Progresso versus cinismo
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Hoje em dia, no início do século XXI, quando
lemos Augusto Comte e os demais positivistas que escreviam no século XIX e
início do século XX, dois aspectos surgem com grande clareza:
o
Por um lado, uma grande esperança no ser humano,
no aperfeiçoamento das condições da humanidade (materiais, físicas,
intelectuais e morais); essa esperança era sintetizada na noção de “progresso”
o
Por outro lado, seguindo o espírito da nossa
época, quase instintivamente temos a impressão de que essa esperança mantida no
século XIX era “ingênua”, da mesma forma que consideramos que seria mais
“correta” uma perspectiva mais ressabiada, ou melhor, mais cínica
o
Entretanto, não há motivo nenhum para seguirmos
o atual espírito da época e considerarmos que a esperança e o progresso do
século XIX são ingênuos e, daí, desprezíveis
-
A respeito da esperança e do progresso afirmados
pela Religião da Humanidade:
o
Afirmam a afetividade humana, o altruísmo, a
possibilidade e a necessidade de conhecimento científico da realidade e do ser
humano;
§
Afirmam esses conhecimentos a partir do
relativismo e do historicismo, valorizando sempre a subjetividade humana
o
Também estabelecem um critério geral de
moralidade (o estímulo ao altruísmo e a compressão do egoísmo), que ultrapassa o
individualismo egoístico próprio às teologias e às suas metafísicas derivadas e
que afirma a noção de dever acima da de direito
o
Afirmam que a paz, a fraternidade, o altruísmo,
a colaboração surgem necessariamente da evolução histórica
§
Esses traços, de qualquer maneira, correspondem
a tendências gerais, comportando variações e flutuações ao longo do tempo
§
Assim, não há motivo para supor que essas
variações e flutuações correspondam à negação do progresso
o
Como observava Augusto Comte, o progresso é mais
subjetivo que a ordem (ou seja, é
mais diretamente relativa à realidade humana) e abarca aperfeiçoamentos em
diversos âmbitos: material, físico, intelectual e, acima de tudo, moral
-
É importante considerarmos o que aconteceu nesse
período, isto é, entre meados do século XIX e este início do século XXI:
o
Em termos afetivos, houve o seguinte:
§
Antes de mais nada, houve a fundação da Religião
da Humanidade entre o final da década de 1840 e meados da de 1850,
sistematizando tendências amplas e gerais da humanidade e fortalecendo laços
fraternos e altruístas entre povos, classes e grupos variados sobre bases reais
§
O desenvolvimento simultâneo de perspectivas
internacionalistas e particularistas, às vezes com sobreposição, às vezes com
distanciamento entre elas:
·
O internacionalismo é a afirmação de
perspectivas internacionais, de concórdia entre nações (às vezes,
equivocadamente, de fim das nações)
·
Os particularismos assumiram formas variadas:
o
Os nacionalismos, às vezes xenofóbicos, mas
inicialmente como movimentos de afirmação das nações contra os grandes impérios
coloniais,
o
A perspectiva de classe, especialmente do
proletariado, contra a burguesia e contra o capital
§
Por vezes o particularismo de classe
manifestou-se contra as nações, mas muitas vezes ele foi a favor de nações
proletárias
§
Em todo caso, com gigantesca freqüência, o
particularismo proletário serviu de apoio, mesmo de desculpa, para movimentos
de independência nacional
o
Houve formas especialmente mesquinhas e
agressivas de particularismos sobre outras bases, como no caso dos racismos
antissemita e de vários outros
·
Citamos aqui os particularismos negativos porque
eles tiveram uma terrível importância durante 30 anos no século XX
o
Indiretamente, esses particularismos negativos
serviram para evidenciar que eles, na medida em que são particularismos, não
servem para fundar sociabilidades maiores, que são as sociabilidades próprias à
sociedade pacífica e industrial
o
Em termos intelectuais, podemos indicar o
seguinte:
§
Antes de mais nada, houve a fundação da Religião
da Humanidade, sistematizando o conhecimento humano e permitindo e realizando a
regularização e a moralização desses conhecimentos (ciência, filosofia,
religião, arte, atividades práticas) em bases reais, humanas e relativas
§
Apesar desse importante acontecimento, a ciência
continuou com seu impulso absoluto, indiferente à sua destinação humana
§
Ao mesmo tempo, tendências metafísicas
particularistas ganharam espaço:
·
A psicanálise de Freud baseou-se no misticismo e
na metafísica alemãs para tentar explicar a subjetividade humana, mas, além dos
danos mentais causados em si pela metafísica, as noções de pansexualismo e de
inconsciente estimularam, como estimulam, a desconfiança no ser humano
·
O marxismo, com suas infinitas correntes
propositalmente “críticas”, estimulou (como estimula) o ódio entre as classes e
os países e, daí, considera que tudo o que não é “proletário” é vil, enganador,
mentiroso; além disso, a equívoca noção de “materialismo histórico” nega a
realidade da moralidade
o
O marxismo é ambíguo a respeito da natureza
humana: genericamente o ser humano é bom, mas só após a revolução comunista essa bondade manifestar-se-á
o
As desconfianças, o padrão crítico, o grande
esquema histórico baseado na luta de classes: isso e muito mais serve de
exemplo permanente para outros movimentos metafísicos e críticos, como o
identitarismo negro de origem estadunidense e, ainda mais, o identitarismo
feminista
·
Concepções irracionalistas, por vezes mais
próximas da poesia e do misticismo que da ciência e da filosofia (como
Nietzsche), além de concepções anticientíficas (como as de Bergson e de Max
Weber) rejeitaram a possibilidade de estudos científicos do ser humano e de
filosofias gerais (e relativistas e humanas) sobre a realidade
o
Muitas dessas concepções irracionalistas
(incluindo aí nacionalismos e preconceitos de raça), não por acaso, nega(va)m a
paz e estimula(va)m a violência e/ou o culto à violência
o
Em termos práticos, tivemos o seguinte:
§
Além dos amplos, gerais e consistentes esforços
dos positivistas em todo o Ocidente em favor da paz, da concórdia, da
fraternidade internacional e interna aos países, houve inúmeros movimentos
pacifistas, internacionalistas, pela regularização das relações industriais
etc.
·
Podemos incluir aí alguns grupos anarquistas,
vários movimentos socialistas e mesmo alguns movimentos teológicos sensíveis às
condições de vida dos trabalhadores e das sociedades modernas
·
Os nacionalismos de independência, de modo
geral, também atuaram no sentido de melhorar as condições de vida, ao afirmarem
o respeito às particularidades culturais locais
§
Ocorreu também a difusão do republicanismo, ou
seja, da perspectiva humana e meritocrática na política, incluindo aí o
estabelecimento da separação entre igreja e Estado
§
Uma prática internacional baseada na diplomacia
de segredos (Bismarck) e da corrida colonial de prestígio
§
Afirmação de certos hábitos mentais e práticos burguesocráticos
o
Em suma: ao longo do século XIX tivemos grandes
e importantes desenvolvimentos da Humanidade, ou seja, na direção da
positividade, ao mesmo tempo que tendências metafísicas, críticas e destruidoras
mantiveram seus ímpetos
o
O grande período de clivagem é a I Guerra
Mundial (1914-1919), ou melhor, a II Guerra dos 30 Anos (1914-1945)
Os trechos abaixo, destacados em
caixas, foram omitidos em linhas gerais na exposição oral da prédica, pois
alongariam demais essa exposição oral; ainda assim, são observações úteis para
a presente reflexão e, portanto, mantêm-se nestas anotações.
§ A II Guerra dos 30 Anos é
composta por três fases: I Grande Guerra (1914-1919), Período de Paz Armada
(1919-1939) e II Grande Guerra (1939-1945)
§ Para o que nos interessa, os
períodos mais importantes são o da I Grande Guerra, que matou gerações de
positivistas, e o Período da Paz Armada, que estimulou e deu livre curso às
piores tendências negativas anteriores a 1914 (nacionalismo xenofóbico,
irracionalismo, culto à violência, preconceitos de raça etc.)
·
A I Guerra apresentou uma dinâmica nova, em que os soldados ficavam
meses a fio nas trincheiras, sob a tensão constante dos combates, sujeitos a
ataques violentos e muito agressivos
·
Essas tendências, como se sabe, consubstanciaram-se em movimentos
sociais como o comunismo (com as Revoluções Russas em 1917), o fascismo (com a
Marcha sobre Roma, em 1922), o nazismo (desde 1922, no poder desde 1933) e
diversos outros movimentos autoritários (Frente Nacional na França, franquismo
na Espanha, Estado Novo em Portugal etc.)
·
Esses movimentos, devido a seus conteúdos, na esteira da violência da I
Grande Guerra, puseram em suspeição as liberdades, o ideal de fraternidade etc.
o O mundo não ficou incólume a
isso: no Brasil tivemos a crítica à I República transformando-se em crítica
degradante ao republicanismo; houve o elogio mundial ao autoritarismo; o Japão
deu livre curso ao seu violento imperialismo no Leste Asiático etc.
·
A II Grande Guerra, além da sua violência própria, deu lugar ao chamado
“Holocausto”, com o genocídio praticado em escala e com métodos industriais
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A II Guerra dos 30 Anos estimulou movimentos irracionalistas,
autoritários, genocidas etc.; mas, no final das contas, foi um longo e
dolorosíssimo interregno entre aspirações altruístas, fraternas, pacifistas
etc.
o Um pequeno indicador desse
caráter de interregno é a constituição da Organização das Nações Unidas logo em
seguida ao conflito e cuja fundação foi acertada pelo menos desde o ano
anterior ao término da guerra
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Com o término da II Guerra dos 30 Anos, alguns movimentos positivos
voltaram à ação; mas, ao mesmo tempo, elementos críticos também mantiveram seu
curso
o Um pouco do sentimento de
esperança vigente antes da II Guerra dos 30 Anos foi recuperado após o
conflito: novamente, a fundação da ONU e do sistema ONU é parte disso, assim
como outros movimentos que tiveram lugar nas décadas seguintes: o
reconhecimento e o repúdio aos crimes do nazismo; o desenvolvimento do Welfare State; o impulso para o
desenvolvimento econômico e social; mais importante, a descolonização da África
e da Ásia (iniciada em 1947 com a independência da Índia)
o A Guerra Fria (1947-1991),
baseada na disputa entre Estados Unidos e União Soviética, refletindo uma
oposição ao mesmo tempo geopolítica e “ideológica”, teve um caráter ambígüo em
termos da esperança e do progresso:
§ Por um lado, os
países-líderes difundiam a esperança nas próprias perspectivas (limitadas em si
mesmas) e degradavam as perspectivas rivais
§ Por outro lado, o aspecto de
guerra por procuração entre as superpotências conduziu a uma instabilidade
marcada nos países periféricos, que, a partir dos anos 1950, logo se converteu
em golpes militares
§ O advento da televisão, da
mentalidade “pós-materialista” no Ocidente e de guerras que se tornaram cada
vez mais difíceis de serem justificadas (Vietnã para os Estados Unidos,
Afeganistão para a União Soviética, mesmo Vietnã para a China) minaram a
confiança internacional nas superpotências
o Alguns outros aspectos podem
ser indicados:
§ A reflexão sobre o
Holocausto conduziu muitas pessoas a decretarem, pura e simplesmente, que a
esperança na Humanidade e que a noção de progresso são ilusões, que devem ser
descartadas e substituídas por um severo “realismo” – que, no final das contas
e na prática é muito próximo do cinismo
§ Além disso, a partir dos
anos 1960 a chamada “contracultura”, que já vinha desde a década anterior,
atuou sistematicamente para minar todos os valores do Ocidente, evidenciando o
caráter metafísico do seu irracionalismo, do seu amoralismo e da violenta
ruptura entre gerações
§ O marxismo manteve sua
atuação crítica, por meio de suas inúmeras metamorfoses, pró, anti, cripto ou
parassoviéticas, mas todas elas afirmando os aspectos metafísicos dessa
filosofia: a luta de classes e a desconfiança social erigida em princípio
normativo, a degradação da moral via sua redução a interesses de classes, a
rejeição de toda concepção que não seja marxista (ou que não seja da própria
seita), o particularismo proletário-marxista – além do culto à violência,
presente hipocritamente em Marx e repetido de diversas maneiras em muitas das
suas seitas derivadas
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O fim da Guerra Fria deu novo alento à noção de progresso, mas sua
vinculação à metafísica triunfalista do liberalismo dos EUA, somada à crítica
metafísica marxista, conduziu a um novo descrédito da noção de progresso e da
esperança
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Nas últimas duas décadas, duas correntes metafísicas têm tido grande
sucesso, ambas contrárias à esperança e ao progresso:
o A metafísica mística do
tradicionalismo, altamente retrógrada e vigente, por exemplo, no Leste Europeu
e na Rússia
o A metafísica irracionalista,
agressiva e particularista do identitarismo, que se difunde a partir dos
Estados Unidos e, graças ao servilismo intelectual próprio às “elites”
intelectuais brasileiras, tem tido grande sucesso em nosso país
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A maior parte deste relato foi uma exposição
histórica de como a bela idéia do progresso atuou no século XIX e no começo do
século XX, mas viu-se combatida e combalida no século XX, com uma seqüência no
século XXI
o
Os problemas enfrentados por essa concepção
ligam-se, então, a movimentos autoritários, violentos, (ir)racionalistas do
começo do século XX, bem como ao impulso irracionalista e crítico de intelectuais,
a maior parte dos quais são academicistas
o
Aqui é necessário afirmar com clareza: os
hábitos academicistas estimulam a criticidade antiprogressista e
antiesperançosa como virtude moral e intelectual, como suposta marca de
superioridade intelectual
§
Essa criticidade pode ser vista na metafísica
dos marxistas e também na metafísica dos místicos
-
Entretanto, ninguém – ninguém! – vive sem esperança, ao mesmo tempo em que todos – todos! – alimentam noções de progresso
o
A esperança e o progresso são alimentados por
todos mesmo que só de maneira implícita, muitas vezes sem que reconheçam (mesmo
para si próprios) essas concepções
o
Todos afirmamos a esperança porque todos
precisamos considerar que as coisas vão melhorar; assim, essa é uma questão de
saúde mental
o
A noção de que as coisas vão melhorar implica,
necessariamente, a noção de progresso, isto é, de desenvolvimento e de
aperfeiçoamento material, físico, intelectual e moral
o
Só é possível haver progresso a partir das leis
naturais, do relativismo, do subjetivismo, do historicismo próprios à Religião
da Humanidade
§
Assim, só é possível haver esperança verdadeira
nos quadros do Positivismo
-
No século XIX Augusto Comte reconhecia a
validade moral, intelectual e mesmo artística das utopias
o
Na verdade, Augusto Comte afirmava mesmo que as
utopias são um gênero literário moderno!
o
Nas últimas décadas – talvez desde os anos 1970
– em vez de utopias o que temos são as chamadas “distopias”
o
As “distopias” são idealizações invertidas, em
que não se apresentam quadros da boa sociedade, mas das más sociedades
o
As distopias são produzidas por estúdios de cinema e TV que querem ganhar muito
dinheiro com a degradação humana e são consumidas
avidamente pelo Ocidente e, daí, pelo resto do mundo
§
Deveria ser evidente – mas a indústria cultural
finge que não é – que as distopias alimentam o cinismo, a desconfiança, o
isolamento, o egoísmo, o irracionalismo, o imoralismo
o
Assim, é necessário – com urgência e convicção –
deixarmos de lado as degradantes "distopias", que no final servem apenas para a “indústria
cultural capitalista”, e retomarmos as utopias
o
A retomada
das utopias vincula-se intimamente à retomada das noções de esperança e de
progresso
§
A retomada
dessas noções fará bem para a saúde mental de cada um de nós; dará uma
destinação social e altruísta clara para cada um nós; permitirá que os urgentes
problemas sociais que vivemos sejam solucionados (ou, pelo menos, encaminhados)