Reproduzo abaixo o roteiro da oitva sessão do Curso livre de política positiva, ocorrida no dia 27 de abril, transmitida no canal Positivismo (disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=OjCAlJl3Q_c). Nessa seção, abordei a teoria positiva do governo, em particular concluindo a teoria do poder Temporal e iniciando a do poder Espiritual.
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Súmula
Sociologia Estática VI: teoria do governo: o poder Temporal (concl.); o poder Espiritual
Roteiro
- Concluindo a teoria do poder Temporal:
o Augusto Comte observa que o governo tem que pertencer à classe social dominante, o que equivale a dizer que ele tem que ser exercido pelo patriciado
§ A fórmula que condensa as relações entre superiores e inferiores é esta: “dedicação dos fortes pelos fracos, veneração dos fracos pelos fortes”
§ Essa fórmula pode parecer extravagante para alguns, mas é necessário notar dois aspectos centrais a seu respeito para que ela seja entendida:
· Desde o fim da Idade Média, no Ocidente, vivemos em uma época de crise, de transição, em que os valores antigos não são mais respeitados e o desrespeito sistemático às regras, aos valores, às instituições é considerado o supremo valor e a máxima realização do “progresso”
o Assim, essa proposta é um princípio que visa a evitar, a solucionar, a orientar e a aproveitar conflitos sociais; é uma proposta normal (isto é, que considera o estado normal) e sua aparente extravagância deve-se ao caráter metafísico, crítico, da civilização da nossa época
· A dedicação dos fortes pelos fracos, correspondente à orientação social e altruísta das atividades, é uma preocupação maior e de consequências imediatas mais amplas que a veneração dos fracos pelos fortes, que por sua vez é correspondente ao respeito dos subordinados aos seus superiores
o É claro que se a cobrança da dedicação dos fortes deve ser grande (e até maior que o respeito dos fracos), isso não exime os fracos de serem respeitosos pelos fortes
§ O governo tem que ser do patriciado, não da burguesia
§ O governo tem que ser exercido com fins sociais
§ Como deveria ser evidente, o exercício do governo é diferente das atividades industriais: enquanto estas são parciais e estimulam diretamente o egoísmo, o governo é geral e tem que ser inspirado sempre pelo altruísmo
· Se o patrício que se torna governante mantivesse o caráter “privado” de sua atuação no governo, ele manteria o espírito da “separação dos ofícios” e negaria na prática a “convergência dos esforços”, que é o objetivo e a justificativa do governo
§ No período de transição, a afirmação do caráter social e de vistas gerais do governo pode ter que ser reafirmado por meio de um governo exercido por um proletário
- Teoria do poder Espiritual:
o A teoria do poder Espiritual é complementar à teoria do poder Temporal
§ A sua justificativa teórica, em termos sociológicos, é o aforisma: “nenhuma sociedade pode perdurar sem alguma forma de poder Espiritual”
o O poder Espiritual, como o poder Temporal, tem por objetivo basicamente a afirmação das vistas gerais
§ As vistas gerais afirmadas pelo poder Espiritual são mais amplas que as do poder Temporal:
· por um lado, afirmam a realidade planetária do ser humano, ultrapassando as fronteiras nacionais
· por outro lado, afirmam a realidade histórica do ser humano, afirmando a preponderância do passado e do futuro sobre o presente
§ Augusto Comte (1929, v. II, p. 313-319) estabelece uma série de contraposições sistemáticas entre os poderes Temporal e Espiritual:
§
CARACTERÍSTICA |
PODER ESPIRITUAL |
PODER TEMPORAL |
Âmbito |
Eterno |
Material |
Duração |
Permanente |
Temporário |
Caráter
intelectual |
Geral |
Especial |
Caráter
geográfico |
Global |
Local |
Caráter social |
Intérprete da continuidade |
Organizador da solidariedade |
Relação com a
história |
Passado,
futuro, presente |
Presente |
Fundamento |
Conselho |
Força |
Aspecto-síntese |
Teórico |
Prático |
o Comparando os dois poderes, é fácil considerar que o poder Espiritual é mais representativo da Humanidade que o Temporal
§ Isso pode conduzir com facilidade à presunção do poder Espiritual de ser o responsável pela condução dos negócios públicos
§ Entretanto, o poder Temporal é o prático e o responsável pela gestão dos negócios públicos, ao passo que o Espiritual é o teórico e o responsável pelo aconselhamento
§ Assim, para que as funções sejam claras e bem desenvolvidas, é imperioso que ambos os poderes sejam separados à essa é “separação dos dois poderes”, que corresponde ao princípio político prático fundamental do Positivismo (vulgarmente conhecido como “laicidade do Estado”)
§ Além de separados, os poderes devem ser subordinados em seus respectivos âmbitos de atuação; em termos concretos, isso quer dizer quem conduz efetivamente a política é o poder Temporal, não o Espiritual
§ Essa é uma aplicação prática do princípio teórico segundo o qual os fenômenos mais nobres modificam os mais grosseiros subordinando-se a eles
o Augusto Comte critica a tendência moderna, prevalecente desde o fim da Idade Média, de considerar as relações sociais e, daí, a teorização sócio-política cada vez mais em termos objetivistas, isto é, temporais, rejeitando as influências morais (muito mais que as intelectuais)
§ A consequência dessa rejeição da moralidade – exemplificada por Maquiavel, que pela Ciência Política é celebrado como o iniciador dessa tendência – é o entendimento de que as relações sócio-políticas são entendidas cada vez mais em termos de força, poder e violência
§ O amoralismo afirmado logo se transformou em imoralismo
§ A consequência moral da negação da moralidade é a afirmação e a celebração do egoísmo como padrão moral humano supremo, explícito (como em Hobbes) ou implícito (na conduta cotidiana)
· Vale notar que no período entre 1870 (na Europa) e 1920 (no Brasil) até 1945 (no mundo) as concepções mais brutais e violentas da política foram afirmadas, contra o Positivismo, que, aliás, viu-se alvo de desprezo exatamente porque sempre rejeitou por princípio a violência e a brutalidade
· Esse período que se inicia em 1870 na Europa corresponde à influência de Bismarck na política internacional, bem como ao comunismo; após 1920 começa a ocorrer também a influência dos nazifascismos, todos eles afirmadores do cinismo e da violência
o Em certo sentido, a teoria do poder Espiritual é a teoria mais importante do Positivismo
§ O estabelecimento de um poder Espiritual positivo é a consequência necessária e desejada pelo Positivismo desde o início da carreira de Augusto Comte
§ Esse estabelecimento decorre também, é claro, dos diagnósticos que Augusto Comte fez da crise moderna:
· Duplo movimento moderno, com a decadência da antiga organização social (teológica, feudal e militar) e o surgimento de uma nova organização social (positiva, industrial e pacífica)
· Ultrapassagem da forma de pensar absolutista para a forma de pensar relativista à a mais ampla revolução por que já passou o ser humano