A guerra da Rússia contra a Ucrânia começou na
noite de 23 para 24 de fevereiro de 2022, após semanas de aumento de tensões e
de ameaças russas contra a Ucrânia. Como não poderia deixar de ser – em
particular nesta época de notícias e opiniões difundidas em tempo real –, isso deu
azo às mais diversas perspectivas; como, por outro lado, a análise do conflito depende
precisamente das perspectivas adotadas, convém tecermos algumas considerações a
respeito de algumas delas.
À parte o antiamericanismo dos (cripto)comunistas,
muitas pessoas razoáveis têm sido ambíguas a respeito da invasão da Ucrânia ao
adotar o curioso realismo à la Henry
Kissinger,
dizendo que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) expandiu-se de
maneira irresponsável entre os anos 1990 e 2020, irritando e “atemorizando” (!)
cada vez mais a Rússia.
Ora, Letônia, Estônia, Lituânia, Hungria, Polônia:
todos esses países e diversos outros foram atrás da OTAN, em vez de terem sido buscadas pela
organização. Esses países buscaram a OTAN não para “provocar” a Rússia, mas,
muito ao contrário, por um medo histórico desse país – aliás, tão histórico
quanto as alegadas relações umbilicais entre Rússia e Ucrânia.
A Ucrânia quer aderir à OTAN simplesmente porque
tem medo – cada vez mais justificado – da Rússia. E a invasão da Criméia em
2014 parece que não ocorreu e que não foi um ato violentíssimo, praticado pela “irmã”
Rússia. Se antes de 2014 o desejo ucraniano de ingresso na OTAN talvez pudesse
ser condenado em termos do “realismo” de Kissinger, o fato é que após a tomada
da Criméia essa condenação tornou-se mera figura de retórica e o medo ucraniano
da prepotência russa (e não o contrário) tornou-se mais real do que nunca.
Da mesma forma, um dos argumentos para tentar-se
justificar a invasão da Ucrânia – que, cada vez mais, evidencia que terminará
por destruir o país em termos geográficos, políticos, econômicos e sociais – são
os laços étnicos entre Rússia e Ucrânia. Isso não é desprezível, evidentemente.
O problema é que esse argumento tem sido mobilizado para justificar a invasão
(e a destruição) da Ucrânia pela Rússia; mais do que isso: o argumento da
fraternidade étnica tem sido usado para negar
aos ucranianos o direito soberano de decidirem coletivamente o que fazer de
suas próprias vidas. Moldávia, Irlanda, Macedônia do Norte etc. etc. mais ou
menos têm o direito à autodeterminação, a despeito de evidentes e seculares
vínculos com outros países; mas à Ucrânia esse direito é negado.
Por fim, vale notar que, no caso da Polônia e da
Hungria, por mais que desde há uns dez anos sejam países autoritários de
extrema direita e próximos à Rússia, nem por isso abandonam a OTAN. O “realismo”
pelo jeito vale para a Ucrânia e só para a Ucrânia – mas não para os outros.