O texto abaixo corresponde a uma versão editada de um diálogo que ocorreu entre os dias 12 e 14 de maio de 2025, em um grupo do Whattsapp que trata do Positivismo e da Religião da Humanidade. Esse diálogo foi motivado por um participante do grupo, um jovem estudante interessado no Positivismo, que, em meio às conversas do grupo, teve uma dúvida sobre as visões religiosas. As respostas foram dadas inicialmente por Hernani Gomes da Costa e depois por Gustavo Biscaia de Lacerda.
O diálogo sofreu algumas edições – com dois objetivos principais: por um lado, adequar a conversa a uma versão publicada; por outro lado, preservar a privacidade do estudante.
* * *
Estudante ***
Amigos
positivos, boa tarde a todos. Tenho mais um tema/pergunta que me parece muito
interessante e que com certeza tem muito a ser dito.
Como
interpretar positivamente visões religiosas (como as aparições de santos e espíritos,
sonhos religiosos e demais experiências místicas)? Como o Positivismo iria
lidar se, por exemplo, durante uma oração eu tivesse uma visão mística da Deusa
Humanidade e de Comte? (Uma situação hipotética.)
Hernani
Bom
dia, ***!
Um
dos propósitos do culto positivo, e o seu resultado interior mais expressivo,
consiste justamente nisso: reavivar, pela imaginação, os nossos mortos queridos
até o ponto de eles apresentarem-se diante de nós com uma intensidade próxima
àquela das nossas contemplações objetivas usuais.
A
chamada visão mística só é mística segundo a interpretação teológica que dela
se faz.
Para
nós, positivistas, trata-se ao contrário de um fenômeno alucinatório,
subjetivo, normal, desejável e mesmo frequente, se considerarmos os sonhos e as
imagens hipnagógicas e hipnopômpicas que nos surgem no limiar da vigília ou do
sono.
Frequentes
na criação artística e mesmo científica, essas imagens subjetivas avivadas e
exaltadas pelo exercício regular do culto, sobretudo íntimo, são para nós o
equivalente subjetivo daquilo que os místicos creem vir de fora, segundo o
espírito objetivista e absoluto de sua fé.
Essa
deve ser, aliás, segundo Augusto Comte, a
única diferença essencial entre as nossas visões e a dos místicos: nossos
mortos chegam-nos de dentro, a partir de nós, por evocação, ao passo que para os místicos eles chegam de fora, por invocação.
Augusto
Comte, por exemplo, via Clotilde de Vaux e dirigia-se a ela em suas orações e
visões – que, aliás, ficavam, com a prática, cada vez mais vivas e nítidas sem
que jamais fossem temidas ou confundidas com algo externo.
Nossos
mortos habitam subjetivamente nossa imaginação, constituindo dessa forma
realidades íntimas tão existentes a seu próprio modo quanto pode ser a mais bem
constatada existência corpórea.
Estudante ***
Há
algum material onde eu posso ler mais sobre essas experiências subjetivas no Positivismo?
E onde possa ler mais sobre as visões de Comte?
Hernani
***,
a parte do Catecismo positivista
referente ao culto íntimo contém as indicações fundamentais sobre esse assunto
(são a terceira e, principalmente, a quarta conferência do Catecismo).
Gustavo
***:
bom dia. Sobre as visões de Comte, uma outra indicação é a belíssima obra de
Teixeira Mendes, O ano sem par[1].
Complementando
a resposta do Hernani: um outro aspecto que diferencia as visões positivistas
das dos místicos é que nós reconhecemos que as visões são subjetivas (o que,
como o Hernani indicou, não é ruim, mas algo a ser valorizado), ao passo que
para os místicos as visões são objetivas; isso equivale aos termos usados pelo
Hernani, respectivamente de visões “internas” e “externas”.
Além
disso, é importante notar que todos nós, seja ao longo da vida, seja ao
longo do dia, variamos nossas
contemplações e nossas reflexões entre maior objetividade e maior
subjetividade; é um fluxo constante e necessário, sem que possamos fixar-nos em
apenas um polo. “Sem que possamos”: isso significa que não podemos, sob risco
de loucura (seja a loucura propriamente dita, no caso do excesso de
subjetividade, seja a idiotia, no caso de excesso de objetividade). Nessas
variações, Augusto Comte recomendava que nos concentremos na imagem média, que
deve ser entendida como a imagem normal; essa imagem normal, resultante da
contemplação objetiva, deve ser preponderante sobre as imagens puramente
subjetivas. Essa noção da imagem normal é a garantia da sanidade; mas, como
comentamos antes, isso não equivale a negar o fluxo entre
os polos objetivo e subjetivo nem a negar as visões positivas.
A
noção de imagem normal está “codificada” na Filosofia Primeira[2]
(que pode ser consultada no Catecismo
positivista, na sexta conferência, dedicada ao dogma, na parte das ciências
inferiores[3]);
ela é explicada longamente e com o cuidado habitual por Teixeira Mendes no As últimas concepções de Augusto Comte[4].
Eis
as leis da Filosofia Primeira que tratam do assunto:
SEGUNDO GRUPO, essencialmente subjetivo
1ª série: leis estáticas do entendimento
1ª Subordinar as
construções subjetivas aos materiais objetivos (Aristóteles, Leibnitz, Kant)
(IV)
2ª As imagens interiores
são sempre menos vivas e menos nítidas que as impressões exteriores (V)
3ª A imagem normal deve
ser preponderante sobre as que a agitação cerebral faz simultaneamente surgir
(VI)
[1] As referências desse livro são
estas: Raimundo Teixeira Mendes, O ano
sem par, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900.
Ele está disponível em PDF aqui: https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-o-ano-sem-par-portug./Raimundo%20Teixeira%20Mendes%20-%20O%20ano%20sem%20par%20%28Portug.%29/.
[2] O nome completo é “Quadro das
quinze leis de filosofia primeira, ou princípios universais sobre os quais
assenta o dogma positivo”.
[3] Fonte: Augusto Comte. 1934. Catecismo positivista ou sumária exposição
da Religião da Humanidade. 4ª ed. Rio de Janeiro: Apostolado Positivista do
Brasil, p. 479.
[4] As referências desse livro são
estas: Raimundo Teixeira Mendes, As
últimas concepções de Augusto Comte, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do
Brasil, 1898. Ele está disponível em PDF, em duas partes, aqui:
- Parte 1: https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-ultimas-concepcoes-de-augusto-comte-i
- Parte 2: https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-ultimas-concepcoes-de-augusto-comte-ii