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12 agosto 2025

Monitor Mercantil: "Autonomia nacional, multilateralismo e prepotência fascista"

No dia 11 de agosto de 2025 o jornal carioca Monitor Mercantil publicou o nosso artigo "Autonomia nacional, multilateralismo e prepotência fascista".

Reproduzimos abaixo o texto publicado; o original encontra-se disponível aqui: https://monitormercantil.com.br/autonomia-nacional-multilateralismo-e-prepotencia-fascista/.

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Protesto contra os EUA em Brasília (Foto: José Cruz/Agência Brasil)

Autonomia nacional, multilateralismo e prepotência fascista

Quinta-colunas devem ser julgados, condenados e aprisionados Por Gustavo Biscaia de Lacerda


Não há como não tratarmos, nesta coluna, da agressiva investida que Donald Trump realiza contra o Brasil desde há alguns meses, mas que recentemente assumiu um aspecto bem mais ofensivo. O mínimo que se deve fazer é rejeitar a imposição de medidas econômicas e políticas usadas como instrumentos para alterar e degradar o funcionamento normal das instituições políticas brasileiras; mas é claro que não é somente isso que se pode e deve fazer. Apresentaremos duas ou três ordens de reflexão aqui.

Tendo por instrumento o unilateralismo de Trump – cuja prepotência e ignorante arrogância são vendidas como sabedoria de negociação –, os objetivos da agressão são múltiplos: forçar a libertação de um golpista fascista; evitar o exemplo internacional de processo judicial autônomo contra golpes fascistas; atingir um país governado por um esquerdista; e enfraquecer o polo alternativo de poder que são os Brics.

Nada disso é aceitável e, conforme alguns analistas têm indicado, essa violação flagrante da chamada soberania nacional brasileira por uma grande potência é uma atitude inédita nos últimos 70 ou 80 anos. Não apenas isso, mas tal violência apresenta o sério agravante de ser apoiada e estimulada por agentes brasileiros, no interior e no exterior.

A Guerra Civil Espanhola (1936-1939) deixou como legado, além do esfacelamento do republicanismo espanhol e da ascensão da monarquia apoiada pelo fascismo, também a expressão “quinta coluna”. Os quinta-colunas são os apoiadores internos das forças invasoras externas; além do odioso sentido de traição, essa expressão ainda se vincula ao apoio ao fascismo (originalmente franquista).

Assim, os brasileiros que apoiam e incentivam as medidas de Donald Trump contra o Brasil merecem totalmente o rótulo de “quinta-colunas”: traem o próprio país em apoio ao fascismo. Esses traidores, a partir de um abjeto e anacrônico militarismo, há muitos anos conspurcam a bela palavra “patriotas”. No linguajar dos quinta-colunas, os patriotas não são aqueles que se dedicam ao país com espírito de civismo, civilidade e civilismo, mas aqueles que apoiam o golpismo, a erosão das instituições, o autoritarismo, o militarismo, a prepotência, a falta de decoro – e, agora, também o servilismo ao fascismo que vem do Hemisfério Norte. Seguindo o devido processo legal, todos eles devem ser julgados, condenados e aprisionados como traidores que são.

A atuação de Trump pauta-se por uma visão isolacionista e prepotente dos Estados Unidos. Para ele, não há espaço nem justificativa para parcerias ou alianças, nem mesmo para auxílios; há apenas submissão. Se um país precisa de apoio, ele é fraco demais para ser levado a sério; já as afirmações de parcerias ou alianças, para Trump, são apenas eufemismos para países que não conseguem se defender sozinhos e se recusam a pagar os tributos imperiais. Para Trump, os únicos países dignos de serem levados a sério são os inimigos (como a China) e outros países prepotentes (como a Rússia).

O isolacionismo de Trump corresponde tanto à sua visão de mundo quanto também é a resposta que ele dá para os problemas atuais dos Estados Unidos, especialmente para os operários e para os brancos (desemprego, desindustrialização, perda de prestígio). Mas, como os Estados Unidos foram peça central na arquitetura mundial desde a II Guerra Mundial, o isolacionismo não é uma estratégia factível; ele assume o feitio de um brutal unilateralismo (o que, aliás, satisfaz mais Trump).

Esse comportamento, entretanto, em vez de afirmar a força dos Estados Unidos no mundo, faz exatamente o contrário: dilapida, com rapidez, os fundamentos desse poder. Com a vitória na Guerra Fria, os Estados Unidos consolidaram o multilateralismo e a globalização, instituindo tanto fóruns diversificados de negociação quanto se afirmando como a peça central dos diversos mecanismos envolvidos.

Não era somente força bruta; tão importante quanto era a confiança compartilhada, as concessões feitas, os auxílios prestados. Não se tratava só de boa vontade, é claro; mas não se pode cair no extremo oposto e reduzir a ação dos Estados Unidos a mero interesse. Tratava-se de um misto de idealismo e realismo.

Com George W. Bush, os Estados Unidos adotaram o agressivo unilateralismo militar da “guerra ao terror”, unilateralismo que foi revertido com Obama e o enfrentamento da crise financeira de 2008. Precisando de ajustes maiores ou menores, até 2016 o multilateralismo foi levado a sério. Com Trump, isso se reverte; em seu primeiro mandato ele ensaiou o unilateralismo, e sua reeleição confirmou suas intenções.

Começamos este artigo defendendo a autonomia nacional brasileira e passamos, depois, a elogiar o multilateralismo. Tomados de modo absoluto, esses princípios se tornam incompatíveis um com o outro; entretanto, a realidade prática e, daí, a teoria política têm que reconhecer que ambos são necessários e, portanto, ambos devem ser levados em consideração.

A noção de soberania absoluta, mais ou menos surgida no século 17, foi posta em questão após a II Guerra Mundial em favor do multilateralismo e dos destinos compartilhados. O multilateralismo, imperfeito como era até há pouco tempo, baseou-se, entretanto, em negociações, que foram se ampliando em termos de assuntos, de participantes e de instâncias.

A importância do multilateralismo não está somente em que ele é um canal para a condução negociada e compartilhada dos assuntos humanos: é a realização da consciência de que a humanidade tem interesses comuns, cujo tratamento exige ações comuns e uma perspectiva que englobe o futuro e o passado, como no caso da crise climática.

Enquanto o multilateralismo comercialista-financista americano dos anos 1990 foi corretamente criticado, o unilateralismo de Trump tem o paradoxal efeito de ressaltar a importância do multilateralismo em geral.

O multilateralismo evidencia os destinos compartilhados, como também a concepção de que a soberania absoluta deve ceder espaço à soberania relativa ou, para os nossos propósitos, à autonomia nacional.

O que muda entre a concepção absoluta e a relativa é a percepção de que a Terra é única e de que somos todos seres humanos; não tem cabimento pretender que cada país julgue a si próprio como parâmetro e objetivo último de suas ações.

Ao mesmo tempo, cada país tem suas próprias tradições, leis, instituições e preocupações – e tudo isso se deve respeitar cuidadosamente. Com todas as suas limitações e dificuldades, a autodeterminação é um princípio que se afirma e aplica desde o século 19 e que está na base da legitimidade do multilateralismo atual.

A prepotência fascista de Trump não vai somente contra o interesse nacional dos Estados Unidos e contra a soberania brasileira; ela nega o passado e prejudica ativamente o presente e o futuro. Cabe a todos nós combater e reverter essas tendências, em favor dos mais altos interesses da Humanidade.

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.