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20 março 2024

Henri Gouhier: Augusto Comte, ordem social e críticas à economia política

Henri Gouhier comenta Augusto Comte sobre a noção de ordem social e as críticas à economia política

 

O trecho abaixo corresponde à tradução de um trecho do capítulo VI, “La Sociologie”, seção IV, “La préhistoire de la Religion de l’Humanité”, presente no livro La Jeunesse d’Auguste Comte et la formation du Positivisme – v. III: “Auguste Comte et Saint Simon”, de Henri Gouhier (Paris, J. Vrin, 1970, 2e ed., p. 328-330). (Tradução de Gustavo Biscaia de Lacerda.)

De modo específico, os trechos abaixo afirmam a importância irrecorrível do poder espiritual (ou dos elementos morais, ou dos valores e das idéias) na constituição de qualquer sociedade. Essa afirmação ocorre em contraposição às concepções dos economistas, segundo quem a sociedade constitui-se somente da justaposição dos interesses materiais individuais; além disso, ainda para os economistas, essa justaposição dos interesses individuais constituiria uma ordem natural que, por ser natural, não precisaria de regularização nem de disciplina – nem, em particular, da afirmação das perspectivas sociais contra os interesses individuais. Em outras palavras, trata-se ao mesmo tempo da afirmação do poder espiritual e, em conseqüência, da rejeição do “Estado mínimo” propugnado pelo liberalismo econômico.

Nos trechos abaixo, Henri Gouhier comenta o opúsculo Considerações sobre o poder espiritual, de 1826, escrito como continuação tanto do Conjunto dos trabalhos científicos necessários para reorganizar a sociedade, de 1822 (com reedição aumentada em 1824), quanto do opúsculo Considerações sobre as ciências e os cientistas, de 1825. Esses documentos foram publicados durante a fase adulta jovem de Augusto Comte (dos seus 21 aos 30 anos de idade), embora sejam popularmente conhecidos como “opúsculos de juventude”. Elas são seis publicações em um total de dezenas mais publicadas nessa época; eles correspondem aos únicos textos que Augusto Comte julgou dignos de serem preservados e que, de qualquer maneira, indicam com clareza sua preocupação precoce com o poder espiritual. Esses textos foram publicados como “Apêndice geral” do v. IV do Sistema de política positiva, de 1854. Em português há duas traduções desses textos: a primeira é de Dinarte Ribeiro (Porto Alegre, Globo, 1899) e a segunda é de Ivan Lins e de João Francisco de Souza (São Paulo, USP, 1972).

As notas de rodapé abaixo são de Henri Gouhier. A paginação indicada por H. Gouhier nessas notas de rodapé, por sua vez, refere-se a esta edição dos opúsculos de juventude de Augusto Comte: Opuscules de philosophie sociale –1819-1828 (Paris, E. Leroux, 1883 – disponível por exemplo aqui: https://archive.org/details/opusculesdephil00comtgoog).


Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Henri_Gouhier


Fonte: https://www.amazon.com.br/Jeunesse-DAuguste-Comte-Formation-Positivisme/dp/271160313X

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A ordem é de essência moral. Seu princípio é o interesse geral; ele transcende o plano do temporal em que a utilidade é a lei dos indivíduos e das classes[1]. Economistas e industrialistas têm o defeito de remeterem-se demasiadamente de bom grado à natureza porque eles conhecem-na mal.

A moral positiva é terrestre; ela reina sobre uma humanidade virada para este mundo e destinada a viver o melhor possível ao explorar suas riquezas; não há mais pecado original; não há mais superstições angustiantes. O homem sem alma é entretanto um ser dividido; a sociedade inscreve em sua existência mesmo uma transcendência dramática; se não há nada acima da natureza, a exigência de superação subsiste no seio da natureza: ela revela-se no sacrifício. Quaisquer que sejam os progressos da civilização, a legítima preocupação do interesse pessoal torna-se normalmente uma tendência antissocial; entre a ordem e a felicidade, o conflito é então toda uma outra coisa que um acidente: a necessidade do sacrifício é uma lei da natureza[2].

À dualidade do bem geral e da utilidade particular corresponde a do espiritual e do temporal. É uma ilusão acreditar que os interesses industriais vão, por si sós, constituir uma ordem social: interesses temporais são interesses temporais; o espírito industrial “é como todo outro espírito puramente temporal”: o egoísmo é sua lógica[3]. Assim, os economistas desconhecem a natureza. Eles bem reconheceram nos agrupamentos humanos uma tendência espontânea e permanente de organização: eles supuseram rapidissimamente que ela coincidia com o interesse bem entendido; ela não tem então nenhuma necessidade, a seus olhos, de instituições governamentais e espirituais para assegurar sua predominância; bastaria esclarecer os produtores sobre as verdadeiras condições de sua felicidade. “Isso seria contar demais com o poder das demonstrações da economia política, retruca Augusto Comte, para provar a conformidade necessária dos diversos interesses industriais, que de esperar que ela possa bastar para sempre para discipliná-los”. Essas demonstrações talvez não tenham a eficácia que seus autores prometem; de uma outra parte, “o homem não é sempre, nem mesmo com freqüência, suscetível de calcular com justiça”; sobretudo, “ele não se conduz unicamente, nem mesmo principalmente, com base em cálculos”, como se ele estivesse “conduzido apenas pelo móvel do interesse pessoal”[4]. A sociabilidade é natural; o interesse pessoal é naturalmente antissocial; há uma contradição na natureza: os economistas não podem superá-la pois eles não a vêm.

A tendência muito real da humanidade para a ordem significa simplesmente que a ordem é possível e não que ela deva naturalmente se estabelecer apenas pelo jogo dos interesses econômicos bem compreendidos. A sociedade não se organiza no nível da produção. Não há ordem no plano temporal. Ter desconhecido a transcendência do princípio moral, tal é, no fundo, “o vício fundamental da economia política, vista como teoria social”[5]: em outras palavras, é isso que impede a economia política de tornar-se a ciência social.

  


[1] Considerações sobre o poder espiritual, p. 247-248, 282.

[2] Ibidem. Eis aqui este texto importantíssimo para compreender o poderoso impulso moral que conduzirá Comte na direção do positivismo religioso: “Quaisquer que possam ser os progressos da civilização, será sempre verdadeiro que, se o estado social é, em certos aspectos, um estado contínuo de satisfação individual, ele é também, sob outros aspectos não menos necessários, um estado contínuo de sacrifício. Em termos mais precisos, há para cada um, em todo ato particular, um certo grau de satisfação sem o qual a sociedade não seria possível e um certo grau de sacrifício sem o qual ela não poderia manter-se, vista a oposição das tendências individuais, que é absolutamente inevitável em uma proporção qualquer” (p. 273).

E ainda, p. 274: “A maior perfeição social imaginável consistiria evidentemente em que cada um cumpra sempre no sistema geral a função particular que lhe é mais apropriada. Ora, mesmo nesse exato extremo e que é puramente fictício (ainda que nos aproximemos dele sem cessar), os homens teriam necessidade de um governo moral, pois que ninguém saberia conter espontaneamente seus pendores pessoais nos limites conformes às suas próprias condições”. A natureza e a sociedade diversificam os papéis e, em conseqüência, as condições; ora, há entre todos um mesmo desejo de prazer. A educação moral deve limitar em cada um “o desejo de todos os prazeres que se pode observar nos outros, qualquer que seja a diferença das condições”, e esta, “habituando desde a infância à subordinação voluntária do voluntária do interesse particular em relação ao bem comum e ao reproduzir sem cessar na vida ativa, com todo o ascendente necessário, a consideração do ponto de vista social”.

[3] Considerações sobre o poder espiritual, p. 282.

[4] Ibidem, p. 281. Em nome da “fisiologia do século XIX”, ele denuncia aqui “a frivolidade dessas teorias metafísicas que representam o homem como um ser essencialmente calculador”. Ver também as exigências de ação que preservam o homem de uma “atividade esterilmente raciocinante”, p. 272-273.

[5] Ibidem, p. 281, nota 1. Eis este texto decisivo: “O vício fundamental da economia política, encarada como teoria social, consiste diretamente em que, por ter constatado, sob algumas relações particulares, que são bastante longe de serem as mais importantes, a tendência espontânea e permanente das sociedades humanas para uma certa ordem necessária, ela crê-se autorizada a concluir daí a inutilidade de regularizá-la por meio de instituições positivas; ao passo que essa grande verdade política, concebida em seu conjunto, prova somente a possibilidade de organização, ao mesmo tempo em que ela conduz a apreciar-lhe dignamente a importância capital”.

01 julho 2021

Sobre o livro "Passado imperfeito", de Tony Judt

O livro Passado imperfeito, do historiador Tony Judt (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2008), é muito interessante e suscita muitas reflexões; essas reflexões concernem tanto ao tema de que o autor trata quanto dos defeitos que o livro apresenta. Como não poderia deixar de ser, a forma como o autor cita Augusto Comte e o Positivismo é exemplar dos defeitos desse livro. Assim, por todos os motivos - positivos e negativos -, parece-me que vale a pena divulgar estas pequenas anotações sobre ele.

O livro pode ser comprado, entre outras lojas, aqui.

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Sobre o livro Passado imperfeito, de Tony Judt



O livro expõe e critica, com base em um certo liberalismo, o comportamento dos intelectuais franceses nos dez anos que se seguiram à II Guerra Mundial. Na última seção do livro essas diversas escolhas são explicadas e justificadas: por que os franceses; por que os dez anos após a II Guerra; até mesmo por que o liberalismo. De modo geral, essas escolhas temáticas fazem pleno sentido: os intelectuais franceses costumavam ser a consciência moral e intelectual da Europa e, daí, do mundo; além disso, o período posterior à II Guerra foi o de acerto de contas com a devastação feita pelo nazismo (antes e durante o conflito). Mas, de modo mais importante, após a II Guerra ocorreu o início da Guerra Fria, o engajamento político estridente dos intelectuais, após uma atividade em geral apolítica e antipolítica até 1940 (ou, pior, até 1944, isto é, até a libertação da França pelos aliados), a adesão da maioria desses intelectuais ao comunismo (quer fossem, quer não fossem eles mesmos comunistas, incluindo aí muitos católicos e todos os existencialistas) e o conseqüente silêncio sistemático desses intelectuais às atrocidades stalinistas e/ou as justificativas mirabolantes que eles davam aos crimes stalinistas.

O argumento do autor em linhas gerais é simples e convincente: antes e durante a II Guerra, muitos intelectuais eram apolíticos ou antipolíticos; o conflito e a Libertação, com o acerto de contas político e moral dos colaboracionistas, acarretou uma crise de consciência dos intelectuais, levando-os ao engajamento; quanto maior a crise (e, antes, quanto mais irracionais e sem sentido os sistemas filosóficos esposados pelos intelectuais, como nos casos paradigmáticos dos existencialistas, Sartre e sua consorte à frente), mais estridente era o engajamento. Na conjuntura da época, esse engajamento era necessariamente esquerdista, na medida em que ele decorria, por um lado, da luta contra o fascismo e, por outro lado, da então recente aliança da União Soviética como “país democrático”. Entretanto, a má consciência dos intelectuais franceses, seja por sua atuação antes da guerra, seja por sua atuação durante a guerra, levou-os a serem cada vez mais radicais em seus engajamentos; a isso se associava também o antiamericanismo e uma valorização extremada da “francesice”: o resultado disso tudo foi uma valorização intensa e intensamente acrítica da União Soviética e uma desvalorização do “liberalismo”; assim, na década que se seguiu à II Guerra, a grande maioria dos intelectuais franceses silenciou-se a respeito dos crimes cometidos por Stálin e/ou pelo comunismo, quando não os justificaram das maneiras mais estapafúrdias possíveis. (Quais os crimes do comunismo? Invasão de países; antissemitismo; aprisionamentos, julgamentos e execuções arbitrárias e em massa; incoerências sistemáticas; censura sistemática.) Essa submissão dos intelectuais ao comunismo tinha elementos messiânicos e milenaristas, bem como de auto-rejeição: no que se refere a este último aspecto, os intelectuais afirmavam com todas as letras, em seus artigos e livros, que, como burgueses, eram desprezíveis e que precisavam do povo, ou do proletariado, para justificarem-se socialmente; por sua vez, o comunismo – e o Partido Comunista em particular – era o canal por definição desse acesso ao proletariado; entretanto, o próprio Partido Comunista (francês, no caso) era explicitamente contra esses mesmos intelectuais.

Esse quadro só mudou após a morte de Stálin, em 1953, e, ainda mais, após o “vazamento” do relatório de 1956 de Kruschev, no XX Congresso do PCUS, em que o novo líder soviético denunciava o culto à personalidade e os crimes de Stálin. O autor observa que, embora a partir disso os intelectuais franceses tenham-se “libertado” do comunismo (ou, pelo menos, tenham passado a “libertar-se” dele), tal libertação foi apenas dos próprios intelectuais, que não deixaram de adotar o mesmo comportamento em relação a outros temas – fosse o anticolonialismo (em face da independência da Argélia), fosse o terceiromundismo (em que a revolução comunista camponesa fora da Europa ganhava o espaço da admiração pelo comunismo europeu) – e, em particular, os intelectuais não passaram, após 1956, a mudar de comportamento em relação ao comunismo na Europa Oriental e na União Soviética: eles simplesmente abandonaram o tema do comunismo europeu (sendo, todavia, obrigados a enfrentá-lo novamente a partir de 1974 – embora o autor não esclareça o que teria ocorrido em 1974 na França).

A exposição que o autor faz das idéias e do comportamento dos intelectuais franceses entre 1944 e 1956 é o ponto forte do livro; essa exposição é organizada tematicamente. Não resta pedra sobre pedra do que ele expõe; os intelectuais franceses foram mesmo infantis e irresponsáveis.

Entretanto, há uma série de problemas metodológicos e teóricos no livro. Em primeiro lugar, o autor faz suas reflexões muito com base em literatura de segunda mão; embora ele cite com freqüência textos dos intelectuais franceses, tais citações com grande regularidade – talvez em pelo menos metade das citações – são obtidas em livros de outros pesquisadores, que já selecionaram as passagens que julgam importantes e interessantes; em outras palavras, o autor não fez de fato uma pesquisa sistemática sobre os originais. Em segundo lugar, embora à primeira vista possa parecer secundário, faltam exposições historiográficas elementares; por exemplo, não faria nenhum mal indicar aos leitores quando ocorreu a invasão nazista da França, a instalação do regime de Vichy, a tomada total do território francês pelos nazistas – ou, então, quando ocorreu o governo socialista de Léon Blum nos anos 1930 ou o que ocorreu na França em 1974.

Mas é nas explicações sociológicas e até psicológicas que o autor oferece para os comportamentos dos intelectuais franceses que estão os seus aspectos mais fracos. O autor argumenta que os intelectuais que atuaram após 1944 desprezavam o liberalismo; o conjunto de sua exposição parece confirmar com clareza esse diagnóstico; mas o autor recua até a Revolução Francesa, ou melhor, até o século XVII (até antes do Iluminismo!) para explicar esse desprezo. Ao tratar das tentativas dos liberais franceses de terem e manterem o poder, ele observa que eles fracassaram mas que a culpa pela falta de êxito do liberalismo na França, em última análise, seria da III República (1870-1940) e dos republicanos, que estavam mais preocupados em serem republicanos que em serem liberais. Ora, os liberais que ele defende eram monarquistas e parlamentaristas (Guizot e Tocqueville, por exemplo), ou seja, defensores da sociedade de castas, dos privilégios de classe, da censura, da repressão e até do colonialismo: nada disso é exposto pelo autor e, assim, muito menos entendido como defeito. Já os republicanos, preocupados em acabar com a instabilidade política e social que caracterizava a França desde 1789, são acusados de não serem liberais, apesar de garantirem as liberdades públicas e mesmo tendo que lidar com o reacionarismo da Igreja Católica e do Exército. Em outras palavras, se a França republicana estava preocupada em garantir a estabilidade e em ser moderna e com liberdades, isso não é problema do e para o autor; na verdade, isso é um defeito a ser criticado. Não é que os “liberais” franceses fossem ruins – para o autor, assim como para outros historiadores (como Pierre Rosanvallon), os liberais franceses seriam bons, a despeito de suas ações concretas e dos regimes que eles apoiaram, justificaram e legitimaram ativamente –; os políticos não liberais é que seriam ruins, mesmo que tais políticos (na III República francesa) tenham procurado agir da melhor maneira possível, de modo a estabilizar o regime, legitimá-lo, combater os reacionários e garantir as liberdades públicas. (Isso não quer dizer que a III República tenha sido perfeita: por exemplo, ela reforçou o colonialismo no Norte da África; mas por outro lado, ela conseguiu manter-se durante 70 anos, enquadrou os reacionários militares ao longo do caso Dreyfus, separou (imperfeitamente) igreja e Estado, passou pela prova duríssima da I Guerra, conseguiu manter-se relativamente ilesa da crise econômica iniciada em 1929 e ainda elegeu um governo socialista em 1936: tudo isso é muito mais do que os liberais franceses fizeram e pretenderam.) Em um aspecto o autor está certo, todavia: a concepção – democrática – de que a Assembléia Nacional seria todo-poderosa; essa idéia, em si mesma puramente democrática, já é em si mesma desastrosa e era criticada por muitos (por exemplo, Augusto Comte) desde antes da III República; no parlamentarismo – que, aliás, é o regime que se segue naturalmente dessa concepção totalitária – isso se torna desastroso. Entretanto, mesmo ao indicar o defeito congênito da democracia rousseauniana, o autor é superficial, seja porque não considera a história política e intelectual efetiva da III República, seja porque, como conseqüência do problema anterior, o autor procede dedutivamente a respeito dessa fase histórica da França.

Essa concepção curiosa que o autor defende baseia-se no seu liberalismo anticomunista. Esse liberalismo anticomunista não é de tradição estadunidense; é mais próximo do liberalismo anticomunista francês, conforme exposto e defendido por Raymond Aron (citado em muitas e elogiosas ocasiões) e, depois, retomado por François Furet. Esse liberalismo anticomunista seguia a tradição do conservadorismo britânico, à la Burke, que rejeitava os projetos de mudança racional e planejada da sociedade, bem como a visão correlata de homens aperfeiçoados: deixando de lado a necessária e correta crítica da total irresponsabilidade dos intelectuais franceses entre 1944 e 1956, o autor considera que eles estavam fadados a serem errados devido ao projeto de mudança racional e planejada do homem e da sociedade; esse projeto seria em si mesmo errado e até imoral, sendo a base para a crítica da Revolução Francesa, da III República francesa, da Revolução Russa e do que veio depois. É bem verdade que os comunistas russos fizeram o possível para estabelecer uma conexão histórica e moral entre 1917 e 1789; mas, em vez de perceber que a história da França era uma coisa e a da Rússia, outra, o autor compra a tese dos comunistas e condena em bloco todo o projeto. Aliás, mais do que isso; o liberalismo anticomunista do autor fá-lo adotar as mesmas concepções historiográficas e sociológicas de François Furet, cuja “nova história crítica” da Revolução Francesa consistia em entender os acontecimentos de 1789-1799 meramente como a sucessão de eventos sociais e políticos – eventos de grande porte, mas em si mesmos sem maiores conseqüências ou importâncias filosóficas, sociológicas e históricas; em outras palavras, para combater o determinismo materialista dos comunistas, o melhor que Furet (e, no presente caso, Judt) tem para oferecer é um historicismo hipercontextualista e politicista, que rejeita qualquer filosofia da história e qualquer filosofia do progresso do ser humano.

Resumindo em si os defeitos do livro, a postura que o autor adota a respeito de Augusto Comte e do Positivismo é exemplar: são poucas citações e referências, mas essas poucas são todas elas negativas e superficiais. Por um lado, as breves exposições que o autor faz do Positivismo são todas erradas e baseiam-se em procedimentos “dedutivos”: o autor tem uma idéia preconcebida (um preconceito, em outras palavras) e quer usar o Positivismo para ilustrar um argumento qualquer; a fim de realizar tal ilustração, ele deduz as conseqüências que lhe interessa no momento. Nenhum dos seus argumentos baseia-se em qualquer tipo de citação ou de referência – e, evidentemente, não há nenhuma do próprio Comte ou dos positivistas –, mas com freqüência, e injustificadamente, o autor associa Comte a Saint-Simon, como se o fundador do Positivismo fosse uma derivação, e uma versão piorada, do conde falido. Por outro lado, o Positivismo é mobilizado para explicar traços que interessam ao autor: por exemplo, um culto às estatísticas; entretanto, não apenas esse traço não corresponde ao Positivismo (Comte era contrário à sociometria como sinônima de Sociologia, como no projeto de Quétélet), como o autor só faz aparecer no presente traços longínquos do Positivismo se esses traços antigos forem, supostamente, negativos, mas nunca positivos; em outras palavras, todas as vezes em que ele invoca o Positivismo ele comete o vício teórico-metodológico do viés de seleção. (Além disso, o autor é incoerente, ao afirmar, no começo do livro, que no início da IV República havia uma preocupação entre muitos intelectuais com as estatísticas oficiais, mas, no final do livro, insistir na idéia de que os intelectuais buscavam manter-se ignorantes da realidade (fosse francesa, fosse estrangeira)).

No que se refere ao tema específico do livro – a exposição das imbecilidades dos intelectuais franceses entre 1944 (ou, talvez, 1940) e 1956 –, isto é, em termos de história das idéias no período subseqüente à II Guerra, o autor é muito bem-sucedido, embora haja diversas limitações, como as indicadas acima. Entretanto, assim que o autor afasta-se do tema específico do livro, as limitações indicadas ganham peso e maculam o seu esforço; sua interpretação filosófica, sociológica e histórica das fontes do irracionalismo, da irresponsabilidade e da imoralidade dos intelectuais franceses desde a década de 1930 e até, pelo menos, 1956 (mas estendendo-se até 1974) revela-se profundamente falha e insatisfatória.

O conjunto do livro deixa, então, um sabor misto, ambígüo, para o leitor. Por um lado, o núcleo duro da pesquisa do autor é importante e em linhas gerais é convincente; a crítica moral que ele realiza funciona, em termos amplos. Mas, por outro lado, a interpretação sociológico-filosófica que ele propõe das origens do problema que denuncia é fraca e, se isso não fosse pouco, a concepção que ele esposa do ser humano e da sociedade, na qual baseia a sua crítica, é ainda mais frágil e superficial (ainda que tenha alguns elementos relevantes – basicamente, a idéia moderna de que as liberdades individuais devem ser preservadas).

Anos depois, o autor pelo menos abrandaria esse liberalismo em favor da defesa de uma certa social-democracia; como o seu liberalismo não é exatamente o anglossaxão (ao estilo Tatcher-Reagan, ou Popper-Hayek-Friedman), mas segue as linhas do liberalismo conforme entendido e praticado por Aron e Furet, essa defesa posterior da social-democracia não é totalmente incoerente; mas, mesmo assim, a ênfase estrita no indivíduo (contra a sociedade) passa para o respeito às noções de coletividade e de bem público. Da mesma forma, Tony Judt tornou-se famoso por seu gigantesco livro Pós-guerra e por centenas de resenhas e comentários sobre livros e pesquisas históricas, filosóficas e políticas: não deixa de ser motivo de tristeza percebermos que uma investigação prévia que ele fez, relevante e útil em si mesma, apresenta uma quantidade enorme de falhas, limitações e equívocos.

(Vale notar que a tradução brasileira é péssima, o que também não ajuda o livro.)

24 maio 2021

Positivismo, uma oportunidade desperdiçada no Brasil

O período de maior atividade da Igreja Positivista do Brasil ocorreu entre 1881 (ano de sua fundação) e 1927 (ano de morte de Teixeira Mendes); nesse quase meio século, as propostas do Positivismo incluíram uma quantidade enorme de temas: política trabalhista, política indigenista, defesa da liberdade de pensamento, liberdade profissional, paz na América do Sul e na Europa, abolição da escravidão e incorporação do proletariado, fim da monarquia, proclamação e organização da República; combate ao racismo e à discriminação; proposta de uma liga ecumênica em favor da Humanidade; história do Brasil, história da Europa; teoria neurológica, teoria das ciências, teoria social, teoria política; história de Augusto Comte – e muitos, muitos outros assuntos. Em bem mais de 600 publicações – algumas delas com duas ou três páginas, muitas com centenas de páginas –, eles realizaram efetivamente a proposta comtiana, ou melhor, positivista de constituição de um novo poder Espiritual.

O Positivismo obteve grande sucesso no Brasil porque era uma filosofia e uma política que prometia e realizava a modernização (política, intelectual, social, institucional) do país; na conjuntura específica do século XIX, o Positivismo afirmava a importância intelectual e prática da ciência, bem como a afirmava a República e o fim da escravidão; tudo isso constituía, por si só, um projeto impressionante, mas, mais do que isso, resultaria em um legado que poderia ter grandes frutos caso os brasileiros quiséssemos preservá-lo.

O Positivismo afirma a importância da ciência mas é, ao mesmo tempo, uma religião; ele afirma a importância da ordem mas aspira ao progresso assim como, inversamente, busca o progresso mas não rejeita a ordem; afirma o primado da sociedade industrial e a relevância política da luta de classes, mas rejeita a violência e é favorável ao entendimento entre as classes sociais; afirma a sociedade positiva mas respeita as teologias e as metafísicas... como indicamos acima, isso e muito mais constitui as propostas positivistas, apresentadas em detalhes e aplicadas rigorosamente desde meados do século XIX no Brasil, mas principalmente no período entre 1881 e 1927. O comum dos políticos; o comum dos acadêmicos; o comum dos sacerdotes; o comum dos historiadores e dos filósofos vê todas essas oposições como sendo absolutas e inconciliáveis; com isso, rejeitam o Positivismo e a Religião da Humanidade, assim como rejeitam os esforços para mediar conflitos inerentes à vida em sociedade e à historicidade própria ao ser humano; essas diversas rejeições, por outro lado, é claro que quem as pratica vê-se beneficiado.

Conciliar a ordem com o progresso; conciliar o proletariado com a classe patronal; em uma época de primado da ciência manter uma religião e ainda respeitar as teologias e as metafísicas; respeitar o governo mas sem abdicar da possibilidade de supervisão política e moral sobre o governo e, inversamente, o governo manter a ordem pública sem jamais ofender as liberdades de pensamento e de expressão: essas e outras propostas exigem dos governantes e dos cidadãos um comportamento que é firme e seguro, mas ao mesmo tempo reconhece que a vida não aceita extremismos e que há muito tempo já ultrapassamos, ou já temos as condições históricas, morais e intelectuais para ultrapassarmos a violência, a intolerância, a censura. Enquanto a teologia e a metafísica baseiam-se no absolutismo filosófico e, historicamente, estiveram associadas ao militarismo, a positividade exige o relativismo e permite o pacifismo; assim, baseados no amor, isto é, no altruísmo, é possível conjugar pólos extremos que, até então, foram inimigos inconciliáveis. Ao mesmo tempo, muitos dos problemas cujas soluções já eram sugeridas pelos positivistas desde o final do século XIX ainda nos atormentam, mais de um século depois, ao mesmo tempo em que outros problemas com que temos que lidar atualmente poderiam ter sido evitados, ou diminuídos, caso a política positiva tivesse sido ouvida e praticada anteriormente: epidemia de consumo de drogas, violências contra as mulheres, miséria avassaladora e burgueses irresponsáveis, militarismo, violência urbana, conflitos insolúveis entre “progressistas” e reacionários.

Do final da década de 1920 (e até antes) até os dias atuais houve muitos outros movimentos sociais, políticos e intelectuais além do Positivismo; com raríssimas exceções, embora esses diversos movimentos criticassem uns aos outros, o que eles tinham (e têm) em comum é a negação de todos os demais movimentos, sejam aqueles que os precederam, sejam aqueles com que se defrontam em um dado momento. Embora digam falar em nome de todos, esses vários grupos falam apenas em seus próprios nomes, negando ou excluindo os demais grupos.

Não é por acaso que um dos traços principais da nossa sociedade – da nossa civilização, se considerarmos com atenção – é a “criticidade”; como dizem com um orgulho equívoco (e cínico) os marxistas, o “parricídio intelectual” sistemático foi alçado à posição de virtude intelectual e política elementar. Quem vem depois sempre nega quem veio antes; quem vem depois afirma que quem veio antes não era bom e, portanto, suas ações têm que ser desfeitas, negadas, rejeitadas. Restringindo-nos aos que vieram após os positivistas (ou melhor, após Miguel Lemos e Teixeira Mendes), não é isso que vemos e vimos com a “antropofagia” da “Semana de arte moderna”? Com a Revolução de 1930? Com o golpe de 1937? Com a redemocratização de 1946? Com o golpe de 1964? Com a constituinte de 1987-1988? Com a eleição do PT em 2002? Com o impedimento de Dilma em 2015? O atual Presidente da República não foi eleito com uma plataforma de “destruir tudo” (que, aliás, ele pratica com evidentes esmero e aplicação)?

Ora, os positivistas afirmavam a conjugação do progresso com a ordem e da historicidade com os avanços: não é por outro motivo que, por exemplo, a bandeira nacional republicana tem elementos de inovação, progresso e avanço (o círculo azul com o céu estrelado e a faixa branca com o belíssimo “Ordem e Progresso” em verde) em um fundo que já existia na bandeira imperial (o retângulo verde e o trapézio amarelo). Enquanto os positivistas afirmamos que os cleros teológicos deverão extinguir-se naturalmente, à medida que as populações forem emancipando-se das teologias (das suas promessas fantásticas e de suas punições fantasmagóricas), e, por isso, é-nos recomendado que contribuamos com a manutenção material desses mesmos cleros – para não morrerem de fome –, o que os cleros teológicos fizeram e fazem? Impõem a todo custo suas crenças, por meio do peso do Estado; perseguem todos aqueles que não compartilham de suas crenças. (E, por sua vez, os intelectuais, sempre “críticos”, ridicularizam o generoso voto positivista.) Enquanto os positivistas afirmamos que tanto os proletários quanto os patrícios são necessários para a sobrevivência material da sociedade, para a preservação e o aumento das riquezas, e que, portanto, é necessário que eles colaborem, que cada grupo perceba que tem deveres inalienáveis em relação ao outro grupo e ao conjunto da sociedade, o que é que liberais e marxistas fizeram desde sempre a respeito do Positivismo? De maneira muito característica e sugestiva, antes de mais nada ridicularizaram a noção de deveres mútuos – e, portanto, afirmaram a irresponsabilidade coletiva de cada grupo –; em seguida, cada qual afirmou seu próprio particularismo, seja na forma do “capitalismo selvagem” (e agrarista, no caso específico do Brasil), seja na forma da “revolução do proletariado”. Como todos sabemos, isso resultou em um século de conflitos políticos recorrentes e por vezes sangrentos; em uma burguesia profundamente irresponsável e sem sentimento de nacionalidade e em um proletariado enfraquecido, desmobilizado, paupérrimo mas com laivos revolucionários.

Procurando falar a todos os grupos e a todas as classes – ou seja, procurando aconselhar e orientar as idéias e os valores de todos os cidadãos –, os positivistas religiosos mantemo-nos rigorosamente fora dos governos; ao procurarmos manter a dignidade do poder Espiritual, queremos com isso termos condições de dirigirmo-nos a cada cidadão sem apelarmos para a força do Estado sem que ninguém tenha medo disso e, ao mesmo tempo, quando e se for necessário, possamos criticar a conduta pública (e até privada) dos governantes. Em nome dos interesses coletivos, afirmamos as responsabilidades mútuas de patrões e empregados, assim como afirmamos a importância de o Estado agir para desenvolver economicamente a sociedade, mas sem nunca, jamais, impedir as liberdades de pensamento e de expressão. Ao mesmo tempo que afirmamos que a ciência esclarece a realidade e que é uma base segura, respeitamos as crenças teológicas e metafísicas; sabemos que mais tempo, menos tempo, todos os seres humanos serão irmãos na Humanidade, a despeito das diferenças de classes e de nacionalidades, deixando para trás as crenças que tiveram sua importância histórica mas que não correspondem mais à realidade e às necessidades humanas: nisso tudo há o primado da paz, do respeito mútuo, da tolerância.

Com exceção dos positivistas, qual grupo pode dizer que propôs as idéias e colocou em prática os parâmetros acima? As ironias e os deboches que intelectuais (acadêmicos ou não) com tanta freqüência dirigem aos positivistas sugere não que a Religião da Humanidade esteja errada em suas propostas, mas, justamente ao contrário, que ela está certa – e que, portanto, é necessário ridicularizá-la. Católicos, marxistas, liberais – e, mais recentemente, também as feministas –: todos esses grupos falam apenas por si mesmos, rejeitam os demais, mantêm (quando não incentivam) os conflitos, negam a historicidade (tanto a continuidade quanto as inovações) e, se não fosse pouco, desejam a todo custo obter e manter o poder. Tudo isso é o oposto do Positivismo.

Entre 1881 e 1927, mas começando bem antes e avançando para bem depois, os positivistas propusemos (propomos) o progresso – com amor e ordem –; a sociedade industrial – sem exploração, sem revolução –; a paz – com dignidade, tolerância e respeito mútuo. Não há dúvida de que esses foram alguns dos elementos cruciais que justificaram a fama e a importância do Positivismo naquela fase. Mas o Brasil – e, de modo geral, o Ocidente – preferiu deixar de lado as propostas e as lições do Positivismo... para substituir pelo quê? Por nazismo, fascismo, comunismo, liberalismo radical, fundamentalismo teológico, irracionalismo, niilismo, individualismo hedonista e por aí vai.

É triste constatar: ao deixar de lado o Positivismo, o Brasil (mas também o Ocidente) desperdiçou uma oportunidade ímpar para resolver, encaminhar e/ou evitar muitos problemas sociais, políticos, morais, intelectuais que assolam nosso país. O Positivismo é mais um caso de oportunidade desperdiçada; mas se isso ocorreu no passado, não há motivo para que continue sendo assim; o Positivismo, a Religião da Humanidade permanece válido, útil, altruísta – em uma palavra, positivo. Cumpre-nos, com urgência, retomar essas propostas.

13 novembro 2017

Gazeta do Povo: "Pós-verdades liberais contra o Positivismo"

Artigo de minha autoria, publicado na Gazeta do Povo de 11.11.2017. O original pode ser lido aqui.


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Pós-verdades liberais contra o Positivismo

Em tempos de “pós-verdade”, nada mais difícil de fazer que decidir o que é ou não verdade ou real. Isso se torna mais grave quando o autor de um texto afirma-se “historiador”, pois então a “pós-verdade” ganha ares de respeitabilidade, mesmo não tendo base factual. Nesse sentido, o artigo “Raízes autoritárias”, de Ney Carvalho, publicado na edição de 22 de outubro no jornal O Globo, é um monumento à pós-verdade.
A tradição liberal brasileira é extremamente particular. Ela abrange desde defensores do abolicionismo (Joaquim Nabuco) quanto de defensores da escravidão (José de Alencar, o romancista de O guarani), assim como figuras ambíguas como o legalista Rui Barbosa (que era e não era ateu, que queimou os registros da escravidão, que promoveu a primeira crise de hiperinflação do país e que assumia para si obras e ações de outros). O liberalismo brasileiro também abrange defensores do laissez-faire (Tavares Bastos, Eugênio Gudin), ex-comunistas (Carlos Lacerda) e ex-integralistas (Miguel Reale), passando por apoiadores do regime militar (Roberto Campos, Antônio Paim) e por intelectuais de qualidade como José Guilherme Merquior. Recentemente, entre as hostes liberais brasileiras podemos encontrar figuras tão – como dizer? – curiosas quanto Jair Bolsonaro, o Movimento Brasil Livre e o seu guru, o astrólogo Olavo de Carvalho.
Assim, é como integrante dessa particularíssima tradição liberal brasileira que Ney Carvalho afirma em seu artigo que o autoritarismo nacional tem suas origens no Positivismo, isto é, na doutrina fundada por Augusto Comte e nas práticas dela oriundas. Para isso, o autor adota a conhecida prática de citar palavras e expressões sem os explicar adequadamente e de abusar de adjetivos e juízos de valor. Como o espaço aqui disponível é curto, vamos diretamente aos pontos.
Atualmente o Positivismo é amplamente desconhecido do público brasileiro
O autor afirma que o Positivismo por definição é autoritário, e que desde o início de sua difusão no Brasil, em meados do século 19, ele estimula o golpismo, especialmente militar. Exemplos disso seriam a ação do professor de Matemática, o coronel Benjamin Constant Botelho de Magalhães, na Escola Militar; a Proclamação da República, em 1889; o projeto de constituição “ditatorial” da Igreja Positivista do Brasil e, por fim, a ação dos castilhistas no Rio Grande do Sul. Tudo isso o autor afirma, de maneira gratuita, tratar-se de antecedentes intelectuais e institucionais do golpismo sugerido recentemente pelo general Antônio Hamilton Mourão.
Por que essas afirmações são gratuitas? Porque são meras afirmações, sem quaisquer bases factuais. Aliás, pior que isso: são afirmações contrárias à verdade dos acontecimentos – de tal sorte que o conjunto dos comentários do “historiador” Ney Carvalho enquadra-se perfeitamente nas “desinformações” ou nas atuais “pós-verdades”. A isso se deve acrescentar o fato de que, embora tenha tido enorme importância social, política e intelectual entre o fim do Império e a Primeira República (ou seja, entre 1870 e 1930), atualmente o Positivismo é amplamente desconhecido do público brasileiro: nesses termos, basta assumir-se um ar doutoral e fazer afirmações bombásticas para que se crie a impressão de que é sabedor das coisas e possa-se dizer o que se quiser sobre temas menos conhecidos nos dias atuais, como é o caso do Positivismo.
Para perceber os erros e os problemas do que Ney Carvalho afirma, basta ler os artigos da Igreja Positivista do Brasil (situada no Rio de Janeiro, na Rua Benjamin Constant, no bairro da Glória) ou, caso leia-se em francês, as obras de Augusto Comte. Como, de qualquer maneira, esses documentos são um pouco difíceis de achar atualmente, é possível procurar na internet em repositórios eletrônicos de textos, como o portal Archive.org ou a página do Senado Federal. Uma outra possibilidade é consultar o livro Laicidade na I República brasileira: os positivistas ortodoxos, de minha autoria, em que apresento as características desses documentos e examino em profundidade diversos de seus argumentos.
De qualquer maneira, as publicações da Igreja Positivista e as obras de Augusto Comte são todas muito claras no sentido de que a ação política deve ser sempre pacífica, com amplas liberdades de pensamento e de expressão claramente garantidas e com as possibilidades permanentes de crítica pública ao governo e de sugestão às propostas governamentais, da parte de todos os cidadãos. Isso, aliás, é o que se chama atualmente de “república”, “democracia” e “Estado de Direito”. Os gaúchos seguidores de Júlio de Castilhos atuavam nesse mesmo sentido.
Embora afirme-se historiador, Ney Carvalho deixa de lado importantes pesquisas historiográficas que examinam precisamente as relações entre os positivistas e as escolas militares, em particular no caso de Benjamin Constant. O mineiro José Murilo de Carvalho há muito tempo indicou, no célebre artigo “O poder desestabilizador”, que os ensinamentos de Benjamin Constant para a juventude militar iam na direção da “civilização”, isto é, de tornar cada vez mais civil e menos militar o comportamento de seus alunos. Esse aspecto é central, pois foi justamente em reação explícita à orientação de Benjamin Constant que se constituíram os “jovens turcos” brasileiros. Esses militares, integrantes de uma geração posterior à formada por Benjamin Constant, a partir da década de 1910 procuraram adotar as doutrinas militares da França e da Alemanha e, com isso, mudaram os rumos do ensino militar, no sentido da “profissionalização” castrense. Essa “profissionalização” era politicamente ambígua: propunha que os militares deveriam ser apenas militares, mas ao mesmo tempo arrogava-se o papel institucional de fiscal do Estado, resultando em um ativismo político: o maior exemplo disso foi o general Góes Monteiro, inimigo declarado do Positivismo e da orientação de Benjamin Constant, além de justamente ter sido o articulador militar da Revolução de 1930. Aliás, Góes Monteiro também foi o inspirador de outro militar golpista, o general Olympio Mourão Filho, o realizador do golpe de 1964 – este, sim, o predecessor do atual general Antônio Hamilton Mourão.
A referência à proposta de constituição “ditatorial” exige comentários específicos. Como há muito tempo lembrava o social-liberal italiano Norberto Bobbio, ao contrário do que ocorre nos dias atuais, em que após a Revolução Russa e o nazismo a “ditadura” é sinônima de autoritarismo, no século 19 essa palavra era entendida com um sentido positivo, de modo geral como governo ativo. Dessa forma, seguindo em linhas gerais os hábitos linguísticos de sua época, Augusto Comte – o fundador do Positivismo, da sociologia e da história das ciências – adotava a palavra ditadura, com a particularidade de que a definia como sendo qualquer governo: nesses termos, Comte distingue ditaduras tirânicas, despóticas, retrógradas, conservadoras, assim como ditaduras liberais, progressistas, positivas. Uma longa comprovação disso está disponível na minha tese de doutorado, intitulada O momento comtiano, defendida em 2010.
A Igreja Positivista do Brasil e, de modo geral, os positivistas brasileiros, ao adotarem o linguajar proposto por Comte, adotavam também essas referências filosóficas; a constituição “ditatorial” por eles proposta consistia não em um regime autoritário, mas, bem ao contrário, em um regime de amplas liberdades, em que o governo limitar-se-ia a manter a ordem pública, consagrando a mais estrita separação entre igreja e Estado, sem se intrometer em questões morais, religiosas e “ideológicas”. Atribuir a esse projeto o caráter de autoritário com base em um problema semântico é, na melhor das hipóteses, desconhecer a história das ideias políticas; na pior das hipóteses, é profunda má-fé.
Mas, por outro lado, ao atribuir aos positivistas o autoritarismo nacional, Ney Carvalho obscurece o efetivo papel que outros grupos sociais, políticos e intelectuais desempenharam de fato para a constituição de uma tradição e de mentalidades liberticidas no país. Quais seriam esses grupos? Como é fácil de perceber a partir da década de 1930, os católicos, os marxistas e, também, os liberais. Durante toda a Primeira República, a Igreja Católica desejava retomar os privilégios de que gozava durante o Império; após a Revolução de 1930, Getúlio Vargas e a Igreja Católica mantiveram um regime de apoio mútuo que lembrava muito a estreita colaboração mantida, ao mesmo tempo, entre Mussolini e Pio XI: isso apenas se alterou (mas não muito) após 1966. Sobre o papel liberticida desempenhado pelos marxistas, não é preciso discorrer muito: basta pensar no golpismo estimulado por Luís Carlos Prestes, com o apoio de sua primeira esposa, a agente soviética de origem alemã Olga Benário Prestes. Por fim, embora tenha havido poucos liberais ao longo da Era Vargas, o fato é que houve muitos integralistas, muitos dos quais, após 1946, conveniente e rapidamente se transformaram em liberais.
Em suma, ao difundir “pós-verdades”, o liberal Ney Carvalho atribui ao Positivismo as origens e a estrutura da mentalidade autoritária brasileira; com isso, ele ao mesmo tempo contribui para manter em silêncio uma poderosa filosofia social de liberdade e para desviar a atenção das fontes reais do autoritarismo brasileiro. Talvez ele faça isso para tentar justificar a existência de alguns integrantes recentes, mas estranhos, do liberalismo nacional, como é Jair Bolsonaro: entretanto, como observamos, nesse caso, sua origem liga-se aos generais Mourão (Filho) e Góes Monteiro, não ao Positivismo e a Benjamin Constant.
Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

08 agosto 2011

Sobre a legitimação do republicanismo via liberalismo

É completamente incorreto querer assimilar o republicanismo contemporâneo ao liberalismo. É bem verdade que qualquer teoria política atual tem que reconhecer o fato da “liberdade dos modernos”, o que pode ser facilmente assimilado à valorização liberal dos indivíduos; mas, por outro lado, como vários autores já indicaram, a liberdade negativa tem a necessidade lógica e prática da liberdade positiva e, ainda mais, uma “república” não é somente uma justaposição de indivíduos, de modo que tem que prover alguma concepção de “bem comum”. É necessário afirmar essas idéias a fim de evitar-se tentativas de legitimar o republicanismo (em particular de acordo com a riquíssima tradição francesa) via aproximação com o liberalismo (em particular o anglossaxão), como fez Jean-Fabien Spitz em Le moment républicain.

Se, nesse livro, por um lado, o autor está correto ao indicar que os pensadores por ele recenseados assumem o “indivíduo”, por outro lado, seu desejo de aproximar-se do liberalismo fá-lo desprezar republicanos que enfatizam mais o bem comum ou a coletividade que o indivíduo, embora não se filiem ao robespierrismo rousseauniano e a sua postura anti-indivíduo.

Com essa tentativa de justificar o republicanismo por meio de sua aproximação ao liberalismo, Spitz desvaloriza o republicanismo, em vez de valorizá-lo. Se só é aceitável o republicanismo de corte liberal, para que perder tempo sendo republicano? É mais fácil ir diretamente à fonte e aceitar-se alguma variedade “social” do liberalismo!

Nesse sentido, está coberto de razão Quentin Skinner em seu Liberdade antes do liberalismo, que argumenta que é o liberalismo uma corrupção do republicanismo e não o contrário. Restrito ao caso inglês do século XVII, é necessário complementar a leitura dessa pequena obra magistral com pelo menos outras duas: L’Idée républicaine en France, de Claude Nicolet, e Utopia e reforma no Iluminismo, de Franco Venturi.

18 setembro 2009

Aforismas sociológicos III

§1° – Liberdades negativa, positiva e republicana em Augusto Comte

O ideal republicano de liberdade, segundo Phillip Pettit, consiste na não-dominação, ou seja, na vida política (e social) regulada por leis que impeçam a arbitrariedade. Esse ideal contrapõe-se ao liberal, que propõe a não-interferência (em vez da não-arbitrariedade) e em que a liberdade consiste em os indivíduos não terem obstáculos às suas ações ou aos seus desejos, independentemente de serem tais obstáculos arbitrários ou não. Não-arbitrariedade e não-interferência são, nesse sentido, simetricamente opostas, pois uma aceita a interferência e a outra a arbitrariedade.

A não-interferência, de cunho liberal, é individualista em seu método e em seu objetivo; ela visa a salvaguardar a ação dos indivíduos em contraposição aos demais membros da sociedade, percebidos como inimigos em potencial: de fato, o estado de natureza hobbesiano subjaz a ela. Dessa forma, há uma oposição bastante marcada entre o “público” e o “privado”: este é o âmbito da realização por excelência, em que os indivíduos fazem o que querem e como querem; aquele é o âmbito da negação da liberdade, em que se impõem regras e procedimentos que impedem, em maior ou menor grau, a liberdade de ação dos indivíduos. A despeito da origem do nome (“privado” como aquilo em que falta algo, isto é, como algo deficitário), a esfera particular é o pólo positivo na dicotomia liberal, ao passo que o “público” é o pólo negativo, ainda que seja (um mal) necessário.

Os liberais contrapõem à liberdade “negativa” (na expressão de Isaiah Berlin) a “positiva”, caracterizada pela autodeterminação; ela pode ser estritamente individual ou coletiva: no caso de ser individual, há um elemento estóico, como indicou Pettit, em que o indivíduo comanda a si mesmo e vence seus pendores egoístas; no caso coletivo, de acordo com diversas interpretações, consiste na tomada coletiva de decisões, em que supostamente não haveria espaço para o particular, em uma espécie de “tirania do público sobre o privado”.

Os liberais de diferentes extrações ao longo do século XX puseram-se resolutamente a favor da liberdade negativa e contra a positiva, percebendo nesta, irracionalmente, indícios de totalitarismo[1]: Isaiah Berlin, Friedrich von Hayek, Karl Popper, Ayn Rand etc. Na modalidade individual, estóica, da liberdade positiva, Berlin por exemplo via um fracionamento do indivíduo, que se dividia para uma parte combater a outra; na modalidade coletiva, todos eles lembravam-se da tirania robespierrista, inspirada pela “vontade geral” de Rousseau, e contemplavam o totalitarismo comunista[2]. Evidentemente, Robespierre, Stálin, Mao Tsé-Tung e todos seus êmulos são excelentes exemplos contrários a qualquer coisa chamada “liberdade”, ainda que se apóiem, de fato, em uma retórica da liberdade dita “positiva”. Por outro lado, a oposição que esses pensadores fizeram ao totalitarismo consistia na apologia do indivíduo contra a sociedade: tal apologia, como dissemos há pouco, em termos de método e em termos de objetivo, segundo a qual a sociedade é percebida como composta por indivíduos para a realização dos indivíduos, contra os outros indivíduos. Como indicamos, nesse quadro qualquer menção a “coletividades”, a “sociedade” é suspeita de criptototalitarismo ou condenada por totalitarismo aberto.

A proposta de Pettit tem o grande mérito de evitar as tentações despóticas da “liberdade positiva” – reconhecidas desde sempre pelos críticos de Rousseau – e de evitar o individualismo metodológico e deontológico da “liberdade negativa”. É forçoso reconhecer, todavia, que Pettit está menos preocupado em combater esse individualismo que em reconhecer a importância da não-arbitrariedade: como bom integrante do ambiente anglossaxão (irlandês naturezalizado australiano e residente nos EUA), os indivíduos são um valor moral e político para ele, embora sem os exageros “neoliberais” que, como Mrs. Tatcher, considera que a “sociedade” é apenas famílias e indivíduos (ao mesmo produtores e consumidores).

Interessa-nos aqui muito menos discutir o pensamento de Pettit que o adotar como ponto de partida para algumas reflexões sociológicas, em particular a respeito do pensamento político de Augusto Comte. Por quê? Porque, além da coincidência terminológica do tipo de liberdade defendida por Pettit – “republicana” –, essa forma de liberdade, baseada na não-arbitrariedade guarda inúmeras relações com o pensamento comtiano, em que é possível um frutuoso comércio.

Passemos por alto de algumas limitações do republicanismo de Pettit, que admite os regimes monárquicos e é omisso a respeito da laicidade, ou seja, cala-se a respeito de dois elementos importantes da teoria republicana. Comte, por outro lado, é explícito a respeito de ambas as questões: as sociedades contemporâneas têm que ser republicanas (em contraposição às monarquias) e a laicidade é condição sine qua non das liberdades públicas; essas questões tratamos em outros momentos[3]. O que nos interessa aqui é perceber como as categorias filosóficas e políticas de Pettit permitem desenvolver algumas categorias de Comte.

Comecemos pela “não-arbitrariedade”. O que distingue, em última análise, a dupla teologia-metafísica do pensamento positivo, para Comte, é o fundamento filosófico de cada qual: a teologia e a metafísica são absolutas, ao passo que a positividade é relativa. O absoluto é aquilo que existe em si e para si, sem admitir relação com nada além dele mesmo e que não depende de nada para ser conhecido. Já a relatividade positiva consiste em admitir que o ser humano é limitado de todas as formas possíveis: submete-se aos impérios da natureza e da historicidade para existir, para conhecer e para agir; sua realidade, seus conhecimentos e suas ações são relativas a uma série por assim dizer infinita de fatores e variáveis. O “absoluto” ignora(ria) tudo aquilo que não fosse ele mesmo, pois não precisa de mais nada além de si mesmo; o relativo depende de todas as outras variáveis para existir. Dessa forma, a arbitrariedade dos atos é a característica do absoluto, ao contrário do que ocorre no relativo: como Augusto Comte repetia sem cessar, o relativo é variável, sem ser jamais arbitrário. A rejeição do arbitrário na positividade não se refere à ausência de liberdade ou de imaginação ou alguma coisa do tipo, mas à afirmação da existência de ordem, de regularidade na natureza e na sociedade, a que o homem necessariamente se submete, mesmo – e, talvez, principalmente – quando deseja modificar a natureza e a sociedade.

Embora essas reflexões filosóficas, de cunho epistemológico, sejam distintas de considerações políticas, é claro que a passagem das primeiras para as segundas não é difícil de perceber; mesmo a nomenclatura do “absolutismo” filosófico já indica essa possível relação: o que caracteriza o modo teológico de governar é o absolutismo político, que tem como uma de suas características o arbitrário; já a política positiva rejeita esse arbitrário, sem negar a liberdade humana de ação. O conhecimento das leis sociológicas é o meio mais seguro – na verdade, para Comte, o único meio – de agir em sociedade evitando o arbitrário.

Três fórmulas comtianas permitem compreender como é possível uma política positiva, não-arbitrária e defensora da liberdade. A primeira é uma observação recorrente na obra Política positiva, em particular em seu volume III: “vontades indemonstráveis ligam-se a ordens indiscutíveis”. Em outras palavras, o modo teológico (e, a partir da degradação da teologia, também metafísico) de pensar, por buscar o absoluto, por buscar o incognoscível, engendra naturalmente uma ordem política indiscutível, oriunda da “vontade” do “absoluto”, impassível de análise e de crítica, punidas estas com a morte. Por outro lado, o modo de pensar positivo permite o exame dos fundamentos da sociedade, que, por sua vez, não busca o absoluto, mas a realização do próprio ser humano; o exame dos fundamentos sociais, feito em bases racionais e pacíficas, é sempre possível e nunca punível com a morte.

Outras duas fórmulas, elevadas à dignidade de “sagradas” na religião positivista, estabelecem diretrizes morais (isto é, individuais e domésticas) e políticas (isto é, públicas) para a vida em uma sociedade positiva (isto é, não-absoluta, não-arbitrária); são elas: “viver às claras” e “viver para outrem”.

Uma das características mais importantes do pensamento comtiano é seu caráter ao mesmo tempo sintético e sistemático. Por “sintético” entende-se aqui duas coisas: 1) a visão de conjunto subjacente à elaboração do sistema, que coordena e organiza os aspectos parciais, isto é, analíticos; 2) a capacidade de referir-se a muitas coisas com poucas palavras, ou, o que dá no mesmo, aplicar diversos sentidos (coerentes e complementares entre si) às palavras empregadas. Já o “sistemático” refere-se, também, a duas coisas: 1) à perspectiva “sistêmica”, em que o tratamento de um elemento refere-se também a diversos outros, pois que o elemento tratado mantém relações com diversos outros; 2) à ordem lógica em que as diversas questões são tratadas, levando-se as diversas concepções aos seus limites teóricos e lógicos. A essas quatro características podemos acrescentar o caráter enciclopédico do pensamento comtiano, consistindo em um conhecimento de cada uma das ciências fundamentais (da Matemática à Moral); esse conhecimento, como dissemos, é sintético e sistemático. Convém notar que é da combinação dessas cinco características que provém a complexidade do pensamento comtiano e, portanto, a dificuldade de sua compreensão.

É levando em consideração pelo menos essas cinco características que se deve compreender as duas fórmulas, “viver às claras” e “viver para outrem”. Começando por esta última: ela é mais moral, isto é, busca disciplinar a conduta individual e coletiva a partir da concepção comtiana de moralidade. Essa concepção afirma que o ser humano tem de maneira inata instintos (sete) egoístas e (três) altruístas, em que há uma progressão lógica e de diminuição de intensidade à medida que se passa do egoísmo para o altruísmo; o egoísmo consiste na satisfação puramente pessoal, ao passo que o altruísmo consiste no respeito e no benefício dos demais.. A moralidade consiste em disciplinar o egoísmo (pureza) ao mesmo tempo que se estimula o altruísmo (ternura). Evidentemente, não é possível, nem mesmo recomendável, extirpar o egoísmo; de maneira correlata, o altruísmo não é necessariamente sinônimo de “autossacrifício”: o que se deve fazer, portanto, é orientar o conjunto de instintos e pendores humanos para o benefício dos demais, em termos coletivos e individuais, na origem e na destinação; isso corresponde a agir diretamente de maneira altruísta e também a disciplinar os instintos egoístas em um sentido que melhore a existência dos demais (ou, em outros casos, que minimize o sofrimento alheio). Assim, o “viver para outrem” tem dois hemistíquios: “viver” e “para outrem”. O “viver” corresponde à satisfação dos impulsos pessoais; o “para outrem” corresponde à orientação dos esforços pessoais.

A fórmula “viver para outrem”, como se viu, tem um objetivo basicamente moral, pois enuncia um princípio de moralidade na conduta humana, cujo exercício é, sem dúvida, basicamente pessoal. Mas, considerando o caráter sintético do pensamento comtiano, a fórmula que consideramos também tem um aspecto político, ao indicar que a vida pessoal deve dirigir-se para os outros, sejam esses “outros” tomados individualmente, sejam tomados coletivamente. Dessa forma, ao mesmo tempo em que se respeita as individualidades, não há a apologia do individualismo, necessariamente egoísta e antissocial, presente no liberalismo. Da mesma forma, estabelece-se uma necessária relação entre a moralidade individual e a existência coletiva (política e social), entre a realização pessoal como particular e também como cidadão.

Passando para a fórmula “viver às claras”, percebe-se com facilidade que ela é mais política que a anterior. O que está em questão aqui é como orientar o relacionamento das esferas individual e familiar com a pública, além de estabelecer também um princípio moral. O princípio moral é ao mesmo tempo fácil de apresentar e explicar e sumamente desafiador para colocar em prática: consiste em agir sempre de maneira que seja publicamente explicável e defensável, ou seja, sem realizar ações moralmente condenáveis. Esse princípio é aplicável por si só, mas guarda relações com a concepção política da fórmula, segunda a qual a vida particular das pessoas e das famílias deve orientar-se para a existência coletiva. Não se trata aqui de negar os âmbitos particular ou doméstico, com uma suposta dissolução deles no âmbito público (como propôs a utopia de Platão) ou com o escancaramento da vida pessoal na realidade pública (como fazem há já vários anos, por exemplo, os desditosos reality shows[4]), mas de estabelecer que a vida particular, devendo ser respeitada em si mesma, deve orientar-se para a colaboração social. Essa orientação disciplina a vida familiar e particular, ao impedir que as famílias e os indivíduos virem fins em si mesmos, em diferentes formas de egoísmo[5].

Ainda assim, convém notar que a família, embora subordine-se à cité, mantém sua dignidade própria, ao basear-se nos vários tipos de relacionamentos afetivos entre seus membros, com o desenvolvimento e o estímulo aos sentimentos (generosos). A família, na Sociologia comtiana, é a associação mais restrita e com os vínculos mais fortes, pois são plenamente afetivos e extremamente próximos; por esses motivos, Comte percebia as famílias e não os indivíduos como as verdadeiras “células sociais”. O “viver às claras” disciplina as famílias ao indicar que elas são o núcleo afetivo da sociedade, mas que elas não se encerram em si mesmas; ao contrário, elas participam da vida social a que se devem subordinar: os membros de cada família são cidadãos, o que equivale a dizer que as famílias preparam os cidadãos para a existência pública.

A fórmula “viver às claras” estabelece um relacionamento entre os âmbitos público e privado em que um apóia o outro, respeitando-se mutuamente em suas dignidades próprias. Não há uma contraposição antagônica entre ambas as esferas, não se afirma que a sociedade é uma luta entre o público e o privado[6]. Em outros textos[7] já indicamos que o mesmo raciocínio é aplicável à gestão dos recursos econômicos: embora a propriedade privada exista, seja necessária e deva, portanto, ser garantida moral e juridicamente, sua existência não equivale a um direito de usar e abusar, de seus detentores agirem como se ela fosse absoluta, inatacável e disponível para qualquer estupidez. Considerando que a propriedade é social em sua origem e que deve ser em sua destinação, Comte considerava que os proprietários das riquezas, especialmente as riquezas materiais, são gestores dos capitais, a serviço do benefício coletivo. Assim, deixando de lado a separação jurídica entre o estatal e o civil, a atuação dos cidadãos qua cidadãos é uma questão pública, a ser avaliada publicamente na “esfera pública”.

O republicanismo comtiano, portanto, é mais completo e mais satisfatório que a liberdade negativo dos liberais: 1) seja porque não rejeita o “público” como espaço do tirânico, 2) seja porque não encerra o “privado” em si mesmo, 3) seja porque rejeita o absoluto, isto é, o arbitrário.

Algumas palavras a respeito da opinião de Comte sobre a liberdade positiva são adequadas. Comte rejeitava a liberdade “positiva” porque a considerava demagógica e tirânica: assim como os liberais do século XX (e mesmo Phillip Pettit, que também rejeita a liberdade positiva, por motivos bastante similares), percebia nela a realização das idéias de Rousseau, pensador que sempre foi considerado por Augusto Comte como sendo mais literário que científico, metafísico em vez de positivo. O que hoje chamaríamos de “liberdade positiva” refere-se à existência política grega, em particular à democracia ateniense. Ora, a opinião que Comte possuía sobre a vida política grega era bastante negativa (com exceção de alguns episódios importantes, como a batalha de Salamina), não percebendo reinos de virtude nas cidades monárquicas (como Esparta), nem realizações do ser humano nas cidades democráticas (como Atenas). As guerras intestinas indicam o quanto a Grécia antiga era eivada de particularismos e egoísmos coletivos, impassíveis de solução: a recusa de Esparta em lutar ao lado de Atenas contra os persas – recusa mantida até os momentos derradeiros – é um exemplo disso. Mas a vida democrática ateniense também não era exemplar: em vez da celebração humana, apenas mesquinhez, demagogia, hipocrisia e ciúmes contra as excelências morais e intelectuais. Da mesma forma, mesmo para os padrões do século XX Atenas seria odiosa: xenofóbica, altamente discriminatória, imperialista, escravocrata e tumultuada.

A oposição que Isaiah Berlin estabeleceu em 1958 entre as liberdades negativa e positiva baseia-se em uma outra oposição que o suíço Benjamin Constant criou em 1819: respectivamente, liberdade dos modernos versus liberdade dos antigos. Além das óbvias diferenças de contextos em que foram formuladas, o que diferencia Constant de Berlin é que o primeiro tinha uma interpretação ao mesmo tempo histórica e política, ao passo que o segundo propôs uma tipologia mais ou menos abstrata e exclusivamente política – embora, sem dúvida alguma, seja possível ler e entender a tipologia de Berlin a partir da de Constant.

Ao referirmo-nos à liberdade “dos antigos” é necessário esclarecermos que Benjamin Constant pensava na Grécia e não em Roma, na “democracia” ateniense e não na “república” do Lácio. Essa observação é importante para termos claro que, de fato, Augusto Comte reprovaria as liberdades positiva e “dos antigos”, mas não a dos romanos. Por que não? Porque, para ele, os romanos souberam disciplinar a sua existência coletiva, principalmente ao subordinar a vida privada à vida pública e ao subordinar a inteligência à ação prática. Com isso, estabeleceu-se um verdadeiro concurso coletivo para o bem público, em que todas as classes contribuíam, à sua maneira e na medida de suas possibilidades, para o melhoramento cívico. É verdade que tal concurso somente foi possível porque Roma baseou sua existência – como de resto, a Grécia – na atividade guerreira; mas foi exatamente essa atividade guerreira que, à medida que ampliava territorialmente o império, permitiu a inclusão social dos povos conquistados e das classes subalternas no esforço coletivo. Além disso, o fim da República não sinalizou meramente o fim de um regime político: muito mais importante, indicou que o regime anterior estava podre e não correspondia mais às necessidades sociais (basta pensar-se nas ações e nas mortes dos irmãos Gracos, em cerca de 140 a. c.); já a instalação do Império permitiu que a atividade guerreira fosse substituída pela existência pacífica de todos os povos no que então se considerava o mundo inteiro, de acordo com a célebre fórmula cesariana: “fazemos a guerra para levar os hábitos da paz” [8].

Na tipologia de Benjamin Constant, os “antigos” caracterizavam-se pelos esforços coletivos em favor da guerra e da glória nacional, com a instituição social da escravidão; já os modernos caracterizam-se pelo trabalho livre e pacífico, industrial e com vistas à satisfação dos interesses e do conforto particulares. Do conjunto da presente exposição, é fácil perceber que Comte concordaria, como concordava, com os termos gerais dessa dicotomia. Os liberais do século XX, reduzindo-a a uma dicotomia política, também concordariam com ela: mas endureceriam os seus termos, em particular cavando um fosse na liberdade “dos modernos” entre o “público” e o “privado”, de tal sorte que o público seria resquicial em relação ao privado. Talvez não por acaso, nessa tipologia – cujo valor heurístico para a Teoria Política e para a Sociologia, entretanto, é inegável – falta um termo para os antigos[9]: a república romana; é com base nela que Augusto Comte e Phillip Pettit desenvolveram suas idéias, o primeiro sobre a sociocracia, o segundo sobre a liberdade republicana[10].

§2° – Problemas da fenomenologia

A partir da leitura do livro de Alberto Cupani, A crítica do Positivismo e o futuro da filosofia (UFSC, Florianópolis, 1985), é possível perceber vários problemas na Fenomenologia. O livro é organizado em seis capítulos, além da “Introdução” e da “Conclusão”; no primeiro o autor descreve o “Positivismo” na forma de um tipo-ideal elaborado a partir do senso comum acadêmico, resultante da combinação das idéias de Karl Popper, do Círculo de Viena, de Mário Bunge e de alguns outros, além das concepções que os seus críticos têm do “Positivismo”; os quatro capítulos seguintes apresentam sucessivamente as perspectivas de algumas correntes epistemológicas do século XX (Fenomenologia; Bachelard; Thomas Kuhn; Paul Feyerabend), bem como as críticas que elas dirigem ao que tacham de “positivista”; por fim, no capítulo VI, o autor ensaia possíveis respostas do “Positivismo” às críticas recebidas. Neste texto trataremos da Fenomenologia (capítulo II e seção I do capítulo VI, ou seja, páginas 29 a 40 e 91 a 100). Convém notar que os comentários seguintes baseiam-se na leitura que fizemos desses textos de Cupani – que, por mais informativos e esclarecedores que sejam, evidentemente não nos eximem de uma posterior leitura direta dos próprios “fenomenólogos”[11] (Husserl e Merleau-Ponty em particular, embora também, talvez, o nazista Heidegger).

A fenomenologia busca as “essências” das coisas, que supostamente seriam as realidades “últimas”, “verdadeiras”, “legítimas”, apreendidas por meio da intuição humana. Essa intuição implica que se deve observar as coisas “como elas são”, com a suspensão dos juízos (sejam eles favoráveis, sejam contrários) a essas coisas. Não é difícil de perceber nessa proposta uma certa concepção cartesiana da tabula rasa: não por acaso, vários textos de Husserl chamam-se de “Meditações cartesianas”. Também não é difícil perceber que, como toda busca das “essências”, a proposta pela fenomenologia também é metafísica.

A obtenção “imediata” das essências dos “fenômenos”, por uma via intuitiva, baseia-se em uma confusão entre, de um lado, o abstrato e o concreto e, de outro lado, o analítico e o sintético. A observação direta é sempre concreta e sintética, obtendo apenas os “fatos” (ou, para evitar essa palavra tão polêmica e difícil, os seres); já os fenômenos exigem a observação abstrata, sempre analítica: mas a proposta da fenomenologia pretende aceder os fenômenos de maneira concreta. Não se trata aqui de uma confusão terminológica, mas de uma proposta truncada em si mesma, que, a partir de uma concepção metafísica, busca o inalcançável; ainda assim, a fenomenologia comete equívocos terminológicos, restabelecendo no século XX a “querela dos universais” do século XIII, ao postular perspectivas “realistas”. De que maneira?

Ao afirmar que a intuição, ao buscar as “essências”, determina categorias porque essas categorias são conformadas pelas “essências”. Dessa forma, não é que o ser humano elabore abstratamente o conceito de “triângulo” a partir da observação do espetáculo natural, mas, para a fenomenologia, o espetáculo natural tem, subjacente a si, uma “essência” da “triangulidade” que se impõe à intuição humana. É claro que se os conceitos modificam-se ao longo do tempo, as “essências” também deveriam mudar, mas isso é algo de somenos importância para a fenomenologia; o que importa aqui é que existem realidades conceituais subjacentes à natureza e independentes do ser humano; tais realidades são absolutas e existem em um “plano” diferente daquele que a consciência humana comum habita. Estamos em companhia dos “realistas” medievais, em uma forma de neoplatonismo do século XX; considerando que, na querela medieval dos universais, foram as perspectivas conceitualista de Abelardo e, acima de tudo, nominalista de Guilherme de Ockham que permitiram o desenvolvimento da ciência nos séculos seguintes, não é de estranhar que a fenomenologia compreenda tão mal a ciência no século XX.

Essa busca das essências retrocede as investigações intelectuais para um momento de absolutismo filosófico, próprio ao ambiente metafísico alemão e distante da afirmação comtiana de que “o único absoluto é que tudo é relativo”, de 1819. O relativismo comtiano postula que o ser humano existe em relação com outras coisas (estudadas pelas diversas ciências abstratas), age e vive em relação a outros seres humanos e conhece a realidade apenas por meio de relações que estabelece entre seus sentidos e a realidade cósmica e humana. Dessa forma, até pode ser que exista algum “absoluto” (fato que até agora não foi demonstrado ou comprovado e que todas as investigações negam): mesmo assim, esse absoluto não faria a menor diferença, pois que é inacessível ao ser humano. Também é necessário lembrar que o absolutismo filosófico conduz ao absolutismo político; como disse Comte, “verdades indemonstráveis ligam-se a vontades indiscutíveis”.

A postulação da “intuição”, da mesma forma, é altamente problemática, pois que supostamente seria independente dos recursos cognitivos, teóricos e metodológicos dos observadores; seria uma espécie de sentido, ou “mecanismo”, inato, que permitiria a apreensão imediata da realidade, da realidade “em si” – o que, em termos claros, equivale à busca dos “fatos puros”, tão recriminada nos “positivistas” (isto é, nas obras de Rudolph Carnap e Otto Neurath).

Como diversas outras correntes alemãs, a fenomenologia é metafísica e tem uma concepção completamente equivocada do que são a “ciência” e o “Positivismo”[12]. Em primeiro lugar, há o habitual reducionismo da totalidade do empreendimento científico à Matemática e à Física, ignorando-se 1) as importantes diferenças teóricas e metodológicas que distinguem entre cada uma das setes ciências fundamentais, 2) as progressivas complicação e modificabilidade que se observa na realidade quando se passa da Matemática à Moral e, 3) por fim, as peculiaridades cognitivas do ser humano, em que as variáveis cosmológicas e sociológicas interferem de maneira fundamental.

Por outro lado, é simplesmente assustadora a concepção fenomenológica de que a “ciência” consiste em um esquematismo formalista e apriorístico que seria forçado sobre a realidade, para “enquadrar” essa realidade (sejam fatos, sejam fenômenos) nos preconceitos dos cientistas. Deixando de lado que essa concepção é coerente com a idéia cartesiana da tabula rasa, estranhamente recuperada por Husserl, o fato é que a ciência simplesmente não é esse esquematismo formalista! É evidente que isso não quer dizer que não existem cultores da ciência (profissionais ou amadores) que adotam esse tipo de procedimento: entretanto, isso não é a mesma coisa que dizer que a ciência tout court consiste nisso, nem que a ciência que impressiona a todos e que demonstra seus surpreendentes resultados há mais de quatro séculos – ou seja, a “boa ciência”, a ciência “de qualidade” – consiste nisso; na verdade, bem ao contrário, qualquer pessoa de boa fé, com uma formação científica teórica e metodologicamente mínima, saberia que tal esquematismo é lixo intelectual e desperdício de recursos. O assustador nessa concepção fenomenológica é que, contrariamente à sua própria exigência de “suspensão de julgamento”, ela estabelece um preconceito que obnubila a realidade fática e impede os adeptos da fenomenologia de perceberem o que está à frente deles[13]!

Esses preconceitos da fenomenologia contra a ciência, é claro, são coextensivos ao que chamam de “Positivismo”; na verdade, a concepção que a fenomenologia tem da “ciência” é por ela (isto é, pela fenomenologia) chamada de “positivista”, muito embora nenhum dos autores fenomenológicos consiga indicar onde, na obra de Augusto Comte, há referências semelhantes às que eles atribuem-lhe. Mais do que isso: esses erros lembram, não por acaso, erros cometidos por Wilhem Dilthey. Por que “não por acaso”? Porque tanto a fenomenologia quanto Dilthey integram o ambiente alemão, tributário do romantismo e da Kultur, saudoso da metafísica e incapaz de lidar com os êxitos da concepção científica, ou melhor, positiva da realidade. Quais são esses erros? Novamente: a concepção reducionista e altamente estereotipada da ciência e a busca de uma “verdadeira” ciência baseada em atributos subjetivos individuais (“compreensão”, “intuição” etc.).

A “intuição” também significa a afirmação radical da consciência individual, percebida como mecanismo por excelência da apreensão da realidade. Mais uma vez: essa concepção é coerente com a idéia de que a ciência consiste em formalismos apriorísticos; esses formalismos seriam “objetivos”, ou, talvez, “objetivistas”. A despeito do que se afirma, eles não permitem a apreensão da realidade, mas iludem os cientistas; para Husserl, se por acaso esse formalismo objetivista tem algum sucesso, não é por seus méritos próprios, mas a despeito de si mesmo. Já vimos o erro completo que é perceber a ciência como “formalista”, “objetivista”, “apriorística”: cabe indicar agora que essa “intuição”, por ser um recurso estritamente individual e baseado em uma “suspensão dos juízos”, é uma afirmação radical do solipsismo. A afirmação do “agente” “cognoscente”, “intuitivo”, é a morte da construção social da realidade e, no fundo, das relações sociais[14]!

A afirmação da “verdadeira subjetividade”, “intuitiva”, pela fenomenologia, e sua correlata afirmação de que a “ciência” (e o “Positivismo”) é “objetivista”, tem como conseqüência lógica a negação da subjetividade na ciência. Essa negação, mais uma vez, baseia-se em uma série de confusões teóricas e terminológicas pela fenomenologia. A primeira consiste em que a “ciência” negaria as “experiências subjetivas” dos seres humanos, ao supostamente afirmar apenas as “experiências objetivas”. Ora, misturam-se aí duas variedades bastante diversas, ainda que relacionadas, de “experiências humanas”: uma é a que todos os seres humanos têm como seres humanos, capazes de amar, sentir, agir, pensar e assim por diante; é evidente que o empreendimento científico também se baseia nesse tipo de experiência subjetiva, pois que os cientistas são cientistas porque são movidos por curiosidade, por interesses, por vaidade e orgulho, por desejo de realização pessoal, por busca de melhorias sociais; a prática científica cotidiana está repleta de experiências subjetivas semelhantes: ao trocar idéias com seus pares, aos conhecerem parceiros afetivos e sexuais em seus locais de trabalho, ao realizarem descobertas, ao concluírem pesquisas, ao organizarem eventos etc. etc. etc. Em suma, a ciência é uma atividade humana como qualquer outra, capaz de satisfazer subjetivamente de maneira plena os seres humanos como outras tantas atividades (na verdade, como todas as outras). É evidente que a “subjetividade” implicada pelo aparelho cognitivo do ser humano está implicada e subentendida nessa longa e incompleta lista de experiências subjetivas realizadoras do ser humano permitidas pelo empreendimento científico.

O outro tipo de “experiência” científica é aquela que reproduz artificialmente em laboratório[15], de maneira controlada, situações existentes na natureza. A artificialidade dessas experiências, o seu caráter controlado, a relação com teorias científicas e o treinamento cognitivo permitem que a subjetividade dos próprios pesquisadores seja controlada ao realizarem tais “experiências”, produzindo uma espécie de distanciamento chamada de “objetividade”. Nada nesse gênero de “experiências” autoriza quem quer que seja a afirmar que não há “subjetividade” na ciência, nem que essas experiências de laboratório negam a “plenitude” subjetiva do ser humano. Da mesma forma, é fácil perceber que a fenomenologia não apenas ações diferentes na palavra “experiência” como ignora completamente as condições concretas de realização das experiências científicas, isto é, no presente, caso, as experiências feitas em laboratório.

Em suma: a fenomenologia não é uma proposta alternativa ao Positivismo (bem entendido: Positivismo comtiano); embora aqui e ali faça observações interessantes e, em alguns casos, sugestivos ou pertinentes, o fato é que no geral ela é um conjunto de observações improcedentes e incoerentes, a partir uma visão estereotipada da ciência e do Positivismo, saudosa da metafísica platônica.

[1] A irracionalidade desses pensadores, além do elogio ao egoísmo individualista, está em que para eles qualquer referência a “coletividade” é percebida como sinônimo de totalitarismo.

[2] François Furet, em O passado de uma ilusão, corretamente estabelece a tirania de Robespierre como a ancestral política e teórica dos totalitarismos do século XX, fossem de direita, fossem, principalmente, de esquerda.

[3] Cf. o nosso texto “Laicidade(s) e república(s): as liberdades face à religião e ao Estado”.

[4] O empresário brasileiro Augusto Trajano de Azevedo Antunes, positivista, em meados do século XX (portanto, bem antes dos reality shows), já afirmava que “se deve viver às claras, mas não às escâncaras”.

[5] No que se refere ao egoísmo familista, um exemplo é bastante ilustrativo: no final do filme O poderoso chefão, os irmãos Corleone estão conversando à mesa, quando o caçula Michael afirma que se alistou (era 1942 e os EUA havia pouco foram bombardeados em Pearl Harbor); a isso o primogênito Santino responde asperamente: “você lutará e morrerá por desconhecidos? O que importa é a família”; Michael por fim treplica: “É o meu país”. O comentário de Santino é a própria expressão do egoísmo familista.

[6] No sentido específico indicado acima, bem entendido: o combate à corrupção, por outro lado, é um combate contra a privatização ilegal e ilegítima de recursos públicos.

[7] Cf. “Dois erros sobre a doutrina política comtiana:autoritarismo’ e ‘funcionalismo público’”, “Eqüidade no projeto republicano de Augusto Comte” e “As críticas de Augusto Comte à Economia Política”.

[8] Nada disso ocorreu na Grécia, de tal sorte que, na verdade, o juízo de Comte sobre a Grécia como um todo é negativo, não apenas no que se refere à política, mas também a respeito da filosofia, que lhe parecia descaminhada. As exceções ao juízo negativo referem-se a aspectos da arte grega, a alguns pensadores generalistas (ao mesmo tempo cientistas e moralistas: Tales, Aristóteles e Pitágoras) e a alguns cientistas (Arquimedes, Hiparco, Apolônio de Tiana e Hipócrates).

[9] Em rigor, faltaria ainda um outro termo: a Idade Média. Benjamin Constant, ao contrapor a liberdade “dos antigos” à “dos modernos”, simplesmente retoma a célebre “querela sobre os modernos”, surgida no Renascimento e desenvolvida até o Iluminismo, em que a Idade Média era vista como um período de trevas, a “noite dos mil anos”; o cristão e defensor do cristianismo Isaiah Berlin atualizou essa querela, contraditoriamente desprezando a Idade Média. Comte não cometeu esses erros, percebendo a Idade Média como um período de importantes contribuições para o Ocidente e para a Humanidade em vários âmbitos, incluindo aí o político, com a separação entre os poderes Temporal e Espiritual (que consiste na fundamentação histórica e teórica da laicidade do Estado). Sobre a “querela sobre os modernos”, cf., de Paolo Rossi, Naufrágios sem espectador.

[10] Para uma comparação preliminar entre os republicanismos de Comte e de Pettit, cf. o meu artigo “Republicanismo hierárquico? Uma leitura da obra política de Augusto Comte a partir de Dumont e Petitt”. Cabe notar aqui, entretanto, que a teorização de Pettit baseia-se, no que se refere à experiência romana, em Cícero – quem, para Comte, era um arrivista hipócrita e desprezível; os grandes símbolos do republicanismo romano no pensamento comtiano são outros: Cipião, César e Trajano (este último a despeito de ter sido um imperador, isto é, governante de uma monarquia).

[11] Essa observação foi aliás educadamente feita pelo próprio Prof° Cupani, por meio de correspondência eletrônica dirigida a mim em 17.9.2009.

[12] Deixando de lado, é claro, o fato de que há uma confusão generalizada a respeito do “Positivismo” – para a qual, diga-se passagem, a fenomenologia contribui.

[13] Essa afirmação não é gratuita: vimos pessoalmente em um congresso adeptos da fenomenologia expressando esse tipo de concepção em pesquisas “científicas”.

[14] Afinal de contas, as relações sociais têm que ser suspensas, juntamente com os juízos, para que se “apreenda intuitivamente a realidade”.

[15] Bem entendido, naquelas ciências em que as pesquisas em laboratório são possíveis material e eticamente, nominalmente na Física, na Química e em aspectos da Biologia.