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04 outubro 2024

Live AOP com Felipe Zorzi: "Educação e política: uma reflexão sobre socialização de jovens cidadãos no Brasil"


No dia 25 de Shakespeare de 170 (3.10.2024) realizamos uma Live AOP com Felipe Zorzi, que apresentou o tema "Educação e política: uma reflexão sobre socialização de jovens cidadãos no Brasil".
A exposição baseou-se no artigo "Brasil, um sistema social diante do caos: socialização política desigual de estudantes brasileiros durante a pandemia de covid-19", publicado na revista Debates (Porto Alegre, v. 17, n. 2, 2023), disponível aqui: https://seer.ufrgs.br/index.php/debates/article/view/133610.
A Live AOP foi transmitida no canal Positivismo e está disponível aqui: https://l1nq.com/EBquM.
Os tempos da exposição são os seguintes: 00:00 - início da Live AOP 05:50 - começo da exposição de Felipe Zorzi 01:11:06 - debate 02:09:53 - término da Live AOP

23 maio 2024

Cidadania, confiança, responsabilidade

As citações abaixo, extraídas da undécima conferência do Catecismo positivista, dedicada ao regime público, apresentam toda uma densa filosofia política que impressiona por seu realismo, seu respeito à dignidade humana e sua antecipação radical dos mais profundos desejos políticos atuais. Não por acaso, Augusto Comte soube ver através das disputas políticas e sociais tão tristemente características da nossa época e que opõem direita e esquerda, retrógrados e revolucionários, tradicionalistas, ultraliberais, comunistas e democráticos.

Alguns esclarecimentos. O Catecismo positivista foi escrito por Augusto Comte em 1852 como um livro de explicação e divulgação do Positivismo, ou melhor, da Religião da Humanidade; ele foi escrito na forma de diálogos entre um sacerdote e u’a mulher. Os textos abaixo foram extraídos da quarta edição, de 1934, da tradução brasileira, originalmente de 1895, feita por Miguel Lemos, fundador da Igreja e Apostolado Positivista do Brasil. Na estrutura do Catecismo subjaz a concepção da tríplice natureza humana, em que o ser humano organiza-se em sentimentos, em idéias e em atividade prática: para regular e estimular cada uma dessas partes, a religião organiza-se por sua vez, respectivamente, em culto, em dogma e em regime. O culto e o regime, por sua vez, organizam-se em privados e públicos: os privados são individuais e domésticos, ao passo que os públicos referem-se à vida coletiva “nacional” (ou extradoméstica).

Para facilitar o entendimento de cada uma das citações abaixo, incluímos títulos; esses títulos não devem ser entendidos como esgotando as idéias presentes em cada uma das citações. São estes os três títulos: (1) “Dedicação dos fortes pelos fracos; veneração dos fortes pelos fracos”; (2) “Confiança e responsabilidade”; (3) “Todos os cidadãos são funcionários sociais”.

Embora os trechos sejam mais ou menos autoexplicativos, alguns esclarecimentos e observações adicionais podem ser úteis.

Antes de mais nada, deve-se notar que os nossos hábitos contemporâneos – amplamente metafísicos – consagram o entendimento de que não se deve confiar nos governantes, ou seja, que os governantes são por definição irresponsáveis, egoístas, mesquinhos. É claro que isso pode acontecer concretamente e que, de fato, infelizmente ocorre com freqüência. Todavia, não se pode assumir por princípio que os governantes terão esse comportamento reprovável e desprezível; é o contrário o que deve ser pressuposto: deve-se pressupor que os governantes merecem a nossa confiança. O pressuposto de que os governantes terão um comportamento reprovável serve para cinicamente legitimar e justificar esse comportamento reprovável, ou seja, esse pressuposto acaba atuando no sentido contrário do que supostamente denuncia; além disso, é bastante claro que pressupor que os governantes não merecem confiança torna sem sentido qualquer reclamação de que os governantes, por qualquer motivo, não merecem confiança. Também se deve notar que não é porque algum ideal é freqüentemente desrespeitado que ele deixa de ser válido por si só. Por fim, esse ideal não é somente moralmente correto: ele também se baseia na natureza das coisas, ou seja, ele baseia-se na realidade sociológica.

Essas considerações todas aplicam-se tanto à realidade política quanto à realidade econômica. Quando Augusto Comte fala em “superiores” e “inferiores”, ele não se refere à qualidade moral das pessoas, mas à sua situação social; em outras palavras, os superiores são aqueles que estão em cima e têm poder, ao passo que os inferiores são os que estão embaixo e não têm (ou têm menos) poder.

Em segundo lugar, a referência aos “dois poderes” e à sua separação considera o poder que muda o comportamento a partir do aconselhamento, da opinião e dos valores, ou seja, subjetivamente, que é o poder Espiritual, e o poder que modifica o comportamento impondo essa modificação, ou seja, objetivamente, que é o poder Temporal. De maneira mais simples, eles correspondem respectivamente ao sacerdócio e ao governo propriamente dito. A teoria política e social do Positivismo consagra a separação entre ambos como um dos fundamentos da política moderna.

Em terceiro lugar, a idéia de que todos são “funcionários sociais” não deve ser confundida com a concepção comunista e liberal de que todos seriam “funcionários públicos” (ou, por outra, funcionários do Estado). A preocupação de Augusto Comte é em valorizar o altruísmo e as preocupações de todos para com todos; ao contrário do que a mentalidade moderna e burguesa propõe, as atividades individuais não são estritamente pessoais, no sentido de servirem apenas para satisfazer necessidades pessoais e egoísticas. Todas as atividades têm um objetivo coletivo e são as necessidades sociais que devem ser atendidas. É por isso que a riqueza tem origem social e é por isso que a riqueza tem que ter uma destinação social. Assim, sem negar a existência do âmbito privado e doméstico, o Positivismo rejeita a concepção moderno-burguesa que opõe de maneira sistemática e rígida o público e o privado: eles não são âmbitos duros, estanques e antinômicos, mas são acima de tudo complementares: a vida individual e doméstica prepara-nos para a vida pública e esta corrige os defeitos daquela.

Para concluir: todas essas concepções baseiam-se em um exame detido da realidade sociológica, histórica e antropológica do ser humano. Ao mesmo tempo em que elas baseiam-se em estudos sociológicos, elas têm em mira objetivos sociais, políticos e morais bastante claros, em particular, como já indicamos, ultrapassar as disputas entre reacionários e revolucionários, entre direita e esquerda, entre ordem e progresso – disputas tão tristemente próprias ao Ocidente dos últimos vários séculos. A teoria política ocidental, profundamente marcada (e consciente e intencionalmente marcada) pelas disputas oscilatórias dos últimos séculos, com grande dificuldade, com grande esforço, apenas atualmente consegue elevar-se um pouco da superficialidade dessas disputas e, por meio da noção de “cidadania”, aproximar-se de concepções mais amplas, mais profundas e mais saudáveis como as que Augusto Comte apresentou, com assombrosa antecipação, cerca de 170 anos atrás. 

*          *          * 

(1) “Dedicação dos fortes pelos fracos; veneração dos fortes pelos fracos”

“O SACERDOTE – O regime público consiste todo ele, minha filha, em realizar dignamente esta dupla máxima: Dedicação dos fortes pelos fracos; veneração dos fortes pelos fracos. Nenhuma sociedade pode perdurar se os inferiores não respeitarem os superiores. Nada confirma melhor semelhante lei do que a degradação atual, em que, por falta de amor, cada um não obedece senão à força; se bem que o orgulho revolucionário deplore o pretendido servilismo de nossos antepassados, que sabiam amar seus chefes. A segunda parte dupla condição social é, pois, comum a todos os tempos. Mas a primeira não foi realmente introduzida senão na Idade Média; pois que toda a Antigüidade, salvo felizes exceções pessoais, pensava de modo diverso, como o atesta seu aforisma predileto: Paucis nascitur humanum genus[1]. Assim, a harmonia pública repousa sobre a atividade dos dois melhores instintos altruístas, respectivamente apropriados aos inferiores [veneração] e aos superiores [bondade] em suas mútuas relações. Todavia, este concurso só pode surgir e persistir nas almas assaz preparadas por um hábito suficiente da mais enérgica, conquanto a menos eminente [apego], das três inclinações simpáticas mediante um justo surto dos afetos domésticos.

Tal solução reside inteiramente na separação fundamental entre os dois poderes espiritual e temporal. Não é possível assegurar a dedicação dos fortes aos fracos senão pelo advento de uma classe de fortes que só possa obter ascendente social devotando-se aos fracos, em virtude da livre veneração destes. É assim que o sacerdócio se torna a alma da verdadeira sociocracia. Mas isto supõe que ele se cinja sempre a aconselhar, sem nunca poder mandar” (Comte, 1934, p. 358-359)

 

(2) “Confiança e responsabilidade”

“O SACERDOTE – [...] Todas as complicações sociais inspiradas pela desconfiança não conduzem realmente senão à irresponsabilidade. Confiança inteira e plena responsabilidade, tal é o duplo caráter do regime positivo” (Comte, 1934, p. 363)

 

(3) “Todos os cidadãos são funcionários sociais”

“A MULHER – [...] Erigindo todos os cidadãos em funcionários sociais, em virtude da utilidade real de seus ofícios respectivos, o positivismo nobilita a obediência e consolida o comando. Em vez de ter um simples destino privado, cada atividade sente-se honrada pela sua digna participação no bem público. Ora, para obter esta salutar transformação, o sacerdócio nunca precisará suscitar um entusiasmo excepcional. Bastar-lhe-á sempre fazer prevalecer por toda parte uma exata apreciação das realidades habituais” (Comte, 1934, p. 366)

 



[1] Nota de Miguel Lemos: “Paucis nascitur humanum genus” (Lucano, Farsália, livro 5º, v. 343): “O gênero humano vive para um pequeno número de homens”. 

26 setembro 2023

Sobre títulos e tratamentos

No dia 17 de Shakespeare de 169 (26.9.2023) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua "Oitava conferência", dedicada à filosofia das ciências superiores (Sociologia e, acima de tudo, Moral).

Em seguida, fizemos nosso sermão a respeito dos títulos e dos tratamentos pessoais.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://acesse.dev/cLT8S) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/KTD6m). O sermão começa em 46' 47".

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Sobre títulos e tratamentos pessoais 

-        Em termos de relações pessoais e cívicas, a respeito dos pronomes de tratamento e do uso de títulos honoríficos, o Positivismo aplica alguns princípios muito claros e determinados e a regra é: não os usar

o   A base para tal procedimento é a fraternidade universal e a valorização do mérito individual, em um ambiente republicano

o   Em outras palavras, trata-se de realizar a sociocracia nas relações pessoais e cívicas

-        Em algum lugar – cito de memória, pois não consegui recuperar onde li essa bela passagem –, Augusto Comte observa que todos devemos tratar-nos por “senhor” (messieur, em francês), mas subentendendo nessa expressão o título de “cidadão” (citoyen, em francês)

o   A regra é usar “senhor” e também suas variações, como “senhora”, “senhorita”, “senhores” etc.

o   Adicionalmente ao uso de “senhor”, a prática positivista também indica a profissão de cada cidadão: “operário”, “professor”, “médico”, “apóstolo” etc.

-        Essas expressões (“senhor”, “cidadão”) têm uma vinculação inequívoca com a Revolução Francesa e com o seu duplo programa (a abolição da monarquia e do Antigo Regime; a constituição de novas sociedade e sociabilidade)

o   O emprego da expressão “senhor”, no século XIX, apesar de depurada pela Revolução Francesa, possuía ainda um certo elemento feudal, no sentido de que “messieur” referia-se antes aos nobres – daí a necessidade, de qualquer maneira justificada, de reforçar que o elemento “cidadão” deve estar subentendido

o   Na Revolução Francesa e no início da República no Brasil, era muito comum empregar-se o “cidadão” para referir-se aos vários indivíduos: “cidadão Teixeira Mendes”

-        Em todo caso, o que importa notar é que o emprego de “senhor” é uma forma respeitosa e simples de tratar os demais, sem reproduzir as fórmulas habituais: “vossa/sua excelência”, “vossa/sua alteza” etc. etc.

o   Evidentemente, ainda mais que os pronomes de tratamento, a regra sociocrática rejeita o uso dos títulos nobiliárquicos e das comendas: “barão”, “duque”, “marquês” etc.; “membro da ordem X”, “comendador da ordem Y” etc.

o   Isso estabelece uma grande proximidade – quase um igualitarismo – entre as pessoas, tanto afetiva quanto sociopolítica

§  Essa proximidade era uma realidade vivida na Igreja Positivista do Brasil, tanto na época de Miguel Lemos e Teixeira Mendes quanto depois (até os anos 1990)

-        A presente regra é uma orientação geral; mesmo Augusto Comte usava títulos honoríficos ao dirigir-se a outras pessoas, como a dois de seus executores testamenteiros, o espanhol Don José Flores e o alemão Barão Constant-Rebecque

o   É claro que, mesmo usando essas fórmulas tradicionais, Augusto Comte era muito comedido nesse emprego

o   Da mesma maneira, esse emprego de fórmulas tradicionais evidencia o uso de outra regra positivista: “inflexível quanto aos princípios, conciliante de fato”

-        O uso de outros pronomes de tratamento e de títulos honoríficos serve, tanto no Brasil quanto em outros países, para adular, dar carteirada e literalmente discriminar:

o   É extremamente comum vermos documentos oficiais dirigidos a “Sua Excelência o sr. prof. dr. Joãozinho da Silva”, com uma enorme profusão de títulos e pronomes de tratamentos

o   Essa profusão é particularmente notável nas áreas jurídicas, seja em escritórios de advocacia, seja na Ordem dos Advogados do Brasil, seja no Ministério Público, seja nos muitos tribunais

o   O Decreto n. 9.758/2019 estabeleceu que, no âmbito do poder Executivo federal (Art. 1º, § 2º), só se pode usar “senhor” (Art. 2º) – não por acaso, excetuando expressamente todo o pessoal jurídico (Art. 1º, § 3º, inc. II)

-        Uma observação pessoal: muitas pessoas tratam-me por “professor”

o   Embora, evidentemente, o uso de “professor” para dirigir-se a mim seja feito com total boa vontade, boa fé, respeito e reconhecimento de (alguma) capacidade, o fato é que essa palavra é problemática por pelo menos dois motivos:

§  Por um lado, ela não corresponde à minha profissão (eu sou servidor público, ocupando o cargo de sociólogo)

§  Por outro lado, em termos de atuação positivista, não apenas não corresponde à atuação como, pior, ela diminui: eu sou um apóstolo da Humanidade e um sacerdote

o   Vejamos cada um dos âmbitos de atuação:

§  O professor é alguém que domina um assunto e expõe para seus alunos; então, todo apóstolo e sacerdote tem que ser, necessariamente, um professor; mas um professor não é, necessariamente, nem apóstolo nem sacerdote

§  O apóstolo é quem se dedica à difusão sistemática de uma doutrina; sua preocupação é intelectual mas também, e acima de tudo, moral e social; então um apóstolo é um professor, mas cuja atuação é mais ampla

§  O sacerdote (que apresenta os três graus: noviciado, vicariado, sacerdote pleno) é quem divulga uma doutrina, interpreta-a nos diversos casos e atua como educador, conselheiro, avaliador e consagrador; assim, a função sacerdotal abrange necessariamente as atuações como professor e como apóstolo, mas é superior a elas

-        Uma última observação, que faço apenas para não deixar em silêncio o tema em uma prédica dedicada a tratamentos pessoais:

o   Pessoalmente, sou contrário à chamada “linguagem neutra”, que busca abolir a golpes de marretada os gêneros na língua portuguesa e impor um suposto “gênero neutro”, por meio do emprego da terminação “e” nos casos de palavras masculinas (e exclusivamente masculinas) e/ou pelo emprego de “x”, “@”, “#”[1] etc.

o   Sou contra o emprego desse linguajar porque ele é inócuo; porque desrespeita os falantes e os leitores da língua portuguesa; porque é radicalmente contrário ao caráter histórico (e sociológico) da língua; porque é a manifestação lingüística do ultraparticularismo político e moral do identitarismo



[1] Uma curiosidade: o símbolo # em português chama-se “cerquilha”.

30 junho 2020

Aforismos sociológicos IX


Aforismos sociológicos IX

 

§ 1º – Sobre tolerância e sociedades livres na época das “redes sociais”

 

Um dos aspectos centrais das sociedades contemporâneas é a noção de “tolerância”, isto é, de respeito mútuo entre os vários indivíduos e, em particular, entre as várias concepções sobre a realidade e a sociedade. Relacionam-se, portanto, disposições individuais e concepções de mundo, em que, por um lado, temos indivíduos que aceitam mais facilmente outras perspectivas e concepções que propõem maior abertura para outras concepções; por outro lado, há indivíduos que aceitam com maior dificuldade ou que não aceitam outras perspectivas, da mesma forma que há concepções que rejeitam outras concepções. Da mesma forma, há muitos casos intermediários, em que há a aceitação em determinadas situações e a rejeição em outras[1].

O que importa notar, de qualquer maneira, é que as sociedades contemporâneas – ou, sendo mais específico: as sociedades modernas, influenciadas pela evolução histórica européia, que se caracterizam pelo pluralismo social, político, filosófico e religioso, pelo relativismo científico, pela separação entre igrejas e Estado, pelas liberdades de pensamento, expressão e associação – têm como uma de suas características fundamentais a tolerância. Esse fato não deixa de corresponder à clássica situação em que uma necessidade torna-se virtude: considerando o momento central na história européia das guerras religiosas, a tolerância mútua foi o mecanismo encontrado para que as guerras civis e internacionais cessassem e os grupos pudessem conviver com um mínimo de harmonia; desse imperativo político a tolerância tornou-se uma virtude social[2].

Independentemente de discordâncias filosófico-religiosas e políticas, vale notar que a mera e inescapável ocorrência das idiossincrasias pessoais já é um fator que exige a tolerância; afinal, cada pessoa tem suas particularidades, devidas aos mais variados fatores: formação genética, ambiente familiar, ambiente escolar, vicissitudes da vida, redes de relacionamento, religião professada, país e época em que vive etc. Nessa combinação infindável de fatores, cada um tem seu temperamento, que, dentro de determinados limites[3], tem que ser respeitado – isto é, tem que ser tolerado.

Também é importante afirmar que tolerar não é concordar: tolerar é aceitar o diferente, mesmo – e principalmente – não gostando dele; em última análise, a tolerância consiste em resignar-se (contrafeito ou não) com a existência de grupos e idéias diferentes das próprias. Assim, criticar não é ser intolerante: a crítica integra o quadro geral de liberdades de pensamento e de expressão; quem é criticado tem o direito de responder às críticas e pode, igualmente, replicar a quem o criticou inicialmente. A crítica, se mantida no âmbito das palavras e das idéias, ainda está no quadro da tolerância; mas pregar a destruição – isto é, o fim por meios violentos do que é considerado diferente – e, ainda mais, passar à ação concreta, isso é ser intolerante[4].

O ideal da tolerância é cada vez mais respeitado – pelo menos no Ocidente – desde as guerras de religião, dos séculos XVI e XVII; no século XVIII o Iluminismo tornou-o um elemento central de reflexão e da prática política, o que felizmente continuou no século XIX e também no começo do século XX. Entretanto, após 1918, as profundas e nefastas conseqüências da I Guerra Mundial conduziram inúmeros países a deixarem de lado esse ideal e a erigirem o desprezo sistemático por outras religiões e grupos sociais (os “judeus”, os “negros”, os “burgueses”, os “capitalistas”, os “comunistas” etc.) como fundamento de sua afirmação política, com as piores e mais detestáveis conseqüências sociais e políticas. Ainda assim, com o término da II Guerra dos 30 Anos, em 1945, a tolerância foi recuperada, sendo um dos fundamentos por exemplo da Organização das Nações Unidas; o fim da Guerra Fria, a desintegração do bloco comunista e a vitória das democracias liberais pareciam sacramentar a tolerância como princípio sociopolítico no final do século XX.

A década de 2010 introduziu um novo elemento que mudou completamente a forma como a tolerância vinha sendo entendida – no caso, a internet e, de modo mais específico, as chamadas “redes sociais”. Sugerimos as seguintes características como explicativas do estímulo das redes sociais à intolerância:

1)      imediatismo das reações;

2)      isolamento físico dos indivíduos que “interagem” eletronicamente;

3)      ausência de relações pessoais face-a-face;

4)      constituição de grupos (ou redes) temáticas e por afinidades em bolhas, que excluem perspectivas diferentes;

5)      ausência de mediação moral, intelectual e política na constituição das redes e das bolhas.

A maior parte – se não a totalidade – dessas características não é novidade para quem presta atenção aos efeitos sociais e políticos das redes sociais. O conjunto acima resulta em um quadro terrível, em que indivíduos fisicamente isolados interagem apenas eletronicamente, à distância, com outros indivíduos, com assombroso imediatismo; as reações são exatamente isso, reações imediatas, não pensadas, não pesadas, não avaliadas. O relacionamento pessoal de caráter físico perde-se, mas não é somente isso que se vai: a enorme riqueza que as relações pessoais trazem deixa de existir, como os mecanismos não escritos de comunicação (gestos, expressões, tons de voz, movimentos corporais). Ainda há mais que se perde: o relacionamento face-a-face impõe limitações à expressão de cada um; frente a diferentes indivíduos, cada um avalia, mesmo que implicitamente, mesmo que inconscientemente, se o que falará é conveniente, se é respeitador, se será bem entendido etc. Essas avaliações contextuais correspondem a um aspecto importante do aprendizado moral e social de todos os indivíduos; quem não sabe lidar com elas é entendido como problemático, assim como, inversamente, aqueles que instrumentalizam sem maiores preocupações morais são vistos como doentes. Ora, nas redes sociais a avaliação contextual da comunicação é jogada fora; em vez de cada indivíduo deparar-se concretamente com uma outra pessoa que conjuga na sua frente uma subjetividade que se expressa a cada movimento com uma objetividade física, nas redes sociais os indivíduos a todo momento relacionam-se apenas com abstrações; essas abstrações, por sua vez, devido ao imediatismo das reações e ao contínuo da participação nas redes, acabam tornando-se um espelho do próprio indivíduo que reage.

O afastamento físico entre as pessoas não é em si o mais problemático; antes da internet, as pessoas comunicavam-se à distância, por meio de cartas, de telegramas, de livros: ocorre que esses instrumentos impunham, ou impõem, uma reflexão prévia para suas respostas. O elemento do imediatismo é posto de lado.

Os quatro elementos iniciais indicam que as redes sociais estimulam poderosamente as paixões; nesse sentido, essas paixões, desenvolvidas sem freios, rejeitam a tolerância. Surge aí o quinto elemento, a ausência de mediação moral, intelectual e política. Tanto o isolamento físico quanto o imediatismo das reações levam a que os indivíduos reajam exprimindo apenas o que está em suas cabeças; como os relacionamentos pessoais e a reflexão meditada sobre os temas são deixados de lado, os indivíduos dão livre curso aos seus instintos imediatos; correndo o risco de ser pleonástico, os indivíduos tornam-se cada vez mais individualizados, as pessoas tornam-se cada vez mais isoladas. Ora, nesse isolamento, há a perda do que Augusto Comte chamava de “poder Espiritual”, isto é, daquelas pessoas e daquelas estruturas sociais responsáveis pela disseminação de valores e idéias, bem como pelo aconselhamento moral de cada um. Essa perda de importância do poder Espiritual pode ser demonstrada mesmo pela virulência com que os indivíduos reagem mesmo contra os “gurus” que costumam incitar as paixões nas redes sociais: deixados entregues às suas próprias e piores paixões, os indivíduos não toleram que os seus próprios gurus imponham limites às suas paixões.

Bem vistas as coisas, o que as redes sociais têm feito é realizar no início do século XXI vários dos maiores temores que pensadores do século XIX (como Gustavo le Bon) e do século XX (como José Ortega y Gasset) tinham a respeito da democracia. Tais pensadores não eram propriamente contra a democracia, isto é, contra as liberdades; mas eles temiam muito que indivíduos entregues a si mesmos e às suas paixões produziriam os piores resultados possíveis: espírito de manada, (suposta) auto-suficiência – e, para o que nos interessa, intolerância.

Ortega y Gasset chamava esse gênero de ser humano de “homem-massa”, que se sente confortável em sua ignorância e, assim, não hesita em emitir “opiniões” sobre as questões mais variadas, em particular aquelas sobre assuntos sobre os quais não conhece. Esse homem-massa não é necessariamente o popular, o comum do povo, pois os especialistas também se comportam como massa; aliás, muitas vezes, justamente porque são especialistas em uma determinada área (particularmente áreas técnicas), muitos profissionais, e mesmo cientistas, consideram-se capacitados e autorizados a opinar sobre aquilo que desconhecem. A política, como se refere a todos os cidadãos, é especialmente atingida pela ação dos homens-massa; da mesma forma, a cada vez maior politização, ou a radicalização política, intensifica esses aspectos.

Augusto Comte, por seu turno, observava que o fundamento filosófico desse comportamento é o dogma da liberdade absoluta de consciência; mais uma vez, a arrogante e auto-suficiente pretensão de poder opinar sobre tudo sem a devida preparação (filosófica, teórica e, acima de tudo, moral). Os integrantes dessas bolhas, como observamos há pouco, adotam um comportamento ambíguo a respeito dos seus líderes: na medida em que os líderes estimulam os instintos agressivos e de manada, eles são seguidos; mas caso esses líderes destoem do comportamento projetado pelos aderentes, a adesão falha ou simplesmente é suspensa. Nesse sentido, os líderes têm um papel principalmente negativo, ao estimularem os instintos agressivos e de manada; a efetiva orientação positiva – que consiste no estímulo à moderação, à reflexão, à ação prudente, fraterna e esclarecida – é desprezada[5].

O problema aqui não são as liberdades de expressão e de pensamento; também não é o desejo de manifestar-se sobre qualquer assunto. O problema central é a arrogância, cada vez mais generalizada e estimulada pelas redes sociais, de que basta ter a possibilidade de escrever alguma coisa em redes sociais para que isso seja considerado “opinião” fundamentada. Aliás, é também a arrogância que justifica e é justificada pela confusão de que basta todos terem “sentimentos” (desejos, anseios etc.) para que tais “sentimentos” sejam convertidos imediatamente em opiniões. Como observamos antes, a política, em particular, padece desse problema, na medida em que, como vivemos em sociedades republicanas, todos têm o direito de manifestarem-se sobre os assuntos da polis, mesmo que não entendam desses problemas. A dificuldade que vivemos, o temor expresso pelo conceito de “homem-massa”, é quando o direito de manifestar-se sobre os assuntos da polis converte-se em dever de manifestar-se; é quando a manifestação apesar da ignorância sobre os assuntos torna-se manifesta-se devido à ignorância sobre os assuntos. E, claro, a ignorância sobre os assuntos inclui também o desconhecimento sobre os fundamentos e a dinâmica da própria polis e da sociedade que abriga essa polis. Para usar uma expressão jocosa, não há como isso dar certo[6].

A intolerância estimulada pelas “redes sociais” caracteriza-se por um feroz espírito de grupo, em que internamente o grupo (mais ou menos restrito e, por paradoxal que seja, mais ou menos ignorante de seus próprios membros) é solidário a si mesmo, mas agressivo a quem não o integra. Nesse sentido, trata-se de um forte desvio da fraternidade, a que se somam a falta de afeto mais amplo e o estímulo (mais uma vez agressivo) a instintos egoístas e destruidores.

A virulência, o particularismo, o fechamento em si mesmas das bolhas das “redes sociais” levam naturalmente a considerar-se se é possível mantermos uma sociedade livre e aberta. As “redes sociais” estimulam o clima político de “nós contra eles”; nisso se perdem o respeito mútuo, a tolerância e os debates públicos, transformados em ondas de xingamentos recíprocos[7]. Esse clima é explorado e estimulado pelos partidos políticos, pelos próprios políticos (que, assim, transformam-se em demagogos sistemáticos) e são repetidos à exaustão pelos “intelectuais orgânicos” à direita e à esquerda (professores primários, secundários e universitários, jornalistas, “articulistas”, “gurus”). A proliferação das fake news faz parte integrante desse novo ambiente. As fake news têm como objetivo disseminar a desinformação, isto é, a disseminação de informações erradas para estimular a confusão intelectual, moral e política. Por fim, no caso específico das eleições, elas tendem a perder o caráter de “debates” (característica que, desde sempre e no final das contas, elas apresentam apenas de maneira superficial e muito idealizada) para assumirem o aspecto de “democracia de plebiscito”. Em suma: é de temer-se que as “redes sociais” estejam criando uma combinação de oclocracia, mantida e estimulada pelos homens-massa, com tirania, mantida pelo líder preferido desses mesmos homens-massa – tudo isso em meio à desinformação disseminada pelas fake news e pelo clima de ódio e intolerância.

Pessoalmente, tenho dúvidas sobre se a estrutura interna, a lógica das “redes sociais” permite mesmo a idealizada “qualificação” do debate. O que argumentei acima é que a forma como as redes sociais reúnem as pessoas resulta, na prática, em repelir o debate e, nesse sentido, não há o que ser qualificado.

Há grupos sociais e políticos que afirmam que uma forma de evitar ou de reverter essas tendências negativas seria “ocupar espaço” nas redes sociais. Entretanto, considerando as observações acima, é caso de pôr-se em dúvida essa expressão: se os grupos constituem-se como bolhas, não haveria espaço para ser ocupado, pois não haveria brechas para que a moderação, a prudência e a tolerância pudessem ser incluídas e surtir efeito. Dessa forma, “ocupar espaço” consistiria somente em jogar, de modo cada vez mais intenso, mais propaganda, mais fake news, nas redes sociais – em um procedimento que, aliás, pode ser (e é) empregado pelos vários grupos uns contra os outros. Além disso, não é claro se a palavra de ordem de “ocupar espaços” não contribui para essa mesma dinâmica negativa, na medida em que ela baseia-se em uma concepção militar, isto é, de combate e destruição dos inimigos, em vez do convencimento dos adversários (isto é, dos concidadãos).

A apreciação acima é bastante pessimista, sem dúvida nenhuma; em contraposição – é o princípio da prudência – convém admitir que o advento do rádio e, depois, da TV suscitaram no século XX também grande pessimismo. (Aliás, o mesmo pode ser dito do advento dos textos de massa.) Infelizmente, será necessário passarmos por alguns mares turbulentos para que as “redes sociais” entrem em uma dinâmica mais positiva, ou menos negativa.

Novamente: o conjunto destas observações resulta em uma avaliação negativa. Melhor dizendo, é uma avaliação claramente pessimista. Em face dela, o que se impõe é a necessidade imperiosa de fazer-se alguma coisa a respeito. Pessoalmente, não tenho conhecimentos de engenharia da computação para argumentar muito, mas tenho a impressão de que as próprias “redes sociais” são limitadas nas alterações que podem implementar. Assim, a solução parece-me que está na sociedade civil: por um lado, na valorização da sociabilidade direta; por outro lado, a forte (re)valorização da tolerância, do apaziguamento social geral; com base nisso, a constituição de pressões para “qualificar” os debates e para rejeitar tanto os intelectuais e gurus que estimulam a intolerância quanto – ainda mais – a realidade dos homens-massa.

§ 2º – Nota sobre a meritocracia

 

-        Os debates atuais sobre a meritocracia são enviesados:

o   de um lado, defensores da “justiça social”, a favor das políticas de “inclusão social” e das “cotas sociais”, ou seja, de modo geral, defensores das cotas raciais em concursos públicos;

o   de outro lado, críticos das “cotas sociais” e defensores sem mais da meritocracia

-        Embora seja possível entender a meritocracia como uma organização social que valoriza o melhoramento e o aperfeiçoamento (a busca geral pelo mérito, pela excelência, pela boa qualidade), no âmbito dos atuais debates é necessário entender a meritocracia como um sistema de seleção de quadros técnicos e dirigentes

-        É claro que há relações variadas entre a estrutura geral da sociedade e o sistema de seleção de quadros; a meritocracia como seleção de quadros só faz sentido em uma sociedade que valorize a qualidade, ou que valorize mais a qualidade que outras características possíveis para a seleção de quadros

-        A melhor forma de entender a importância da meritocracia é compará-la com o outro tipo ideal polar de seleção de quadros, o sistema de castas:

o   A meritocracia seleciona quadros a partir de qualidades mais ou menos objetivas, medidas de acordo com critérios variados (geralmente por meio de questões a serem respondidas, mas também por meio de atividades práticas); a partir do desempenho dos postulantes ao cargo, elabora-se uma arrolagem em que os que se saem melhor em tais avaliações são selecionados;

§  Deve-se notar que os cargos são criados previamente à nomeação dos funcionários; a concorrência aos cargos e às funções está em princípio aberta a todos os cidadãos – com restrições vinculadas a requisitos técnicos, como experiência de vida (resultando em restrições etárias) e/ou conhecimentos específicos (resultando na exigência de determinados diplomas)

o   Na sociedade de castas, cada profissão está confinada a um estrato social específico: quem nasce em uma determinada família terá somente uma profissão (ou ocupação) e cada profissão é exercida apenas por um conjunto determinado de famílias. É claro que em cada estrato e em cada profissão há os bons e os ruins, mas isso não impede que haja uma eventual degradação geral da qualidade das atividades desenvolvidas por um estrato específico; da mesma forma, não há a possibilidade de trânsito entre estratos, de modo a permitir que indivíduos capazes de realizar atividades de outros estratos realizem-nas

§  Uma variação atenuada da sociedade de castas é a aristocracia do Antigo Regime: o nome da estrutura indica “governo dos melhores” (áristos + cratia), mas era na verdade uma casta, um estrato social autodenominado de “melhor”: da Idade Média para a modernidade, enquanto as sociedades eram mais agrárias que urbanas; os servos eram muitos e que os citadinos eram poucos e desorganizados; os assuntos públicos não eram particularmente complicados e resumiam-se muito na arte da guerra; a nobreza fornecia bons quadros, esse mecanismo de seleção funcionava a contento; mas a partir do momento em que as sociedades tornaram-se mais urbanas e as cidades afirmaram-se como locais de liberdade; que as atividades tornaram-se mais pacíficas e industriais e mais complicadas; que os citadinos e as comunas emanciparam-se, os negócios públicos deixaram de poder ser tratados apenas por amadores, passando a exigir-se o tratamento técnico específico, bem como a ascensão social e política das camadas que tinham esse conhecimento: a excelência autointitulada passou a ceder lugar à excelência comprovada (nos termos de Giovanni Sartori: comprovada em particular pelos outros, não por si próprios); isso é o que fica evidente no Portugal da Revolução de Avis (1383-1385), que registra uma clara “revolução burguesa” (como indicado por Alexandre Herculano em O monge de Cister)

-        Dessa forma, a meritocracia é a afirmação da excelência aberta a toda a sociedade, bem como o instrumento de combate à aristocracia e à sociedade estamental própria à Idade Média (mas, de modo geral, a toda sociedade de castas) e, portanto, é o instrumento de ascensão social por definição, ao mesmo tempo em que é um instrumento de seleção de quadros que garante a qualidade e/ou que minimiza os prejuízos e os desperdícios

-        Nas polêmicas atuais – que, de fato, apresentam bem pouco o aspecto de “debates”, isto é, de troca de idéias, consistindo muito mais em disputas e em trocas de agressões –, os defensores da “justiça social” combatem a meritocracia, isto é, combatem justamente o instrumento que garante a abertura dos quadros públicos a indivíduos provenientes de todos os grupos e classes sociais e que permitiria o avanço vertical de seus membros; inversamente, os defensores da meritocracia demonstram-se insensíveis para com as condições concretas em que vive a maior parte da população brasileira, marcada pela pobreza

o   Os defensores políticos contemporâneos da meritocracia não propõem nenhuma solução para o sério problema da péssima qualidade geral da educação e da instrução das classes mais baixas do Brasil, preferindo aferrar-se à fórmula – correta em si mesma, de qualquer maneira – de que a meritocracia deve prevalecer

o   Por outro lado, os defensores da “justiça social”, ao mesmo tempo em que criticam e desvalorizam a meritocracia, com enorme freqüência defendem atalhos institucionais – e, ainda pior, atalhos particularistas para favorecer grupos específicos, ditos “minoritários” (até o momento: mulheres e “negros”)

§  Dessa forma, a lógica universalista própria à meritocracia e constitutiva da idéia moderna de cidadania é solapada

§  Para piorar, entre os mecanismos já existentes para realização institucional desses atalhos, há medidas violentamente daninhas – em particular, os tribunais raciais para aferição da “negritude” de candidatos denominados de “negros” (dos quais se excluem totalmente os “brancos”)

-        Poder-se-ia, talvez, argumentar que a meritocracia conforme apresentada aqui é apenas uma idealização, que ela não corresponde à prática e que, na verdade, há um sem-número de obstáculos à sua realização, incluindo aí o que se poderia chamar de “perversões do ideal”: perpetuação do acesso a possibilidades em determinados grupos, fechamento do acesso a outros grupos etc.

o   Nenhuma dessas objeções parece-me efetiva ou válida. Um ideal permanece importante na medida em que pode ser aplicado útil e positivamente na realidade; se há espaços sociais em que a meritocracia universalista não se verifica, o que se deve fazer é aplicá-la, ou seja, universalizar os procedimentos, não os restringir. Por outro lado, a meritocracia já realizou importantes alterações na sociedade, ao permitir a constituição de ideais universalistas, o acesso de indivíduos de todas as classes a cargos e postos segundo suas aptidões e não de acordo com seu berço etc.

-        Há um problema adicional em relação à meritocracia; na verdade, não se trata de um “problema”, mas das relações que ela sugere com um traço de nossa sociedade e que, para muitos, torna-a problemática: são as relações com o ideal de igualdade.

o   A meritocracia promove os “melhores”, a excelência, o que, por definição, é contra o ideal de igualdade. Sem dúvida que o ideal de igualdade foi tomado em inúmeros sentidos nos últimos dois ou três séculos, passando de uma igualdade moral e social para, por exemplo, igualdade de condições de partida (Rawls). Mas o fato é que a meritocracia e a igualdade são valores opostos; mesmo a obra de Rawls é um esforço para conjugá-las, um tanto sem sucesso

o   A “igualdade” é insustentável em si mesma; a despeito disso, há um aspecto do que seus defensores argumentam que vale a pena reter e que, aliás, relaciona-se à “justiça social”: trata-se do respeito à dignidade humana, às garantias mínimas de condições de vida para todos os seres humanos; essas condições de vida abrangem aspectos materiais, intelectuais, sociais, políticos e morais

o   Dessa forma, a meritocracia tem que ser promovida como um ideal social geral e como um procedimento específico para seleção de quadros; mas ela tem que ser conjugada com os valores da fraternidade e do amor universal: de outra maneira, ela pode aproximar-se de uma forma de darwinismo social

o   Os comentários acima evidentemente são uma resposta às críticas sofridas pelo conceito de meritocracia, a partir dos defensores da “justiça social”.

o              Entretanto, uma reflexão sobre os motivos que levam os defensores da “justiça social” a criticar a meritocracia levaram-me a considerar porque, de fato, ocorrem tais críticas.

o              As conclusão a que pude chegar são as seguintes: (1) por um lado, os defensores da “justiça social” são defensores também, em um nível mais profundo, da idéia de “igualdade social”; (2) por outro lado, os defensores da “justiça social” temem que a meritocracia instaure uma espécie de “darwinismo social”.

o              Vejamos cada uma dessas possibilidades.

o              (1) No que se refere ao uso da “justiça social” como uma forma de promoção da igualdade, há um problema inicial: o que é “igualdade”? Os defensores dessa idéia de modo geral são imprecisos e vagos a respeito e, dessa forma, são profundamente incoerentes. Essa imprecisão pode ser intencional ou não, mas o fato é que se pode entender a igualdade de diferentes maneiras, com resultados teóricos e práticos imensamente diversos entre si: pode ser a igualdade perante a lei (a isonomia), pode ser a presunção de igualdade moral entre os indivíduos, pode ser a igualdade de status social, pode ser a igualdade de condições materiais, pode ser a igualdade intelectual, pode ser a igualdade das condições mínimas de vida etc. etc. Como se vê, não se pode presumir que a “igualdade” é uma coisa única; mesmo defensores notáveis e realmente respeitáveis da noção de igualdade, como Norberto Bobbio, são vagos a respeito. De qualquer maneira, o que a “esquerda” – e Bobbio define a esquerda como o viés político que defende a igualdade – entende por “igualdade” é u’a mistura (confusa e vaga) das várias noções acima, em particular em seus aspectos materiais e de status: de maneira grosseira, é um desejo de que todos tenham as mesmas coisas (o que não é idêntico a que todos tenham condições mínimas dignas), que todos tenham o mesmo status e, em conseqüência disso, a igualdade também se transforma em uma rejeição do “capitalismo” (que também não é conceituado, ou, se é, é conceituado de maneira pobre).

§             (Pode-se argumentar que a “esquerda” não define a igualdade dessa forma: mas o problema é que a “esquerda” NÃO define a igualdade; a observação de que a igualdade é sempre apresentada como um conceito vago e impreciso não é acidental. A crítica reiterada ao “capitalismo”, a defesa contumaz dos regimes comunistas – que impunham, pela força, a igualdade de condições materiais -, a ênfase em grupos sociais de base etc. reforçam o fato de que a “igualdade” defendida é a material e a de status social.)

§             Ora, deixando de lado possibilidades menos óbvias (como a isonomia, o respeito à dignidade humana e as condições mínimas dignas de vida), o fato é que a meritocracia não apenas é contra as sociedades de castas, como também é contra a igualdade. Nesses termos, muitos dos defensores da “justiça social” são contra a meritocracia não devido à defesa da “justiça social” – que, em si mesma, como argumentei antes, é perfeitamente compatível com a meritocracia -, mas porque no fundo tais defensores da “justiça social” defendem a igualdade (material e de status) e não efetivamente a “justiça social”.

o              (2) Tomado isoladamente, o conceito de meritocracia pode ligar-se a uma forma de darwinismo social: neste caso, algumas queixas dos defensores da “justiça social” são absolutamente corretas. Quanto mais alto na estrutura social, maiores as chances de um indivíduo de ter sucesso em sua vida e, nesse sentido, de evidenciar excelência ou mérito; inversamente, quanto mais baixo na estrutura social, maiores as dificuldades. O pobre ou o miserável que não tem o que comer, não tem como estudar, não tem como condições financeiras de dedicar-se a lazeres mais custosos – esse indivíduo em princípio não tem como praticar uma atividade qualquer em que se possa ser chamado de “excelente”. Há exceções a isso, é claro, e como o exemplo do samba demonstra, mesmo a pobreza não impede o exercício da criatividade humana. Mas, ainda assim, é necessário deixar de lado a visão vinculada aos indivíduos e assumir perspectivas mais amplas e mais estruturais.

§             Aliás, mesmo de uma perspectiva mais ampla é necessário adotar um viés mais histórico: algumas atividades são mais valorizadas em algumas épocas, enquanto em outros momentos elas são desvalorizadas; as possibilidades de desenvolvimento de determinadas aptidões variam nesse sentido: por exemplo, as inquestionáveis habilidades militares e políticas de Júlio César seriam inaceitáveis nos dias atuais.

§             Da mesma forma, mas seguindo uma outra perspectiva, convém notar que nem todos têm interesse em ser excelentes em algo; muitos gostam de ser apenas bons, ou apenas regulares em suas atividades, sem serem medíocres.

o              Ora, u’a meritocracia pura, que valorizasse apenas e tão-somente os “melhores”, deixaria para trás uma grande massa desvalorizada: isso, sem dúvida, seria “injusto”. Essa meritocracia “pura” seria uma forma de darwinismo social.

§             Como evitar esse darwinismo social? Sem dúvida alguma, não é combatendo a idéia do mérito, não é combatendo a concepção de que se deve valorizar os melhores e, inversamente, que se deve incentivar a melhoria (individual e coletiva). Se não é aceitável ser-se contra a meritocracia e se a meritocracia “pura” pode ser daninha, a solução é complementar a meritocracia com algum(ns) outro(s) princípio(s) – por exemplo, o respeito à dignidade humana, a fraternidade, a tolerância. Nos termos de Augusto Comte, esse “complemento” seria um princípio – no duplo sentido de ser um valor norteador e de estar no começo: seria, precisamente, o “Amor” que está no “princípio”.

o              Ora, bem vistas as coisas, é aceitável entender a fraternidade, a dignidade, a tolerância como valores que fundamentam parte da noção (vaga) de “igualdade” da “esquerda”. Comte e Isaiah Berlin consideravam que essa fraternidade da igualdade era uma concepção deturpada da fraternidade, ao conduzir a um diagnóstico e a um programa errados. Mas, ainda assim, é aceitável considerar que a fraternidade, a dignidade, a tolerância integram parte do programa dos defensores da “justiça social”. Nesses termos, é fácil perceber o quanto são compatíveis – e, mais do que isso, são complementares – a meritocracia e a “justiça social”.

§ 3º – “Estudos críticos” como metafísica profundamente daninha e essencialmente negativa (i. e., destruidora)

 

-        A palavra “crítica”, como se sabe, tem pelo menos dois sentidos: por um lado, ela indica um período de transição e/ou de enfraquecimento generalizado dos valores de uma determinada ordem social (“crise”); por outro lado, ela também indica uma avaliação percuciente e profunda, supostamente não ingênua mas sempre “radical”

o   O segundo sentido tem sido largamente utilizado, embora de maneira “não crítica”, pois que ingenuamente ignora que a radicalidade de seu sentido associa-se à virulência das suas considerações. Dito de outra forma, as “análises críticas” não somente “profundas” e “verdadeiras”, mas são, antes de mais nada, destruidoras

o   O caráter destruidor das “críticas” baseia-se no sentido dado pela palavra originária, que é “crise”, ou seja, desestabilização profunda de uma ordem qualquer

o   Nesses termos, propor uma análise “crítica” de algo não é propor um estudo aprofundado e “realista” sobre esse algo; estudos aprofundados e realistas podem ser propostos usando-se palavras como “estudos aprofundados e realistas”; quando se propõe fazer-se uma análise crítica, o que se propõe de fato é fazer-se uma análise destruidora, virulenta

-        Assim, é necessário sistematicamente se substituir a palavra “crítica” como sinônimo de “avaliação” pela palavra... “avaliação”

o   Os pós-modernismos, os pós-estruturalismos, os “estudos pós-coloniais”, os “estudos culturais” e os estudos identitários integram de pleno direito os “estudos críticos” e seus profundos defeitos intelectuais e morais

§ 4º – Algumas anotações sobre o republicanismo

 

-        De modo geral, o republicanismo é uma teoria política, não sócio-política: com isso quero indicar que ele propõe um determinado status geral para todos os cidadãos, em caráter universal, independentemente das classes sociais. Evidentemente, é uma teoria que se põe contra, de facto e/ou de jure, diferenças formais de status, como as vigentes nas sociedades de estados e, a fortiori, nas sociedades de castas

-        É necessário reconhecer-se que, além da positivista, há pelo menos mais uma teoria republicana que mais ou menos leva em consideração as classes sociais, ou melhor, que as considera como atores ativos: é a de Maquiavel, com o choque entre as classes e, em particular, a ação dos “pequenos” contra os “grandes” como motor e garantia das liberdades

o   No caso de Maquiavel, falar-se em “classes” não deixa de ser uma grande imprecisão e, até certo ponto, mesmo um erro, na medida em que toma as categorias políticas adotadas pelo florentino (“grandes” e “pequenos”) como sinônimo de categorias sócio-econômicas; todavia, de maneira aproximativa esse procedimento de tomar as categorias como sinônimas não é totalmente errado, pois na Florença renascentista as condições políticas e sócio-econômicas eram largamente coincidentes. Ainda assim, é importante notar que é apenas um uso aproximado e que as “classes”, aí, não têm o mesmo peso que o adotado por Marx; além disso, enquanto Maquiavel admitia a manutenção da pólis, mesmo que com suas divisões, para Marx a luta de classes é guerra civil a partir das clivagens sócio-econômicas

o   Augusto Comte também defendia a ação dos proletários para cobrar dos patrícios as suas responsabilidades; dessa forma, ele falava claramente em caráter instrumental da “luta de classes” (mas, bem entendido, no sentido de “luta de classes” que empregamos a respeito de Maquiavel, acima, e não no de Marx)

-        A idéia da cidadania, como um esquema teórico político, é em tudo semelhante ao republicanismo e, inversamente, bem vistas as coisas, o republicanismo é uma teoria da cidadania. Isso se evidencia na obra de T. H. Marshall, em que a isonomia – mas não a igualdade rousseauniana – é um traço da cidadania, repelindo, dessa forma, as distinções jurídicas de status, compensatórias ou não

-        A teoria sócio-política de Augusto Comte também define um protagonismo para as classes sociais; tomando como base a isonomia, o proletariado tem a função de fiscalizar e cobrar a correção das atitudes do patriciado. Nesse sentido, a luta de classes não é valorizada por seu suposto caráter revolucionário, mas ela pode ter um caráter instrumental para a manutenção da moralidade pública, em um sentido social e republicano 





[1] Michael Watzer (Da tolerância, São Paulo, M. Fontes, 1999) propõe a existência de cinco “regimes” de tolerância: império multinacional, sociedade internacional, consociação, Estado-nação e sociedade imigrante. O quadro que consideramos é o mais habitual nas reflexões sobre a tolerância e enquadra-se no regime do Estado-nação, na terminologia de Walzer.

[2] Bem vistas as coisas, ainda no âmbito da história das religiões, a tolerância é uma virtude que acabou impondo-se devido ao específico absolutismo próprio aos monoteísmos; os politeísmos apresentam maior plasticidade teórica, sendo capazes de incorporar diferentes credos, seja pela simples expansão do panteão, seja pela assunção de que vários deuses teriam apenas diferentes nomes. É claro que os politeísmos progressistas, próprios às sociedades guerreiras, apresentam essa maior plasticidade; os politeísmos conservadores, de sociedades dominadas pelos sacerdócios, são um pouco mais refratárias.

Outra observação do âmbito da história das religiões: muitos apóstolos afirmaram a importância da tolerância e do respeito mútuo, especialmente no sentido de que as conversões não poderiam nunca ser feitas por meio da violência. São Paulo é um exemplo disso; Maomé, por outro lado, foi bastante ambíguo a respeito, havendo uma fase tolerante e outra fase impositiva no Corão.

[3] Os limites são o maior ou menor egoísmo, a maior ou menor competência técnica, a maior ou menor sagacidade etc.

[4] Nas disputas atuais, que se têm caracterizado pela forte e agressiva politização, pela intensa polarização, muitos grupos afirmam que a mera crítica é sinal de intolerância: ora, se criticar algo ou alguém é ser intolerante, isso se converte em intolerância à manifestação das idéias. Dessa forma, é importante insistir: a simples crítica (por mais dura que possa ser tal crítica) não é, em si mesma, intolerância. A pregação e a realização da destruição do que é criticado, isso, sim, é intolerante. Em outras palavras, a intolerância vincula-se de verdade ao estímulo e ao emprego à violência.

[5] Historicamente, tais líderes agressivos existiram em todas as sociedades e em todas as épocas; freqüentemente foram chamados de populistas, demagogos, fanáticos: deveria ser bastante claro, mas a dificuldade em tais denominações é que, se os intolerantes podem, de fato, ser chamados de populistas, demagogos e fanáticos, a recíproca não é necessariamente verdadeira.

Modernamente, os líderes fascistas e totalitários – de direita ou de esquerda – correspondem a eles. No Brasil recente podemos identificá-los em partidos da extrema esquerda, embora também em partidos da esquerda moderada – Lula e seu entorno podem ser incluídos nessa categoria. Entretanto, é no lado da direita, de uma nova direita, que se pode identificar com clareza meridiana esse perfil: Olavo de Carvalho é o grande campeão desse gênero humano que desponta atualmente no país. Não deixa de ser surpreendente – e, talvez, também revelador – o fato de que esse astrólogo mudou-se há muitos anos para os Estados Unidos, de onde pode xingar impunemente políticos, pesquisadores e grupos sociais no Brasil.

[6] Deveria ser apenas uma ironia, mas é um sinal poderoso da degradação de certos círculos sociais, morais e intelectuais o fato de que é justamente na “direita”, que costumava citar Ortega y Gasset para criticar os homens-massa, que se verifica o maior estímulo à (e a maior exploração política da) ação dos homens-massa. Afinal de contas, não é possível qualificar de outra maneira os agressivos (contra os outros) e dóceis (em relação ao seu guru) seguidores de Olavo de Carvalho.

[7] Com o aprofundamento do uso das “redes sociais”, esse clima também deve aprofundar-se. Nesse quadro, os famosos algoritmos das redes sociais, isto é, os mecanismos eletrônicos responsáveis pela atribuição de possíveis interesses a cada um dos usuários, também assumem grande importância. Não por acaso, as empresas que controlam as redes sociais têm sido intensamente cobradas, com razão, pelo aperfeiçoamento desses mecanismos, chegando mesmo a interferir em casos evidentes de incitação à violência, à intolerância e à discriminação.