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04 setembro 2025

A frase "fazer o bem, não importa a quem"

No dia 21 de Gutenberg de 171 (2.9.2025) realizamos nossa prédica, dando continuidade à leitura comentada do Apelo aos conservadores (em sua Primeira Parte - doutrina apropriada aos verdadeiros conservadores).

No sermão abordamos a frase popular "fazer o bem, não importa a quem", indicando que, se ela tem bons sentimentos, sua orientação é cega e tem resultados daninhos e injustos.

No final do sermão apresentamos trechos do belíssimo poema de Raimundo Teixeira Mendes, Exortação à Fraternidade.


As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

*   *   *


A expressão “Fazer o bem, não importa a quem”

(21.Gutenberg.171/2.9.2025) 

1.       Invocação inicial

2.       Datas e celebrações:

2.1.    Dia 23 de Gutenberg (4.9): nascimento de Richard Congreve (1818 – 207 anos)

2.2.    Dia 24 de Gutenberg (5.9): transformação de Augusto Comte (1857 – 168 anos); comemoração de Sofia Bliaux

2.3.    Dia 25 de Gutenberg (6.9): nascimento de Henrique Oliveira (1908 – 117 anos)

2.4.    Dia 26 de Gutenberg (7.7): Independência do Brasil (1822 – 203 anos); glorificação de José Bonifácio

3.       Leitura comentada do Apelo aos conservadores

3.1.    Antes de mais nada, devemos recordar algumas considerações sobre o Apelo:

3.1.1. O Apelo é um manifesto político e dirige-se não a quaisquer pessoas ou grupos, mas a um grupo específico: são os líderes políticos e industriais que tendem para a defesa da ordem (e que tendem para a defesa da ordem até mesmo devido à sua atuação como líderes políticos e industriais), mas que, ao mesmo tempo, reconhecem a necessidade do progresso (a começar pela república): são esses os “conservadores” a que Augusto Comte apela

3.1.1.1.             O Apelo, portanto, adota uma linguagem e um formato adequados ao público a que se dirige

3.1.1.2.             Empregamos a expressão “líderes industriais” no lugar de “líderes econômicos”, por ser mais específica e mais adequada ao Positivismo: a “sociedade industrial” não se refere às manufaturas, mas à atividade pacífica, construtiva, colaborativa, oposta à guerra

3.2.    Outras observações:

3.2.1. Uma versão digitalizada da tradução brasileira desse livro, feita por Miguel Lemos e publicada em 1899, está disponível no Internet Archive: https://archive.org/details/augustocomteapeloaosconservadores

3.2.2. O capítulo em que estamos é a “Primeira Parte”, cujo subtítulo é “Doutrina apropriada aos verdadeiros conservadores”

3.3.    Passemos, então, à leitura comentada do Apelo aos conservadores!

4.       Exortações

4.1.    Sejamos altruístas!

4.2.    Façamos orações!

4.3.    Como Igreja Positivista Virtual, ministramos os sacramentos positivos a quem tem interesse

4.4.    Para apoiar as atividades dos nossos canais e da Igreja Positivista Virtual: façam o Pix da Positividade! (Chave Pix: ApostoladoPositivista@gmail.com)

5.       Sermão: a fórmula “fazer o bem, não importa a quem”

5.1.    O sermão de hoje abordará alguns temas que se referem a situações com que todos nós defrontamo-nos todos os dias e que, além disso, também se referem diretamente à Religião da Humanidade: a obrigação de sermos corteses, a tolerância mútua como base da fraternidade

5.2.    Comecemos com a máxima popular “fazer o bem, não importa a quem”

5.2.1. Essa fórmula apresenta um imperativo que, a princípio, é convergente com a Religião da Humanidade: nossa obrigação de sermos altruístas

5.2.2. Todavia, essa fórmula é extremamente vaga – e essa vagueza é fatal

5.2.3. Adiantando o tema, convém desde já reconhecer que, apesar da vagueza da fórmula, ainda assim ela procura resolver uma condição que é difícil por si só

5.3.    Ainda antes de seguirmos adiante, também vale a pena indicar que esse tema na verdade foi-me perguntado pelo nosso correligionário Eugênio Macedo

5.3.1. A dúvida do Eugênio era pessoal, dele, mas evidentemente ela pode e deve ser tratada de maneira mais ampla, na medida em que afeta todos nós e que, de qualquer maneira, mesmo que não fosse comum a todos nós, poderia interessar a outras pessoas

5.3.1.1.             É claro que essa dúvida pode ser tratada publicamente sem dificuldades, isto é, sem criar nenhum constrangimento

5.3.1.2.             O “viver às claras” refere-se aos nossos atos, mas também às motivações de nossas ações; a publicidade de nossas vidas não pode corresponder a indiscrições nem a situações vexaminosas

5.3.2. Transformar dúvidas individuais de nossos correligionários em temas de sermões é uma forma simples e eficiente de ajudar as pessoas e de demonstrar que o Positivismo é, e deve ser, útil

5.3.2.1.             Dessa forma, fica aqui o convite e o estímulo: quem tiver dúvidas, questões, comentários, apresente-os sem medo, que procuraremos responder, orientar e aconselhar

5.4.    A Religião da Humanidade proclama que a lei do dever e a fórmula da felicidade são uma única: é o “viver para outrem”

5.4.1. Devemos notar que a fórmula positivista tem um imperativo geral – devemos ser altruístas e dedicarmo-nos aos demais –, mas não é um imperativo vago; além disso, ela pressupõe o cuidado com nós mesmos e veda a autoimolação

5.5.    O problema da vagueza da fórmula popular é que ela não faz distinções de merecimento das pessoas que receberão o benefício, nem afirma os cuidados com nós mesmos

5.5.1. No que se refere ao mérito dos beneficiários: devemos, sim, considerar quem recebe o bem, pois diferentes pessoas têm diferentes comportamentos, diferentes necessidades, diferentes possibilidades; evidentemente, algumas são melhores que outras, enquanto algumas são piores que outras: tudo isso deve necessariamente ser levado em conta

5.5.2. O nosso dever de altruísmo não é unilateral; na verdade, como se trata de um dever, é uma relação, ou seja, é uma obrigação mútua: assim como cada um de nós deve ser altruísta, os demais também devem ser altruístas; a reciprocidade deve ser levada em conta e valorizada

5.5.2.1.             O “fazer o bem, não importa a quem”, especialmente na parte do “não importa a quem”, deixa de lado o aspecto relacional da vida humana; portanto, ele ignora de verdade o seu caráter de dever, apenas criando direitos para os outros, sem lhes impor também deveres mútuos

5.5.3. Devemos considerar também a justiça de nossas ações: pessoas boas que sofrem injustiças devem ser bem tratadas; pessoas que erraram mas que manifestam desejar melhorar também devem ser valorizadas; a quem errou deve ser dada a oportunidade real de emendar-se; mas quem errou, persistiu no erro e rejeitou a emenda, qual o sentido de fazer indefinidamente o bem para ela?

5.5.4. Assim, há um aspecto de valorizar a bondade e de punir a maldade – sem que haja injustiça, crueldade nem que se vede a possibilidade de emendar-se o mal

5.6.    À parte esses graves problemas de mérito e de justiça – que a fórmula popular “fazer o bem, não importa a quem” é incapaz de enfrentar –, devemos convir que a dificuldade prática nessa condição é que, qualquer que seja a fórmula – “viver para outrem”, ou “fazer o bem, não importa a quem” –, desejamos ser altruístas e generosos, mas defrontamo-nos com a necessidade concreta de limitarmos esse altruísmo e mesmo de fazermos valer o nosso egoísmo

5.6.1. Indiscutivelmente, essa é uma situação frustrante; não há como a evitar

5.6.2. Um aspecto que se evidencia a partir dela é que o também altruísmo deve ser bem orientado

5.6.2.1.             Na verdade, a correta orientação do altruísmo foi afirmada por Augusto Comte quando ele apreciou o comunismo, que, para ele, consistia em uma orientação incorreta do altruísmo e que, mesmo por isso, era superior ao individualismo liberal-burguês, que consiste no exagero do egoísmo

5.6.3. A solução para esse problema, parece-me, consiste em que devemos ser generosos, tolerantes e ter uma orientação altruísta geral; além disso, devemos considerar que todos a princípio merecem nosso respeito, nossa estima, nosso altruísmo; mas essa estima básica também deve ser confirmada cotidianamente, especialmente lembrando que o viver para outrem é uma obrigação mútua

5.6.4. O “fazer o bem, não importa a quem” tenta lidar com o egoísmo por meio da sua negação; mas, ao negar, ele não lida de verdade com ele e, em particular, ele não regula o egoísmo: mas a questão, no caso, é exatamente essa: é necessário ao mesmo tempo estimular o altruísmo e regular (pelo altruísmo) o egoísmo

5.7.    Um outro aspecto que devemos considerar é que, se devemos viver para outrem, o nosso altruísmo não se desenvolve nem se mantém no vazio, como pura abstração: ele exige objetos concretos, relações reais

5.7.1. Em outras palavras, o desenvolvimento e a manutenção iniciais do altruísmo necessitam de focalização e personalização

5.7.2. Nosso mestre indicou com clareza, na parte do culto, os objetos de nosso altruísmo; eles são ascendentes, passando de relações pessoais para relações familiares, então para relações cívicas e daí para relações universais

5.7.3. Em outras palavras, começamos com nossas mães, nossos cônjuges, nossos filhos, pais e irmãos; seguimos para nossas famílias ampliadas; então vamos para as relações cívicas (colegas de trabalho, chefes, subordinados, concidadãos, líderes); ampliamos então para a Humanidade; tudo isso começando com relações objetivas mas logo devendo estender-se também para as relações subjetivas

5.7.4. Bem vistas as coisas, essa seqüência ascendente corresponde a uma aplicação da terceira lei dos três estados, ou seja, da lei afetiva (de que tratamos em uma prédica anterior)

5.7.5. Esse desenvolvimento progressivo do altruísmo, para o que estamos tratando aqui, consiste também na ampliação progressiva do “fazer o bem” – mas que, como estamos afirmando, não pode ser “não importa a quem”

5.8.    Um problema relacionado com o do “fazer o bem, não importa a quem” é: como estimular o altruísmo?

5.8.1. A teologia e a metafísica prometem recompensas ou punições; em qualquer caso, os móveis são sempre egoístas

5.8.2. A Religião da Humanidade, a partir da experiência cotidiana e multimilenar, afirma que o altruísmo é a própria recompensa

5.8.3. Como sintetizou com beleza Clotilde de Vaux, “Não há prazeres maiores que os da dedicação”

5.9.    Para concluir estes comentários, quero aproveitar para referir-me a um poema de Teixeira Mendes

5.9.1. Trata-se do Exortação à Fraternidade, que foi composto no aniversário de transformação de Clotilde, ou seja, em 5 de abril de 1911

5.9.2. Esse poema tem o seguinte comentário explicativo: “Ensaio de uma paráfrase positivista do Capítulo XVI, Livro I, da Imitação de Tomás de Kempis, segundo a tradução em verso de Corneille: Como se deve sofrer os defeitos de outrem

5.9.3. Em outras palavras, Teixeira Mendes afirma, ou lembra, que a fraternidade exige que todos tenhamos paciência uns com os outros, pois todos temos defeitos

5.9.4. É claro que o poema todo vale a pena; mas citaremos só as partes III e IV

III. Queremos cada qual sujeito à disciplina,

            Sofrendo a necessária correção;

Revolta-nos, porém, se alguém nos examina,

E à conduta nossa o seu valor assina,

            Realçando qualquer imperfeição.

 

Exprobramos aos mais o quanto d’indulgência

            Consigo têm e o que se dão de gozos;

E é ofensa atroz não ter-se a complacência

De nada recusar, com suma deferência,

            Aos nossos movimentos caprichosos.

 

Estatutos prendendo em rigoroso laço

            Severamente aos outros desejamos;

E, seja de quem for, o mais ligeiro traço,

Ao nosso bel-prazer, criando um embaraço

            D’império absoluto, a mal levamos.

 

Onde se esconde, pois, o férvido Altruísmo,

            Que Viver para outrem nos sugere?

E como então sentir que, ou seja no heroísmo,

Ou na dedicação comum, ou no ascetismo,

            Prazer algum não há que os seus supere.

 

No Mundo, a imperfeição por toda parte abunda,

            A jerarquia eterna acompanhando,

Que, sob a mais grosseira, a lei mais nobre funda;

Somente a paciência, em méritos fecunda

            Essa ordem fatal vai mitigando.

 

IV. É pois na sujeição qu’ensina a Humanidade

            O aperfeiçoamento basear-se;

Não há beleza inteira, ou íntegra bondade;

Assim é dever nosso e nossa felicidade

            Uns aos outros o fardo aliviar-se.

 

Ninguém é sem senão, ninguém é sem fraqueza;

            Ninguém sem precisar d’algum amparo;

Ninguém tem de ciência, em si, assaz riqueza;

Ninguém é forte assaz com a própria fortaleza.

            Para não sentir faltar-lhe apoio caro.

 

Urge pois entre-amar-se, urge pois entre-instruir-se

            Urge pois, em tudo, entre-auxiliar-se;

Urge entre-prestar-se o olhar a dirigir-se;

Urge entre-estender-se a mão conduzir-se;

            Urge um ao outro dar com quem curar-se.

 

Quanto maior a dor, mais fácil prova of’rece

            Até que ponto fora alguém perfeito;

E os golpes mais cruéis que uma alma então padece

Não são que a fazem fraca; apenas se conhece

            Assim o que ela vale com efeito.

6.       Invocação final

 

Referências

- Augusto Comte (franc.), Sistema de filosofia positiva (Paris, Société Positiviste, 5e ed., 1893)

- Augusto Comte (franc.), Sistema de política positiva (Paris, L. Mathias, 1851-1854)

- Augusto Comte (port.), Apelo aos conservadores (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1898): https://archive.org/details/augustocomteapeloaosconservadores.

- Augusto Comte (port.), Catecismo positivista (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 4ª ed., 1934)

- Gustavo Biscaia de Lacerda (port.), Prédica "O início do Positivismo: as três leis dos três estados" (Curitiba, Igreja Positivista Virtual, 26.8.2025): https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2025/08/o-inicio-do-positivismo-as-tres-leis.html

- Raimundo Teixeira Mendes (port.), As últimas concepções de Augusto Comte (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1898): https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-ultimas-concepcoes-de-augusto-comte-i e https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-ultimas-concepcoes-de-augusto-comte-ii.

- Raimundo Teixeira Mendes (port.), O ano sem par (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900): https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-o-ano-sem-par-portug._202312/page/n7/mode/2up.

- Raimundo Teixeira Mendes (port.): Exortação à Fraternidade (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1911; opúsculo n. 316): https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2025/08/teixeira-mendes-exortacao-fraternidade.html

20 julho 2025

Teixeira Mendes: Relações entre absolutismo, egoísmo, materialismo, metafísica

No trecho abaixo Teixeira Mendes relaciona o absolutismo, o egoísmo, a metafísica e o materialismo, opondo-os ao relativismo, ao amor, ao altruísmo e à positividade; em outras palavras, ele relaciona os aspectos afetivos, intelectuais e práticos do ser humano. O poder de síntese nesses trechos é impressionante e os esclarecimentos que fornecem recomendam altamente a sua divulgação: daí os republicarmos agora.

O trecho abaixo foi publicado no opúsculo "O Positivismo e a questão social. A propósito da propaganda anarquista" (Série da IPB, n. 383. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil, 1915, p. 47-49; 2ª ed. de 2025, p. 30-31.).

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Assim procedendo, o espírito materialista, que se compraz em substituir verbalmente a variedade real dos fenômenos pela unidade fantástica do mais grosseiro. Impossibilita a inteligência de resolver o único problema mental que interessa à Humanidade. Porque, dado o fatal relativismo dos nossos conhecimentos, nada podemos e nada precisamos saber em absoluto. Só o que é acessível ao espírito humano é conceber um mundo ideal representando o mundo real com o grau de aproximação exigido pelo conjunto das nossas necessidades morais, intelectuais e práticas. E, para isso, o conjunto da revolução científica evidencia que a razão teórica deve limitar-se a prolongar a razão popular, instituindo, como o bom senso vulgar, por toda parte, a hipótese mais simples e mais simpática, de acordo com o conjunto dos dados adquiridos. Tal é o característico do espírito positivo, sempre real, útil, claro, preciso, orgânico, relativo e simpático.

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Deixando-nos seduzir pelo absolutismo metafísico, tanto materialista como espiritualista, ficamos expostos aos arrastamentos nos vários pendores egoístas, e tornamo-nos incapazes de modificar, em proveito da Humanidade, quer a Terra, quer a sociedade e os indivíduos. Os horrores da guerra atual constituem a mais cruel demonstração das devastações é que o absolutismo materialista é capaz de conduzir os governos e os povos. Sem as descobertas científicas, seriam impossíveis as modernas máquinas de morticínio e destruição. Mas essas máquinas só foram construídas pelo ascendente dos pendores egoístas a que o absolutismo materialista pretende reduzir a natureza humana. Sem o predomínio de tais pendores, exaltados pelo materialismo pseudocientífico como únicos reconhecidos em nossa constituição moral, não se chegaria à monstruosa pretensão de tudo esperar obter da força bruta, quer de um indivíduo, quer de milhares ou milhões de indivíduos, orgulhosos e desvanecidos com a sua cultura, mental e industrial, tanto pessoal como nacional. Desconhece-se assim, com a mais negra ingratidão, que a ciência em e a indústria não existiriam sem a inateidade dos pendores altruístas, cujos efeitos os nossos antepassados sistematizaram pelas crenças teológicas, atribuindo-os à graça divina.

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Ao passo que, constatada a existência inata dos pendores altruístas, todas as manifestações egoístas, desde a cobiça até o orgulho e a vaidade – quer se trate da fraude, do roubo, do homicídio perpetrados por um indivíduo, quer se trate das revoluções e das guerras – cessam de ser títulos de glória. Em vez de estimulá-las, sente-se que cumpre acautelar-nos contra elas, a fim de evitar que elas comprometam a existência social e a existência moral.

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Se o Amor é uma força moral real, como o calor, a luz, a eletricidade etc., são forças físicas reais, só nos resta descobrir as leis naturais que regem os pendores egoístas e os pendores altruístas, para atingir à felicidade ao alcance real da Humanidade, mediante a subordinação cada vez mais completa de tudo à fraternidade universal. E se o Amor não existisse naturalmente, não haveria a combinação capaz de o fazer surgir, a existência terrena estaria, enquanto durasse, votada a dominação da força bruta, sob o jugo do egoísmo servido por uma inteligência sempre rudimentar. Isto é, a Humanidade não existiria nem as famílias e as cidades.

(Raimundo Teixeira Mendes, O Positivismo e a questão social. A propósito da propaganda anarquista. Série da IPB, n. 383. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil, 1915, p. 47-49; 2ª ed. de 2025, p. 30-31.).

24 março 2025

Augusto Comte: ordem e progresso, síntese e análise, altruísmo e egoísmo

“Subordinar o progresso à ordem, a análise à síntese e o egoísmo ao altruísmo; tais são os três enunciados, prático, teórico e moral, do problema humano, cuja solução deve constituir uma unidade completa e estável. Respectivamente próprios aos três elementos da nossa natureza, esses três modos distintos de formular uma mesma questão são não apenas conexos mas equivalentes, vista a dependência mútua entre a atividade, a inteligência e o sentimento. Malgrado sua coincidência necessária, o último enunciado ultrapassa os dois outros, como sendo o único relativo à fonte direta da comum solução. Afinal, a ordem supõe o amor e a síntese não pode resultar senão da simpatia: a unidade teórica e a unidade prática são então impossíveis sem a unidade moral; assim, a religião é tão superior à filosofia quanto à política. O problema humano pode finalmente se reduzir a constituir a harmonia afetiva, ao desenvolver o altruísmo e comprimir o egoísmo: desde então o aperfeiçoamento subordina-se à conservação e o espírito de detalhe, ao gênio de conjunto”.

(Augusto Comte, Synthèse subjective, 2e ed. Paris, Execution Testamentaire d'Augusto Comte, 1900, p. 1-2)



12 março 2024

O altruísmo é sempre apenas a satisfação do egoísmo?

No dia 16 de Aristóteles de 170 (12.5.2024) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, agora em sua décima conferência, dedicada ao regime privado.

Na parte do sermão, devido à sua extrema importância, retomamos e respondemos pormenoridamente à questão: as nossas ações altruístas visam sempre a satisfazer o egoísmo dos outros?

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/2r8u0) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/Y4lxn). O sermão começou efetivamente em 1h 06 min 00 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se transcritas abaixo.

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O altruísmo é sempre apenas a satisfação do puro egoísmo? 

-        Durante a prédica do dia 9 de Aristóteles de 170 (5.3.2024) retomamos inicialmente as máximas morais apresentadas por Augusto Comte no início da décima conferência do Catecismo positivista, dedicada ao regime privado

o   Após retomarmos a máxima positivista – “Viver para outrem” –, surgiu uma interessante dúvida: as nossas ações altruístas visam sempre a satisfazer o egoísmo dos outros?

o   Essa dúvida não apenas é intelectualmente interessante; ela também é moral e praticamente importante, pois diz respeito a como realizamos o altruísmo e à orientação subjetiva que damos às nossas ações

o   Além disso, é importante notar que, também do ponto de vista intelectual, essa questão é central para o Positivismo, pois tem a ver com como descrevemos as relações entre o altruísmo e o egoísmo de diferentes pessoas

o   Assim, mesmo repetindo vários temas e várias observações que fizemos na semana passada e mesmo hoje, devido à importância central do tema julgamos importante dedicar todo um sermão a ele

-        Comecemos por lembrar as características da nossa máxima “Viver para outrem”:

o   Antes de mais nada: a palavra “outrem” significa “outro”, ou “outros”

o   A fórmula positivista é superior à máxima antiga (“Agir com os outros como gostaria de ser tratado”) e à medieval (“Amar o próximo como a si mesmo”)

§  Essas duas máximas apresentam uma certa evolução, na medida em que passam da conduta externa (na fórmula antiga) para a motivação subjetiva (fórmula medieval)

§  Entretanto, como é bastante claro, essas duas fórmulas concentram-se no egoísmo: não se trata de afirmar e realizar o altruísmo, mas apenas de satisfazer o egoísmo e de mais ou menos regular o egoísmo alheio

§  Ambas as fórmulas, e em particular a segunda, baseiam-se no amor divino, que é especialmente egoísta, antissocial e anti-humano

o   O “viver para outrem” orienta a vida de cada um diretamente para o altruísmo

§  Lembrando a máxima de Clotilde (“Que prazeres podem exceder os da dedicação?”), resulta que a lei do dever é também a fórmula da felicidade

-        Passemos ao que nos interessa hoje; comecemos lembrando que o “viver para outrem” tem duas partes:

o   O “viver para outrem”, que consiste na orientação altruísta do conjunto da vida humana e na definição de um critério claro para definirmos todas as pequenas, médias e grandes decisões que temos que tomar no dia a dia

§  É nessa parte que consiste a lei do dever

o   O “viver para outrem”, que consiste em que cada um de nós tem que estar vivo, e em boas condições de saúde física e mental, para podermos dedicar-nos aos outros

§  Assim, essa parte consiste em garantir que os agentes humanos existam e, portanto, ela garante a satisfação do egoísmo de cada um

·         A esse respeito, nota Augusto Comte que a orientação para o altruísmo não pode consistir na negação do egoísmo, com isso indicando que não devemos autoflagelar-nos (e, ainda menos, não devemos suicidar-nos)

§  A satisfação do egoísmo, nesse sentido, portanto, consiste na condição objetiva (e até subjetiva) para a realização do altruísmo

§  Entretanto, é fundamental termos clareza de que essa satisfação do egoísmo tem que se submeter à regra do dever, ou seja, ao estímulo do altruísmo e à compressão do egoísmo

·         Sem tal entendimento, a fórmula torna-se incoerente e imoral

·         A satisfação do egoísmo subordina-se à realização do altruísmo; assim, tal satisfação consiste em uma condição (para o altruísmo) e não de um objetivo em si mesmo

·         A felicidade que devemos buscar não consiste na satisfação egoísta de algo abstrato chamado “felicidade”: a felicidade que devemos, e que podemos, buscar consiste em nossa dedicação para os demais

·         Todas as formas de hedonismo enquadram-se na satisfação do egoísmo por si só, mesmo que sob o rótulo enganador de “felicidade pessoal”

o   Em outras palavras, o hedonismo é uma via egoísta e individualista – e, portanto, ilusória – de busca da felicidade

o   Lembramos aqui o caráter profundamente egoísta do hedonismo porque ele é uma característica das sociedades ocidentais contemporâneas

§  As sociedades ocidentais assim combinam o estímulo sistemático de inúmeras formas de egoísmo e individualismo com o estímulo ao desejo de consumo (na maior parte das vezes de produtos e serviços inúteis), em algo que, adotando a terminologia metafísica do marxismo, poderíamos chamar de “capitalismo hedonista”

-        Enfrentemos, agora, a pergunta inicial: as nossas ações altruístas visam sempre a satisfazer o egoísmo dos outros?

o   Em uma primeira aproximação, sim: nossas ações buscam satisfazer necessidades alheias

§  Mas esta primeira aproximação é bastante grosseira e, como veremos, é também bastante superficial

o   Entretanto, não devemos nem podemos considerar que a lei do dever consiste em atos altruístas satisfazendo puros egoísmos, pois isso pressupõe (ou deixa de pressupor) várias coisas e implica (ou deixa de implicar) outras tantas:

§  Antes de mais nada, essa concepção – de que a lei do dever no fundo é um altruísmo satisfazendo egoísmos puros – desconsidera o caráter relacional do ser humano, em particular no sentido de que as concepções morais têm que ser generalizadas

·         Nesse sentido, essa concepção desconsidera a noção de dever, isto é, de responsabilidades mútuas, válidas de todos para com todos

§  Em segundo lugar, essa concepção desconsidera o aspecto elementar de que a lei do dever e da felicidade vale tanto para mim (que sou, ou que devo ser, altruísta) como para os demais, que também devem ser altruístas

§  Em terceiro lugar, temos que lembrar que a satisfação do egoísmo (no “viver” do “viver para outrem”) tem que se limitar pelo e subordinar-se ao altruísmo

·         Nesse sentido, temos que lembrar que a satisfação do egoísmo alheio ocorre não para o estímulo desse egoísmo, mas como condição para que essas outras pessoas possam desenvolver o altruísmo

§  Em quarto lugar, devemos notar que as nossas ações altruístas não são sempre nem necessariamente dirigidas para indivíduos específicos, mas que muitas vezes elas têm um foco coletivo e menos específico (de tal sorte que, nesse sentido, elas não satisfazem nenhum egoísmo em particular)

·         As políticas públicas são exemplos fáceis desse caráter difuso de muitas das ações altruístas

·         Mas é claro que, tanto antes quanto depois das políticas públicas, muitas das nossas ações altruístas individuais também apresentam um caráter difuso

§  Em quinto lugar, considerando as características do regime público no Positivismo, devemos notar que a educação positiva tem que estimular o altruísmo; dessa forma, cria-se uma orientação geral na sociedade em favor do altruísmo, evitando que as ações altruístas individuais visem apenas, ou principalmente, a satisfazer o puro egoísmo dos outros

§  Em sexto lugar, também temos que lembrar que o altruísmo realiza-se na prática por meio de ações de aperfeiçoamento

·         Tais ações tornam concreto o altruísmo e evitam que ele degenere em vaguezas místicas

·         O aperfeiçoamento tem vários âmbitos: material, físico (biológico), intelectual e moral

·         Esses aperfeiçoamentos podem, e devem, tornar-se diretamente altruístas por si sós, mesmo que muitas vezes eles tenham que ocorrer em indivíduos específicos

-        Devemos reforçar três aspectos específicos ao apreciarmos a concepção de que “o altruísmo sempre satisfaz o puro egoísmo alheio”

o   Em primeiro lugar, afirmarmos a primazia do altruísmo sobre o egoísmo é algo tanto descritivo quanto prescritivo, ou seja, tanto corresponde à realidade dos fatos quanto, a partir desse caráter descritivo, é também uma recomendação moral e prática

§  Em outras palavras: a orientação moral e prática do “viver para outrem” não é uma fórmula puramente “filosófica”, puramente “teórica”: ela baseia-se na realidade dos fatos, ou melhor, na realidade da natureza humana, conforme ela desenvolveu-se transparece ao longo da história e com base em pesquisas sociológicas e da chamada neurociência

§  Como vimos nos itens acima, o altruísmo generalizado tem (1) uma base sociológica: ele baseia-se no desenvolvimento histórico, em pressões sociais, em valores compartilhados, em práticas coletivas

§  Além disso, esse altruísmo generalizado tem (2) uma base moral, neurocientífica: o altruísmo é generalizável em termos de natureza humana, ao contrário do egoísmo; o altruísmo consegue dominar e orientar o conjunto da existência humana (ou seja, realiza a unidade moral), ao contrário do egoísmo

o   Em segundo lugar, ainda em termos sociológicos e morais, a concepção do “altruísmo como apenas a satisfação do puro egoísmo alheio” deixa de lado o caráter relacional do ser humano, ou seja, deixa de lado o seu aspecto social e concentra-se na concepção “ego-cêntrica”, que entende que a sociedade é apenas a justaposição de indivíduos (que, portanto, reduzem-se aos seus egoísmos)

o   Em terceiro lugar, em termos de história das idéias, essa concepção individualista tem origem metafísica e, como sabemos, difundiu-se muito a partir do liberalismo, com todas as filosofias e “ideologias” de origem metafísica mais recente (como a doutrina dos “direitos humanos”, o marxismo, os próprios liberalismos econômico e político etc.)

§  Nesse sentido, a importância central de responder à questão baseia-se no fato de que ela surge naturalmente do ambiente metafísico que caracteriza o conjunto do Ocidente nas últimas décadas (ou seja, desde o final da II Guerra Mundial e que reforça tendências críticas e negativas que, por sua vez, têm alguns séculos de existência)

§  Podemos dizer, então, que a importância de responder à questão que motivou este sermão, mesmo repetindo temas e concepções que têm sido apresentados nas últimas semanas, deve-se a que é necessário afirmar as concepções positivistas contra a imaginação sociológica metafísica atualmente disseminada