainda assim nunca conheci um jovem
empolgado com o positivismo.
Como o positivismo veria esse desejo instintivo de
que algo oculto nos controla, e que algo ou alguma “verdade” está lá fora? Ou
mesmo que algo que conhecemos bem (como o Estado) nos controle?
Essas teorias que atribuem o
desenvolvimento da humanidade a extraterrestres, a civilizações subterrâneas
etc. revelam ao mesmo tempo ignorância e a mistura de tendência mística com uma
certa forma de egoísmo intelectual, de orgulho e vaidade: o pertencimento a
grupos exclusivos, que detêm “a” “Verdade” é sempre motivo de profunda vaidade
e uma sensação disfarçada de poder (ou potência). Também há ignorância nisso –
e, mais uma vez, orgulho: é mais fácil acreditar nas teorias da conspiração que
entender a dinâmica social (que, por si só, é extremamente e cada vez mais
complexa). Solução para isso? Mais uma vez: espírito positivo e educação
durante toda a vida.
No que se refere à mudança da
ordem social, à “timidez” positivista etc., isso é outro mito
político-acadêmico. É muito bom que os marxistas e os “revolucionários” de
diferentes tons difundam esse gênero de idéia; assim, eles reservam para si
todo o progressivismo. No final das contas, é uma forma de desinformação, praticada
desde o século XIX por Marx e do século XX por Lênin (e seus continuadores)
contra todos os seus inimigos. Em vez de argumentar com os outros e disputar
idéias e valores no mesmo âmbito, o mais fácil é desqualificar o adversário –
aliás, antes disso, deve-se transformar o adversário em inimigo.
O Positivismo não é tímido quanto
a mudanças sociais; mas, por outro lado, é contra as “revoluções”, ou o mito
marxista da revoluções, seja porque elas implicam violência, seja porque
mudanças profundas não são nunca mudanças rápidas, seja porque a sociedade não
é plástica no grau e no sentido pretendido pelos marxistas. Infelizmente, o
mito da revolução associou-se tanto à idéia de “progresso”, ao longo do século
XX, e opôs-se tanto e com tanto sucesso à idéia de “ordem”, que é virtualmente
impossível hoje em dia falar em “progresso” sem se pensar no marxismo e em
revolução. Todos saímos perdendo com isso.
No que se refere aos méritos
individuais, isso enseja toda uma outra reflexão. As sociedades modernas não
são sociedades de castas; logo, o lugar de cada um na sociedade não é dado pelo
nascimento: esse é um dos motivos por que as monarquias são relíquias que devem
ser extintas. Se não há mais castas, como organizar as atividades sociais? Por
meio da seleção de capacidades individuais – o que, em termos contemporâneos,
corresponde à meritocracia. Repito: em termos históricos, a alternativa à
meritocracia é a definição de atribuições e oportunidades pelo berço, sejam
quais forem os nomes e os parâmetros que se dê ao berço (“sangue”, “raça”,
casta, ordem social etc.).
Evidentemente, o “mérito”
individual varia segundo uma infinidade de fatores: país, família, classe
social etc. Augusto Comte era o primeiro a reconhecer esses fatores e a
lamentá-los, tendo clareza de que com freqüência esses fatores não conduzem os
melhores talentos aos cargos que ocupam. Isso gera problemas da gestão dos
recursos coletivos (pois muitas vezes os cargos – públicos ou privados – são
ocupados por indivíduos incapazes) e também problemas individuais (pois as
pessoas capazes veem-se preteridas). Não há solução simples para isso; o que se
deve fazer é qualificar os servidores e manter um sistema permanente de seleção
e valorização dos servidores (públicos e privados; “civis” e “políticos”); ao
mesmo tempo, é necessário que também se respeite os ocupantes dos órgãos
(afinal, um ocupante pode ser medíocre e as reclamações contra ele podem ser
justas; mas o ocupante também pode – e deve ser – competente, correto etc. e,
nesse caso, as reclamações servem apenas para incomodar).
O que o positivismo diria a um professor com
doutorado em alguma grande universidade do Brasil, que divulga a ideia
pseudocientífica da Terra plana?
Ter diploma universitário,
doutorado e ser professor não são garantias nem de conhecimento nem de
integridade intelectual. Além disso, convém notar que alguém pode ter diploma
em, digamos, Direito e arrogar-se a capacidade de discutir, digamos, Física
Quântica, propondo, por exemplo, coisas como “Direito Quântico”. (Evidentemente,
esse exemplo não é gratuito.)
Da mesma forma, há áreas
universitárias menos especializadas que outras, há áreas que fornecem um
treinamento intelectual mais cuidadoso que outras e assim por diante.
Finalmente, convém notar que não são raros os casos em que as pessoas passam
pelos bancos universitários, mesmo de cursos que exigem raciocínios técnicos
rigorosos, mas que não tiram as consequências filosóficas dos conhecimentos
hauridos, preferindo entendê-los mais como meras técnicas que como descrições
da realidade. Assim, há pessoas que acreditam piamente nas intervenções
divinas, mesmo tendo estudado metodologia científica e filosofia das ciências:
isso é mais comum nas Ciências Humanas, nas Artes e nas “Ciências Sociais
aplicadas” (Direito, Administração, Contabilidade), mas também se vê nas
Ciências Naturais.
Por outro lado, é necessário
notar que o Brasil é um país laico e que, aos trancos e barrancos, não temos
doutrina oficial de Estado (ou não deveríamos ter). Nesses termos, cada um pode
acreditar no que quiser.
Dito isso, professores doutores
universitários que acreditam na Terra plana são uma combinação de problemas,
pois misturam ignorância, teorias da conspiração (“a alunissagem em 1969 foi
uma filmagem da CIA”), falsa criticidade e apego a teologias. No caso do apego
às teologias, é notável que a Terra plana seja defendida, neste início de 2017,
tanto por alguns católicos (seguidores do astrólogo Olavo de Carvalho) quanto
pelos muçulmanos fundamentalistas da Arábia Saudita: é uma criticidade tola e
dirigida contra a ciência moderna, que desde o século XV e cada vez mais ganha
terreno sobre a teologia. (No caso saudita, ou melhor, muçulmano, há também o
elemento de “crítica ‘decolonial’” ou “pós-colonial” ou antiocidentalista –
mesmo que os muçulmanos, até mais ou menos o século X da nossa era, também
tenham contribuído poderosamente para a ciência.)
E o que o Positivismo diria aos espectadores desses
divulgadores?
Se fosse possível aconselhar
algo, com um espírito de concórdia, eu diria o seguinte: “Abandonem o
radicalismo político e o absolutismo filosófico; entendam a realidade cósmica
da Terra em termos de sua situação universal e não em termos das disputas
políticas em que uma determinada cosmologia possa ser empregada contra outras
‘cosmologias políticas’. Da mesma forma, adotem o relativismo filosófico
próprio ao humanismo, em que o bem-estar de todos é o objetivo coletivo,
buscando a ordem e o progresso, tendo por base o amor”.
Mas também deveria dizer aos
cientistas e aos professores universitários: “Façam divulgação científica de
boa qualidade, abandonando as várias metafísicas pseudo e para-científicas (no
caso das Ciências Humanas, com os pós-modernismos e as “revoluções comunistas”)
e os linguajares abstrusos; façam uma divulgação científica com caráter
filosófico e de instrução popular. Mais importante que difundir as teorias
científicas (e elas são importantes, não há dúvida), é disseminar os traços do
espírito positivo, como definido por Augusto Comte: realidade, utilidade,
relativismo, historicidade, organicidade, simpatia”.