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15 outubro 2024

Monitor Mercantil: "O caso Sílvio Almeida e três padrões da moralidade pública"

No dia 8 de Descartes de 170 (14.10.2024) foi publicado um artigo de nossa autoria no jornal carioca Monitor Mercantil; o artigo intitula-se "O caso Sílvio Almeida e três padrões da moralidade pública".

O artigo pode ser lido no portal do periódico, aqui: https://monitormercantil.com.br/o-caso-silvio-almeida-e-tres-padroes-da-moralidade-publica/

Reproduzimos abaixo o texto.

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O caso Sílvio Almeida e três padrões da moralidade pública 

Em 6 de setembro de 2024 o Ministro dos Direitos Humanos, Sílvio Almeida, foi demitido, sob a grave acusação de assédio sexual – assédio que ocorreria desde final de 2022, seria praticada por um Ministro de Estado, contra uma colega Ministra de Estado (Anielle Franco, titular do Ministério da Igualdade Racial) (além de contra outras mulheres) e alegadamente integrava um padrão de assédio moral do denunciado. Os detalhes do episódio são preocupantes, pois (1) envolvem a alta administração federal em um longo período de tempo e em um governo cuja missão é recuperar a moralidade pública após o caos lavajatista-ultraliberal-neofascista e (2) envolvem uma organização não governamental estrangeira (a estadunidense Me Too), em vez dos adequados órgãos públicos (a Presidência da República e a Controladoria-Geral da União).

Na semana em que esse episódio desenrolou-se houve intensa agitação midiática; mas, como sói acontecer, passados alguns dias o tema desapareceu do noticiário. Ainda assim, vale a pena brevemente o reconsiderarmos, sob uma luz que não foi abordada: as perspectivas de moralidade pública. O nosso argumento é bastante direto: podemos identificar pelo menos três padrões de moralidade, a da direita, a da esquerda e o republicano – dois dos quais são insatisfatórios e um terceiro que não é (não é mais, ou ainda não é) praticado.

Comecemos notando que a vida política tem que se submeter à moral. Essa concepção pode parecer contraintuitiva; a reflexão academicista afirma, a partir de Maquiavel, que a política é “autônoma” em relação à moral, sugerindo assim que a prática política tem parâmetros próprios, irredutíveis, ou melhor, incompatíveis com a moral. Assim, a teoria política academicista postula que no âmbito privado é correto falar a verdade, honrar a palavra dada etc., mas na vida pública dá-se o inverso: mentir, trair, enganar é que seriam as virtudes. Esse amoralismo que logo se revela um imoralismo é vendido como “realismo”.

Claro, essas concepções chocantes são falsas: agir conforme o que se afirma e honrar a palavra dada são princípios elementares em qualquer lugar; inversamente, quem mente e trai, quem é incoerente em termos de alianças e práticas, logo é recriminado e perde apoio. Mais: quando a mentira, a hipocrisia, o cinismo viram a regra, o regime político como um todo perde legitimidade. Evidentemente, se a noção de república – isto é, de “res publica”, de coisa pública – tem algum sentido, tal sentido vincula-se à subordinação da política à moral; quando o bem comum é desrespeitado e usado como uma pomposa desculpa para o enriquecimento privado e o benefício de grupos particularistas e excludentes, o sistema político como um todo entra em crise e buscam-se opções antissistêmicas: essa é a origem profunda da aventura autoritária a que assistimos desde há dez anos, com o lavajatismo, o ultraliberalismo e o neofascismo. Mas, enfim, a crise do sistema confirma o primado da subordinação da política à moral, embora as opções buscadas sejam profundamente antirrepublicanas.

Em face da subordinação da política à moral, a “direita” considera basicamente que os valores morais devem ser “conservadores”; mas isso é uma forma meio enviesada de dizer que a sociedade moderna tem que se pautar por valores teológicos, em particular cristãos; não por acaso, esses conservadores costumam idealizar para as sociedades modernas uma volta no tempo, para quando se seguiam os parâmetros teológicos com ou sem a regulação da igreja (a Idade Média, ou as épocas de Abraão, Moisés ou São Paulo). Lidando mal com as concepções e instituições que não sejam as suas próprias, os conservadores pregam uma desaceleração geral do mundo; assim, de maneira confusa, parcial e muito incoerente pregam um certo respeito à continuidade histórica. Por fim, considerando que o cristianismo em si regulou apenas vida privada mas foi omisso sobre a vida pública, a subordinação da política à moral para a direita conservadora consiste em adotar parâmetros familistas e/ou um clericalismo generalizado.

Uma outra direita, mais recente, só é direita e só é “conservadora” em oposição à esquerda (e à esquerda revolucionária): são os liberais economicistas. Também para eles, a vida pública reduz-se à vida privada; mas em vez de clericalismo ou familismo, os parâmetros privados que devem ser generalizados são os das empresas privadas: a sociedade é vista como um vasto mercado; o Estado deve ser o seu regulador geral; a sociedade compõe-se de famílias e empresas, isto é, de consumidores e vendedores. Moralidade toda própria, sem dúvida.

Da parte da “esquerda”, especialmente a marxista, a moralidade é confusa. Por um lado, a partir do materialismo, finge-se que não há subjetividade nem moralidade em jogo; por outro lado, evidentemente há fortes princípios morais em ação. A moral pública é afirmada sobre a moral privada; mas não existe bem comum, apenas o bem de uma classe sobre outras; como as classes estão perpetuamente em conflito, só haverá bem comum quando não houver mais classes. O passado e o presente são hipócritas ou alienantes; até haver, no futuro, uma revolução salvadora, a moral pública consagra o conflito, a violência, a hipocrisia sistêmica e constitutiva.

Uma esquerda mais recente é a identitária. Ela também consagra a desconfiança e afirma o conflito constitutivo e sistêmico; mas não vê resolução desses problemas. A moral pública, então, basicamente é a moral da “maioria”, que, por definição, é opressora e cujos pecados constitutivos devem ser expiados eternamente. Em face disso, a esquerda identitária promove uma “contra-moral”, em que a história, ou melhor, o estudo da história serve para revelar e estimular a culpa de opressores (que são a “maioria”), bem como o ressentimento dos perseguidos e humilhados (sempre as “minorias”, que devem sempre ser compensadas). As preocupações privadas tomam conta da moral pública, que rejeita a confiança e estabelece um punitivismo sistemático e particularista como objetivo da política.

O caso Sílvio Almeida deve ser entendido com o identitarismo e seu punitivismo, particularismo raivoso e ânsia expiatória. Almeida e Franco são promotores de diferentes vieses identitários: ele, do identitarismo racialista; ela, do identitarismo feminista. Embora a demora para a denúncia sugira uma aliança temporária entre eles, os canais não oficiais, a presunção de culpa do denunciado e a conseqüente rapidez com que o denunciado foi demitido após a denúncia ilustram bem a lógica identitária: ânsia punitivista, desconfiança sistemática e generalizada, intenso particularismo moral e social, estímulo conjugado de culpa e ressentimento. Com dois identitarismos entrando em choque direto, para além da ânsia punitiva não se vê muito bem como o bem público está sendo servido; mas o que se percebe é que, em sendo verdadeiras as acusações feitas contra o ex-Ministro (cuja culpa ainda não comprovada), a mentalidade da “maioria” sempre culpada e da minoria sempre ressentida foi necessariamente insuficiente para regular o comportamento público e privado de um alto promotor do identitarismo e impedir um comportamento inaceitável sob qualquer ponto de vista.

No vaivém entre direita e esquerda, conservadores/retrógrados e revolucionários, ordem retrógrada e progresso anárquico, o bem comum é sacrificado: não se reconhece um efetivo bem comum (sempre sacrificado pelos particularismos, pelos conflitos e pelo punitivismo) nem se valoriza efetivamente a confiança pública (entre governantes e governados e entre os cidadãos). Ora, a solução para isso é deixar de lado as oposições entre ordem e progresso e assumir que esses dois elementos devem andar juntos; que o bem comum deve ser afirmado e que se deve estimular a confiança na sociedade; além disso, os âmbitos público e privado, sem serem radicalmente separados, devem ter suas particularidades respeitadas. Essas concepções, tão incomuns nos dias de hoje, têm um nome e uma autoria: trata-se do republicanismo, conforme delineado pelo fundador da Sociologia, o grande Augusto Comte. Cumpre valorizá-las e aplicá-las.

 

Gustavo Biscaia de Lacerda é doutor em Sociologia Política (UFSC) e sociólogo da UFPR.

Vídeos dos ciclos de palestras do Centro Positivista do Lavradio: laicidade e utopia republicana

Nos dias 27 e 28 de Carlos Magno de 169 (13 e 14 de julho de 2023) foi criado o Centro Positivista do Lavradio, no Rio de Janeiro, com sede gentilmente compartilhada pela Sociedade Brasileira de Belas Artes. Na ocasião, marcando o acontecimento, ocorreu o I Ciclo de Palestras do Centro Positivista do Lavradio.

Já nos dias 13 e 14 de Frederico de 169 (17 e 18 de novembro de 2023) ocorreu o II Ciclo de Palestras do Centro Positivista do Lavradio.

Em cada uma dessas ocasiões fizemos palestras sobre e a partir do Positivismo: no dia 28 de Carlos Magno apresentamos a palestra "O Positivismo e a laicidade do Estado"; no dia 14 de Frederico apresentamos a palestra "Crítica à República e desistência de uma utopia".

Essas exposições foram gravadas; os seus vídos estão indicados abaixo:

- palestra "O Positivismo e a laicidade do Estado": disponível aqui: https://acesse.dev/J8lFm

- palestra "Crítica à República e desistência de uma utopia", parte 1: disponível aqui: https://l1nq.com/gD7KS

- palestra "Crítica à República e desistência de uma utopia", parte 2: disponível aqui: https://encr.pw/yjp6K

10 setembro 2024

Monitor Mercantil: O que é um voto republicano consciente?

A partir do manifesto "Programa republicano mínimo - orientações para o voto no dia 6 de outubro", redigimos um artigo que foi publicado no jornal carioca Monitor Mercantil do dia 1º de Shakespeare de 170 (9.9.2024), sob o título "O que é um voto republicano consciente?".

Reproduzimos abaixo a versão publicada no jornal. O original pode ser lido aqui: https://monitormercantil.com.br/o-que-e-um-voto-republicano-consciente/.

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O que é um voto republicano consciente?

Alguns parâmetros e algumas orientações para escolher candidatos através do voto consciente. Por Gustavo Biscaia de Lacerda


Como ocorre a cada dois anos no Brasil, neste 2024 teremos eleições; nesta rodada elegeremos prefeitos e vereadores. As campanhas estão a pleno vapor, desde o dia 16 de agosto. Como sempre ocorre, partidos políticos, Justiça Eleitoral, meios de comunicação, vários grupos da sociedade civil e candidatos afirmam que é importante “votar com consciência”, “votar de maneira esclarecida”, “buscar os melhores candidatos”, mas muito raramente, para não dizer nunca, são apresentados com clareza os critérios que definem a “consciência”, o “esclarecimento”, os “melhores”.

No máximo há a afirmação de que os candidatos escolhidos devem “representar” os eleitores, com isso querendo dizer que os eleitores devem buscar candidatos que pensem e ajam de maneira semelhante aos próprios eleitores; mas, dizendo com clareza, esse parâmetro “demográfico” é péssimo, pois simplesmente desconsidera, quando não despreza, os verdadeiros interesses coletivos e públicos.

Assim, correndo um pouco o risco de soar prepotente, propomo-nos aqui a indicar alguns parâmetros gerais e algumas orientações específicas para a escolha de candidatos a prefeito e a vereador nas próximas (e em todas as demais) eleições. O pressuposto fundamental nessas sugestões é que no Brasil vivemos em uma república, e que isso não é somente um regime político, mas um denso e profundo programa político, social e moral. Como se verá, à primeira vista talvez o programa abaixo pareça muito exigente; mas, por um lado, isso não é motivo para desconsiderá-lo; por outro lado, isso indica o quanto estamos distantes do republicanismo no Brasil.

Com antecedentes históricos que recuam pelo menos até Tiradentes, no final do século 18, desde 15 de novembro de 1889 o Brasil é uma república. Embora à primeira vista o conceito de “república” pareça pouco, na verdade ele é de fato um dos mais densos e importantes conceitos. A noção de república é ao mesmo tempo um ideal e uma realidade: surgida do desenvolvimento histórico, ela também deve orientar a nossa atuação no sentido de valores e a práticas considerados bons, corretos e justos. É claro que nem sempre esses ideais se realizam na prática, mas isso não é motivo para desvalorizá-los ou rejeitá-los.

O sentido fundamental da república é a realização do bem comum, superando o individualismo, o egoísmo, os particularismos. Além disso, a república opõe-se à monarquia, embora isso nem sempre seja tão evidente, daí a república opõe-se à sociedade de castas; isso quer dizer que na república o valor de uma pessoa é dado pelo mérito individual, em vez de ser pelas condições em que nasceu, ou seja, pelo “berço”.

Se a república é a dedicação ao bem comum, é claro que o conjunto da sociedade deve sempre ser levado em consideração, e todos devem orientar suas condutas para a melhoria da vida de todos. Daí se segue que a fraternidade universal é um valor básico e, portanto, o respeito mútuo e a afirmação da dignidade fundamental de todos são pilares da vida coletiva.

Além disso, as relações sociais têm que ser pacíficas: qualquer forma de violência degrada as relações humanas e o ambiente social. O pacifismo e a fraternidade universal impõem, por seu turno, o repúdio ao racismo e às discriminações de “gênero”; da mesma forma, eles exigem o respeito ao meio ambiente e, claro, aos animais. De maneira mais ampla, como a maior parte da sociedade é composta pelo proletariado (ou seja, pelos trabalhadores), os esforços sociais têm que se orientar para a melhoria das suas condições de vida: é esse o objetivo que se deve orientar a ação dos “capitalistas” e da classe média.

Acima de tudo, a dedicação ao bem comum significa a subordinação da política à moral; isso não é um “moralismo” sistemático, mas implica subordinar a política aos princípios e valores maiores da Humanidade, com a família subordinando-se à pátria, e a pátria subordinando-se à Humanidade. Somente assim a política pode ser a dedicação ao bem comum – e, a partir disso, ser fiscalizável e responsabilizável.

O resultado disso é a regra do “viver às claras”: cada um deve adotar valores em sua vida que sejam publicamente defensáveis (e viver conforme esses valores). No caso dos governantes e das figuras públicas, o viver às claras também significa que todos os seus atos são responsabilizáveis, passíveis de acompanhamento, avaliação e cobrança públicas. Como consequência do viver às claras, todos devem sempre falar a verdade e cumprir o prometido – ou, em outras palavras, não se deve mentir nem se deve trair.

Por fim, a instituição republicana básica é a separação entre igreja e Estado: quem aconselha não pode usar a violência do Estado para fazer-se valer; inversamente, o Estado não pode condicionar os seus serviços à aceitação de crenças oficiais. Dessa forma, os sacerdotes devem manter-se afastados do Estado a fim de garantirem sua dignidade, assim como o Estado deve recusar sacerdotes para não ser usado como instrumento de opressão.

Esse afastamento dos sacerdotes em relação à política não quer dizer alienação nem indiferença, mas que, como sacerdotes, não podem trabalhar para o Estado. Daí se seguem as liberdades fundamentais: as liberdades de crença, de manifestação e de associação, além do direito de ir e vir, o habeas corpus e o devido processo legal.

Tudo isso converge para as seguintes orientações específicas

Em primeiro lugar, deve-se votar em quem apresentar estes comportamentos: quem respeitar a laicidade do Estado; a dignidade humana e a fraternidade universal; a dignidade do espaço público e das instituições republicanas; a dignidade e as condições de vida da população brasileira, em particular dos trabalhadores, dos mais pobres e dos povos indígenas; a dignidade da família, independentemente da orientação sexual de cada família; a dignidade das mulheres; quem combater o racismo e outras discriminações; quem defender o meio ambiente e as condições de vida dos animais.

Em segundo lugar, não se deve votar em quem apresentar estes comportamentos: quem for sacerdote (padre, pastor etc.); quem usar o Estado para promover cultos; desvalorizar os problemas sociais e/ou criminalizar a pobreza; promover a cultura da violência e estimular o uso de armas de fogo pela população civil; promover valores e práticas exclusivistas e excludentes, incluindo aí as chamadas pautas identitárias; negar os problemas ambientais (os “negacionistas climáticos”); promover a “cultura do cancelamento” e a “cultura da baixaria”; tiver histórico de ligação com o crime; promover o racismo, a misoginia e preconceitos diversos.

Parece muito? Talvez. Mas, bem vistas as coisas, isso é o mínimo de uma sociedade decente, saudável, digna de ser vivida em conjunto. Menos do que isso é o triste espetáculo que vivemos.

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

28 agosto 2024

Programa republicano mínimo – Orientações para o voto no dia 6 de outubro

IGREJA POSITIVISTA VIRTUAL

Programa republicano mínimo  

Orientações para o voto no dia 6 de outubro

  

1. Introdução: a necessidade de critérios para escolher candidatos

 

Neste ano, no dia 6 de outubro, teremos eleições municipais, em que a população brasileira elegerá seus novos prefeitos e vereadores; desde o dia 16 de agosto temos campanha eleitoral. Os partidos políticos, a Justiça Eleitoral, os meios de comunicação e vários grupos da sociedade civil afirmam que é importante “votar com consciência”, “votar de maneira esclarecida”, “buscar os melhores candidatos”, mas muito raramente, para não dizer nunca, são apresentados com clareza os critérios que definem a “consciência”, o “esclarecimento”, os “melhores”. No máximo há a afirmação de que os candidatos escolhidos devem “representar” os eleitores, com isso querendo dizer que os candidatos devem pensar e agir de maneira semelhante aos eleitores – o que, dizendo com clareza, está muito distante dos verdadeiros interesses sociais.

 

Com o objetivo de auxiliar a reflexão pública e, na medida do possível, orientar nossos concidadãos eleitores na escolha de candidatos a prefeito e a vereador, apresentaremos neste documento alguns critérios positivos e critérios negativos – ou seja, opiniões e comportamentos que os candidatos devem apresentar para serem escolhidos, bem como opiniões e comportamentos que são motivos para rejeitar candidatos.

 

Este manifesto é dirigido a todos e todas os brasileiros e brasileiras, nossos concidadãos eleitores e nossas concidadãs eleitoras. Como se verá, à primeira vista talvez o programa abaixo pareça muito exigente: mas, por um lado, isso não é motivo para desconsiderá-lo; por outro lado, isso indica o quanto estamos distantes do republicanismo no Brasil.

 

Antes, porém, é importante expor os fundamentos políticos, sociais e morais dos critérios que apresentaremos.

 

2. A política positiva e a república

 

Desde 15 de novembro de 1889 o Brasil é uma República. Embora à primeira vista o conceito de “república” pareça pouco, na verdade ele é um dos mais densos e importantes na vida de qualquer cidadão. A noção de república é um ideal: nem sempre esse ideal realiza-se na prática, mas isso não é motivo para desvalorizar o ideal, nem para rejeitá-lo. Vejamos, então, quais são os elementos desse ideal.

 

O sentido fundamental da república é o bem comum: efetivamente se dedicar ao bem-estar coletivo, superando o individualismo, o egoísmo, os particularismos, isso é ser republicano. Além disso, a república também se opõe à monarquia e, portanto, à sociedade de castas; em outras palavras, na república o valor de uma pessoa é dado pelo mérito individual, em vez de ser pelas condições em que nasceu (pelo “berço”).

 

Mais importante do que isso, a dedicação ao bem comum significa a subordinação da política à moral, ou seja, a subordinação da política aos princípios e valores maiores da Humanidade, em que a família subordina-se à pátria e a pátria subordina-se à Humanidade. Somente assim a atividade política pode ser entendida como a dedicação ao bem comum e, a partir disso, ser fiscalizada e responsabilizada.

 

Disso se seguem várias conseqüências. A primeira delas é que o conjunto da sociedade deve sempre ser levado em consideração. A fraternidade universal é um valor básico: como todos devem orientar suas condutas para a melhoria de vida de todos, o respeito mútuo e a afirmação da dignidade fundamental de todos são pilares da vida coletiva. Daí se segue também que as relações sociais têm que ser pacíficas: qualquer forma de violência degrada as relações humanas e o ambiente social. O pacifismo e a fraternidade universal impõem, por seu turno, o repúdio ao racismo e às discriminações de “gênero”; da mesma forma, eles exigem o respeito ao meio ambiente e, claro, aos animais.

 

Uma segunda conseqüência é que, embora toda sociedade moderna seja composta por patrícios e proletários, a maior parte da sociedade é composta pelo proletariado (ou seja, pelos trabalhadores) e os esforços sociais têm que se orientar para a melhoria das suas condições de vida: é esse o objetivo que deve orientar a ação dos patrícios.

 

A regra republicana básica é o “viver às claras”: cada um deve adotar valores em sua vida que sejam publicamente defensáveis e de fato viver conforme esses valores. No caso dos governantes e das figuras públicas, o viver às claras também significa que todos os seus atos são responsabilizáveis, ou seja, são passíveis de acompanhamento, avaliação e cobrança públicas. A publicidade dos atos e das motivações é a regra, nunca a exceção. Como conseqüência do viver às claras, todos devem sempre falar a verdade e cumprir o prometido – ou, em outras palavras, não se deve mentir nem se deve trair.

 

A instituição republicana básica é a separação entre igreja e Estado: o aconselhamento não pode nem precisa da violência do Estado para fazer-se valer, nem o Estado pode condicionar os seus serviços à aceitação de crenças oficiais. Isso é o que se chama vulgarmente de “laicidade”; uma de suas conseqüências é que sacerdotes devem manter-se afastados do Estado a fim de garantirem sua dignidade, assim como o Estado deve recusar sacerdotes para não ser usado como instrumento de opressão. O afastamento dos sacerdotes em relação à política não quer dizer alienação nem indiferença; quer dizer que, como sacerdotes, não podem trabalhar para o Estado.

 

A separação entre igreja e Estado é a base das liberdades fundamentais: são as liberdades de crença, de manifestação e de associação, assim como o direito de ir e vir, o habeas corpus e o devido processo legal. Adicionalmente, os órgãos do Estado – especialmente os que são responsáveis diretos pelo atendimento à população – e os servidores públicos devem ser valorizados, mantendo-se sempre também a dignidade da chamada iniciativa privada.

 

Finalmente, as instituições sociais fundamentais devem ser valorizadas, a começar pela família. Entre a família e a sociedade política (as pátrias) as relações são de complementaridade, não de oposição; o papel da família é o de desenvolvimento afetivo e de educação moral, preparando os cidadãos para a vida na sociedade mais ampla; o papel da sociedade política é o de realizar os trabalhos práticos necessários para manter e desenvolver a vida de todos. Como é mais ampla, a sociedade política regula e protege a família. As pátrias, por sua vez, devem todas unir-se em prol da Humanidade. Assim como os proletários devem ser valorizados e respeitados, as mulheres devem ser valorizadas e ter sua dignidade mantida e afirmada.

 

Esses valores e essas práticas constituem muito do que é a república, embora não a esgotem. Tudo isso almeja a realização dos um dos supremos ideais dos brasileiros e de todos os seres humanos, que é a união da ordem com o progresso. Como dissemos em outro manifesto[1], quando a ordem e o progresso ficam separados, eles tornam-se antagônicos um em relação ao outro, de tal maneira que a ordem transforma-se em ordem retrógrada e opressiva e o progresso torna-se caótico e também opressivo. Apenas a união das duas perspectivas, em que ambas sejam simultaneamente respeitadas e valorizadas, torna possível que cada uma delas seja cumprida. A ordem consiste na consolidação do progresso, ao passo que o progresso é o desenvolvimento da ordem; o vínculo entre ambos é o amor, que, em termos políticos, deve ser entendido em termos de fraternidade, respeito mútuo e tolerância. O respeito à ordem não equivale à submissão cega ou servil ao poder político; da mesma forma, a verdadeira relação entre o poder e os cidadãos não é a de um soldado que se submete ao seu comandante.

 

3. Recomendações positivas: procurar candidatos com este perfil

 

Considerando os valores e os princípios indicados acima, recomendamos que se vote em candidatos a prefeito ou a vereador que apresentem estas características:

 

-        respeitem e façam valer a separação entre igreja e Estado (a chamada “laicidade do Estado”)

 

-        respeitem a dignidade humana e a fraternidade universal

 

-        respeitem a dignidade do espaço público e das instituições republicanas

 

-        respeitem a dignidade e valorizem as condições de vida da população brasileira, em particular dos trabalhadores e dos mais pobres, além dos povos indígenas

 

-        respeitem a dignidade e valorizem a família, independentemente da orientação sexual de cada família

 

-        respeitem e valorizem a dignidade das mulheres

 

-        tenham histórico de combate ao racismo e a outras discriminações

 

-        tenham histórico de defesa da dignidade e das condições de vida dos animais

 

-        tenham histórico de defesa do meio ambiente

 

4. Recomendações negativas: recusar candidatos com este perfil

 

Considerando os valores e os princípios indicados acima, recomendamos que não se vote em candidatos a prefeito ou a vereador que tenham um histórico pessoal e intelectual contrário ao republicanismo. De modo específico, rejeitamos candidaturas que apresentem estas características:

 

-        sejam membros de cleros, ou seja, sacerdotes, padres, pastores ou equivalentes

 

-        promovam o clericalismo nas funções públicas (o uso do Estado para promover cultos e/ou doutrinas)

 

-        desvalorizem os problemas sociais e/ou criminalizem a pobreza

 

-        promovam a cultura da violência, em particular estimulando a difusão e o uso de armas de fogo pela população civil

 

-        promovam valores e práticas exclusivistas e excludentes, incluindo aí as chamadas pautas identitárias

 

-        neguem os problemas ambientais (os “negacionistas climáticos”)

 

-        promovam a “cultura do cancelamento”

 

-        promovam a “cultura da baixaria”

 

-        tenham histórico de ligação com o crime, na forma de apoio ou participação em milícias; de apoio ou participação no crime organizado; de irresponsabilidade pessoal

 

-        promovam o racismo, a misoginia e preconceitos diversos

 

 

 

Curitiba, 28 de agosto de 2024.

 

 



[1] Abaixo-assinado A bandeira nacional republicana não é fascista, de 26 de outubro de 2022, disponível em: https://peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=BR127657.  

29 novembro 2023

O republicanismo da Igreja Positivista

No dia 24 de Frederico de 169 (28.11.2023) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua nona conferência, dedicada ao conjunto do regime.

Em seguida, fizemos nosso sermão; tal sermão consistiu em uma nova exposição da palestra "A Igreja Positivista e a República", originalmente pronunciada no II Ciclo de Palestras do Centro Positivista do Lavradio, no dia 18 de novembro de 2023.

As anotações que serviram de base para essa exposição estão reproduzidas abaixo.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/lM3qW) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/wTmqL). O sermão iniciou-se em 1h 02' 30".

A exposição feita no II Ciclo de Palestras do Centro Positivista do Lavradio encontra-se disponível aqui: - Parte 1: https://www.youtube.com/watch?v=LPWVxrTJCNE - Parte 2: https://www.youtube.com/watch?v=0KH9tVFnn4s&t=2s

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A IPB e a República 

-        Antes de mais nada: desejo congratular os todos os presentes por sua participação no II Ciclo de Palestras do Centro Positivista do Lavradio, bem como todos os expositores e palestrantes

o   Da mesma forma, importa parabenizar nosso correligionário Erlon Jacques de Oliveira por ter tomado a frente e organizado este novo evento

o   Por fim, mas não menos importante, devemos agradecer e parabenizar a direção da Sociedade Brasileira de Belas Artes por participar do evento e permitir que o Centro Positivista do Lavradio tenha lugar em suas instalações

-        Quando fui convidado para participar deste evento, o tema sugerido foi o do título oficial desta exposição: “a Igreja Positivista do Brasil e sua atuação na República”

o   A primeira idéia que me ocorreu, a partir disso, foi estabelecer uma relação de atividades da IPB por um lado desde 1881, quando Miguel Lemos fundou a Igreja, até o glorioso dia de 15 de novembro de 1889 e, por outro lado, desde essa data até 1927, quando ocorreu a transformação de Teixeira Mendes

o   Todavia, por mais útil que seja uma tal relação – e o fato é que esse tipo de lista é cada vez mais e urgentemente necessário! –, parece-me que o tipo de problemas por que a República brasileira atravessa desde há vários anos, bem como o tipo de filosofias políticas que se propõem, atualmente, a oferecer soluções para problemas que elas mesmas criam; enfim, parece-me que a situação presente da nossa República exige um tipo um pouco diferente de reflexão: não estritamente um rol de atividades, mas, antes disso, a inspiração profunda dessas atividades

o   Assim, se o título desta exposição é “A atuação da IPB em favor da República”, o seu subtítulo deve ser: “República brasileira e republicanização do Brasil

-        Indo diretamente ao ponto: sem ignorar ou desprezar os períodos posteriores, que já se referem a outras conjunturas, o fato é que o esforço da IPB, no meio século que vai de 1881 a 1927, foi o de instituir a República no Brasil e o de republicanizar o país

-        O devemos entender por “instituir a República” e “republicanizar o país”?

o   Instituir a República significava substituir a monarquia – regime caracterizado pela sociedade de castas, em que uma família, meramente por decreto divino, tinha o direito nato de governar o país e, daí, supostamente, a capacidade moral, intelectual e prática para tanto – por um regime humano, caracterizado francamente pela busca do bem comum, em que a moral estabelece os parâmetros gerais dos objetivos sociais e da conduta, além do relativismo e da fraternidade, ou seja, em outras palavras, mudar o regime monárquico pelo regime republicano

o   Republicanizar o país significa(va) desenvolver os usos e costumes próprios à república, ou seja, desenvolver na prática o conteúdo social e moral indicado no projeto da instituição da república; de maneira mais concreta, esse aspecto consiste em proscrever a violência nas relações internas e nas relações externas, substituindo-a pela fraternidade universal; estabelecer e garantir as plenas liberdades de pensamento, expressão e associação; garantir a plena liberdade industrial; desenvolver as relações industriais no sentido dos deveres mútuos entre patrões e empregados

o   Em termos de sociologia política contemporânea, um aspecto é institucional (proclamar a República), o outro é social-cultural (republicanizar o país); mas talvez muito mais importante que isso é indicar que cada um desses aspectos corresponde aos dois âmbitos do programa revolucionário na França, em termos de republicanismo, conforme indicado por Augusto Comte no Discurso sobre o conjunto do Positivismo (p. 70):

“Em seu significado negativo, o princípio republicano resume definitivamente a primeira parte da Revolução [Francesa], ao interditar todo retorno de uma realeza [...]. Por sua interpretação positiva, ele começa diretamente a regeneração final, ao proclamar a subordinação fundamental da política à moral, a partir da consagração permanente de todas as forças quaisquer ao serviço da comunidade”

-        Isso pode parecer pouco, mas não é; muito foi feito, especialmente no sentido da republicanização do país, mesmo antes do 15 de Novembro: a assombrosa marca de mais de 600 publicações da Igreja Positivista entre 1881 e 1927 é um sinal claro disso

o   Da mesma forma que os positivistas, a República e o republicanismo eram ideais levados a sério no Brasil – apesar do que a historiografia neomonarquista e marxista afirma desde 1930, para quem a I República foi um longo período (de 41 anos!) em que a população teria vivido no mundo da Lua, permanentemente alienada, fingindo que levaria a sério o republicanismo, mesmo apesar das vívidas disputas intelectuais, sociais e políticas da época

§  Os marxistas não têm muito compromisso com as instituições sociais que não sejam as propostas pelos comunistas, o que equivale a dizer que eles não tinham nenhum compromisso com a I República e sua adesão a quaisquer propostas seguia a orientação da União Soviética; os regimes  contemporâneos não comunistas são genericamente tachados de "burgueses" e, como tais, são desprezíveis por definição

§  Igualmente, os neomonarquistas por definição não tinham e não têm nenhum compromisso, nem com a I República nem com o republicanismo

o   Deveria ser evidente, mas não é: a adesão à I República e, ainda mais, ao republicanismo, não equivalia a ignorar os eventuais problemas do regime: assim, a maior parte dos republicanos, preocupados com o regime e com o caráter republicano da I República, apontavam problemas e indicavam sugestões

-        De qualquer maneira, desde a Proclamação da República, os ideais difundidos durante a monarquia passaram a ter que enfrentar o teste da realidade, com todas as dificuldades que isso implica; concomitantemente e em parte em conseqüência disso, surgiram as desilusões, juntamente com as críticas ao novo regime: embora o republicanismo fosse forte durante todo o período da I República, o fato é que nem sempre as críticas foram contrabalançadas por necessárias reafirmações do ideal republicano

o   Em face das desilusões e das críticas feitas à República após 1889, temos que perceber pelo menos três aspectos:

o   1) Os positivistas foram, desde o início, republicanos históricos e sempre tiveram enorme clareza de que há uma distância entre os ideais e a realidade e que, por mais que a realidade possa não corresponder aos ideais, isso não é motivo para desistir dos ideais em si – e, é claro, ainda menos no caso de ideais humanos, científicos, relativos, históricos e altruístas

§  Adicionalmente a esse aspecto, o enorme prestígio conferido pela República ao Positivismo – dado, entre outros motivos, pela fundamental participação de Benjamin Constant no movimento revolucionário, resultando no Decreto n. 4 de 19.11.1889 (bandeira nacional), no Decreto n. 119-A, de 7.1.1890 (separação igreja-Estado), e no Decreto n. 155-B, de 14.1.1890 (feriados nacionais) – associou a sorte do regime à sorte do próprio Positivismo, de tal maneira que um certo declínio do prestígio da República foi interpretado como declínio moral e intelectual do Positivismo

o   2) Houve críticas à República provenientes de republicanos históricos e de personagens ligadas estreitamente à fundação do regime; não consideramos aqui as críticas feitas nos anos imediatamente posteriores ao 15 de Novembro, mas as de décadas após, como as de Alberto Torres, que, na década de 1910, embora considerasse ponto pacífico a república presidencialista, afirmava a necessidade de desenvolver a nação no país e revalorizar a política, na forma específica de uma revisão constitucional – tão profunda que, na prática, equivalia a uma nova constituição

o   3) Passadas algumas décadas do advento do regime, na década de 1920 a adesão ao republicanismo era mais fraca, novas filosofias despontavam como “verdadeiramente democráticas” (a exemplo do comunismo e do nascente fascismo) e, portanto, a defesa tanto da República como regime concreto quanto do republicanismo como ideal político já era bem mais fraco: nesse ambiente, requentadas defesas da monarquia e inovadoras defesas do autoritarismo ganhavam guarida nas críticas à República – mas, a essa altura e em tal situação, o republicanismo já não era mais uma opção viável para muitos pensadores e muitos políticos

§  Temos, assim, por exemplo, Oliveira Vianna, que corresponde exatamente às características que indicamos acima: críticas extremas à República (talvez mesmo desprezo pelo regime e pelo ideal), saudades mal disfarçadas da monarquia (com idealizações fantásticas, quase alucinadas, desse período) e simpatia, também mal disfarçada, por propostas e regimes autoritários

§  Essas críticas foram aproveitadas e aglutinadas após 1930, quando um político surgido em um ambiente influenciado pelo Positivismo mas que não reconhecia nenhuma dívida e certamente pouco valor no Positivismo, assumiu o poder e implementou um regime que, não por acaso, era a negação prática do Positivismo: trata-se de Getúlio Vargas, que, também não por acaso, não teve nenhum pudor em associar-se à Igreja Católica em 1931 para retomar a religião oficial de Estado e aos fascistas, em novembro de 1937, para estabelecer o chamado “Estado Novo” (em 1941, com o objetivo de justificar o golpe de 1930 e, por extensão, o golpe de 1937, o Ministro da Educação e da Cultura do Estado Novo, Gustavo Capanema, retomou largamente as virulentas críticas de Oliveira Vianna à República)

-        A situação descrita acima é problemática devido a uma série de aspectos, estreitamente vinculados entre si:

o   Por um lado, considera-se que a I República acabou porque, acima de tudo, ela teria merecido acabar, supostamente porque ela teria sido “oligárquica”, antipopular, dissociada da realidade da nação: certamente ela tinha inúmeros problemas, mas isso não quer dizer que ela não tivesse virtudes nem que a população não a levasse a sério, não a considerasse um regime e um projeto sérios e dignos de serem defendidos

§  Por exemplo: nunca na história do Brasil tivemos nenhum regime político que levasse a sério a laicidade do Estado como ocorreu na I República; não era perfeita, mas pautada por leis sérias; inversamente, todos os regimes “democráticos” posteriores desprezaram, como desprezam, a laicidade do Estado (a despeito de declarações formais de autoridades), ou seja, fazem questão de usar o poder do Estado para impor doutrinas políticas, sejam teológicas, sejam metafísicas, sejam científicas

o   Como indicamos, o próprio sucesso do Positivismo no advento da República conduziu a associar a Religião da Humanidade ao regime; se o regime mereceu ser posto abaixo – juízo que, revelando o estrondoso sucesso do golpe de 1930, basicamente não é posto em questão –, o Positivismo também mereceu, como supostamente mereceria, ser deixado de lado

o   Em termos de republicanismo, o desprezo pela República, manifestado por Oliveira Vianna e consagrado por Getúlio Vargas e Gustavo Capanema, tornou-se uma característica do pensamento político brasileiro desde a década de 1920 (ou, se quiserem, desde 1930), criando um vazio político e intelectual em termos de regime político, que foi ocupado pelas diversas concepções de “democracia”, que vão desde a democracia iliberal de Vargas-Oliveira Vianna-Francisco Campos, passando pela democracia liberal dos nossos liberais católicos conservadores, como Miguel Reale, Alceu Amoroso Lima, Antônio Paim, Roberto Campos e outros, e chegando a outras democracias, como a comunista, de Luís Carlos Prestes

§  O vácuo político foi substituído, portanto, por filosofias políticas totalmente anti-republicanas, demorando décadas até que tivéssemos a maturidade política, institucional e social para tentarmos, de alguma forma, voltar a praticar alguma coisa parecida com o republicanismo – mas, note-se, ainda de maneira muito distante do que era o republicanismo da I República

§  Importa insistir: no Brasil, o juízo emitido por Oliveira Vianna e assumido por Gustavo Capanema-Getúlio Vargas, segundo os quais a República mereceu ser posta abaixo, foi assumido em 1930 e considerado legítimo desde então, basicamente sem contestação séria: isso era válido nas décadas de 1930 e 1940, mas, desgraçadamente, continua válido até hoje, 2023: não há verdadeira tradição republicana no país, como se vê na plêiade anti-republicana de partidos de aluguel que usam as palavras “república” e “republicano” sem nenhuma preocupação com o significado dessa palavra (aliás, não por acaso, o mesmo valendo para as palavras “ordem” e “progresso”)

§  No lugar do republicanismo afirmou-se a “democracia”; nós, positivistas, não temos nenhuma ilusão a respeito do caráter potencialmente autoritário da democracia: a proclamada “vontade do povo” é vazia por si só, correspondendo apenas aos caprichos irrefreados e absolutos de uma genérica, indefinida e indefinível “vontade geral”, que considera odiosa as liberdades de pensamento, de expressão e de associação e que também rejeita a submissão da política à moral com a necessária separação institucional entre igreja e Estado

Portanto, a oscilação entre autoritarismos e períodos liberais, que ocorreu após 1930, corresponde à própria concepção de “democracia”, mas afasta-se da de “república”; inversamente, a democracia só se torna aceitável quando, apesar de si mesma e dos seus próceres, ela aproxima-se da república

§  Por fim, devemos notar que a rejeição da república a partir da década de 1920 correspondeu, não apenas ao desprezo por um regime e por um alto e belo ideal, mas também a implantação consciente de um largo período de amnésia institucional, política e social no Brasil: afinal de contas, tornou-se um anátema defender o republicanismo, que dirá defender a I República: não é por acaso que, fingindo que a I República e o republicanismo não existiram, de maneira escandalosa tornou-se de bom tom defender a monarquia (como se ela não um regime de castas, escravista e escravocrata!) e mesmo a Era Vargas, aí incluído o Estado Novo!

-        Podemos voltar, então, ao início desta exposição: como dissemos, celebrar a atuação republicana da Igreja Positivista do Brasil não é, não pode ser e não tem como ser apenas a enumeração, seqüencial ou não, da longa, duradoura, corajosa, profunda campanha republicana dos positivistas ortodoxos brasileiros

o   Evidentemente, essa atuação foi importante por si só, pelos seus inúmeros resultados concretos e também pelos valores difundidos por ela

o   Mas o conjunto dessa atuação talvez seja o mais importante para nós, atualmente: muito longe de serem propostas e ideais “antigos”, “datados”, “ultrapassados”, que supostamente “mereceram perecer”, o fato é que os positivistas ortodoxos (mas não apenas eles!) indicaram com clareza como é possível conciliar o apoio a um regime político sem que com isso se degrade a sifocantas aduladores, “acríticos”: a concepção de “poder Espiritual” legitimador, avaliador, fiscalizador, associada necessariamente à separação entre os poderes Temporal e Espiritual (vulgarmente chamada de “laicidade do Estado”) e também à bela concepção dantoniana, ao mesmo tempo moral, política e histórica, de que “só se destrói o que se substitui” – tudo isso e muito mais garantiu a autonomia e, portanto, a dignidade do poder Espiritual (e, por extensão, da chamada “sociedade civil”); as preocupações e as propostas dos positivistas, longe de serem “datadas”, revelam-se cada vez mais atuais, necessárias e urgentes: esse é o verdadeiro republicanismo, o que, evidentemente, cumpre com urgência retomar e reafirmar