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17 maio 2021

Reflexões sobre um evento com marxistas ortodoxos

Há alguns dias eu participei de um debate à distância sobre “classes sociais no Brasil contemporâneo”.

A minha participação consistiu em afirmar que é necessário usarmos o conceito de classes sociais nas sociedades industriais, na medida em que as clivagens básicas dessas sociedades dão-se em termos de riqueza, ou seja, de classes sociais; todavia, é necessário deixar de lado o aspecto sublevador e destruidor – revolucionário, em uma palavra – que o marxismo associou a esse conceito. Ao mesmo tempo, para combater os particularismos tanto proletário do marxismo quanto, de modo mais atual, das propostas identitárias, é necessário retomar-se o conceito de república, com seu universalismo da cidadania.

Depois de mim apresentaram dois professores marxistas – bem entendido, marxistas ortodoxos. E aí eu fiquei espantado ao constatar como o marxismo pode ser extremamente sedutor e eficiente em termos retóricos.

A moralidade marxista é simplista e tende ao maniqueísmo (isso quando não é diretamente maniqueísta): o proletariado é bom mas é explorado, a burguesia é má e é exploradora. A sua promessa de solução dos problemas sociais oferece uma enorme esperança e sua “radicalidade” baseia-se também no seu simplismo maniqueísta, adicionando um elemento mágico: quando a luta de classes acirrar-se tanto e a tal ponto que ocorra uma revolução proletária universal, todos os conflitos sociais acabarão de uma vez por todas, a malvada burguesia exploradora deixará de existir e o proletariado deixará de sofrer e de ser explorado e poderá viver em paz e com dignidade.

É realmente espantoso que esse simplismo convença as pessoas. É claro que ele convence também porque, aparentemente, oferece “soluções” para os problemas que a maior parte das pessoas sofre; ou melhor, o marxismo oferece uma crítica moral, disfarçada de análise sociológica, que parece sugerir soluções para os problemas. Creio que é aí que reside muito da sedução marxista.

Mas, como observei, tudo isso é simplista e maniqueísta. Em termos individuais, isso nega, isso rejeita a noção de responsabilidade individual; ou melhor, reduz a responsabilidade individual ao maniqueísmo básico: ou ajuda o proletariado e revolução universal ou ajuda a burguesia, a dominação e a exploração.

Além disso, esse maniqueísmo afirma um universalismo proletário que nega a realidade dos países, das nações. Esse universalismo de classes ignora fatos básicos e acarretou conseqüências terríveis: por um lado, a lealdade nacional é um dos elementos mais básicos e mais fortes que une entre si os indivíduos nas sociedades; por outro lado, esse mesmo universalismo de classe provocou ou estimulou ou justificou, no início do século XX, violentas reações nacionalistas; além disso, o universalismo de classes sempre foi utilizado como desculpa para a manipulação internacional dos proletariados nacionais; por fim, as revoluções comunistas ocorreram ao redor do mundo com objetivos nacionalistas, muito mais que internacionalistas.

Mas o presente início do século XXI indica que existem vários outros problemas adicionais na crítica do internacionalismo de classes às lealdades nacionais, baseada no maniqueísmo marxista. Por um lado, por mais que se diga que o “capitalismo” – esse conceito profundamente metafísico – é internacional, o fato é que as disputas entre os países ocorrem em bases nacionais, não internacionais. Por outro lado, após a II Guerra Mundial o mundo organizou um sistema coletivo internacional de gerenciamento das crises políticas; um sistema imperfeito, não há dúvida, mas que minora muitos dos defeitos do anterior sistema baseado exclusivamente nos nacionalismos e em suas rivalidades mútuas; entretanto, como esse sistema coletivo surgido após 1945 não é proletário e, portanto, é burguês, esse sistema é visto como intrinsecamente ruim.

Além disso, as duas críticas acima reforçam por um lado uma perspectiva sociológica e moralmente particularista e, por outro lado, minam os esforços coletivos de coordenação dos assuntos internacionais: isso integra e/ou faz par, de pleno direito, ao particularismo nacionalista e identitário que elegeu Donald Trump como Presidente dos EUA, bem como inúmeros demagogos de extrema-direita mundo afora.

Por fim, considerando uma perspectiva um pouco diferente, o maniqueísmo marxista e seu universalismo proletário negam a possibilidade de projetos nacionais legítimos de desenvolvimento nacional, em que a responsabilidade pessoal esteja direcionada de verdade para o bem-estar coletivo (nacional e internacional) e para a melhoria das relações sociais. Em particular, a atual pandemia exige uma coordenação internacional, mas ela está sendo enfrentada em termos nacionais, o que é inescapável diga-se passagem; além disso, esse enfrentamento evidencia a importância de estados nacionais ativos, fortes, articulados e capazes de implementar com eficiência políticas públicas – no caso do Brasil, por meio do SUS e do Programa Nacional de Imunizações. Nada disso teria lugar ou é justificado pelo maniqueísmo marxista e por seu rasteiro universalismo proletário.

No evento de que participei, como o objetivo não era um expositor criticar as perspectivas dos outros, não me manifestei a respeito dessa série inacreditável de sofismas e simplismos morais, sociológicos, históricos e filosóficos. Mas, ao mesmo tempo, fico pensando em como seria difícil expor oralmente, em alguns minutos, essa série de raciocínios que expus por escrito acima.

Enfim, mais uma vez registro meu espanto: o público que assistia às nossas exposições era composto por jovens estudantes universitários, todos eles devidamente burgueses mas, ao mesmo tempo, muitos deles piamente convencidos desses sofismas marxistas.

(Cá entre nós, não é à toa que o atual Presidente do Brasil tem uma base fiel e fanática: são discursos igualmente superficiais, simplistas, maniqueístas, adotados por pessoas ávidas de discursos desse tipo. A diferença entre uns e outros nem ao menos é de classe social, mas de “âmbito”: como observei, o marxismo afirma-se internacionalista, ao passo que o atual “nacional-populismo”, ou (neo)fascismo, é resolutamente nacionalista e anti-internacionalista.)