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12 março 2024

O altruísmo é sempre apenas a satisfação do egoísmo?

No dia 16 de Aristóteles de 170 (12.5.2024) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, agora em sua décima conferência, dedicada ao regime privado.

Na parte do sermão, devido à sua extrema importância, retomamos e respondemos pormenoridamente à questão: as nossas ações altruístas visam sempre a satisfazer o egoísmo dos outros?

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/2r8u0) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/Y4lxn). O sermão começou efetivamente em 1h 06 min 00 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se transcritas abaixo.

*   *   *


O altruísmo é sempre apenas a satisfação do puro egoísmo? 

-        Durante a prédica do dia 9 de Aristóteles de 170 (5.3.2024) retomamos inicialmente as máximas morais apresentadas por Augusto Comte no início da décima conferência do Catecismo positivista, dedicada ao regime privado

o   Após retomarmos a máxima positivista – “Viver para outrem” –, surgiu uma interessante dúvida: as nossas ações altruístas visam sempre a satisfazer o egoísmo dos outros?

o   Essa dúvida não apenas é intelectualmente interessante; ela também é moral e praticamente importante, pois diz respeito a como realizamos o altruísmo e à orientação subjetiva que damos às nossas ações

o   Além disso, é importante notar que, também do ponto de vista intelectual, essa questão é central para o Positivismo, pois tem a ver com como descrevemos as relações entre o altruísmo e o egoísmo de diferentes pessoas

o   Assim, mesmo repetindo vários temas e várias observações que fizemos na semana passada e mesmo hoje, devido à importância central do tema julgamos importante dedicar todo um sermão a ele

-        Comecemos por lembrar as características da nossa máxima “Viver para outrem”:

o   Antes de mais nada: a palavra “outrem” significa “outro”, ou “outros”

o   A fórmula positivista é superior à máxima antiga (“Agir com os outros como gostaria de ser tratado”) e à medieval (“Amar o próximo como a si mesmo”)

§  Essas duas máximas apresentam uma certa evolução, na medida em que passam da conduta externa (na fórmula antiga) para a motivação subjetiva (fórmula medieval)

§  Entretanto, como é bastante claro, essas duas fórmulas concentram-se no egoísmo: não se trata de afirmar e realizar o altruísmo, mas apenas de satisfazer o egoísmo e de mais ou menos regular o egoísmo alheio

§  Ambas as fórmulas, e em particular a segunda, baseiam-se no amor divino, que é especialmente egoísta, antissocial e anti-humano

o   O “viver para outrem” orienta a vida de cada um diretamente para o altruísmo

§  Lembrando a máxima de Clotilde (“Que prazeres podem exceder os da dedicação?”), resulta que a lei do dever é também a fórmula da felicidade

-        Passemos ao que nos interessa hoje; comecemos lembrando que o “viver para outrem” tem duas partes:

o   O “viver para outrem”, que consiste na orientação altruísta do conjunto da vida humana e na definição de um critério claro para definirmos todas as pequenas, médias e grandes decisões que temos que tomar no dia a dia

§  É nessa parte que consiste a lei do dever

o   O “viver para outrem”, que consiste em que cada um de nós tem que estar vivo, e em boas condições de saúde física e mental, para podermos dedicar-nos aos outros

§  Assim, essa parte consiste em garantir que os agentes humanos existam e, portanto, ela garante a satisfação do egoísmo de cada um

·         A esse respeito, nota Augusto Comte que a orientação para o altruísmo não pode consistir na negação do egoísmo, com isso indicando que não devemos autoflagelar-nos (e, ainda menos, não devemos suicidar-nos)

§  A satisfação do egoísmo, nesse sentido, portanto, consiste na condição objetiva (e até subjetiva) para a realização do altruísmo

§  Entretanto, é fundamental termos clareza de que essa satisfação do egoísmo tem que se submeter à regra do dever, ou seja, ao estímulo do altruísmo e à compressão do egoísmo

·         Sem tal entendimento, a fórmula torna-se incoerente e imoral

·         A satisfação do egoísmo subordina-se à realização do altruísmo; assim, tal satisfação consiste em uma condição (para o altruísmo) e não de um objetivo em si mesmo

·         A felicidade que devemos buscar não consiste na satisfação egoísta de algo abstrato chamado “felicidade”: a felicidade que devemos, e que podemos, buscar consiste em nossa dedicação para os demais

·         Todas as formas de hedonismo enquadram-se na satisfação do egoísmo por si só, mesmo que sob o rótulo enganador de “felicidade pessoal”

o   Em outras palavras, o hedonismo é uma via egoísta e individualista – e, portanto, ilusória – de busca da felicidade

o   Lembramos aqui o caráter profundamente egoísta do hedonismo porque ele é uma característica das sociedades ocidentais contemporâneas

§  As sociedades ocidentais assim combinam o estímulo sistemático de inúmeras formas de egoísmo e individualismo com o estímulo ao desejo de consumo (na maior parte das vezes de produtos e serviços inúteis), em algo que, adotando a terminologia metafísica do marxismo, poderíamos chamar de “capitalismo hedonista”

-        Enfrentemos, agora, a pergunta inicial: as nossas ações altruístas visam sempre a satisfazer o egoísmo dos outros?

o   Em uma primeira aproximação, sim: nossas ações buscam satisfazer necessidades alheias

§  Mas esta primeira aproximação é bastante grosseira e, como veremos, é também bastante superficial

o   Entretanto, não devemos nem podemos considerar que a lei do dever consiste em atos altruístas satisfazendo puros egoísmos, pois isso pressupõe (ou deixa de pressupor) várias coisas e implica (ou deixa de implicar) outras tantas:

§  Antes de mais nada, essa concepção – de que a lei do dever no fundo é um altruísmo satisfazendo egoísmos puros – desconsidera o caráter relacional do ser humano, em particular no sentido de que as concepções morais têm que ser generalizadas

·         Nesse sentido, essa concepção desconsidera a noção de dever, isto é, de responsabilidades mútuas, válidas de todos para com todos

§  Em segundo lugar, essa concepção desconsidera o aspecto elementar de que a lei do dever e da felicidade vale tanto para mim (que sou, ou que devo ser, altruísta) como para os demais, que também devem ser altruístas

§  Em terceiro lugar, temos que lembrar que a satisfação do egoísmo (no “viver” do “viver para outrem”) tem que se limitar pelo e subordinar-se ao altruísmo

·         Nesse sentido, temos que lembrar que a satisfação do egoísmo alheio ocorre não para o estímulo desse egoísmo, mas como condição para que essas outras pessoas possam desenvolver o altruísmo

§  Em quarto lugar, devemos notar que as nossas ações altruístas não são sempre nem necessariamente dirigidas para indivíduos específicos, mas que muitas vezes elas têm um foco coletivo e menos específico (de tal sorte que, nesse sentido, elas não satisfazem nenhum egoísmo em particular)

·         As políticas públicas são exemplos fáceis desse caráter difuso de muitas das ações altruístas

·         Mas é claro que, tanto antes quanto depois das políticas públicas, muitas das nossas ações altruístas individuais também apresentam um caráter difuso

§  Em quinto lugar, considerando as características do regime público no Positivismo, devemos notar que a educação positiva tem que estimular o altruísmo; dessa forma, cria-se uma orientação geral na sociedade em favor do altruísmo, evitando que as ações altruístas individuais visem apenas, ou principalmente, a satisfazer o puro egoísmo dos outros

§  Em sexto lugar, também temos que lembrar que o altruísmo realiza-se na prática por meio de ações de aperfeiçoamento

·         Tais ações tornam concreto o altruísmo e evitam que ele degenere em vaguezas místicas

·         O aperfeiçoamento tem vários âmbitos: material, físico (biológico), intelectual e moral

·         Esses aperfeiçoamentos podem, e devem, tornar-se diretamente altruístas por si sós, mesmo que muitas vezes eles tenham que ocorrer em indivíduos específicos

-        Devemos reforçar três aspectos específicos ao apreciarmos a concepção de que “o altruísmo sempre satisfaz o puro egoísmo alheio”

o   Em primeiro lugar, afirmarmos a primazia do altruísmo sobre o egoísmo é algo tanto descritivo quanto prescritivo, ou seja, tanto corresponde à realidade dos fatos quanto, a partir desse caráter descritivo, é também uma recomendação moral e prática

§  Em outras palavras: a orientação moral e prática do “viver para outrem” não é uma fórmula puramente “filosófica”, puramente “teórica”: ela baseia-se na realidade dos fatos, ou melhor, na realidade da natureza humana, conforme ela desenvolveu-se transparece ao longo da história e com base em pesquisas sociológicas e da chamada neurociência

§  Como vimos nos itens acima, o altruísmo generalizado tem (1) uma base sociológica: ele baseia-se no desenvolvimento histórico, em pressões sociais, em valores compartilhados, em práticas coletivas

§  Além disso, esse altruísmo generalizado tem (2) uma base moral, neurocientífica: o altruísmo é generalizável em termos de natureza humana, ao contrário do egoísmo; o altruísmo consegue dominar e orientar o conjunto da existência humana (ou seja, realiza a unidade moral), ao contrário do egoísmo

o   Em segundo lugar, ainda em termos sociológicos e morais, a concepção do “altruísmo como apenas a satisfação do puro egoísmo alheio” deixa de lado o caráter relacional do ser humano, ou seja, deixa de lado o seu aspecto social e concentra-se na concepção “ego-cêntrica”, que entende que a sociedade é apenas a justaposição de indivíduos (que, portanto, reduzem-se aos seus egoísmos)

o   Em terceiro lugar, em termos de história das idéias, essa concepção individualista tem origem metafísica e, como sabemos, difundiu-se muito a partir do liberalismo, com todas as filosofias e “ideologias” de origem metafísica mais recente (como a doutrina dos “direitos humanos”, o marxismo, os próprios liberalismos econômico e político etc.)

§  Nesse sentido, a importância central de responder à questão baseia-se no fato de que ela surge naturalmente do ambiente metafísico que caracteriza o conjunto do Ocidente nas últimas décadas (ou seja, desde o final da II Guerra Mundial e que reforça tendências críticas e negativas que, por sua vez, têm alguns séculos de existência)

§  Podemos dizer, então, que a importância de responder à questão que motivou este sermão, mesmo repetindo temas e concepções que têm sido apresentados nas últimas semanas, deve-se a que é necessário afirmar as concepções positivistas contra a imaginação sociológica metafísica atualmente disseminada

02 novembro 2022

Teoria positiva da felicidade

No dia 25 de Descartes de 168 (1º de novembro de 2022) fizemos mais uma prédica positiva. Demos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua terceira conferência (teoria geral do culto) e, em seguida, fizemos comentários sobre o que podemos chamar de teoria positiva da felicidade.

Como de hábito, a prédica foi gravada ao vivo; ela está disponível no canal Positivismo (aqui) e no canal Apostolado Positivista (aqui). A partir de 52' 50" a exposição da teoria positiva da felicidade começa.

Para quem tiver interesse, reproduzo abaixo as minhas anotações pessoais que guiaram a exposição oral da teoria da felicidade.

*   *   *

O que é ser feliz?

 

-        É uma sensação bastante pessoal, difícil de expressar e definir

o   Talvez seja possível definir da seguinte maneira: ser feliz é sentir-se realizado, é sentir-se pleno

§  Por sua vez, sentir-se realizado é sentir que os objetivos que se traça na vida foram, de alguma forma, atingidos

-        A felicidade pode durar mais ou menos e, talvez de maneira surpreendente, ela também pode ser maior ou menor

o   A ausência de felicidade não é a tristeza, nem a dor; é possível estar estável, sem alegria nem tristeza

§  A alegria não é o mesmo que a felicidade; a alegria é mais transitória e localizada; a felicidade é mais profunda e ampla – assim, é possível estar alegre sem estar feliz

o   Por outro lado, é importante notar que, embora ninguém deseje ficar triste, a tristeza faz parte da vida tanto quanto a alegria (ou a felicidade) – seja porque realmente todos temos momentos de tristeza, seja porque em certo sentido a tristeza dá sentido à alegria e à felicidade

-        Como em grande medida a felicidade é um sentimento pessoal, à primeira vista isso gera um problema para a harmonia social: afinal, sendo pessoal, não deixa de ser egoísta e a soma dos egoísmos não tem como produzir a felicidade coletiva

o   A solução para esse problema é fazer convergir a felicidade pessoal e o bem-estar coletivo - ou melhor, consiste em transformar o bem-estar coletivo em objetivo da felicidade pessoal

o   Essa é outra forma de apresentar o problema fundamental do ser humano, que consiste em, da melhora maneira possível, conjugar o egoísmo individual com o bem-estar coletivo

o   A solução apresentada acima – transformar o bem-estar coletivo no objetivo da felicidade pessoal – é uma outra forma de apresentar a solução indicada por Augusto Comte, que é subordinar o egoísmo ao altruísmo, dando uma orientação altruísta para o egoísmo

§  A metafísica, a partir de suas origens teológicas, opõe a felicidade individual ao bem-estar coletivo

·         Por um lado, o liberalismo afirma que a felicidade individual é sempre oposta ao bem-estar coletivo; a partir daí, muitas metafísicas políticas atuais (que com freqüência apoiam teologias morais) afirmam que só é possível ser feliz rejeitando a sociedade

·         Por outro lado, o comunismo afirma só o bem-estar coletivo e nega a individualidade (rejeitando, portanto, a noção de felicidade individual)

·         Isso deixa claro que nem o liberalismo nem o comunismo propõe soluções reais e verdadeiras para o problema da felicidade

o   Essa solução é possível porque, embora a sensação da felicidade seja em si mesma uma única, as fontes de sua obtenção variam de acordo com a época, com a sociedade, com a classe social etc., além de com o indivíduo: em outras palavras, os objetos e os objetivos da felicidade não são únicos e não são estáticos

§  Assim, pode-se orientar as concepções de felicidade rumo a projetos exeqüíveis, reais, relativos e simpáticos

o   Na orientação altruística do egoísmo e da felicidade individual, a mesquinhez própria ao egoísmo é depurada e a felicidade pessoal é enobrecida

-        Outros dois elementos integrantes da felicidade, que conduzem a ela, são os sentimentos de pertencimento e de objetivo na vida

o   Quando sentimos que pertencemos a algum grupo e que realizamos atividades que têm sentido, isto é, que resultarão em alguma coisa boa, também ficamos felizes

o   O sentimento de pertencimento e o sentimento de objetivo são diferentes entre si, embora com freqüência estejam profundamente vinculados

o   Assim como a felicidade em si mesma, o pertencimento e o sentido de missão podem ser profundamente egoístas – e aí os surgem os problemas com o bem-estar público

o   A solução para esses eventuais problemas é o mesmo já indicado:

§  Devemos todos sempre pertencer a grupos (famílias, pátrias, Humanidade; classes sociais, clubes, escolas, partidos, associações etc.), mas esse pertencimento deve sempre ser subordinado aos supremos interesses da Humanidade; se não se afirmar essa subordinação à Humanidade (e no sentido da continuidade histórica), os pertencimentos parciais podem sempre correr o risco de degradarem-se em termos egoísticos

·         É igualmente importante lembrar que reconhecer a Humanidade, isto é, reconhecer a realidade e também imagem idealizada da Humanidade consiste, por si só, em assumir um pertencimento

§  No que se refere aos objetivos, o que indicamos antes já basta para entendermos a solução positiva: os objetivos devem ser sempre altruístas e devem sempre se subordinar à noção superior de Humanidade

-        A felicidade é um sentimento mundano, ou imanente; ou seja, em última análise, ela só faz sentido para quem vê nesta vida o objetivo de suas ações

o   Os teológicos, em particular os monoteístas, mantêm uma relação complicada com a felicidade, na medida em que seus objetivos dirigem-se para uma suposta “outra” vida, basicamente negando esta vida; inversamente, os monoteístas que se realizam nesta vida mantêm relações complicadas com a própria fé

-        Os vários aspectos indicados até agora da felicidade positiva deixam claro que ela exige esforços ativos, nunca o quietismo, ou o afastamento ou a rejeição desta vida

o   Embora cada um, pessoalmente, deva procurar evitar a dor e o sofrimento e buscar a felicidade, sabemos que nem sempre isso é possível; a solução para isso não é afastar-se do mundo e adotar uma postura basicamente passiva: a solução é aprender a lidar com a dor e a aproveitar a felicidade

o   O afastamento do mundo e o quietismo são particularmente problemáticos também (1) porque são radicalmente egoístas e negam o caráter coletivo do ser humano, ao afirmar que a vida em sociedade é necessariamente, sempre e apenas fonte de sofrimento, e (2) porque não reconhecem que a vida ativa é a condição da felicidade e da regulação dos sentimentos e das idéias

o   Afirmar a vida ativa não é o mesmo que rejeitar o descanso ou que rejeitar a vida intelectual; também não é afirmar que devemos ficar o tempo todo ativos, mexendo-nos incessantemente: é apenas afirmar que vivemos, que essa vida implica a atividade e que essa atividade é o que permite a regulação humana que conduz à felicidade


06 agosto 2021

Sobre a moralidade das séries e dos super-heróis

É possível usarmos séries de super-heróis para pensarmos sobre moralidade individual e coletiva?

Não somente é possível como é necessário. Isso porque o comum das pessoas não se dedica à reflexão sistemática sobre as coisas morais, limitando-se a apenas as praticar e seguir a moralidade corrente. Não há nisso nenhuma crítica; não há porquê nem como que todos sejam filósofos.

Enfim, se o comum das pessoas pratica a moralidade corrente, isso nos dias atuais significa que são influenciadas pela moralidade exposta pelos meios de comunicação; não é por outro motivo, por exemplo, que as novelas brasileiras de Glória Peres procuram sempre “conscientizar” a audiência a respeito de “temas sociais”, assim como o seriado estadunidense Lei e Ordem – SVU procura “amplificar as vozes” (como afirma a propaganda do canal Universal, a respeito das séries produzidas por Dick Wolf).

Pois bem: há alguns dias assisti ao seriado Wanda Visão, do serviço Disney +. (Assinei tal serviço, por apenas um mês, só para ver esse seriado e mais alguns produzidos pelos estúdios Marvel.)

Em termos de qualidade da produção, a série é excelente: tudo muito bem feito, bonito, elaborado. O roteiro também impressiona, especialmente porque se decidiu que a primeira metade da série, ou seus primeiros 2/3 (de um total de nove), imitaria séries cômicas antigas, em que cada episódio da séria corresponderia a uma década (começando nos anos 1950 e indo até os anos 2000).

Até aí, tudo bem. Mas é no final da série, em particular no seu episódio final, que estão os problemas, em número de pelo menos dois:

(1)   por um lado, uma agência governamental verifica que uma cidade inteira – cidade pequena, com cerca de 3.600 habitantes, mas, enfim, uma cidade inteira – foi feita de refém e que seus habitantes sofreram lavagem cerebral; portanto, essa agência tem que libertar esses cidadãos. Após algumas investigações, identifica o seqüestrador na figura de Wanda (a suposta heroína) e adequadamente passa a tratá-la como inimiga, bem ou mal agindo conforme essa nova premissa. Com isso a narrativa da série muda a abordagem a respeito dessa agência governamental: de heróis passam a vilões, apenas porque decidiram perseguir, talvez eliminar, uma criminosa. Em concordância com isso, as personagens secundárias passam a rebelar-se contra a agência “malvada”, sublevando-se, sabotando a agência e até auxiliando a criminosa. No episódio final da série, a condição “malvada” da agência governamental é confirmada e, de maneira correlata, as personagens que apoiaram a criminosa são deixadas ilesas.

(2)   Por outro lado, e em concordância com os fatos acima, a criminosa – mais uma vez: uma seqüestradora em massa que faz lavagem cerebral – mantém sua condição de “heroína”, mesmo que seja uma heroína problemática, sujeita a variados e profundos traumas; mas, de modo central para o que nos interessa, os seus traumas justificam, desculpam e redimem todos os seus crimes. Aliás, mais do que isso: a heroína-criminosa sai impune e as personagens secundárias, que haviam sabotado os esforços para neutralizar a criminosa, acabam concordando com os valores, os sentimentos e a conduta dessa criminosa. Essa concordância dá-se em bases estritamente individuais, ou melhor, individualistas: “se eu estivesse na sua situação e se tivesse os seus poderes, com certeza faria algo bem parecido”; nenhuma palavra sobre seqüestro e lavagem cerebral de 3.600 pessoas, nem sobre depredação de bens (sim, pois, afinal, há sempre “lutas” e “batalhas” que destroem tudo ao redor).

Qual o problema de fundo nisso tudo? Quais os problemas com a moralidade exposta acima?

Os “super-heróis” são indivíduos que realizam grandes feitos, a partir de habilidades extremamente extraordinárias (capacidade de vôo, superforça, resistência física descomunal, superinteligência, emissão de raios pelos olhos e pelas mãos etc. etc.), sendo que esses grandes feitos consistem basicamente em lutas físicas de proporções gigantescas. Qualquer consideração adicional ou é desconsiderada ou é vista como um empecilho (indevido e imoral) à ação dos super-heróis. O que está no caminho dos super-heróis pode e deve ser desconsiderado, ignorado ou, no limite, destruído: leis, instituições, prédios, pessoas; claro que essa possibilidade só é dada aos super-heróis, sendo negada aos “supervilões”. Caso haja desastres, os super-heróis devem caçar os supervilões; mas, no caso de os próprios super-heróis causarem esses desastres, suas responsabilidades são ignoradas (como se não tivessem ocorrido desastres) ou são minimizadas (com a recorrente afirmação de que “não foi culpa sua”) (nas raras vezes em que os heróis são responsabilizados, rapidamente são reintegrados à atividade legítima, sem maiores implicações – e, de qualquer maneira, sempre com o viés de que são mais vítimas que criminosos).

Os super-heróis são uma criação estadunidense. A ênfase a ser dada na definição acima é no “indivíduo”: só o indivíduo importa, todo o resto (isto é, tudo ao redor, seja sociedade, sejam objetos físicos) sendo apenas “resto” e/ou empecilho. Em outras palavras, a moralidade própria aos super-heróis é caracteristicamente estadunidense: super-individualista, antissocial (e, deve-se também notar, anti-histórica), autocentrada.

O agressivo e irresponsável individualismo dos “super-heróis”, exemplificado à perfeição na série Wanda Visão, fica mais evidente quando contrapomos essas figuras estadunidenses a outras criações, também ocidentais mas “antigas.

Os heróis gregos – por exemplo, Hércules – e os heróis medievo-modernos – por exemplo, El Cid – são “heróis” não necessariamente porque possuem habilidades extraordinárias, mas porque realizam grandes feitos. Esses grandes feitos são “grandes” porque envolvem dificuldades enormes, insuperáveis e insolúveis pelo comum dos seres humanos, mas, mais do que isso, são dificuldades que envolvem a coletividade, os seus vínculos e as obrigações daí decorrentes. Em outras palavras, são problemas que implicam as individualidades dos heróis mas que só ganham sentido porque são problemas coletivos; as individualidades só se realizam na medida em que se vinculam aos vários níveis e âmbitos da sociedade.

Mais: o caráter heróico dos heróis aumenta, ou consolida-se, ou mesmo se realiza, na medida em que os heróis têm que se submeter às regras e às sanções morais coletivas. Hércules e El Cid são exemplares nesse sentido: os 12 trabalhos de Hércules, nos quais labutou por mais de dez anos, foram uma expiação por um terrível crime (pelo qual, aliás, ele não foi propriamente "responsável" – a morte de sua esposa e de seus filhos em um acesso de loucura causado pela deusa Hera); já El Cid – pelo menos na poderosa versão de Corneille – vê-se na contingência de não poder casar-se com sua amada porque ambos estavam presos a fortes laços morais e familiares. Essas dificuldades aumentam muito o valor moral e a nobreza de Hércules e de El Cid e é por elas que eles são verdadeiramente conhecidos e valorizados.

Os heróis gregos eram, realmente, superiores ao comum dos mortais; mas aí temos Ulisses, que, embora fosse um grande guerreiro, distinguia-se de fato apenas pela astúcia. O seu valor é dado, na Ilíada, pelos serviços que presta à causa helênica; já na Odisséia o seu valor é de fato mais individual, mas mesmo assim se vincula de maneira inegável e indissolúvel aos seus laços sociais (o amor pela esposa Penélope, a amor por seu filho Telêmaco, a preocupação com seus súditos na pequena e pedregosa Ítaca); mesmo o desafio à autoridade e à existência dos deuses tem, claramente, um sentido social, como fica evidente na preocupação da deusa Palas Atena que o destino de Ulisses sele o destino dos próprios deuses.

Coroando o caráter social das individualidades dos heróis antigos e modernos, o que se vê em todas as grandes tragédias é o drama enfrentado por seus protagonistas para cumprirem suas responsabilidades, quer eles desejam-nas mas sejam impedidos (ou seja-lhes fatal), quer eles não as desejem mas vejam-se obrigados a cumpri-las. As responsabilidades, ou melhor, as responsabilizações correspondem, o mais das vezes, à afirmação dos vínculos sociais; os protagonistas das grandes tragédias aceitam suas responsabilidades e lidam com suas conseqüências, por mais duras que elas sejam (e elas sempre são duríssimas). (Pensemos em Antígona, primeiro exilada com seu pai Édipo (em Édipo rei) e depois condenada à morte por insistir em realizar os funerais de seu irmão Polinice, considerado traidor de Tebas (em Antígona). Pensemos também no titã Prometeu, que, fiel à sua natureza oracular, sabe de antemão que suas ações em prol dos seres humanos custar-lhe-ão duras e prolongadas punições; mas, mesmo assim, aceita com altivez e orgulho o fardo de seu comportamento (em Prometeu acorrentado).)

Enfim, retornemos a Wanda Visão: a sua moralidade extremamente individualista tem que ser qualificada como um defeito – um defeito profundo e próprio à mentalidade dos EUA. Esse defeito choca-se com a alta qualidade técnica (“plástica”) da série. Inversamente, a qualidade técnica acentua o defeito moral e, bem vistas as coisas, essa própria qualidade técnica avilta-se ao servir de veículo para uma moralidade desprezível.

É essa moralidade que é servida – pela Disney, conhecida por seu suposto “moralismo” e seu suposto conservadorismo moral! – para consumo popular nos EUA e, daí, por extensão, para o resto do mundo.

02 dezembro 2014

Individualismo como emancipação incompleta da teologia

Individualismo como emancipação incompleta da teologia

Gustavo Biscaia de Lacerda

Um dos maiores problemas, para não dizer "erros", de quem se emancipa da teologia é, ao realizar essa emancipação, afirmar o individualismo, seja ele epistemológico, seja ele moral, seja ele sociológico. É fácil de entender essa passagem, pois o indivíduo tem que se afirmar pessoalmente, ou melhor, a pessoa tem que se afirmar claramente como indivíduo para superar, para deixar de lado as pressões sociais em favor da teologia e reconhecer que não faz sentido e que não importa a crença nos deuses para a condução da vida humana. É claro que, quanto mais secularizada uma sociedade e, o que às vezes é um pouco equivalente, quanto mais sociologicamente diversificada uma sociedade, menor a pressão exercida pela coletividade em favor da teologia e, portanto, mais facilmente ocorre essa emancipação.

Todavia, seja porque nessa passagem com freqüência é necessário afirmar-se uma individualidade, seja porque nessa afirmação também é necessário desvalorizar fortemente (quando não desprezar) o peso da coletividade, o resultado é que é bastante comum que a emancipação conduza ao individualismo, entendendo-se por essa expressão tanto a concepção segundo a qual é o indivíduo isoladamente tomado que "constrói" a realidade (consistindo, portanto, em uma forma de solipsismo), quanto entendendo por "individualismo" as idéias gêmeas de que o objetivo da vida é a realização dos próprios indivíduos (sendo, assim, um egoísmo) e que, como os agentes da vida social são os indivíduos, não existe a "sociedade". Reafirmando mais uma vez as idéias acima: é bastante claro que essas três formas de individualismo (solipsismo, egoísmo moral e individualismo metodológico) têm em comum a rejeição da idéia de sociedade[1].

Essas três conseqüências são problemáticas porque são erradas e falsas, isto é, porque consistem em concepções que não correspondem à realidade, e também porque são moralmente daninhas, seja porque não correspondem à realidade[2], seja porque impedem o desenvolvimento do altruísmo e estimulam diretamente o egoísmo. Além disso, como um resultado um tanto paradoxal mas não necessariamente imprevisto, embora tais formas de individualismo surjam como rejeição da teologia, o fato é que elas próprias aproximam-se bastante da teologia monoteísta, em particular dos cristianismos e, ainda mais, dos protestantismos[3].

Por que esses individualismos não correspondem à realidade? Porque, apesar do fato evidente de que as sociedades somente podem existir compostas por indivíduos, é apenas coletivamente e ao longo do tempo (ou seja, historicamente) que o conhecimento é produzido[4], que o altruísmo é passível de realização e que, portanto, é possível aos indivíduos terem satisfação pessoal. Nas três situações não se trata, portanto, do truísmo segundo o qual "ninguém pode viver sozinho": trata-se, sim, de que é por meio do esforço compartilhado e acumulado que se pode conhecer a realidade, por um lado, e, por outro lado, de que o "altruísmo" consiste em "viver para os outros" e que é somente na medida em que se vive para os outros que se pode obter uma satisfação plena e duradoura. Dessa forma, não se pode entender a sociedade como a simples agregação de indivíduos: a totalidade social é maior que a soma das partes individuais. Inversamente, recusar a característica social e histórica do ser humano é recusar o próprio ser humano.

O individualismo ateu, além disso, aproxima-se em sua concepção de mundo do individualismo protestante na medida em que reconhece apenas indivíduos e rejeita as mediações sociais: enquanto o individualismo ateu rejeita a sociedade (seja na solidariedade contemporânea, seja na continuidade histórica), o individualismo protestante rejeita a igreja, ao estabelecer uma comunicação direta, pessoal e intransferível entre o crente e a divindade; em ambos os casos a pessoa está sozinha no mundo e é a única responsável pela sua satisfação íntima. Aliás, não é por acaso que as "sociologias" derivadas de ambientes protestantes têm características individualistas, de que o maior exemplo é a obra de Max Weber, que concebia apenas interações individuais e recusava-se terminantemente a definir a "sociedade". Já as obras de Hobbes e Locke apresentam um aspecto misto, juntando a emancipação individualista da teologia com aspectos do protestantismo anglicano: essas duas características tornam os dois autores também individualistas, concebendo a sociedade como a união de indivíduos ou, no caso de Hobbes, rejeitando a própria idéia de sociedade com o indivíduo plenamente egoísta e racional.

Em suma: é por esses motivos todos que a emancipação relativamente à teologia não pode parar no individualismo; ou, considerando a questão de outro ângulo, é por todas essas razões que as várias formas de individualismo (epistemológico, moral e sociológico) correspondem à emancipação incompleta da teologia.





[1] Neste texto refiro-me em particular ao individualismo ateu, isto é, causado pelo ateísmo. Mas, como se verá, existem outras variedades de individualismo, ou melhor, outras fontes intelectuais e morais do individualismo, entre as quais as teologias. De qualquer maneira, como o filósofo francês Pierre Laffitte (discípulo de Augusto Comte) e o antropólogo também francês Louis Dumont argumentaram, a rejeição monástica da sociedade foi uma das fontes mais importantes e poderosas da produção do "individualismo", ocorrendo tanto no Ocidente quanto (por exemplo) na Índia.

[2] Nesse sentido, torna-se claro que a busca da verdade é em si mesmo um valor moral. Sem dúvida que o tempo todo o ser humano percebe que várias de suas concepções são erradas: o problema não está no erro sincero, mas na persistência no erro e também no erro voluntário e consciente. O erro sincero é honesto, o erro voluntário é mentiroso; além disso, as concepções que não correspondem à realidade dos fatos e, em particular, as concepções que não reconhecem e não valorizam a natureza humana (coletiva e individual) produzem miséria e infelicidade.

De qualquer forma, importa reconhecer que conceber dessa forma a relação entre o ser humano e a sociedade, de um lado, e a verdade e a busca da verdade, por outro lado, está fora dos hábitos mentais contemporâneos, do Zeitgeist das nossas sociedades ditas "pós-modernas", em que o irracionalismo e a "ironia" têm um peso tão grande; em outras palavras, buscar e valorizar a verdade é algo fora de moda. Evidentemente, como argumentava Galileu e argumentam todos os filósofos da ciência sérios, a verdade não é simplesmente uma questão de número, isto é, ela não é "democrática".

[3] À luz da lei dos três estados intelectuais, o surgimento do individualismo ateu aproximar-se do individualismo teológico não é um resultado necessariamente imprevisto, na medida em que tanto o individualismo quanto o ateísmo são concepções metafísicas – e, como argumentava Augusto Comte, embora a metafísica tenda à positividade, o fato é que ela consiste em uma forma degradada de teologia.

[4] Nesse sentido, a própria emancipação relativamente à teologia de qualquer indivíduo é sempre dependente das outras pessoas, ou seja, é dependente da sociedade e da história: por um lado, a teologia é uma etapa na constituição do conhecimento; por outro lado, a despeito da retórica – ultra-individualista, cumpre notar – que afirma a incomensurabilidade e a infinidade da imaginação individual, a possibilidade de alguém emancipar-se é dada também pelas condições sociais e históricas próprias a cada coletividade.


(Reprodução livre, desde que citada a fonte.)
(Primeira versão deste texto: 2.12.2014; segunda versão: 4.12.2014.)