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20 outubro 2012

Aforismas sociológicos VI




§ 1º – Historicidade de Augusto Comte (e dos seus críticos contextualistas)

A leitura de Augusto Comte conduz com muita intensidade à noção de historicidade do ser humano. O seu Positivismo, ao contrário do que argumentam os seus críticos e ao contrário do que argumentam os críticos do “positivismo”, tem como pressuposto a noção de que o ser humano é antes e acima de tudo um ser histórico: não é possível falar em humanidade sem levar em consideração a historicidade. Na verdade, precisamente nesse sentido, o que distingue a espécie humana das outras espécies animais – e que, aliás, exige uma ciência específica para si, a Sociologia – é o caráter social do ser humano, o que, como dito há pouco, equivale no pensamento comtiano à historicidade.

Ora, não deixa de ser profundamente irônico que justamente os autores que postulam um historicismo radical, a partir da concepção de que é necessário compreender cada ação humana em seu contexto específico, proponham no final uma concepção fragmentária da realidade humana. A “história” é apenas a sucessão de “contextos”, justapostos cronologicamente. Essa concepção, por outro lado, lembra bastante a que Weber tinha a respeito da sociedade: para ele, não existe um agregado supra-individual, mas apenas relações individuais. Sem dúvida alguma, há perdas importantes de racionalidade – de “compreensão” da realidade humana – com cada uma dessas perspectivas (a do historicismo radical e a da sociologia weberiana): o que se perde é a compreensão de que o ser humano é histórico.

Inversamente, é claro, tais perspectivas, fragmentadoras, afirmam que somente elas são “históricas”, que somente elas acedem a verdadeira natureza humana. O que ocorre é que o contextualismo histórico, sacrificando a visão de conjunto, é útil para pesquisas empíricas, localizadas; a suposta ausência de pressuposições, que a perspectiva fenomenológica esposada por tais perspectivas advoga, permite que se acumulem observações empíricas indefinidamente, sem preocupações com uma inteligibilidade histórica mais ampla – que é descartada a priori, aliás. O resultado é que as perspectivas contextualistas são, supostamente, úteis para a historiografia porque – justamente ao contrário do Positivismo e ao contrário da auto-imagem propalada – são ultra-empíricos (“empiricistas”). (“Supostamente” porque elas apenas acumulam fatos e interpretações empíricas, mas sacrificam totalmente a compreensão mais ampla, isto é, a grande interpretação macro-histórica; além disso, há um orgulho na multiplicação de abordagens “micro-históricas” e um completo desdém pela possibilidade de síntese entre essas diversas perspectivas. É uma espécie de “capitalismo selvagem intelectual”, com um culto à anarquia e à dispersão.)


§ 2° Abordagens “historicamente informadas” na Sociologia e generalizações

Quando se fala em “abordagem histórica” para as teorias sociológicas (incluindo aí, é claro, as politológicas), há evidentemente inúmeras formas de encarar essa “historicidade”. Uma delas é aplicar os raciocínios e métodos próprios à disciplina acadêmica chamada História: nesse caso, a Sociologia torna-se uma província da História e, no fundo, não se vê em que é que a Sociologia distingue-se da História, exceto, talvez – e o “talvez” deve ser bastante enfatizado –, por um certo caráter comparativo. As abordagens contextualistas têm este viés: não existe propriamente Sociologia, mas apenas historiografia e uma infinidade de histórias.

Uma outra forma é entender que Sociologia e História, embora tenham mais ou menos o mesmo objeto, mantêm entre si relações diversas, pois seus objetivos são variados e, portanto, seus métodos também o são: neste último caso, a Sociologia pode (e, na verdade, deve) assumir que um dos elementos fundamentais do ser humano é seu caráter histórico e, a partir daí, elaborar suas pesquisas. Mas a Sociologia assumir que o ser humano é histórico não é o mesmo que assumir que a própria Sociologia deve subsumir-se à História: significa, muito diferentemente, que as sociedades acumulam materiais afetivos, intelectuais, políticos geração após geração e que cada geração tem que lidar criativamente com esses materiais, que serão passados adiante. Uma teoria “historicamente informada” na Sociologia que não seja uma forma diferente de fazer historiografia pode assumir que o ser humano caracteriza-se pela historicidade e, a partir daí, entender as várias formas de organizar-se e relacionar-se; nesse caso, a disciplina da História fornece materiais empíricos para a produção Sociológica, que tem o papel de coordenar e interpretar esses dados empíricos. Que as interpretações sociológicas dos materiais historiográficos sejam interpretações de segundo nível não há problema: pode-se pensar nos níveis teóricos da Antropologia: etnografia, etnologia e antropologia. Nessa escala, a interpretação maior caberia à Sociologia (antropologia, na seqüência anterior) e as interpretações iniciais, ou intermediárias, caberiam à História (etnologia, na seqüência anterior).

A História trata dos trajetos específicos de cada sociedade; a Sociologia, por outro lado, procura comparar os diversos trajetos, sejam eles momentos diferentes da mesma sociedade, sejam eles sociedades diferentes no mesmo momento, sejam, por fim, momentos diferentes de diferentes sociedades. A História, portanto, trata do que é específico; mesmo que ela faça comparações, seu objetivo é sempre o específico (Weber aplicou esse método à Sociologia, mas no final somente reafirmou a História, ou melhor, a metodologia historiográfica, em completo detrimento da Sociologia). Ora, o específico é interessante e em inúmeros casos pode ser politicamente importante, mas o fato é que o específico trata sempre de um único caso; o específico não diz nada a respeito das possibilidades de variação, das rotas opcionais, das grandes marchas: isso é possível somente via comparação, ou melhor, via generalização. “Compreender” o ser humano implica conhecer essas diversas possibilidades teóricas: em outras palavras, só se pode conhecer efetivamente o ser humano a partir das generalizações.