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28 junho 2020

Ainda o relativismo histórico, o anti-racismo e as memórias históricas


Em postagem anterior, intitulada “Relativismo histórico, anti-racismo e memórias históricas”, indiquei vários motivos que justificam a preservação de estátuas comemorativas de personagens como Winston Churchill (no mundo inteiro) e a manutenção do nome de Woodrow Wilson na Escola de Relações Internacionais da Universidade Princeton (nos Estados Unidos). Embora essa postagem tenha sido extensa e tenha coberto uma ampla gama de temas, uma nova reflexão levou-me a perceber que eu não havia esgotado o tema e que há, portanto, outros aspectos que merecem ser apresentados. De maneira específica, quero comentar pelo menos mais dois aspectos: (1) o caráter metafísico e (2) o antiprogressivismo do combate às memórias históricas; o segundo aspecto é uma decorrência do primeiro, embora ambos sejam em si mesmos distintos um do outro.

No Positivismo, na Religião da Humanidade, o que se opõe ao “relativo” é o “absoluto”. O absoluto é a forma de encarar a realidade, o mundo, o ser humano, que pretende que tudo isso seja entendido de uma vez por todas, por todo o sempre; em oposição ao que é “relativo”, o absoluto rejeita relações, vínculos; assim, o absoluto permitiria a compreensão de tudo a partir de algum princípio externo ao que existe e que não dependeria de nada para existir e para permitir o entendimento. De maneira exemplar, a concepção de uma divindade, em particular no monoteísmo, representa(ria) a concepção do absoluto: supostamente o deus monoteísta existe em si e para si, independentemente de quem e do que quer que seja, mas, por outro lado, tudo o que existe, existiu e existirá depende dele e por ele seria explicado. As perguntas finalísticas – “de onde viemos?”, “para onde vamos”, “por que existimos?” – são as questões que dão origem à concepção teológica e suas respostas conduzem ao absoluto.

Ora, como vimos, o absoluto tem sua melhor representação na teologia, em particular no monoteísmo. Como Augusto Comte indicou desde o início de sua carreira, as idéias são históricas e alteram-se ao longo do tempo; essas alterações de cada concepção seguem uma evolução específica, que consiste na passagem da teologia para a sua concepção corrompida, que é a metafísica; da metafísica (que possui um caráter meramente transitório) passa-se à positividade, cuja grande característica é o relativismo. (Não é necessário insistir em que a transição do absolutismo teológico-metafísico para o relativismo positivo é uma verdadeira revolução mental e moral, com um caráter extremamente profundo e, por isso mesmo, de realização complicada.)

A metafísica, portanto, é absoluta; ela visa a responder de uma vez por todas as questões que considera. Mas, como indicamos, a metafísica também é mera transição entre a teologia e a positividade; essa transição em particular assume a característica de ser “crítica”, isto é, destruidora, corrosiva. Ainda mais: embora compartilhe com a teologia seu caráter absoluto, a metafísica opõe-se à teologia, em particular assumindo-se o título de “progressista” contra o “conservadorismo” imputado à teologia. Em face da metafísica, não há dúvida de que a teologia torna-se realmente conservadora; além disso, quando surge, a metafísica consiste na própria realização do progresso, na medida em que a decomposição da teologia em direção à positividade é a própria marcha do progresso.

O conservadorismo teológico e o progressivismo metafísico são ambos absolutos; eles afirmam seus princípios de uma vez por todas e rejeitando as concepções de vínculos, de relações, de limitações, de contextos. Quando a metafísica passa a atuar sobre e contra a teologia, logo se instala uma dinâmica (os marxistas e os hegelianos diriam uma “dialética”) que opõe a ordem e o progresso, comprometendo tanto a ordem quanto o progresso, em que a ordem torna-se reacionária e o progresso torna-se anárquico. O que está em questão nessa dinâmica, portanto, é o papel concedido à liberdade e, em decorrência disso, a forma como a sociedade organiza-se (se de maneira espontânea, se de maneira forçada; se com princípios compartilhados, se sem tais princípios).

Assim, embora ela inicialmente ela corresponda ao progresso e afirme-se como sendo a representante do progresso, entregue a si mesma a metafísica acaba agindo de tal maneira que combate exatamente aquilo que afirma defender. Entretanto, o problema vai mesmo além da dinâmica suicida entre a ordem retrógrada e o progresso anárquico: fiel ao seu caráter dissolvente, ou, para usar uma palavra que todos conhecem, empregam e mais ou menos entendem, fiel ao seu caráter crítico, a metafísica é incapaz de manter quaisquer instituições, quaisquer conquistas. Em outras palavras, por si mesma a metafísica acaba resultando no fim do mesmo progresso que ela supostamente representa e defende.

Trazendo essas reflexões filosóficas e sociológicas para o caso que consideramos anteriormente – as estátuas e as homenagens a tipos considerados atualmente como racistas –, o resultado é que a falta de relativismo histórico a respeito dessas personagens deve-se antes de mais nada a seu caráter metafísico, crítico, destruidor, absoluto. Deseja-se de uma vez por todas, de maneira radical, ou melhor, de maneira brutal avaliar todas as carreiras desses tipos, baseando-se em parâmetros estritamente atuais e desprezando-se as atuações dessas personagens nos momentos em que viveram e, de modo específico, pelas quais tornaram-se famosas. Não há dúvida de que é motivo do mais profundo pesar, do mais profundo lamento, que Churchill e Wilson – para ficarmos nas duas personagens que estou considerando de maneira particular – tenham sido racistas; esse traço constitui uma nódoa profunda na biografia de cada um: ainda assim, a despeito disso, nenhum dos dois é lembrado, celebrado, cultuado devido ao racismo, mas devido às suas decisivas ações políticas ao longo do século XX – ações aliás francamente progressistas e libertárias. Aparentemente, há bustos e estátuas de outras personagens cujas carreiras consistiram basicamente no comércio de escravos, na manutenção da escravidão: nesse caso, não há atenuantes, não há justificativas plausíveis para a celebração de suas memórias; mas, como argumentamos, são muito diferentes as situações de personagens como Churchill, Wilson e vários outros.

Doravante, quando nos referirmos ao ex-primeiro-ministro britânico e ao ex-presidente estadunidense (e a muitos, muitos outros), teremos que indicar claramente seus lamentáveis racismos, com bem mais que eventuais notas de rodapé: isso, entretanto, é muito diferente de desprezar suas importantes ações devido ao racismo; no final das contas, empregar o racismo como critério único para julgar a inteireza da vida de alguém não deixa de ser uma inesperada e lamentável vitória do próprio racismo sobre a liberdade, a fraternidade e a tolerância.

Relativismo histórico, anti-racismo e memórias históricas

Antes de mais uma nada, um preâmbulo contextualizador necessário.

No dia 25 de maio de 2020, na cidade de Minneapolis (capital de Minnesota), um negro de 46 anos chamado George Floyd foi parado pela polícia. Floyd foi imobilizado e, durante quase dez minutos, seu pescoço foi pressionado pelo joelho de um policial branco, resultando em sua morte, mesmo após dizer várias vezes que “I can’t breathe” (“eu não consigo respirar”) e também que não podia mover-se; a ação foi amplamente filmada e teve a assistência passiva de outros policiais que nada fizeram em benefício da vítima. O vídeo da ação evidencia que George Floyd – trabalhador desempregado devido à pandemia de covid-19 – foi realmente um assassinato, um exercício de brutalidade policial com conotações racistas, em um país que é historicamente dividido em termos raciais (em particular “brancos” vs. “negros”). As cenas são claras e brutais (como se pode ver aqui) e tudo isso gerou imediatamente reações e manifestações pelo mundo inteiro, incluindo manifestações presenciais (a despeito da pandemia), contra a violência policial e, ainda mais, contra o racismo.

Parte dos protestos anti-racistas dirigiu-se para os símbolos institucionais do racismo, isto é, para estátuas homenageando homens que foram racistas e/ou que promoveram a escravidão (negra em particular); tais estátuas foram depredadas, vandalizadas e mesmo retiradas de suas bases. Nesse sentido, não apenas monumentos de mercadores de escravos foram atingidas, como também as de líderes como o rei belga Leopoldo II (que explorou de maneira vil o Congo no início do século XX), o primeiro-ministro britânico Winston Churchill (que tinha preconceitos de raça e liderou a Inglaterra na resistência contra o nazismo na II Guerra Mundial), os exploradores europeus Cristóvão Colombo (que descobriu as Américas) e James Cook (que descobriu a Oceania e a Polinésia), além de muitos outros. Mais recentemente, nos Estados Unidos, a direção da Universidade de Princeton decidiu mudar o nome da Escola de Relações Internacionais, suprimindo a referência ao ex-Presidente dos EUA e ex-professor dessa faculdade Woodrow Wilson: embora tenha sido o responsável pelo decisivo ingresso dos EUA na I Guerra Mundial e a favor da Tríplice Entente (ou seja, do lado da França e da Inglaterra) e, depois da guerra, tenha sido o grande patrocinador político e moral da Liga das Nações (a predecessora do que, após 1945, viria a ser a Organização das Nações Unidas), além de ter lançado as bases do que se chamou, depois, de “teoria idealista de relações internacionais”, o sulista Wilson era racista e a favor da segregação racial dos negros.

Essa decisão de Princeton, bem como os ataques às estátuas, merecem várias reflexões a partir do Positivismo. Senão, vejamos.

Antes de mais nada, o Positivismo, ou melhor, a Religião da Humanidade sempre foi radicalmente contra o racismo e a favor da integração das “raças”. Em termos teóricos, o Positivismo sempre afirmou que as raças devem ser entendidas em termos sociológicos e nunca biológicos; aliás, no que se refere à Biologia, a Religião da Humanidade sempre teve enorme clareza de que existe apenas uma espécie, a espécie humana, ou, como se diz em inglês, “there is only one race, the human race” (“há apenas uma raça, a raça humana”). Em termos práticos, os positivistas sempre combateram a escravidão e afirmaram a importância da mistura das “raças”: no Brasil, por exemplo, ser dono de escravos antes de 13 de maio de 1888 era motivo para expulsão sumária dos grêmios positivistas; além disso, após a gloriosa Proclamação da República em 15 de novembro de 1889, os positivistas foram os responsáveis pela transformação do 13 de maio em feriado nacional, celebrando a união nacional e a contribuição de todas as “raças” para a ordem e o progresso nacional; por fim, sempre fomos a favor de medidas públicas com vistas à integração dos negros e, de modo mais amplo, dos ex-escravos à sociedade, em vez de deixá-los largados à própria sorte (como acabou ocorrendo).

Os comentários do parágrafo anterior são necessários para que não haja absolutamente a menor dúvida quanto ao sentido do que escreverei abaixo e, de modo específico, para que não haja a menor dúvida de que sou contra o racismo e de que sou a favor da integração social e política dos “negros” à sociedade.

Considerando a decisão tomada pela Universidade de Princeton, ela parece-me pura e simplesmente errada. Como comentei antes, não defendo nem defenderei, nunca, o racismo; da mesma forma, não defenderei jamais comentários racistas que W. Wilson tenha feito sobre os negros. Na verdade, eu nem sabia que ele era racista. Mas essa ignorância a respeito do racismo de Wilson é indicador de o quanto ele é homenageado por outros motivos e apesar do racismo.

Como observei antes, ele foi o responsável pela participação (decisiva) dos EUA na I Guerra Mundial, pela criação da Liga das Nações e pela proposição do que se chama de “teoria idealista”: só isso já é título de glória perene e imorredoura para Wilson. Não há dúvida de que tais títulos vinculados à política externa não negam nem apagam o racismo interno, mas há que se pesar isso. Há que se ter o devido relativismo histórico e considerar (1) que o que hoje é (corretamente) inaceitável, um século atrás era desgraçadamente mais aceitável; (2) que as ações de Wilson pelas quais ele é (ou era) homenageado na Escola de Relações Internacionais de Princeton não se vinculam à política interna, mas à política internacional; (3) que ele era, no final das contas, apenas um ser humano e um ser humano de sua época e de seu lugar.

Essa decisão parece-me um erro que é motivado por uma paixão do momento; uma paixão justa, não há dúvida, mas, ainda assim, por mais justa que seja – e ela é, de fato, extremamente justa (“I can't breathe”, se duvidar, ficará marcado na história um pouco abaixo do “I have a dream” de Martin Luther King) –, nada muda o fato de que se trata (1) de uma paixão, (2) de uma paixão do momento e (3) que desconsidera princípios filosóficos humanistas mais amplos – no caso, o relativismo histórico necessário para avaliar as atuações de indivíduos em momentos que não os nossos. Não consigo deixar de pensar que essa decisão consiste em uma espécie de versão “ideológica” e invertida da “one-drop rule” (“regra da gota única”), em que um desgraçado racismo contamina de maneira indelével, permanente e irremissível todo o caráter e toda a vida do indivíduo.

O problema é que, afinal, quem é totalmente isento de máculas? Poucos são – e, a bem da verdade, mudando os pensamentos e até os preconceitos, sempre é possível encontrarmos defeitos insuspeitos em indivíduos até então considerados perfeitos. Vejamos: Gandhi foi o responsável por uma guerra civil entre hindus e muçulmanos na Índia e em Bangladesh. Nos EUA, Lincoln também era racista e contrário ao fim da escravidão, a despeito da 13ª Emenda. Mesmo Martinho Lutero Rei Filho era um pastor da religião dos brancos opressores.

No Brasil, há algumas décadas, tivemos a verdadeira histeria contra Monteiro Lobato. Eu gosto muito dos livros infantis dele, mas ele era cristão e em sua História do mundo para crianças ele fez apologia do cristianismo, o que me parece uma bobagem completa: por isso eu jogaria no lixo toda a sua obra? Ele também reforçou o estereótipo contra os caboclos, com o Jeca Tatu: deveríamos jogar no lixo toda a sua obra? No que se refere ao suposto racismo da Emília contra a tia Nastácia, deveríamos jogar fora o Sítio do Picapau Amarelo e condenar Monteiro Lobato? (De passagem, as propostas para jogar na lata do lixo toda a obra de Monteiro Lobato vieram do movimento negro informado pelos EUA – o mesmo movimento que considera a miscigenação uma forma de genocídio!) O que o relativismo histórico recomendava, e recomenda, para uma situação com essa? Evidentemente, manter a obra de Monteiro Lobato e indicar que é inaceitável o racismo demonstrado naquela passagem específica.

Esse relativismo histórico a que estamos referindo-nos consiste em entender que cada indivíduo integra sua época e, portanto, está condicionado pelos valores, pelas idéias e pelas práticas dessa época. Esse “condicionamento” o mais das vezes significa que os indivíduos estão limitados por suas épocas, embora os grandes indivíduos sejam justamente aqueles que conduzem, orientam, guiam os demais para além de suas épocas. Os valores, as idéias e as práticas de cada época, por mais que possam ser condenáveis em outros momentos (anteriores ou posteriores) devem ser entendidos como próprios àquele momento e, portanto, muitas vezes simplesmente não faz o menor sentido criticarmo-los. Um exemplo banal: o gigante intelectual que foi Aristóteles (384 aec-322 aec), em sua grande obra Política, afirma que a escravidão é algo natural e que, em particular, é própria aos “bárbaros”, isto é, àqueles que não eram gregos: nada disso seria aceitável nos dias atuais, mas, por outro lado, não faz sentido, não é justo criticarmos Aristóteles por ele ter tido essa concepção, datada de quase 2450 anos atrás.

Há um sentido adicional para o relativismo e que consiste em percebermos que cada um vive e age em diversos âmbitos; alguns podem caracterizar-se mais por elementos “progressistas”, enquanto outros podem ser mais “conservadores” e outros ainda podem ser mais “reacionários”. Há que se pesar cada um deles e considerar-se se qual desses aspectos apresenta um saldo positivo, isto é, superior aos demais. Aliás, ainda mais do que isso, é necessário considerar se um determinado aspecto da ação de um indivíduo foi mais progressista em um momento histórico determinado, mesmo que esse aspecto tenha ocorrido a despeito de outros elementos entendidos como menos positivos ou progressistas. As vidas de Woodrow Wilson e de Winston Churchill são exemplares nesse sentido: embora tenham sido racistas, eles foram centrais para a defesa das liberdades no século XX e para a vitória dos países e dos princípios que afirmam as liberdades, a dignidade humana, a tolerância, o respeito mútuo. Nesse sentido, é importante realçar que esses princípios defendidos por Wilson e Churchill, seja em termos teóricos (por meio de palavras), seja em termos práticos (por meio de suas ações e de suas lideranças), vão exatamente na contramão do racismo por eles defendido. Por fim, também é importante reforçar que os títulos de glória e de celebração de suas memórias foram estabelecidos apesar do racismo que eles defenderam e que esse mesmo racismo foi sempre posto de lado – sinal de que ele é motivo de vergonha e opróbrio.

O relativismo histórico defendido pelo Positivismo, portanto, não nega os defeitos que os indivíduos eventualmente possam ter e que de fato têm; entretanto, ao mesmo tempo, ele não deixa de perceber que esses mesmos defeitos têm que ser inseridos, sempre, nos momentos específicos em que cada indivíduo viveu e vive. Por fim, o relativismo também nos lembra que, no final das contas, somos todos seres humanos, isto é, seres falhos e limitados: o objetivo da religião é aperfeiçoar-nos, melhorar-nos, a partir dos progressos historicamente cumulativos; rejeitar os seres humanos de uma vez por todas e para sempre porque todos temos defeitos é o mesmo que negar a nós, seres humanos, essa mesma característica que nos torna humanos.

Duas observações finais para concluir este longo texto – observações à primeira vista secundárias mas que, bem vistas, revelam-se centrais.

Em primeiro lugar, as reflexões acima só fazem sentido se considerarmos que o ser humano é um ser histórico, que essa historicidade em grandes linhas é cumulativa e também que essa historicidade tem uma direção, que vai de um desconhecimento geral do mundo e do ser humano para o conhecimento cada vez maior do mundo e do ser humano e, daí, para uma valorização cada vez maior do próprio ser humano. Em outras palavras, é necessária o que se chama de uma “filosofia da história”; essa filosofia não é meramente um jogo de palavras, uma abstração altamente idealizada, mas consiste em um resultado de uma Sociologia histórica e comparativa; em outras palavras, é o resultado de uma investigação científica que considera a natureza humana e suas mudanças ao longo da história.

Em segundo lugar, o desenvolvimento do relativismo histórico é um dos resultados do estudo cotidiano do famoso calendário concreto, também conhecido apenas como “calendário positivista”, aquele que tem seus 13 meses nomeados por tipos como Moisés, Homero, São Paulo, Carlos Magno, Dante, Descartes etc. O objetivo desse calendário não é fornecer ao público (ocidental) um enorme catálogo de nomes, selecionados conforme as idiossincrasias de Augusto Comte: muito ao contrário, seu objetivo é no mínimo duplo. Por um lado, ele visa a promover o culto moral a grandes tipos históricos, que, com suas ações em seus contextos históricos específicos, permitiram, ao longo do tempo, que chegássemos aonde estamos; por outro lado, o estudo da vida e da ação de cada um desses tipos permite-nos – e, na verdade, exige – o desenvolvimento do relativismo histórico, no sentido que indicamos ao longo deste texto. Em outras palavras, o calendário histórico é ao mesmo tempo um profundo exercício cultual e um profundo exercício histórico e sociológico. Um de seus resultados é, precisamente, evitarmos uma “criticidade crítica”, destruidora, sem outros parâmetros que sua raiva constitutiva, ainda que bem intencionada e motivada por uma justíssima indignação.

15 agosto 2019

Abolição e política identitária na Ciência Hoje para Crianças

Nos últimos anos, a “discussão” sobre a abolição da escravidão no Brasil tem tomado alguns rumos inesperados mas, ao mesmo tempo, nefastos.

Antes de mais nada, é evidente (ou deveria ser evidente) que a valorização dos movimentos negros (escravos, livres ou libertos) na campanha pela abolição da escravidão é algo corretíssimo e tem que ser valorizado; todavia, isso não pode, de maneira nenhuma, corresponder a negar-se o papel desempenhado nessa campanha por outros brasileiros, que, na falta de melhor expressão, chamaríamos de “brancos” (quer fossem populares, quer fossem da elite, quer fossem de classe média).

O que importa notar, nesse sentido, é que a campanha pela abolição foi um movimento verdadeiramente nacional, no duplo sentido de que (1) ocorreu de Norte a Sul (e de Leste a Oeste) do país e, principalmente, (2) mobilizou todas as classes sociais, todos os grupos sociais. Nesse sentido, vale lembrar que a lei da abolição, antes de ser sancionada pela Princesa Isabel, fora aprovada pelo parlamento brasileiro: essa aprovação indica o quanto a sociedade como um todo mobilizara-se previamente, forçando o parlamento a aceitar o projeto.

É fundamental insistirmos em que consiste em um mito a idéia de que Princesa Isabel teria sido a “redentora”, isto é, de que a abolição teria ocorrido graças à pura vontade unilateral da regente do Império brasileiro. Aliás, esse mito foi criado já em 1888, para tentar valorizar a monarquia decadente e também para tentar legitimar um eventual terceiro reinado dos Órleans e Braganças, a ser assumido pelo casal composto pela Princesa Isabel e seu marido, o francês Conde d’Eu.

Mas se é correto desmistificar a atuação “redentora” da Princesa Isabel, assim como é importante valorizar a atuação dos movimentos negros na campanha abolicionista, por outro lado é importante não negar a atuação de toda a sociedade brasileira da época. Nesse sentido, por exemplo, vale notar que partes do próprio “movimento negro” afirmaram desde 1888 elementos do mito da “redentora”: afinal, após o 13 de maio constituiu-se sob o comando de José do Patrocínio (um dos antigos campeões negros da causa abolicionista) a “Guarda Negra”, que servia para defender a monarquia escravocrata contra a república e os republicanos, sem temer o emprego de espancamentos, linchamentos etc. Esse triste fato não costuma ser lembrado – mesmo nos dias de hoje! – nem pelos reacionários que defendem a monarquia nem pelo movimento negro.

Há outro motivo, mais profundo, para preocupação com os rumos atuais sobre os “debates” a respeito da campanha abolicionista: trata-se de que muito da historiografia revisionista das últimas duas décadas tem um fortíssimo caráter de política identitária. Ora, a política identitária baseia-se nas “identidades de grupo”, isto é, naqueles elementos que cada grupo social considera como exclusivos seus e que, portanto, separam esses grupos do conjunto da sociedade e dos demais grupos.

Referi-me a “muito da historiografia”, ou seja, muitos historiadores, mas também muitos cientistas sociais atuais adotam esses parâmetros identitários para fazerem suas análises, que se caracterizam cada vez mais pela brutal dicotomia que separa de maneira seca e dura “brancos” de “negros”, sem categorias intermediárias (os mulatos) mas com um fortíssimo elemento moral (em que, evidentemente, os “brancos” por definição não prestam). (Esse procedimento tem sido adotado por cientistas sociais independentemente da sua “raça”.)

Isso tem ocorrido graças à importação, completamente acrítica e despudorada, feita pelo movimento negro brasileiro dos esquemas mentais e sociais próprios ao racismo dos Estados Unidos e das estratégias sociopolíticas adotadas pelo movimento negro estadunidense – com todos os vícios que isso acarreta, em particular a reprodução ocorrida aqui do racismo e do divisionismo existentes lá. Sinal simples e escandaloso disso é a afirmação de que “miscigenação é genocídio” em faixas e cartazes que integrantes do movimento negro brasileiro exibem com orgulho em manifestações públicas, ainda que com isso apenas (e infelizmente) reproduzam aqui e a favor dos negros a nefanda regra da “gota única de sangue” (“one drop rule”), vigente nos EUA e que fundamenta sociologicamente o racismo lá.

Não posso deixar de observar que, muito diferente disso tudo, resultando em ações e práticas muito diversas, com efeitos sociais e políticos amplos (também diversos), foi a atuação dos positivistas. Os positivistas brasileiros celebravam no dia 13 de Maio a união da raças no Brasil, com a colaboração de cada uma delas para o progresso nacional; aliás, os positivistas brasileiros foram alguns dos mais ardorosos defensores da abolição da escravidão imediata e sem compensação financeira para os donos de escravos: aliás, nos grêmios positivistas, ser dono de escravo causava a expulsão sumária. Não é por acaso que, entre 1890 e 1930, o 13 de Maio era feriado nacional (e muita gente, mesmo nos dias de hoje, ainda se lembra disso): proposto pelos positivistas logo no início da República, esse feriado celebrava a fraternidade nacional nos termos indicados acima – mas muito diferentes da apologia reacionária que cultuava a “redentora” e também muito diferente da política identitária, segregacionista e não raro racista do dia da “consciência negra”.

Faço essas extensas considerações porque a revista Ciência Hoje para Crianças (CHC), em sua edição n. 299, de maio de 2019, dedicou o número a tratar da abolição da escravidão, dando ênfase aos negros envolvidos no movimento. Como observei antes, essa ênfase é histórica e politicamente necessária, mas ela não pode conduzir a negar o papel desempenhado pelo conjunto da sociedade brasileira – que, aliás, atuou como um conjunto – nessa campanha. Em particular, nesse número da CHC, a matéria “13 de Maio ainda seria data para celebrar?” (disponível aqui: http://chc.org.br/artigo/13-de-maio/) deixa entrever os problemas que comentei acima. É bastante claro o quão problemático, quando não desastroso, que, em nome de uma proposta bem intencionada, mas errada no final das contas, uma revista de divulgação científica leve adiante a “correção política” (que é a tradução correta do “politicamente correto”) e a política identitária sob a forma de conteúdo “educativo” para crianças.

14 maio 2018

Ambigüidades brasileiras sobre o 13 de Maio

A comemoração do 13 de maio é algo bastante problemático no Brasil atual.
Muitos sociólogos e historiadores afirmam que o Brasil tem uma espécie de amnésia a respeito da escravidão; pode ser, mas com certeza temos uma profunda "má consciência" disso, isto é, é uma lembrança profundamente incômoda, desagradável; é uma chaga que nos persegue.
Essa "má consciência" pode ser entendida de duas formas: (1) ou uma tentativa de simplesmente apagar o passado e fingir que esse passado não ocorreu; (2) ou uma forma de impulsionar mudanças efetivas no presente, para o futuro, a fim de corrigir erros e problemas anteriores.
É claro que essas duas formas da "má consciência" não são necessariamente excludentes entre si, embora elas possam, de fato, separar-se.
Quando sociólogos e historiadores afirmam a "amnésia" a respeito da escravidão, eles insistem na primeira possibilidade, deixando implícita ou em segundo plano a segunda possibilidade.
Mas, ao mesmo tempo, como é sabido, o 13 de maio acarretou a libertação dos escravos, mas não a integração dos ex-escravos à sociedade em termos sociais e políticos; eles tornaram-se livres, mas não se tornaram cidadãos.
É claro que essa lacuna aumenta dramaticamente o peso que a escravidão tem sobre o Brasil e sobre a memória coletiva sobre ela.
Os positivistas brasileiros, desde 1881 (fundação da Igreja Positivista do Brasil), passando por 1888 (Abolição da Escravidão), mas ainda mais após 1889 (Proclamação da República), envidaram os maiores esforços para, inicialmente, acabar com a escravidão e, em seguida, incorporar os ex-escravos - aliás, de modo geral, todos os "excluídos" - à sociedade, como cidadãos respeitados, valorizados e produtivos. Sinal inequívoco disso foi o estabelecimento, em 1890, do dia 13 de maio como feriado dedicado à confraternização de todos os brasileiros
Enfim, a ambigüidade brasileira a respeito do dia 13 de maio aumenta ainda mais quando se constata que os movimentos negros atuais criticam as limitações do 13 de maio - críticas que, nesse sentido, são corretas e mesmo necessárias - para realizarem de uma única vez inúmeras ações daninhas para o país: (1) negam a importância da abolição da escravidão; (2) afirmam o particularismo negro (por meio da "consciência negra"); (3) estimulam o racismo (seja por meio do "racismo reverso", isto é, dos "negros" contra os "brancos", seja por meio da separação da sociedade brasileira entre "negros" e "brancos") e (4) como suposta solução para esses problemas, afirmam a validade, a legitimidade e a eficácia do "racismo reverso" e dos privilégios baseados na raça (as "ações afirmativas", que institucionalizam o racismo de Estado).
Em suma, a comemoração do 13 de maio no Brasil é problemática porque ela recorda-nos de uma gigantesca nódoa em nossa história. O impulso geral básico no Brasil é por esquecermos essa nódoa, em vez de usarmos a vergonha do passado para melhorarmos o presente e o futuro; por fim, os ativistas sociais contemporâneos pretendem que o melhor curso de ação é aquele que, conscientemente, aumenta o racismo, em vez de diminuí-lo; que cria privilégios, em vez de aumentar a cidadania.