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18 fevereiro 2025

Sobre simpatia e esperança

No dia 21 de Homero de 171 (18.2.2025) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Apelo aos conservadores, em sua "Introdução".

No sermão abordamos a simpatia e suas relações com a esperança, em termos individuais e coletivo, indicando a sua importância para a felicidade individual e a ação política.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://www.youtube.com/watch?v=IX-4oJlYZrk&t) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://www.facebook.com/IgrejaPositivistaVirtual/videos/1269497177455746).

As anotações que serviram de base para a exposição oral estão disponíveis abaixo.

*   *   *

Sobre simpatia e esperança

(21 de Homero de 171/18.2.2025) 

1.       Abertura

2.       Exortações iniciais

2.1.    Sejamos altruístas!

2.2.    Façamos orações!

2.3.    Como somos uma igreja, ministramos os sacramentos: quem tiver interesse, entre em contato conosco!

2.4.    Precisamos de sua ajuda; há várias maneiras para isso:

2.4.1. Divulgação, arte, edição de vídeos e livros! Entre em contato conosco!

2.4.2. Façam o Pix da Positividade! (Chave pix: ApostoladoPositivista@gmail.com)

3.       Datas e celebrações:

3.1.    Dia 20 de Homero (17.2): nascimento de Agliberto Xavier (1869) e transformação de Paulo Carneiro (1982)

3.2.    Dia 24 de Homero (21.2): nascimento de Pierre Laffitte (1823)

3.3.    Dia 27 de Homero (24.2): nascimento de Teófilo Braga (1843)

3.4.    Dia 1º de Aristóteles (26.2): Live AOP com Érlon

4.       Leitura comentada do Apelo aos conservadores

4.1.    Antes de mais nada, devemos recordar algumas considerações sobre o Apelo:

4.1.1. O Apelo é um manifesto político e dirige-se não a quaisquer pessoas ou grupos, mas a um grupo específico: são os líderes políticos e industriais que tendem para a defesa da ordem (e que tendem para a defesa da ordem até mesmo devido à sua atuação como líderes políticos e industriais), mas que, ao mesmo tempo, reconhecem a necessidade do progresso (a começar pela república): são esses os “conservadores” a que Augusto Comte apela

4.1.1.1.             O Apelo, portanto, adota uma linguagem e um formato adequados ao público a que se dirige

4.1.1.2.             Empregamos a expressão “líderes industriais” no lugar de “líderes econômicos”, por ser mais específica e mais adequada ao Positivismo: a “sociedade industrial” não se refere às manufaturas, mas à atividade pacífica, construtiva, colaborativa, oposta à guerra

4.1.2. A religião estabelece parâmetros morais, intelectuais e práticos para a existência humana e, portanto, orienta a política, estabelece as suas metas, as suas possibilidades e os seus limites

4.1.2.1.             A religião, conforme o Positivismo estabelece, não é sinônima de “teologia”

4.2.    Uma versão digitalizada da tradução brasileira desse livro, feita por Miguel Lemos e publicada em 1899, está disponível no Internet Archive: https://archive.org/details/augustocomteapeloaosconservadores

4.3.    O capítulo em que estamos é a “Introdução”, cujo subtítulo é “Advento dos verdadeiros conservadores”

4.4.    Passemos, então, à leitura comentada do Apelo aos conservadores!

5.       Uma observação preliminar sobre as prédicas

5.1.    O objetivo das prédicas é expor a Religião da Humanidade, em suas concepções e em suas aplicações, ao maior público possível, ou seja, é popularizá-la

5.2.    Devido a esse motivo, evitamos a todo custo exibições de erudição

5.2.1. É claro que não se trata de rejeitar o conhecimento das coisas; as vistas gerais, exigidas por Augusto Comte, impõem o conhecimento de muita coisa

5.3.    Entretanto, há vários motivos que nos levam a rejeitar a ostentação da erudição:

5.3.1. A clareza na exposição

5.3.2. A rejeição do academicismo e do cientificismo

5.3.3. O seguir a recomendação didática de Augusto Comte: apresentar idéias a partir de casos claros e decisivos

5.4.    Este nosso esclarecimento é importante porque muita gente considera, mesmo sem admitir ou sem expressar publicamente, que exposições claras e diretas seriam simplistas, pobres e sem valor

5.4.1. Quando nós citamos, de modo geral citamos Augusto Comte, Clotilde de Vaux e os apóstolos da Humanidade (Miguel Lemos e Teixeira Mendes); procuramos restringir as citações a eles por questões de culto e de respeito, mantendo ao mesmo tempo nossas exposições claras e despretensiosas

6.       Sermão: Simpatia e esperança

6.1.    O tema que desejamos abordar hoje é um ótimo exemplo de temas e questões que têm uma origem afetiva e grandes conseqüências intelectuais e práticas políticas, diretas e indiretas

6.1.1. O que desejamos fazer é uma pequena reflexão ao mesmo tempo filosófica, sociológica e, claro, moral

6.1.1.1.             Apenas a título de comentário lateral: se eu incluísse muitas citações eruditas e referências bibliográficas, estas reflexões poderiam ser apresentadas como um “ensaio filosófico” acadêmico – o que, como comentamos há pouco, resolutamente não desejamos

6.1.2. O título que selecionei é apenas “simpatia e esperança”; esse título apresenta de maneira clara dois aspectos que nos interessam, mas, na verdade, queríamos dar um título um pouco maior: “amor, altruísmo, simpatia, generosidade – e esperança”

6.2.    Augusto Comte adotava, especialmente na fase religiosa, um procedimento ao mesmo tempo rico e sintético, a “polissemia”, em que usava uma palavra para expressar diferentes idéias, ou, dito de outra forma, ele usava uma palavra e ampliava bastante os seus sentidos

6.2.1. Uma palavra exemplar é “amor”, que cobre uma ampla variedade de sentidos: amor, altruísmo, simpatia, generosidade; o amor pode ser a fraternidade, o filial, o paterno, o materno; a simpatia pode ser a empatia, a amizade fraterna, a inclinação generosa, uma boa vontade geral para com os outros

6.2.2. É claro que cada palavra tem seu próprio sentido específico, ou melhor, seu próprio campo semântico; Augusto Comte não nega nem finge que não é assim; a polissemia que ele adota é um recurso filosófico e artístico, ao mesmo tempo sintético e afetivo

6.3.    Ao mesmo tempo, o dogma positivo e as fórmulas religiosas e práticas indicam de maneira reiterada que os sentimentos são a base de nossa existência, havendo conseqüências intelectuais e práticas disso: “o amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim”; “agir por afeição e pensar para agir”

6.4.    No caso da simpatia, Augusto Comte usa-a em pelo menos duas ocasiões: (1) ao enumerar os sete sentidos da palavra “positivo”, no Apelo aos conservadores (real, útil, certo, preciso, relativo, orgânico e simpático), e (2) no enunciado da lei-mãe da filosofia primeira (“formular a hipótese mais simples, mais estética e mais simpática que comporte o conjunto de dados a representar”)

6.4.1. Como veremos, esses dois usos da simpatia estão estreitamente vinculados e têm inúmeras conseqüências

6.4.2. De modo geral, nós, positivistas, entendemos a palavra “simpatia” significando: (1) seguir a inspiração afetiva, (2) seguir a orientação altruísta, (3) estimular o altruísmo, a generosidade, a empatia, (4) ter uma boa vontade geral de princípio para com os outros

6.5.    A simpatia, assim, embora esteja evidentemente próxima do amor, é mais próxima do altruísmo que do amor propriamente dito, pois ela é mais geral, mais superficial e menos específica

6.5.1. O amor propriamente dito tem sempre um objeto específico: nossos cônjuges, nossos pais, nossos filhos, nossos irmãos, nossos parentes, nossos amigos; não por acaso a família é o âmbito social próprio ao cultivo dos sentimentos

6.5.2. Aliás, também porque o amor exige um objeto específico que é necessária a representação da Humanidade com imagens

6.6.    O que sugerimos aqui é que o altruísmo exige a simpatia para realizar para além das relações domésticas (ou “familiares”); ou, talvez, o altruísmo para além das relações domésticas consiste na simpatia

6.6.1. A proximidade nas relações sociais torna-se bastante evidente aí: esse é um dos motivos porque Augusto Comte afirmava que as mátrias do futuro têm que ser, necessariamente, pequenas

6.7.    Podemos passar agora diretamente para o tema deste sermão: a concepção positivista de que as idéias e as ações baseiam-se em sentimentos de fundo é ilustrada com clareza nas relações entre simpatia e esperança

6.7.1. Nossas vidas são sempre dedicadas a viver para outrem; o Positivismo evidencia essa orientação e torna-a a base da moral, de modo a conjugar a lei do dever com a regra da felicidade individual

6.7.2. Ao vivermos para outrem, cada um de nós deve orientar suas atividades para outrem, mesmo que seja apenas em termos subjetivos, isto é, apenas em termos de intenções

6.7.3. Pois bem: essa orientação das nossas ações para os outros (mesmo que seja uma orientação apenas em termos de intenções) exige sempre a simpatia para com os outros, isto é, a boa vontade para com os outros

6.7.4. Se não temos boa vontade, se não temos simpatia, não é possível de verdade vivermos para outrem; nesse caso, vivemos de maneira egoísta e mesquinha e/ou somos hipócritas a respeito do viver para os outros

6.7.5. A boa vontade geral para com os outros é a condição para vivermos para os outros; além disso, a simpatia estimula por si só as vistas gerais (ou seja, a simpatia estimula a síntese) e a colaboração (a simpatia estimula a sinergia)

6.7.5.1.             Outra conseqüência da simpatia é que a boa vontade para com os demais estimula a boa vontade em relação ao futuro, o que, em termos simples, é a esperança

6.7.6. Tanto a simpatia, ou a boa vontade básica geral, quanto a esperança não impedem nem negam o reconhecimento de que a vida implica dificuldades e que há problemas em muitas coisas: o realismo próprio à positividade garante-o

6.7.6.1.             É o mesmo realismo que permite e exige que se reconheça problemas e dificuldades que nos conduz a adotarmos uma perspectiva equilibrada da vida e a reconhecermos que o que somos hoje, de bom e de ruim, baseia-se no passado, que a longo prazo as coisas estão melhorando e que a ação humana esclarecida e altruísta é o que permite as melhorias

6.7.6.2.             O realismo da positividade exige, então, um equilíbrio nas apreciações

6.7.6.2.1.                   Essa necessidade de equilíbrio é ilustrada de maneira... simpática no livro A luneta mágica, de Joaquim Manuel de Macedo, de 1869

6.7.7. Duas outras conseqüências do primado da simpatia na positividade e na formulação elementar de hipóteses são as seguintes:

6.7.7.1.             Por um lado, um bom humor básico e geral: como dizem, “rir é o melhor remédio”

6.7.7.2.             Por outro lado, a adoção de perspectivas positivas e afirmativas na elaboração inicial de apreciações, recomendações, condutas e exemplos; apenas depois e secundariamente apresentar críticas, recriminações, punições

6.7.7.2.1.                   Isso é estrondosamente válido para a pedagogia; deveria ser óbvio que é também válido para a política prática e, inversamente, para a regulação dos sentimentos e a elaboração de idéias

6.8.    Essas considerações sobre a simpatia, o viver para outrem e a esperança podem parecer banais e sem relevância quando não temos nenhum contexto; então, vale a pena considerarmos a situação oposta, ou seja, quando não temos simpatia para com os demais

6.8.1. A antipatia básica de todos para com todos é curiosamente uma característica do Brasil dos últimos 30 ou 40 anos

6.8.1.1.             É claro que é uma antipatia que por vezes se mistura com simpatia e que portanto depende do que estamos considerando

6.8.1.2.             Tornou-se o discurso-padrão, em livros escolares e acadêmicos de História e Sociologia do Brasil, bem como em discursos políticos, adotar uma perspectiva “realista” do nosso país

6.8.1.3.             Esse realismo consiste em larga medida, às vezes quase exclusivamente, em reclamações, críticas e destruições sistemáticas da nossa história, dos nossos antepassados, das nossas origens: em nome da “criticidade”, nada nunca presta, todos sempre foram ruins, burros, desonestos, covardes, mentirosos, exploradores, humilhadores etc.; cada uma das etapas da nossa história foi ruim, bem como o conjunto do que veio antes (e “antes” = “precisamente neste momento”)

6.8.1.3.1.                   Como cada etapa anterior de nossa história foi ruim, desprezível, humilhante, degradante etc., cada uma delas exige sua repulsa intelectual e política; daí a necessidade constante e periódica de rupturas e reinícios: em grandes linhas é assim que se apresenta a história do Brasil

6.8.1.3.2.                   Se nossa história é só mentira, miséria, exploração e degradação, logo se impõe a pergunta: por que deveríamos perder tempo com o nosso país? Por que deveríamos perder tempo preservando o que quer que seja do país, a começar por nossos concidadãos mas passando pelas instituições e pela memória?

6.8.1.4.             Considerações semelhantes podem ser feitas a respeito do Ocidente

6.8.1.5.             A perspectiva geral negativa oferece então um quadro desequilibrado e, portanto, irrealista; não há realismo aí, apenas uma “criticidade” generalizada, isto é, destruição e autorrejeição generalizadas

6.8.1.6.             Essa criticidade generalizada e irrealista é própria da revolta metafísica contra a história, que resulta em perspectivas intelectuais e sentimentos anti-históricos, que buscam sempre rupturas e recomeços

6.8.2. Um exemplo disso é o livrinho O Brasil no império português, de Luiz Carlos Baptista de Figueiredo e Janaína Passos Amado Baptista Figueiredo (Zahar, 2000)

6.8.2.1.             Todas as palavras dos autores a respeito de Portugal são críticas, destruidoras e negativas; Portugal não teria nunca feito nada de bom, correto, útil, valoroso, corajoso

6.8.2.2.             Assim, é inescapável terminarmos de ler esse livro com duas impressões (que, é bom realçarmos, os autores não apresentam): (1) por termos sido colonizados por Portugal, o Brasil não presta e (2) seguindo uma concepção difundida, melhor teria sido se tivéssemos sido colonizados pelos franceses, ou melhor, pelos ingleses, pelos alemães ou pelos neerlandeses

6.8.3. Um outro exemplo, mais concreto e mais imediato, é dado pelo identitarismo: de maneira radical, o identitarismo ilustra muito bem os vínculos entre simpatia, viver para outrem e esperança, ou melhor, inversamente, os vínculos entre antipatia, particularismo e desesperança

6.8.3.1.             O identitarismo baseia-se em um conjunto de concepções: apenas quem partilha de um traço específico de identidade é bom, correto e valoroso; essas pessoas, que constituem minorias, são por definição exploradas e humilhadas pela “maioria”; a par da necessária e eterna humilhação, o sentimento que move a minoria identitária é o ressentimento; quem não integra esse grupo (1) ou também é humilhado, explorado e movido pelo ressentimento (2) ou é humilhador e explorador: em outras palavras, o sentimento de ódio é a mola propulsora dessa concepção intelectual, que se baseia em e estimula o particularismo

6.8.3.2.             Enfim: o identitarismo estimula o ódio social e afirma o particularismo social e de vistas; a noção de “lugar de fala” ilustra com perfeição essas limitações; é difícil de verdade entender porque, em tal situação, deve-se “viver para os outros” e, ainda mais, é difícil perceber qualquer esperança verdadeira em tal quadro: não há como melhorar, não há chance de as coisas mudarem; os humilhadores/exploradores sempre serão assim

6.8.3.2.1.                   Como o particularismo exclusivista é insustentável em termos políticos e intelectuais, mesmo a solução identitária para isso – o conceito e a prática de “intersetorialidade” – mantém o particularismo e consiste apenas na justaposição tática de vários particularismos, mantendo-se em todo caso o ódio social como base afetiva

6.8.3.2.2.                   Os defensores do identitarismo afirmam que essas concepções são justificadas pela realidade, pela profundidade, pela extensão e pela urgência das discriminações enfrentadas: sem negar muitos desses problemas, a dificuldade radical com isso está em que, como os exemplos gritantes de Gandhi, Martin Luther King e Nelson Mandela – e muitos e muitos outros – ilustram, problemas reais, profundos e urgentes podem ser tratados de diferentes maneiras, em particular de maneiras generosas e amplas, em vez de mesquinhas e estreitas

6.8.3.3.             O identitarismo baseia-se em maus sentimentos, articula-se em idéias ruins, resulta em uma prática desastrosa: se as conseqüências sociais disso são péssimas, em termos individuais elas também são: a ausência de esperança deprime e o ódio e o ressentimento impedem que vínculos mais amplos, mais profundos, mais sinceros, até mais leves, sejam constituídos; aí não há lei do dever (pois não há vínculos compartilhados nem obrigações mútuas), nem a possibilidade de felicidade individual

6.9.    Em suma:

6.9.1. Seguindo uma regra sugerida por Augusto Comte, que a derivou diretamente da noção de positividade e de simpatia, devemos sempre propor inicialmente nossos parâmetros de maneira afirmativa, positiva

6.9.1.1.             Dessa forma, a simpatia é um princípio moral, filosófico e prático realmente necessário para a vida coletiva, ao estimular a boa vontade básica geral de todos para com todos, a boa fé e a abertura para desenvolvermos relações duráveis e construtivas; isso tudo baseia-se em e estimula as vistas gerais; com isso, vivemos para os outros, conseguindo assim ao mesmo tempo termos esperança no futuro e realizarmos a lei do dever e a felicidade individual

6.9.2. É claro por vezes podemos então definir nossos parâmetros de maneira negativa

6.9.2.1.             A antipatia, a ausência de simpatia, o ódio, o ressentimento impedem a boa vontade básica geral, constituem o particularismo e o exclusivismo, impedem a esperança, impedem a lei do dever e resultam em profunda infelicidade, além de promoverem a irracionalidade na apreciação da história e da vida coletiva

7.       Exortações finais

7.1.    Sejamos altruístas!

7.2.    Façamos orações!

7.3.    Como somos uma igreja, ministramos os sacramentos: quem tiver interesse, entre em contato conosco!

7.4.    Precisamos de sua ajuda; há várias maneiras para isso:

7.4.1. Divulgação, arte, edição de vídeos e livros! Entre em contato conosco!

7.4.2. Façam o Pix da Positividade! (Chave pix: ApostoladoPositivista@gmail.com)

8.       Término da prédica

04 março 2022

Mais alguns comentários sobre a invasão russa contra a Ucrânia

As observações abaixo dão continuidade à postagem feita em 2.3.2022 sobre a invasão russa da Ucrânia (disponível aqui). Elas não se referem às questões militares, mas à justificativa dada pela Rússia e às interpretações dadas no Brasil para essa invasão. Dessa forma, as observações tratam tanto de questões de fato quanto de questões de valores.

* * *

O "realismo" de Henry Kissinger que condena a inclusão da Ucrânia na OTAN é o mesmo que justifica o embargo econômico dos EUA contra Cuba: trata-se da idéia de "zonas de influência".

Como descrição política, as "zonas de influência" fazem sentido, é claro. Durante a Guerra Fria, essa era uma realidade fática e não havia muito o que falar: isso justificou a invasão soviética da Tchecoslováquia e da Hungria, da parte comunista, e o embargo contra Cuba, da parte dos EUA.
O problema é que não estamos mais na Guerra Fria. Assim, da mesma forma que o embargo dos EUA contra Cuba torna-se incompreensível e injustificável, deixar a Ucrânia à mercê da Rússia é inaceitável.
Foi a idéia das zonas de influência que justificou e legitimou, em última análise, a anexação violenta da Criméia pela Rússia em 2014. Em reação a essa violência, como nação soberana e preocupada com as questões mais elementares de segurança e de existência política, a Ucrânia foi atrás da OTAN (juntamente, e não por acaso, com inúmeros outros países da antiga Cortina de Ferro). Mas é ainda a idéia da "zona de influência" que justifica, da parte dos "realistas", a atual agressão russa contra a Ucrânia - pois a Ucrânia teria "provocado" a Rússia ao tentar defender-se, ao tentar preservar-se como país soberano e ao tentar evadir-se, dentro de suas possibilidades, da zona de influência russa.
O que não é explícito nesses raciocínios é que esse "realismo" acaba adotando um viés a favor das grandes potências: os países pequenos ou médios têm que se submeter às grandes potências. Em outras palavras, caso os países pequenos ou médios tentem ser, eles mesmos, realistas em favor de si mesmos, eles sofrerão punições das grandes potências a que estão submetidos. Para o realismo à la Henry Kissinger, as coisas são assim mesmo, não há muito o que dizer - e azar de quem não é grande potência.
É esse corolário meio fático, meio moral, de "azar de quem não é grande potência", que justifica a absurda afirmação de que a Ucrânia teria "provocado" a Rússia em 2022 ao solicitar a inclusão defensiva na OTAN, mesmo após ter sido desmembrada violentamente pela Rússia em 2014.
Para concluir: esse raciocínio "realista" encontra eco entre os esquerdistas que criticam a OTAN... bem entendido: encontra eco na medida em que os esquerdistas manifestam o seu antiamericanismo e seu anticapitalismo por meio da crítica à OTAN. Mas esses mesmos esquerdistas rejeitam essa teoria das zonas de influência quando se trata de Cuba. Enfim, é aquele negócio: dois pesos, duas medidas. (Nesse caso, o cinismo dos "realistas" é mais honesto que a hipocrisia dos esquerdistas; mas essa é outra questão.)

02 março 2022

Alguns comentários sobre a invasão russa contra a Ucrânia

A guerra da Rússia contra a Ucrânia começou na noite de 23 para 24 de fevereiro de 2022, após semanas de aumento de tensões e de ameaças russas contra a Ucrânia. Como não poderia deixar de ser – em particular nesta época de notícias e opiniões difundidas em tempo real –, isso deu azo às mais diversas perspectivas; como, por outro lado, a análise do conflito depende precisamente das perspectivas adotadas, convém tecermos algumas considerações a respeito de algumas delas.

À parte o antiamericanismo dos (cripto)comunistas, muitas pessoas razoáveis têm sido ambíguas a respeito da invasão da Ucrânia ao adotar o curioso realismo à la Henry Kissinger[1], dizendo que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) expandiu-se de maneira irresponsável entre os anos 1990 e 2020, irritando e “atemorizando” (!) cada vez mais a Rússia.

Ora, Letônia, Estônia, Lituânia, Hungria, Polônia[2]: todos esses países e diversos outros foram atrás da OTAN, em vez de terem sido buscadas pela organização. Esses países buscaram a OTAN não para “provocar” a Rússia, mas, muito ao contrário, por um medo histórico desse país – aliás, tão histórico quanto as alegadas relações umbilicais entre Rússia e Ucrânia.

A Ucrânia quer aderir à OTAN simplesmente porque tem medo – cada vez mais justificado – da Rússia. E a invasão da Criméia em 2014 parece que não ocorreu e que não foi um ato violentíssimo, praticado pela “irmã” Rússia. Se antes de 2014 o desejo ucraniano de ingresso na OTAN talvez pudesse ser condenado em termos do “realismo” de Kissinger, o fato é que após a tomada da Criméia essa condenação tornou-se mera figura de retórica e o medo ucraniano da prepotência russa (e não o contrário) tornou-se mais real do que nunca.

Da mesma forma, um dos argumentos para tentar-se justificar a invasão da Ucrânia – que, cada vez mais, evidencia que terminará por destruir o país em termos geográficos, políticos, econômicos e sociais – são os laços étnicos entre Rússia e Ucrânia. Isso não é desprezível, evidentemente. O problema é que esse argumento tem sido mobilizado para justificar a invasão (e a destruição) da Ucrânia pela Rússia; mais do que isso: o argumento da fraternidade étnica tem sido usado para negar aos ucranianos o direito soberano de decidirem coletivamente o que fazer de suas próprias vidas. Moldávia, Irlanda, Macedônia do Norte etc. etc. mais ou menos têm o direito à autodeterminação, a despeito de evidentes e seculares vínculos com outros países; mas à Ucrânia esse direito é negado.

Por fim, vale notar que, no caso da Polônia e da Hungria, por mais que desde há uns dez anos sejam países autoritários de extrema direita e próximos à Rússia, nem por isso abandonam a OTAN. O “realismo” pelo jeito vale para a Ucrânia e só para a Ucrânia – mas não para os outros.



[1] Cf.: Henry Kissinger, “How the Ukraine Crisis Ends” (The Washington Post, 6.3.2014) – https://www.henryakissinger.com/articles/how-the-ukraine-crisis-ends/.

[2] A relação dos estados-membros da OTAN e seus respectivos anos de ingresso na organização podem ser vistos aqui: https://es.wikipedia.org/wiki/OTAN#Estados_miembros.