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04 novembro 2021

Augusto Comte e militância editorial na edição nova de “Os pensadores”

          A Folha de S. Paulo recentemente lançou uma nova edição da famosa e importante coleção “Os pensadores”. É uma coleção bonita, bem acabada, com volumes extremamente bem produzidos: papel de qualidade, capa dura, artes agradáveis nas capas. Muitos dos volumes são sumamente interessantes e informativos; entre os 30 volumes dessa nova edição figura, como segundo publicado, uma obra de Augusto Comte, o seu Discurso sobre o espírito positivo. A inclusão de Comte e, em particular, desse volume específico, suscitam algumas reflexões; mas, para tratarmos disso, temos antes que considerar o conjunto da nova coleção.

1. Sobre o viés identitário-crítico-militante da nova coleção “Os pensadores”

A coleção foi lançada em 24 de outubro de 2021, em 30 volumes, com os números 1 e 2 lançados promocionalmente juntos, como é habitual; são os volumes dedicados respectivamente a Platão (A República) e a Augusto Comte (Discurso sobre o espírito positivo)[1]. Na página eletrônica promocional (https://pensadores.folha.com.br/index.html) não há indicação de quem seria o seu organizador (está na moda falar-se em “curadoria”); na página dos volumes impressos dedicada aos dados bibliográficos há apenas a menção às responsáveis pela “Organização geral do projeto”: Ana Paula Duarte, Letícia Carvalho e Mariana Dalmaso, as três do jornal Folha de S. Paulo. Sobre Letícia Carvalho e Ana Paula Duarte obtemos informações apenas na matéria propagandística de outra coleção do jornal, lançada no início de 2021 e dedicada a fotografias (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/02/colecao-de-livros-da-folha-revisita-fotos-memoraveis-do-jornal-dos-ultimos-100-anos.shtml): Carvalho é “gerente geral de marketing” e Duarte é analista de projetos. A partir de seu perfil na rede Linkedin (https://br.linkedin.com › in › mariana-dalmaso-603471133), descobrimos que Mariana Dalmaso é “analista de marketing sênior”. Como é difícil ver de que maneira especialistas em propaganda teriam qualificações para decidir questões de filosofia, o resultado é que simplesmente não é possível saber quem de fato organizou a coleção; todavia, na absoluta ausência de indicações de quem de fato selecionou os volumes da presente coleção e com quais critérios, resta a essas três profissionais os ônus das escolhas efetivamente feitas.

Vale a pena prestarmos atenção ao nome da coleção: é “coleção Folha Os Pensadores”. Bem vistas as coisas, não se trata de uma edição nova de “Os pensadores”, anteriormente publicada pela editora Abril e subsidiárias; de fato, é uma coleção inteiramente nova. Assim, o que a Folha de S. Paulo fez foi valer-se de um nome já consagrado para lançar e divulgar o seu próprio projeto comercial-editorial (e político).

Dito isso, a nova coleção distingue-se bastante das edições anteriores, seja pela quantidade de volumes, seja pelos títulos incluídos.

Em relação à quantidade de volumes, ela é bastante limitada: pelo menos em uma primeira leva, são apenas 30, o que a distingue muito das edições anteriores, em particular da primeira e da segunda, que tiveram mais de 60 volumes, alguns com obras de vários autores encartados em um único livro.

Em relação aos títulos incluídos, eles chamam a atenção por serem inovadores em vários aspectos: por um lado, em vez de os volumes publicarem excertos de várias obras (às vezes artigos isolados), com ou sem traduções de obras completas, a nova edição publica um único título de cada autor. Por outro lado, autores que anteriormente já haviam sido publicados receberam traduções de novos títulos, como nos casos de Augusto Comte – que, por exemplo, recebeu uma nova tradução do Discurso sobre o espírito positivo (de 1844, até então publicado apenas pela Martins Fontes), em vez de dos dois primeiros capítulos do Sistema de filosofia positiva (de 1830-1842, vulgarmente chamado de Curso de filosofia positiva), dos 2/3 iniciais do capítulo 1 do Discurso sobre o conjunto do Positivismo (de 1848) e da integralidade do Catecismo positivista (de 1853). Por fim – e isto é o mais importante –, vários “novos” autores foram incluídos, resultando em que, embora o conjunto da seleta de título não seja muito coerente, o viés geral é bastante claro: trata-se de uma coleção organizada para ser “crítica” e militante, com um certo pendor identitário.

O viés identitário-crítico-militante salta aos olhos com os seguintes autores e títulos:

  • bell hooks – Ensinando a transgredir (v. 3)
  • Voltaire – O preço da justiça (v. 6)
  • Michel Foucault – A sociedade punitiva (v. 9)
  • Mary Wollstonecraft – Reivindicação dos direitos das mulheres (v. 10)
  • Jean-Jacques Rousseau – Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (v. 11)
  • Karl Marx – Manuscritos econômico-filosóficos (v. 14)
  • Carter G. Woodson – A (des)educação do negro (v. 16)
  • Luiz Gama – Humor e crítica: armas do pioneiro abolicionista (v. 20)
  • Étienne de la Boétie – Discurso sobre a servidão voluntária (v. 21)
  • John Stuart Mill – Sobre a liberdade (v. 24)
  • Arthur Schopenhauer – A arte de ter razão (v. 25)
  • Edison Carneiro – Ladinos e crioulos (v. 27)
  • Ludwig Feuerbach – A essência do cristianismo (v. 28)

A seqüência de títulos não segue a ordem cronológica, nem de nascimento dos autores nem, portanto, de publicação das obras; na verdade, não parece haver nenhum critério de lançamento. Enfim, dos 30 volumes inicialmente propostos, podemos considerar que 13, ou seja, 43,33%, têm o perfil aproximado de identitário-crítico-militantes. Essa classificação, não há dúvida, pode ser discutida, como nos casos de Boétie e de Stuart Mill: o primeiro por ser medieval e o segundo por ser comum ao liberalismo; mas, ainda assim, salta à vista as editoras terem escolhido logo esses autores e esses títulos em meio a centenas de outros possíveis. Por outro lado, as escolhas de Bell Hooks, Michel Foucault, Mary Wollstonescraft, Jean-Jacques Rousseau e Karl Marx, além das novidades na coleção Carter Woodson, Luiz Gama e Edison Carneiro dão o inequívoco tom crítico-militante e identitário. Voltaire era claramente um polemista e podemos considerar que Schopenhauer integra a relação por ser seu livro um manual de manipulação da verdade e do discurso, ou seja, é um manual de produção de desinformação. (O que dissemos sobre Schopenhauer pode ser aplicado, mutatis mutandis, ao volume escolhido de Sto. Agostinho.)

Há alguns autores cuja inclusão é discutível ou estranha: Lévi-Strauss é bem-vindo, mas o seu Antropologia estrutural 1 é um livro estritamente técnico e acadêmico, não sendo passível de consumo pelo grande público; melhor seria incluir o Antropologia estrutural dois, o Antropologia estrutural 3, algum dos vários volumes das Mitológicas, o Pensamento selvagem, o Totemismo hoje ou até os Tristes trópicos. O mesmo pode ser dito, a fortiori, de Aristóteles: sua Política ou sua Ética nicomaquéia, quem sabe mesmo sua Constituição de Atenas, seria muito mais adequado ao perfil da coleção (e tanto a Política quanto a Ética nicomaquéia são infinitamente superiores à República de Platão, ou melhor, a qualquer coisa de Platão). De Maquiavel escolheram A arte da guerra: entretanto, essa é uma obra menor (de um autor também menor): dele poderia ser publicado, com muito mais proveito, os seus Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. De Sto. Agostinho, suas Confissões seriam uma escolha mais interessante que a estranha escolha feita de Sobre a mentira.

Essa pequena coleção apresenta alguns títulos que satisfarão também os liberais: Bastiat, Mises, Léo Strauss e, novamente, Stuart Mill; quem sabe Weber e Adam Smith. Além disso, há volumes mais claramente morais, como os de Descartes, Sto. Agostinho, Adam Smith. Por fim, os volumes de Lévi-Strauss, Ruth Benedict, Durkheim e Hobbes servem, talvez, para indicar que a verdade e a mentira, a justiça e a injustiça têm que ser entendidos de maneira relativa e nos quadros de sociedades estruturadas em termos de culturas e de estados e, nesse sentido, integram o viés crítico-militante da coleção. Se adicionarmos aos 13 volumes inicialmente relacionados como “identitário-crítico-militantes” os quatro volumes sociológicos, teremos 17 volumes; se somarmos a esses os volumes liberais – cuja inclusão pode ser entendida também como uma forma de a militância crítico-identitária conhecer os argumentos de seus adversários –, teremos um total de 22 volumes, correspondentes a 73,33%, isto é, cerca de 3/4 do total. (Esse valor é subestimado, pois deixamos de lado Sto. Agostinho, Maquiavel e Augusto Comte: com esses três volumes adicionais, teríamos 25 livros crítico-militantes, ou 83,33%.)

Em suma, a relação de títulos selecionados para a nova edição da coleção “Os pensadores” é variada e incoerente a respeito de vários títulos; essa incoerência talvez tenha o objetivo de satisfazer a diversos públicos. Ainda assim, o conjunto da coleção exibe uma orientação bastante clara; seu objetivo não é meramente informar, ilustrar e fornecer elementos intelectuais e morais para a edificação dos leitores e a sua ampliação do entendimento do mundo. Em vez disso, o objetivo da coleção é fornecer elementos intelectuais para a militância política e social, com um sentido “crítico” e identitário – em outras palavras, em favor do combate da metafísica esquerdista contra a metafísica direitista.

Feitas essas considerações iniciais, podemos avaliar a inclusão do volume Discurso sobre o espírito positivo, de Augusto Comte.

2. Sobre a inclusão de Augusto Comte na atual coleção “Os pensadores”

Em face do viés caracterizado acima, torna-se legítima perguntar: por que incluíram Augusto Comte nessa nova edição de “Os pensadores”? De modo mais específico: por que incluíram uma nova tradução do Discurso sobre o espírito positivo?

Na matéria propagandística que anunciava o lançamento da coleção (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/10/colecao-folha-os-pensadores-reune-escritos-essenciais-do-pensamento-ocidental.shtml), somos informados que Durkheim é o “‘fundador’” da Sociologia – a palavra “fundador” posta entre aspas na matéria acima: “Isso para não falar no "fundador" da sociologia como ciência, Émile Durkheim, em As regras do método sociológico”. Augusto Comte é considerado apenas “filósofo” (como se não tivesse fundado a Sociologia) e fundador do Positivismo. A explicação dada pela matéria para a inclusão de Augusto Comte é esta: “O segundo [volume] é o Discurso sobre o espírito positivo, em que o francês Auguste Comte formulou a doutrina do positivismo – inspiradora do lema inscrito na bandeira do Brasil”.

As matérias propagandísticas servem apenas para divulgar para o grande público um determinado produto; como se sabe, elas combinam informação, desinformação, omissões e exageros; no caso de uma coleção de livros de filosofia, essas características acentuam-se, na medida em que se torna muito difícil vender conceitos filosóficos. Ainda assim, as propagandas em questão têm algo de sugestivo.

Parece-nos que Augusto Comte foi incluído pelo menos por dois motivos, ambos vinculados ao atual contexto político brasileiro. O primeiro motivo é que, devido à renovada militarização promovida por Bolsonaro no governo federal, fala-se muito em “Positivismo” – embora de maneira extremamente errada e mentirosa[2] –; esse motivo é o que se depreende da propaganda indicada acima. Apesar de o motivo anterior poder vincular-se ao viés crítico-militante da nova coleção “Os pensadores”, o fato é que podemos conceber outro motivo, mais diretamente crítico-militante, para a inclusão de Augusto Comte nessa coleção: trata-se de uma afirmação do valor social, político e moral da ciência e – é importante dizê-lo com clareza: a despeito das idéias e das intenções do próprio Comte – também é a busca de um cientificismo anticlericalista. Senão, vejamos.

As três obras presentes nas versões anteriores da coleção “Os pensadores” oferecem dificuldades intransponíveis para os objetivos crítico-militantes e editoriais da coleção.

  • Cada um dos volumes publicados nesta nova edição apresenta a obra completa: ora, o Sistema de filosofia positiva foi originalmente publicado em seis volumes e 60 capítulos, dos quais apenas os dois primeiros capítulos foram publicados nos “Pensadores” anteriores. É possível crer que a extensão dessa obra completa inviabilizou a sua inclusão na presente edição dos “Pensadores”.
  • Já o Discurso sobre o conjunto do Positivismo é menor, com seis capítulos (grandes), oferecendo a vantagem – supostamente desejada pela edição nova dos “Pensadores” – de expor as idéias centrais do Positivismo. Entretanto, contrariando o viés crítico-militante da coleção, Augusto Comte afirma com todas as letras em Religião da Humanidade nessa obra. Além disso, os 2/3 iniciais do capítulo 1 desse livro expõem as características principais do espírito positivo e criticam o espírito teológico; mas o 1/3 final desse mesmo capítulo 1 critica o espírito metafísico, que é justamente o espírito que informa o materialismo marxista e, de modo mais amplo, o viés crítico-militante da atual “Pensadores”. (Não por acaso, o tradutor desse trecho foi o marxista José Artur Gianotti, que omitiu o 1/3 final do capítulo 1 para não fornecer instrumentos para a crítica ao seu próprio marxismo.)
  • O Catecismo positivista foi a única obra comtiana publicada na íntegra nas edições anteriores dos “Pensadores”; entretanto, esse livro oferece o evidente problema de que se trata de um “catecismo”, isto é, da exposição sistemática de uma “religião”. Isso vai de encontro à militância crítica da edição atual dos “Pensadores” e, em particular, à projetada perspectiva cientificisto-anticlericalista desejada em Comte.

Outras obras de Comte, aliás também já traduzidas para o português, poderiam ter sido publicadas (talvez retraduzidas): os seus Opúsculos de juventude (1819-1828) e o Apelo aos conservadores (1855). O primeiro desses volumes – cuja segunda tradução é da autoria dos positivistas Ivan Lins e João Francisco de Souza e foi publicada em 1972 pela Universidade de São Paulo – é muito interessante e apresenta em germe inúmeras das perspectivas de Comte; entretanto, essas perspectivas estão presentes apenas em germe e há o emprego de expressões que produzem equívocos, como no caso da “física social” (equívocos que, claro, são amplamente explorados pela desinformação inspirada em preocupações políticas). Em todo caso, não consigo identificar o motivo para as organizadoras da atual coleção “Os pensadores” terem preferido o Discurso sobre o espírito positivo e não os Opúsculos de juventude – ainda que essa escolha pareça-me acertada, pela maturidade maior do Discurso em relação aos Opúsculos. Já o Apelo aos conservadores é também uma obra pequena e de divulgação, com a vantagem de ser eminentemente política; sua tradução para o português data de 1899 e foi feita por Miguel Lemos (fundador e diretor da Igreja Positivista do Brasil). Se o objetivo da atual coleção “Os pensadores” fosse expor as perspectivas filosóficas do Positivismo tendo em vista apenas a conjuntura política atual, esse livro seria ideal; mas, como estamos argumentando, o objetivo da inclusão de Comte na coleção foi um pouco diferente.

Augusto Comte, fundador do Positivismo e da Religião da Humanidade, também fundador da Sociologia, da Moral Positiva e da História das Ciências, era radicalmente contrário ao anticlericalismo e ao cientificismo. Sua oposição ao anticlericalismo e ao cientificismo baseava-se em motivos históricos, sociológicos, filosóficos e morais: essas duas perspectivas são absolutistas e antirrelativistas; elas negam a historicidade e desviam o ser humano da fraternidade, do altruísmo, do conhecimento e da atividade positiva; elas estimulam a arrogância, a vaidade, o orgulho, a violência, o intelectualismo. Em suma, são contra o amor, a ordem e o progresso.

As organizadoras da atual coleção “Os pensadores” com toda a certeza ignoram todas as afirmações e concepções indicadas no parágrafo acima, provavelmente porque se limitam a ser crítico-militantes.O Discurso sobre o espírito positivo consiste na verdade no discurso de abertura do curso público ministrado por Augusto Comte durante algumas décadas, intitulado “Curso filosófico de Astronomia popular”. Esse curso era dedicado à instrução científica dos proletários parisienses e oferece de maneira exemplar uma forma filosófica de estudo das ciências, em termos de seus métodos, de seus principais resultados específicos e de suas importâncias filosóficas. Nesse curso, o discurso inicial expunha os princípios filosóficos que orientavam a apresentação e o entendimento subseqüentes da Astronomia; mas não se trata de mera exposição epistemológica e metodológica do curso. São várias idéias concatenadas aí; senão, vejamos.

A ciência é o resultado da busca humana de entendimento da realidade conjugada com a busca de soluções para os problemas práticos; satisfazendo necessidades gerais da natureza humana (que se desenvolve ao longo do tempo, em face das realidades sociais e ambientais), a ciência é o resultado de um longo processo de desenvolvimento de modos de satisfazer essas necessidades – desenvolvimento que passou antes pelos absolutos teológico-metafísicos e que agora entre na positividade científica. Todavia, apesar da importância dos resultados próprios a cada ciência, cada uma delas tende a fechar-se em si mesma, a ignorar as demais e desconsiderar totalmente as necessidades humanas profundas, ou seja, as ciências entregues a si mesmas tendem a ser incoerentes e a tornarem-se absolutas: a única solução possível é elaborar uma filosofia que organize os vários resultados das ciências, de modo a permitir que elas relacionem-se entre si de maneira permanente e sistemática; que elas mantenham-se sempre no âmbito do relativismo; que – e isto é o principal – elas atenham-se à satisfação das necessidades humanas. Essa filosofia não é uma “filosofia científica”, pois não se trata da aplicação dos métodos da ciência à filosofia; ao contrário, é a reflexão filosófica sistematizando, organizando e orientando a prática e a reflexão científicas. Com isso, fica evidente que há diferenças entre o “espírito científico” (próprio à atividade cotidiana dos cientistas) e o “espírito positivo” (mais amplo, generalizante, coordenador e orientador). As conseqüências práticas disso eram evidentes para Augusto Comte desde o início, seja em termos políticos e sociais, seja em termos morais e intelectuais; o desenvolvimento e a sistematização dessas concepções levaram o fundador do Positivismo a fundar também a Religião da Humanidade nos anos seguintes, em parte graças à poderosa ação moral e intelectual exercida sobre ele por Clotilde de Vaux.

O Discurso sobre o espírito positivo, assim como todas as demais obras de Comte, apresenta um forte espírito histórico: por si só isso já rejeita o anticlericalismo, isto é, o combate sistemático às religiões teológicas, predecessoras da religião positiva que afirma o ser humano. Da mesma forma, a cuidadosa distinção entre a prática científica e a avaliação filosófica dos resultados das ciências rejeita o que se chama atualmente de cientificismo. Nas obras posteriores de Comte essas duas perspectivas estarão ainda mais claras, como no Sistema de política positiva e na Síntese subjetiva. Mas, de qualquer maneira, publicado em 1844, o Discurso sobre o espírito positivo é a derradeira obra pré-religiosa de Augusto Comte – não por acaso, posterior ao Sistema de filosofia positiva (1830-1842) mas um pouco anterior ao seu intenso, breve e respeitoso relacionamento com Clotide de Vaux (no “ano sem par” – 1845-1846). A próxima obra escrita e publicada por A. Comte já evidenciaria a Religião da Humanidade e também o viés marcadamente político e social do Positivismo, como efeitos tanto de Clotilde quanto da II República Francesa (1848-1851): o Discurso sobre o conjunto do Positivismo, de 1848.

A inclusão do Discurso sobre o espírito positivo na versão nova da coleção “Os pensadores” apresenta, portanto, um caráter bastante ambígüo. A publicação em si desse volume tem quer comemorada; o fato de ele ser vendido promocionalmente em conjunto com o v. 1 certamente o disseminará de uma forma que os demais volumes não conseguirão. Entretanto, os motivos profundos que levaram à sua inclusão baseiam-se em preconceitos; enquanto Augusto Comte desejava superar a oposição suicida entre a ordem e o progresso, as organizadoras da versão nova dos “Pensadores” insistem nessa oposição, transformando e mantendo, por um lado, a ordem em uma ordem retrógrada e o progresso em um progresso anárquico.

3. Sobre a edição e a tradução do Discurso na atual coleção “Os pensadores”

Para concluir, convém fazermos alguns comentários sobre as presentes edição e tradução do Discurso.

Como dissemos logo no início deste texto, os livros da nova coleção “Os pensadores” estão bastante bem cuidados em termos editoriais: papel de qualidade (Chambril Avena 80 g/cm2, agradável ao tato), tamanho aceitável (16,3 x 23,8 cm), capa dura, arte da capa agradável. A edição é boa e, além do sumário no início do livro, há também uma tabela sinóptica no final, indicando os temas de cada um dos parágrafos do livro.

 

Fonte: https://pensadores.folha.com.br/index.html.

 

Todavia, essa edição apresenta uma série de pequenos erros que incomodam e que podem atrapalhar um pouco a leitura; todos esses erros são devidos às decisões editoriais, mas alguns deles poderiam ter sido sanados antes da publicação caso a editora tivesse tomado a decisão simples – e, aliás, muito razoável – de consultar positivistas para rever a tradução e/ou a edição; por outro lado, alguns outros erros foram impostos pelo lamentável acordo ortográfico de 1990 (cujo objetivo, no fundo, era aumentar o mercado editorial brasileiro nos países lusófonos, especialmente africanos).

Comecemos pelo nome do autor: Augusto Comte. Desde que o Positivismo passou a ser difundido no Brasil, em meados do século XIX, a versão em português do nome francês “Auguste” era corrente; assim, em todos os bem mais de 500 títulos da Igreja Positivista do Brasil, publicadas entre c. 1880 e c. 1930, o nome do filósofo está devidamente em português: Augusto. Esse hábito saudável, de verter para a língua pátria os prenomes estrangeiros, manteve-se até bem depois, como se pode ver na capa da tradução de Ivan Lins para os Opúsculos de filosofia social, de 1972. Esse hábito de traduzir para a língua pátria é comum também nos países de línguas espanhola, inglesa, francesa e alemã.

 

Fonte: https://www.estantevirtual.com.br/sebotraca/augusto-comte-biblioteca-dos-seculos-opusculos-de-filosofia-social-2615776725?show_suggestion=0

 

Entretanto, em meados dos anos 1980, talvez já na década de 1970, passou a constituir-se no Brasil um estranho consenso, no sentido de que os prenomes não seriam traduzíveis. É verdade que há nomes que são, de fato, intraduzíveis, na medida em que não há versões em português para eles: nomes em japonês ou em mandarim apresentam em particular essa dificuldade. Acessoriamente, pode-se considerar o respeito aos países de origem e, portanto às suas culturas. Mas o fato é que nenhuma dessas considerações obriga-nos a rejeitar a tradução dos prenomes. É evidente que “Pierre”, “Pietro” e “Peter” são as versões em francês, italiano e inglês para “Pedro” e, como sabem por exemplo os hispanofalantes, não há nenhum problema, nem há nenhuma ofensa, em ler no original “Pierre”, “Pietro” ou “Peter” e passar para “Pedro” na tradução. Adicione-se a isso o fato de que o nome “Augusto” já estava consagrado no Brasil (e, convém notar, também em Portugal), com um uso extremamente difundido e, acima de tudo, mais que centenário.

Um outro problema derivado do nome do autor, mas agora relativo ao seu sobrenome, é o adjetivo derivado de “Comte”. Mais uma vez: tradicionalmente, por um hábito mais que centenário, sempre se usou no Brasil o adjetivo “comtiano”. O “i” surgiu da pronúncia carioca dessa palavra, o que não é problema nenhum. Mas, contrariando a forma consagrada, o malogrado acordo ortográfico de 1990, entre suas inúmeras e equívocas previsões estipulou que o nome de origem deve ser rigorosamente seguido para que se forme o respectivo adjetivo. Dito de outra maneira: devido ao acordo, literalmente por decreto deixou-se de lado o “comtiano” e passou-se ao “comteano”, a partir do nome “Comte”.

Vejamos o título do livro. Na capa aparece apenas “Discurso sobre o espírito positivo”; até aí, tudo bem: está conforme o título original. Mas na folha de rosto percebemos um estranho subtítulo: “ordem e progresso” – e, pior, em caixa baixa (isto é, em letras minúsculas). Mas o original não possui esse tal subtítulo, ainda que o “Ordem e Progresso” seja uma das máximas do Positivismo.

Essa estranha inclusão de subtítulo poderia ter sido decidida arbitrariamente pela editora, como se achasse bonito, ou conveniente, ou sagaz (em uma “sacada” comercial). Mas há algumas referências no texto que nos informam que o texto de base seria uma “segunda edição”, publicada em 1908, sendo que a “primeira edição” seria de 1898. Uma busca rápida pelo portal Internet Archive logo nos fornece o resultado que esclarece a situação; veja-se a imagem abaixo, que corresponde à folha de rosto da edição francesa usada na tradução do volume ora publicado na coleção “Os pensadores”.

 


Fonte: https://archive.org/details/discourssurlesp00parigoog/page/n11/mode/2up.

 

O “Ordem e Progresso”, que o tradutor (Walter Sólon) entendeu ser um subtítulo, atua na folha de rosto do original precisamente como o que é: u’a máxima política; se quiserem, pode ser entendida como uma epígrafe, mas de maneira nenhuma como um subtítulo. Vejamos a capa de um opúsculo da Igreja Positivista do Brasil escolhido um pouco ao acaso e que ilustra o que argumentamos.

 

Fonte: arquivo pessoal.

 

Esse opúsculo, que é uma prestação pública de contas (financeiras mas, acima de tudo, políticas) de 1892, apresenta uma grande quantidade de elementos informativos; alguns são elementos de instituição, data e lugar, outros referem-se ao tema (o título, o subtítulo, a epígrafe) e outros referem-se aos valores religiosos e políticos mobilizados: neste último caso, as máximas positivistas encontram-se entre a instituição promotora (“Relijião da Humanidade”, com a ortografia simplificada proposto por Miguel Lemos) e o título do opúsculo. Deve-se notar que, mesmo em meio à profusão de informações, não há a menor dúvida de que as frases “O Amor por Princípio i a Ordem por Baze; o Progresso por Fim”, “Viver para outrem” e “Viver às claras” não integram o título ou o subtítulo e que poderiam, em certo sentido, ser entendidas como epígrafes do documento.

Certo: podemos admitir, sem dificuldade, que o erro de inserir o “Ordem e Progresso” como subtítulo acaba sendo fácil de cometer. Mas é exatamente essa a questão: sendo fácil de cometer, bastaria às organizadoras da coleção e/ou ao tradutor do livro que fizessem uma simples consulta aos positivistas brasileiros para dirimir a dúvida.

Ao longo deste texto comentamos em vários momentos que o Discurso é de 1844; entretanto, a informação dada logo no início da tradução é que a “primeira edição” seria de 1898 e a “segunda”, de 1908. Esses dois erros são bem menos escusáveis e são bem mais devidos às decisões das organizadoras da coleção e/ou do tradutor. A decisão que eles tomaram, juntamente com a inclusão de um suposto subtítulo, foi a exclusão às referências de que a edição que empregaram para traduzir o livro era a edição comemorativa do centenário de nascimento de Augusto Comte. No alto da folha de rosto do original está escrito com todas as letras, de maneira muito clara e em caixa alta: “Edição do centenário de Augusto Comte”. Mais do que isso: na suposta “primeira edição”, há apenas um “Aviso do editor”; no final desse “Aviso” há uma nota adicional, cujo início é o seguinte: “Nesta segunda edição...”. Embora haja aí uma ambigüidade a respeito da “segunda” edição, o fato é que não há nenhum título, como aparece na atual versão brasileira (“Nota do editor à 2ª edição”) e, de qualquer maneira, deveria ser evidente que se trata de uma segunda edição em relação à versão comemorativa anteriormente publicada. Nada disso está claro na atual versão da coleção “Os pensadores”; mas, como já indicamos, uma simples consulta aos positivistas brasileiros resolveria tudo isso com rapidez e facilidade.

 

 

Fonte: https://archive.org/details/discourssurlesp00parigoog/page/n21/mode/2up.

 

Por fim: limitando-nos à “Nota do editor da 1ª edição” (cuja tradução correta seria “Aviso do editor”), notamos que na edição brasileira o ano de 1851 – em que o v. 1 do Sistema de política positiva foi publicado – aparece como sendo 1951. Mais uma vez, um erro que poderia ser muito facilmente sanado com uma consulta simples aos positivistas brasileiros.

Para concluir estes comentários, vale a pena lembrarmos que não é só a atual versão dos “Pensadores” que trata mal o volume dedicado a Augusto Comte: as edições anteriores cometeram também erros mais ou menos graves no volume dedicado a Augusto Comte; esses erros foram deliberados desde o início e sua perpetuação, ao longo das várias edições da coleção, foi igualmente deliberada. Sem nos deter em pormenores, podemos de pronto indicar quatro problemas:

1)      o emprego da forma francesa para o prenome do pensador, contra o uso consagrado no Brasil;

2)      o uso de “h” minúsculo para escrever “Humanidade” – que, tanto nos originais de Comte quanto nos escritos da Igreja Positivista do Brasil e dos positivistas brasileiros de modo geral, sempre foram escritos com “h” maiúsculo –;

3)      a inclusão de um parágrafo presente no “Prefácio” da primeira edição francesa do Catecismo positivista, em que A. Comte refere-se ao czar Nicolau I: esse parágrafo Comte decidiu suprimir das edições seguintes, o que foi feito na tradução brasileira desse volume, da lavra de Miguel Lemos, mas que a editora Abril Cultural, por obra de J. A. Gianotti, decidiu incluir novamente – sem que essa inclusão indevida fosse explicada ou justificada e ainda menos afirmada com clareza para os leitores –;

4)      um erro tipográfico presente no título do Calendário positivista concreto, o famoso “Calendário histórico” positivista. O título correto é “Calendário positivista para um ano qualquer ou quadro concreto da preparação humana”; entretanto, na palavra “preparação” faltou o “p” inicial, convertendo a palavra em “reparação”. O sentido de cada uma das duas palavras é muito diferente e, sem sombra de dúvida, gera equívocos.

 



[1] Eis a relação completa dos títulos, por ordem de lançamento:

  1. Platão – A República
  2. Auguste Comte – Discurso sobre o espírito positivo
  3. bell hooks – Ensinando a transgredir
  4. René Descartes – Regras para a orientação do espírito
  5. Max Weber – Ciência e política: duas vocações
  6. Voltaire – O preço da justiça
  7. Claude Lévi-Strauss – Antropologia estrutural
  8. Santo Agostinho – Sobre a mentira
  9. Michel Foucault – A sociedade punitiva
  10. Mary Wollstonecraft – Reivindicação dos direitos das mulheres
  11. Jean-Jacques Rousseau – Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens
  12. Nicolau Maquiavel – A arte da guerra
  13. Adam Smith – Teoria dos sentimentos morais
  14. Karl Marx – Manuscritos econômico-filosóficos
  15. Frédéric Bastiat – A lei
  16. Carter G. Woodson – A (des)educação do negro
  17. Aristóteles – Sobre a alma
  18. Ludwig von Mises – As seis lições
  19. Immanuel Kant – Crítica da razão pura
  20. Luiz Gama – Humor e crítica: armas do pioneiro abolicionista
  21. Étienne de la Boétie – Discurso sobre a servidão voluntária
  22. Ruth Benedict – Padrões de cultura
  23. Émile Durkheim – As regras do método sociológico
  24. John Stuart Mill – Sobre a liberdade
  25. Arthur Schopenhauer – A arte de ter razão
  26. Friedrich Hayek – O caminho da servidão
  27. Edison Carneiro – Ladinos e crioulos
  28. Ludwig Feuerbach – A essência do cristianismo
  29. Thomas Hobbes – Leviatã
  30. Leo Strauss – Direito natural e história

[2] A esse respeito, cf. meus textos “Positivismo como cortina de fumaça para os erros da direita brasileira” (disponível em https://monitormercantil.com.br/positivismo-como-cortina-de-fumaca-para-os-erros-da-direita-brasileira/) e “Os conservadores entre alguns acertos e muitos erros – avaliando o conservadorismo à luz do Positivismo” (disponível em https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2021/10/a-revista-insight-inteligencia-em-sua.html).