Degradação como progresso (!)
Gustavo
Biscaia de Lacerda
Advertência inicial
Antes de mais nada, um aviso: este artigo certamente
desagradará muitos, talvez a maioria, de quem se considera “progressista”; mas
é justamente em nome do progresso, em defesa
do progresso, que escrevi estas linhas. Começarei expondo duas situações
concretas, geralmente celebradas (de maneira equivocada) como progressistas e
em seguida comentarei o que se deve entender por progresso.
A polêmica olímpica
A primeira situação concreta refere-se aos jogos olímpicos. O
belo espetáculo das Olimpíadas, em sua recente edição de Paris 2024, foi
marcado em sua abertura, no dia 28 de julho, por polêmicas intensas. Não foi
todo o evento de abertura, que se caracterizou por múltiplas atividades
realizadas ao mesmo tempo, muitas delas realmente bonitas e inovadoras,
respeitando e exaltando o universalismo próprio aos jogos olímpicos, bem como
celebrando aspectos da cultura francesa e da preocupação com o futuro da
Humanidade. Contudo, alguns aspectos foram particularmente polêmicos – e, convém
dizê-lo com clareza, propositalmente agressivos. Essas polêmicas referiram-se
em particular a uma suposta representação teatral, ou “performática”, do famoso
afresco de Leonardo da Vinci, A última
ceia (1495-1498), em que – supostamente, conforme as críticas – as figuras
de Jesus Cristo e dos apóstolos teriam sido trocadas por figuras de diabos,
bacantes etc., em poses e situações extremamente eróticas e sexualizadas. Em
contraposição, alguns dos defensores da “performance”
afirmaram que se tratava na realidade de uma representação da tela A festa dos deuses, de Utrecht Jan
Harmensz (1635-1640), ou, ainda (mas com menos verossimilhança), de A festa dos deuses, de Giovanni Bellini
(1514). O diretor artístico do evento, Thomas Jolly, foi extremamente ambígüo a
respeito: embora inicialmente ele não tenha confirmado nem negado nada, após as
imediatas críticas feitas pela igreja católica da França, por católicos e por
políticos de direita e extrema direita, ele afirmou que não se tratava de
nenhuma tentativa de degradar ou desprezar o afresco de Leonardo da Vinci nem,
por extensão, o catolicismo, mas, ao contrário, de ser “inclusivo ao máximo”;
aliás, ele também afirmou que “um pouco de polêmica é sempre bom”, pois um
mundo sem polêmicas seria “muito chato”. Em face de tal polêmica, tanto o
presidente da comissão francesa para os jogos olímpicos, o canoísta Tony
Stanguet, quanto o Presidente da República, Emmanuel Macron, viram-se obrigados
a confirmar e a apoiar o espetáculo, inclusive fazendo coro ao empenharem o
republicanismo, a laicidade e até a tradição anticlerical francesa como base
para esse apoio.
Os ideais olímpicos: paz,
universalismo, inclusão
Se a “performance”
foi mesmo baseada na Última ceia,
isso está aberto à discussão; de fato, é necessário forçar um pouco para
concluir que ela referiu-se mesmo à obra de Da Vinci. Entretanto, o que não está sujeito a debate é a intenção
consciente de ser polêmico – e de ser polêmico por meio da vulgaridade. Bem
distante de buscar o máximo de inclusão, o que o “diretor artístico” da
abertura das Olímpiadas desejava era chocar ao máximo a platéia, causar
mal-estar, a partir de cenas degradantes e inadequadas. A importância dos jogos
olímpicos está na afirmação do seu universalismo, bem como na belíssima idéia
de que as disputas violentas entre as nações – em particular as guerras – são
suspensas e, mais do que tudo, substituídas por disputas pacíficas, em que se
busca não a destruição e a morte, mas o respeito e o desenvolvimento do ser
humano. Esses ideais foram comprovados repetidamente durante o evento, com as selfies conjuntas de coreanos do Sul e
do Norte, os auxílios de corredores que acudiram seus adversários/colegas, a
“adoração” das ginastas estadunidenses pela nossa Rebeca Andrade.
A recorrente vulgaridade de Madonna
Mas o fato é que a vulgaridade que degradou a abertura dos
jogos olímpicos de Paris, em 2024, não é algo novo; aqui no Brasil já vimos
cenas parecidas antes, como na apresentação da cantora Madonna, em Copacabana,
em maio de 2024. À diferença dos jogos olímpicos, Madonna não tem a menor
preocupação em ser universalista; mas, à semelhança do ocorrido em Paris, desde
o início de sua carreira, no começo dos anos 1980, ela busca chocar e causar
comoção, em particular por meio de cenas agressivamente sexualizadas. É claro
que em parte isso é jogo de cena com fins de propaganda, para ela aumentar a
vendagem de seus produtos (ou seja, para ela enriquecer mais); mas essa
estratégia baseia-se em valores profundos professados pela cantora.
A hipersexualização vendida como
progresso
Pois bem: tanto no caso dos jogos olímpicos quanto no de
Madonna a vulgaridade da extrema sexualização é apresentada como sinal de
progresso – e isso é amplamente entendido como correto e aceitável por grupos
autointitulados “progressistas”. Ora, basta um pouco de bom senso para
perceber-se com clareza que nem a degradação nem a vulgaridade correspondem a
qualquer sentido aceitável de “progresso”. Devemos, então, saber o que é o
progresso.
Definindo o progresso
Um sentido elementar do progresso é o desenvolvimento das
capacidades humanas, seja em termos coletivos, seja em termos individuais:
progredir, nesse sentido, é o ser humano “crescer”. Não se trata simplesmente
de mudar: afinal de contas, podemos mudar para pior. Assim, a noção de
progresso implica tanto o desenvolvimento
quanto o aperfeiçoamento. Clara e
necessariamente há um juízo de valor implicado aí, em que devemos melhorar as coisas. Daí decorre também
um outro aspecto, o espírito construtivo
do progresso: progredir significa necessariamente construir. Por certo que às
vezes, para progredirmos, temos que antes destruir algumas coisas (isto é,
algumas práticas, algumas instituições, até mesmo alguns objetos); mas, como
deve (ou deveria) ser evidente, essas destruições prévias têm que ser
excepcionais e, acima de tudo, as coisas destruídas têm que ser substituídas
por outras. Isso equivale a dizer – aliás, repetindo o que o líder da Revolução
Francesa Georges Danton já dizia (mas que, quase com certeza, nem Thomas Jolly
nem Madonna conhecem e muito menos respeitam) – que “só se destrói o que se
substitui”: o puro espírito destruidor, a pura destruição, o mero destruir por
destruir, nada disso é de verdade o “progresso” – mesmo que se diga que é.
O progresso geralmente é contraposto à ordem, seja em termos
filosóficos e morais, seja em termos sociopolíticos. De fato, essa é uma
possibilidade; entretanto, a contraposição entre ordem e progresso resulta em
oscilações intensas e em disputas sociais amargas, como vivemos ao longo do
século XX e como temos tido a infelicidade de atualizar neste século XXI.
Assim, para ultrapassar as oscilações entre a ordem e o progresso, é necessário
uni-los e constituir uma nova síntese, de “ordem e progresso”. Tal síntese foi elaborada pelo fundador da
Sociologia, o francês Augusto Comte, herdeiro da Revolução Francesa, indicando
que a ordem tem que ser a consolidação do progresso e que, assim, o progresso é
o desenvolvimento da ordem. (A ordem, dessa forma, não é entendida como imóvel,
como estática.)
Não deixa de ser irônico, ou melhor, triste que a degradante
“performance” realizada em Paris
tenha sido feita ao mesmo tempo em nome do progresso, do espírito olímpico e da
Revolução Francesa. Ora, como indicamos acima, foi justamente durante a
Revolução e não por acaso que se concebeu a máxima “só se destrói o que se
substitui”; mas, mais do que isso, a degradação exibida em julho de 2024 em
Paris também foi feita em nome do “amor”, mas tanto para os revolucionários de
1789 quanto para a maioria dos cidadãos de hoje espetáculos hipersexualizados
como os de Thomas Jolly e de Madonna têm pouco ou nada a ver com o amor, mas
apenas com uma nauseante caricatura do que deve ser o amor.
Christopher Lasch e Oscar Wilde: progresso
como “subida mecânica” e como “decadência com elegância”
Dito isso, voltemos à degradação fantasiada de progresso. Em
1994 o ensaísta estadunidense Christopher Lasch (A revolta das elites), ao abordar o conceito de progresso, propôs e
defendeu que desde o final do século XIX havia duas possibilidades para esse
conceito; a primeira ele caracterizou como sendo a noção de desenvolvimento
contínuo e irreversível para cima, uma “subida mecânica” – na verdade, uma
caricatura elaborada pelos críticos conservadores e retrógrados do progresso e
que, na falta de elaboração filosófica verdadeira, foi referendada pela esquerda
e pelo próprio Lasch. O outro conceito apresentado pelo estadunidense seria o
do desenvolvimento da arte e das faculdades artísticas, em que a arte seria
cada vez mais autônoma, isto é, cada vez mais independente dos outros âmbitos
da vida, em particular o da moralidade; esse segundo conceito teria sido
proposto pelo dramaturgo irlandês Oscar Wilde, que propunha, de maneira
concomitante, as noções de que o primeiro sentido do progresso seria “chato” e
próprio a pessoas “estúpidas”, enquanto a arte seria a expressão e o
desenvolvimento cada vez maior do egoísmo e da mais pura autoexpressão
individual e antissocial. (Como se vê, Lasch desconsidera, talvez ignore, o
sentido mais cuidadoso, matizado e complexo que expusemos acima.) Ao mesmo
tempo, na linha dessa superficialidade inidividualista, Oscar Wilde celebrava a
noção de que o conteúdo específico da arte contemporânea é o da “decadência com
elegância” (a tal décadence avec élégance,
que foi popularizada por um ambígüo e polêmico cantor brasileiro nos anos
1980). O conceito de “progresso” proposto por Oscar Wilde (que Christopher
Lasch acaba pessoalmente subscrevendo) evidentemente é paradoxal; com um pouco
de atenção logo se vê que ele não é de fato progresso em nenhum sentido
razoável, embora corresponda perfeitamente à inteligência ágil, à mentalidade e
à sensibilidade aristocrática, superficial e desorientada de Wilde, esse
Voltaire atrasado e de segunda linha posterior à Era Vitoriana.
O fato é que a sensibilidade de Oscar Wilde, com sua marcada
superficialidade e sua agressiva destruição, é o que alimenta a noção de
progresso “decadente e elegante” dos recentes espetáculos hipersexualizados que
citamos antes. Não há nesses espetáculos nenhuma busca efetiva de “progresso”,
isto é, de aperfeiçoamento humano, de melhoria das condições sociais e
individuais; há apenas a degradação moral travestida de, ou melhor, corruptora
da bela e importante noção de “progresso”.
Silêncio constrangido e/ou omisso
dos progressistas
Em face das inevitáveis críticas que tais apresentações
receberiam dos grupos conservadores e retrógrados – aliás, sendo franco:
críticas que em grande parte estão corretas –, muitos intelectuais que se dizem
progressistas vão em bloco em defesa dessas apresentações, no famoso movimento
de briga de torcida, incapazes de qualquer verdadeira apreciação. Com essa
defesa em bloco, mecânica e acrítica, não é à toa que esses “progressistas”, ou
a chamada esquerda, sejam tantas vezes mal vistos ou percebidas como “imorais”.
Dissemos “muitos
intelectuais defendem”, com isso querendo sugerir que não são todos e, talvez,
nem a maioria: temos a impressão de que aqueles intelectuais progressistas que não se manifestam têm clareza de o quão
degradantes são esses espetáculos e que, por isso, não querem expor-se ao
ridículo de defender o indefensável, embora, ao mesmo tempo, não queiram
indispor-se com seus colegas “progressistas” ao custo de serem vistos como
“conservadores” ou retrógrados. Tal silêncio também é conveniente com a dupla
percepção (e duplamente incorreta), da parte desses intelectuais, (1) de que as
mudanças sociais que importam seriam as mudanças materiais (políticas e econômicas) e (2) de que a agenda de
“costumes”, dita moral, é secundária e, portanto, poderia ficar à mercê de
espetáculos como os comentados acima.
Defesa da “cultura LGBTQIAP+”?
Podemos abordar agora o elefante branco desta reflexão. Muitos
dos intelectuais que defendem esses espetáculos e que subscrevem a noção de
progresso como “destruição com degradação” preocupam-se com o fato de que esses
espetáculos muitas vezes são feitos por artistas “LGBTQIAP+” e nominalmente em
sua defesa. Entretanto, como indicamos acima, esses espetáculos são extremamente
agressivos e destruidores: talvez, quem sabe, fosse possível defendê-los
argumentando que se trata de manifestações específicas de uma “cultura LGBTQIAP+”,
mas isso é muito discutível e pouco defensável, na medida em que “essencializa”
essa cultura e degrada a própria comunidade “LGBTQIAP+”, reduzindo-a à
hipersexualização. Aliás, a redução do amor a manifestações públicas
hipersexualizadas feitas com o objetivo de chocar é, sob qualquer parâmetro,
uma péssima estratégia, que serve apenas para irritar e afastar quem se deveria
agradar e atrair, bem como para degradar o ambiente público, a arte, os grupos
envolvidos e as noções de progresso e amor. O tolo comentário de Thomas Jolly,
de que “a vida seria muito chata sem polêmicas”, dá a medida da infeliz
superficialidade que move tais espetáculos.
Em suma, no fundo, o que se evidencia é a ausência de
qualquer concepção verdadeira de progresso – isto é, de qualquer concepção que
ultrapasse o sentido caricato de “subida mecânica” ou o sentido de “decadência
com elegância” de Oscar Wilde.
Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo e doutor em Sociologia Política.