Um aspecto central da argumentação de R. Prandi e R. W. Santos é a seguinte: não foi a civilização "cristã" que foi alvejada no dia 13.11, mas a instituição da laicidade. Além disso, noto que esse aspecto é determinante, tanto para o Ocidente quanto para os terroristas: há séculos o Ocidente não se caracteriza mais pelo "cristianismo", mas pela laicidade crescente e pela tolerância. A laicidade do Estado, aliás e não por acaso, é repudiada pelo Islã.
* * *
REGINALDO PRANDI E RENAN WILLIAM DOS SANTOS
Terrorismo contra o Estado laico
Além do abominável dano real das vidas perdidas, os ataques terroristas têm um efeito essencialmente simbólico. Seu verdadeiro alvo é a autoimagem da sociedade golpeada. Em um ato que se expande para além dos corpos mortos e feridos, o objetivo fundamental é atingir, pelo terror, a alma da própria civilização do país agredido.
Foi assim com as torres gêmeas, derrubadas no 11 de Setembro de 2001. Suas ruínas simbolizaram o fim do sentimento norte-americano de invulnerabilidade.
Já a França, o país com maior população muçulmana da Europa ocidental, atacada de novo, agora pelo Estado Islâmico, representa historicamente o que esses fanáticos mais querem ver destruídas: as barreiras que separam o Estado da religião. Para esse terrorismo, que ataca em qualquer lugar, porque por toda parte pode enxergar a negação de seus valores, a França é o ícone máximo da civilização edificada com aquela separação. O ataque a Paris é, acima de tudo, um ataque ao Estado laico.
Esqueça a liberdade de pensamento, a liberdade de ter qualquer crença, ou nenhuma. Esqueça a igualdade de direitos e deveres entre cidadãos, independentemente da filiação religiosa. Esqueça a autonomia do Estado frente à religião.
O que esses terroristas querem é um mundo "livre" de tudo isso, no qual é justo matar quem tenha crenças diferentes das deles. No qual seja legítimo excluir quem não professe a religião "certa". No qual o Estado seja o braço armado a serviço da perseguição de fins religiosos, ou inspirados por uma leitura particular da religião.
Nas democracias do mundo secularizado, intoleráveis para aqueles religiosos intolerantes, o que evidentemente não inclui todos os religiosos, as religiões podem ter participação ativa na esfera política, desde que aceitem as regras do jogo: seus representantes devem ser democraticamente eleitos, pelo voto, e não conduzidos ao poder pelo carisma religioso ou cargo eclesiástico.
Mesmo aderindo às regras da representação democrática, contudo, os fundamentalistas, islâmicos ou não, ainda se enfrentariam com um Estado laico, que garante a livre escolha religiosa, mas submete as "leis de Deus", estabelecidas pela resolução teológica baseada em verdades imutáveis e mandamentos escritos em um texto sagrado, ao crivo das "leis dos homens", criadas pela deliberação política e sempre sujeitas a mudanças.
Um Estado que certamente condenaria Abraão por tentativa de infanticídio, por mais que ele acreditasse estar seguindo uma ordem divina ao pretender sacrificar o próprio filho.
No fim das contas, essa variante da religião que se manifesta no terror teria, para se firmar, que pôr a sociedade ocidental, e outras, de cabeça para baixo. Como fez o cristianismo, com ações não menos agressivas, com sociedades indígenas e do velho paganismo.
De todo modo, a matança em Paris pode ter feito crescer, aos olhos do mundo ocidental, a aversão a essa mistura promíscua entre religião e poder político. Ao invés de destruir, a ação terrorista pode ter acrescentado algumas fileiras de tijolos nos muros que separam o Estado da religião nas democracias do mundo contemporâneo. E tijolos mais firmes do que nunca, porque assentados com argamassa do sangue de inocentes.
REGINALDO PRANDI, 69, é professor sênior do Departamento de Sociologia da USP e autor, entre outros livros, de "Os Mortos e os Vivos" (ed. Três Estrelas).
RENAN WILLIAM DOS SANTOS, 23, é mestrando em sociologia na USP e bolsista da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).
RENAN WILLIAM DOS SANTOS, 23, é mestrando em sociologia na USP e bolsista da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).